Da poesia ao mistério divino O itinerário mistagógico dos hinos do Apocalipse
From poetry to divine mystery The mystagogical itinerary of the Revelation’s hymns

Marcus Aurélio Alves Mareano*
*Doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (2018). Professor da PUC MG. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Bíblica. Contato: marcusmareano@ gmail.com
Voltar ao Sumário

 

Resumo
O livro do Apocalipse de São João possui uma beleza singular por sua linguagem simbólica e mensagem de esperança. Na sua parte central (4,1–22,5), há poemas, classificados como hinos, dirigidos a Deus e ao Cordeiro. Eles propõem ao leitor um itinerário mistagógico desde o reconhecimento de Deus (4,8-11) e do Cordeiro (5,9-14); passando pelos seus atributos (7,10-12); a percepção de sua atuação (11,15-18; 12,10-12); o louvor aos seus juízos (15,3-4; 16,5-7); culminando com o Aleluia final (19,1-8), que conclui esse percurso em uma postura reverente a Deus por seu reinado e um convite às núpcias com o Cordeiro. Apresentaremos os hinos inseridos no conjunto da estrutura literária do livro do Apocalipse e a função que eles exercem de síntese poética do drama narrado. Em seguida, abordaremos a mistagogia dos hinos do Apocalipse a fim de compreender como se mostra a ação divina e sua relação com o meio e com a humanidade. Não nos deteremos demasiadamente na análise exegética, mas a presumiremos para uma ênfase mais literária e teológica. Finalmente, consideraremos Deus como mistério fascinante que propõe a comunhão a partir de Cristo, o Cordeiro imolado.

Palavras chave:Apocalipse. Hinos. Mistério Divino. Poesia. Mistagogia.

 

Abstract
The Apocalypse of St. John has a singular beauty in its symbolic language and message of hope. In the central part (4,1−22,5) there are poems classified as hymns, addressed to God and the Lamb. They offer the reader a mystagogical itinerary from the recognition of God (4:8-11) and the Lamb (5:9-14); passing through His attributes (7:10-12); the perception of His performance (11:15-18; 12:10-12); the praise of His judgments (15: 3-4; 16:5-7); culminating with the final Alleluia (19:1-8), which concludes this journey in a reverent posture to God for His reign and an invitation to the nuptials with the Lamb. We will present the hymns inserted in the ensemble of the Book of Revelation literary structure and the function they exert from the poetic synthesis of the narrated drama. Next, we will approach the mystagogy of the Revelation hymns in order to understand how the divine action and its relation to the environment and to humanity are shown. We shall not overly dwell on exegetical analysis, but we shall presume it for a more literary and theological emphasis. Finally, we will consider God as a fascinating mystery that proposes communion from Christ, the Lamb slain.

Keywords:Apocalypse. Hymns. Divine Mystery. Poetry. Mistagogy.

Introdução

Ocaminho da poesia ao mistério divino é possível de perceber em diversos autores que nos arrebatam com seus textos provocantes ao sublime. Não seria diferente com textos bíblicos tidos, pela tradição judaica e cristã, como sagrados, portanto, que apresentam Deus. Contudo, leituras tendenciosas e fundamentalistas desses textos ofuscam sua beleza enquanto obra literária.

O livro do Apocalipse é uma dessas obras vítimas de muitas interpretações deturpadas que, ao invés de gerar encantamento, causam horror e medo para os leitores e ouvintes. Entretanto, a mensagem dessa narrativa culmina com esperança e suscita ânimo para quem deseja apreciar o texto. Confirmamos essa suposição tomando os hinos desse livro, que são peças poéticas, e percebendo a imagem de Deus que eles transmitem.

Quanto ao gênero literário “hino”, não há um critério consensual para a classificação dele no Novo Testamento (OSBORNE, 2009, p. 73). Os autores definem conforme a estrutura do livro, sua função literária, a mensagem, entre outros. Especificamente para o livro que escolhemos, observa-se que os hinos pertencem à parte central do Apocalipse (4,1−22,9), há um vocabulário comum entre eles, os sujeitos que os proclamam sempre são seres celestiais, Deus e o Cordeiro são seus destinatários (exceto 12,10-12); possuem uma estrutura antifonal (exceto 15,3-4). Assim, elencamos as seguintes perícopes, classificando-as como “hinos”: 4,8-11; 5,9-14; 7,10-12; 11,15-18; 12,10-12; 15,3-4; 16,5- 7; 19,1-8.

Conforme os autores, os hinos possuem origens diversas, dentre as principais: a liturgia cristã primitiva, as Escrituras, o misticismo judaico e as aclamações imperiais do primeiro século (SEAL, 2008, p. 339-340). Essas diferentes fontes, possivelmente outras ainda não descobertas, unem-se para a composição dos hinos que analisamos. Essas fontes distintas trazem características literárias e temáticas que influenciam os textos, objeto dessa pesquisa.

Optamos metodologicamente por uma ênfase literária e teológica, pressupondo uma análise exegética realizada em outro trabalho anterior. Desenvolveremos dois tópicos que correspondem a essa opção. O primeiro, de cunho mais literário, apresenta os hinos na relação com o texto: eles são poemas intercalando a narrativa em prosa. O segundo tópico, mais teológico, toma essas perícopes e destaca a relação entre elas por meio de um processo mistagógico de apresentação de quem é Deus e como os seres assimilam essa presença. Portanto, da Literatura à Teologia, da poesia ao mistério divino e das letras ao Espírito.

Ao contrário de uma imagem de Deus terrível e punitivo, deparamo-nos com um mysterium tremendum et fascinans. Um convite para uma experiência de poesia e encontro com o mistério divino.

Os hinos enquanto síntese do drama narrativo

Com a observação da posição dos hinos na narrativa e a análise prévia dos textos, notamos um papel de síntese do enredo relatado. Os hinos emolduram os episódios e servem de transição de uma cena para outra.

Ugo Vanni acenou para a questão da posição dos hinos, que ele chamou de “doxologias”, afirmando que eles possuem uma direção prospectiva, quando se relacionam com o texto posterior, e retrospectiva, quando se relacionam com o texto anterior (VANNI, 1980, p. 149). A hipótese é desenvolvida a partir da análise de 1,4-8; 4,8-11; 5,8-14; 7,9-12; 11,15-18; 15,3-4; 16,5-7; 19,1-8. O autor conclui que os hinos estruturam o livro do Apocalipse e desenvolvem a dinâmica de presente-passado-futuro até a realização da salvação de Deus por meio do Cordeiro (VANNI, 1980, p. 166-167; opinião semelhante: LAMBRECHT, 1980, p. 99). Vanni percebe ainda uma função semelhante aos coros da tragédia grega: reviver liricamente fatos precedentes e futuros (VANNI, 1980, p. 167).

André Paul, em uma conferência intitulada “Doxologia, liturgia e história no Apocalipse”, também se expressa sobre a relação dos hinos com o conjunto do texto. Ele argumenta que os hinos, chamados por ele de “doxologias”, intervêm como um excesso que ilumina os eventos como um flash místico (PAUL, 2001, p. 71). Eles se localizam em um contexto imediato e se enquadram na respectiva seção a fim de elaborar o conjunto do enredo (PAUL, 2001, p. 72). O autor alude a todos os hinos, mas se restringe apenas à breve análise de 1,4-6; 4,8-11; 19,1-8.

Michèle Morgen também demonstra a relação dos hinos, que ela chama de “passagens hínicas”, com o livro do Apocalipse. Para a autora, os hinos articulam e realçam os acontecimentos do Apocalipse (MORGEN, 2009, p. 211), oferecendo uma pausa na leitura para acelerar a ação (MORGEN, 2009, p. 234). Por isso eles se situam na parte central do livro (4,1−22,5), onde acontece o desvelamento dos fatos (MORGEN, 2009, p. 233). Ela ainda afirma que os hinos se integram bem no conjunto da narração possuindo um vocabulário próprio, porém com proximidades com a narrativa (MORGEN, 2009, p. 234).

As intuições dos autores precedentes observam a função dos hinos em relação ao enredo do livro. Vanni ressaltou a participação dos hinos na estruturação do Apocalipse e o evento da salvação se realizando no tempo. Paul chamou essa participação dos hinos na narrativa de um “excesso” e “flash místico”. Morgen sublinhou o caráter de pausa que os hinos provocam na narrativa e como eles articulam os fatos. No entanto, os autores consideraram rapidamente os textos em questão devido aos próprios objetivos metodológicos diferentes. Assim, desenvolvemos as intuições herdadas para mostrar, brevemente, a relação dos hinos com o contexto literário imediato

O primeiro hino (4,8-11) se localiza no final de uma parte dos eventos que acontecem na sala do trono de Deus. Inicialmente, a porta do céu se abre para que o vidente contemple o trono (4,1-2); há a composição do cenário com as descrições daquele que está no trono e seu entorno: os vinte e quatro tronos com os anciãos, os fenômenos oriundos da sala e os seres presentes na cena (4,3-7); finalmente, o ato de adoração completa a ação (4,8-11) (AUNE, 1997, p. 274-275). Logo, a perícope conclui a apresentação do início do enredo e se articula com o que se sucedelos por parte do Cordeiro (6,1). Os dois primeiros hinos (4,8-11; 5,9-14) têm características conclusivas e articuladoras, marcam a primeira seção do Apocalipse (4,1–5,14) e situam o leitor para os fatos sucessivos (VANNI, 1980, p. 156). Por essas características, Vanni justifica uma proposta de divisão do Apocalipse em cinco seções (4,1−5,14; 6,1−7,17; 8,1−11,14; 11,15−16,16; 16,17−22,5), afirmando que os dois presentes hinos (4,8-11; 5,9-14) se referem também à abertura da mensagem geral do Apocalipse (VANNI, 1980, p. 182-183).

A ruptura dos sete selos segue sendo descrita com detalhes progressivos em 6,1–8,1. Para a abertura do sexto selo (6,12–7,17), o enredo se enriquece com mais visões nas quais se insere um hino (7,10-12). A primeira visão é sobre o sexto selo (6,12-17), a segunda mostra a ação dos quatro anjos (7,1-8) e a terceira constitui a multidão com vestes brancas de pé diante do Cordeiro (7,9-17), que proclama o hino a Deus e ao Cordeiro (7,10-12) (AUNE, 1998a, p. 432-433). A proclamação da salvação pela multidão é interpretada por um ancião (7,13-17). Então, o hino de 7,10-12 se localiza na parte central da pausa solene para a abertura do sétimo selo e prepara o leitor para o silêncio consequente à abertura do selo final e o toque das sete trombetas. Há o encerramento de um setenário e abertura do seguinte. O hino retoma os atributos declarados nos anteriores (4,8-11; 5,9-14) e faz a transição entre os dois momentos.

As trombetas soam e o julgamento se executa continuamente (8,2– 11,13). Ao toque da última trombeta (11,14), proclama-se o hino do reinado de Deus e do seu Cristo (11,15-18). Coincidentemente ao hino anterior (7,10-12), o presente texto é precedido por um prelúdio e conclui um setenário. Dessa vez, ocorre a exclamação dos três “ais” (9,12; 11,14), que correspondem às três últimas trombetas com os respectivos acontecimentos. Vanni comenta uma relação entre esses dois hinos, afirmando que 7,9-10 possui uma tendência retrospectiva e 11,15-18 uma tendência prospectiva (VANNI, 1980, p. 183). De fato, o hino (11,15-18) prepara a visão central da mulher e do dragão. Novamente, observa-se a posição de conclusão do setenário e de transição de eventos.

O capítulo seguinte se inicia com o anúncio de um sinal grandioso no céu e a apresentação dos personagens (12,1-4). Seguem-se o nascimento e a fuga da criança (12,5-6); a derrota do dragão (12,7-12); a perseguição do dragão contra a mulher e contra os descendentes dela (12,13-17) (AUNE, 1998a, p. 657-660). O hino (12,10-12) se situa na parte central do capítulo, concluindo a vitória de Miguel sobre o dragão e preparando o relato da perseguição da mulher.

Os capítulos seguintes (13–15) são marcados pela expressão inicial “eu vi” (13,1; 14,1; 15,1), que já ocorreu outras vezes (6,1; 8,2; 10,1). Em 13,1-18, há a visão das duas bestas: do mar (13,1-10) e da terra (13,11- 18); e, em 14,1-20, a visão do Cordeiro com seus seguidores (14,1-5), os anjos anunciando o julgamento (14,6-13) e a hora da colheita (14,14-20). O hino (15,3-4) demonstra uma continuidade com as visões precedentes (12–14), ilustra a visão dos anjos e das pragas com a ira divina (15,1-2) e antecipa a abertura do santuário (15,5-8) e o despejo das sete taças (16,1-20) (BEALE, 1999, p. 784-785). Outra vez, o hino serve de abertura para um evento divino.

Brevemente posterior, o hino seguinte (16,5-7) intercala o derramamento da terceira taça das outras restantes. Outros hinos (7,10-12; 11,15-18) correspondem ao final do setenário, no entanto, esse hino se localiza antes do derramamento da taça central (16,8-9) (AUNE, 1998a, p. 865-866), assemelhando-se a 12,10-12, pela posição central na parte narrada, e a 15,3-4, por preparar os eventos sucessivos da ação divina. Os dois hinos posteriores ao início do julgamento divino (15,3-4; 16,5- 7) possuem posição que parece interromper a narração, contudo, eles constituem uma celebração do agir divino.

O último hino (19,1-8) representa um gran finale do bloco literário central do Apocalipse (4,1–22,5). Ele se insere entre a queda da Babilônia (17–18) e a visão final da cidade ideal, a nova Jerusalém (21−22) (AUNE, 1998b, p. 1019). Logo, percebe-se a proclamação do hino como uma pausa transicional encerrando o julgamento da grande prostituta e a contemplação da noiva que desce do céu. O hino conclui não apenas uma seção imediata, mas sintetiza o que se proclamou sobre Deus na narrativa do Apocalipse. O texto retoma o julgamento da prostituta (19,2) e preludia a visão final da nova Jerusalém (19,7) em uma solene celebração do agir divino (VANNI, 1980, p. 166). Outra vez, o hino conclui acontecimentos e serve de transição literária da narração.

Conforme visto, os hinos se localizam em posições privilegiadas no enredo. Ugo Vanni destaca o caráter retrospectivo e prospectivo dos hinos, no entanto, essa característica não fica clara em todos os hinos, como por exemplo em 15,3-4 e 16,5-6, conforme explica o próprio autor (VANNI, 1980, p. 162-164). André Paul fala dos hinos como uma intervenção textual, comparando-os a um “flash místico” (PAUL, 2001, p. 71). Contudo, nós observamos mais a continuidade narrativa dos hinos (vocábulos e temas) em relação ao enredo do que um aparecimento imprevisto. Michèle Morgen ressalta a pausa narrativa causada pelos hinos, a dinamicidade que eles provocam e a relação deles com o relato (MORGEN, 2009, p. 233-235), além disso, ao nosso modo de ver, eles sintetizam os eventos e embelezam a intriga contada.

Assim, os hinos possuem, por sua localização textual e conteúdo, um papel específico no livro do Apocalipse. Eles retomam e celebram os eventos de forma doxológica e antifonal consolidando o drama narrado e relacionando um episódio ao outro. Por conseguinte, devido a tal função, os hinos portam consigo uma síntese da imagem de Deus presente no Apocalipse e apresenta-o mistagogicamente.

A mistagogia dos hinos do Apocalipse

O Apocalipse dispõe a narrativa de forma a introduzir o leitor no arcano de Deus e de seu Cristo por meio do Espírito Santo. Aos poucos, conforme o enredo, o mistério se desvela através dos fatos culminando com a visão final de um novo céu e uma nova terra (21,1). Nos hinos, também acompanhamos essa iniciação à ação de Deus.

O primeiro hino (4,8-11) apresenta Deus identificando-o a partir de atribuições da tradição judaica. A reação daqueles que o contemplam é de “prostrar-se” e “lançar suas coroas” (4,10) como atos de reverência e adoração àquele que está sentado no trono (4,9; 5,1; 7,13; 6,16; 7,15; 21,5). A metáfora do “trono” se encontra na tradição profética e em muitos apocalipses judaicos para designar a dimensão transcendente de Deus (1Rs 22,19-23; Is 6; Ez 1; Dn 7,9-10; 1Hen 14; 60,1-6; 71,2; 2Hen 20,1; Ap Abraão 15-18) (BAUCKHAM, 1993, p. 31-32). Essa imagem era comum nas culturas do oriente antigo (sumérios, acádios, hititas, ugaríticos e egípcios) e objeto de adoração (NAM, 1989, p. 61-118). Mesmo havendo a identificação com o Deus do Antigo Testamento, a nomeação divina permanece insuficiente e aquele que é visto permanece inominável na esfera celeste.

O segundo hino (5,9-14) apresenta o Cordeiro em relação com aquele que está sobre o trono (STEFANOVIC, 1995, p. 165-167). A identificação da imagem do Cordeiro, possível alusão ao servo de Is 53, com Jesus Cristo, se realiza com o desenrolar do evento (MUELLER, 2011, p. 42-66). O livro do Apocalipse não repete a história de Jesus que os evangelhos contaram, mas se refere à morte e ressurreição de Jesus falando do Cordeiro imolado e de pé (5,6), por isso digno da mesma reverência de Deus (BAUCKHAM, 1993, p. 60). Além disso, apresenta- -o em comunhão com Deus, aquele que está sentado sobre o trono, e relacionado à comunidade.

Em 7,10-12, quando os fatos começam a acontecer, introduz-se o tema da salvação pertencente a Deus e ao Cordeiro (7,10). Os atributos usados para Deus e para o Cordeiro nos dois hinos anteriores se repetem com o acréscimo de “dar graças” (7,12). O leitor-ouvinte se atenta para a ação divina, doravante caracterizada como “salvação” (7,10; 12,10; 19,1): vocábulo que caracteriza como os hinos assimilam o que acontece na narrativa do livro do Apocalipse (7,10; 12,10; 19,1). O hino passa das atribuições a Deus e ao Cordeiro para o anúncio da salvação que ocupará o centro do Apocalipse. Retomam-se as descrições anteriores e anuncia-se a realização da salvação

Os hinos 11,15-18 e 12,10-12 se situam em torno do julgamento de Deus. O primeiro comunica que o reino do mundo se tornou do Senhor e do seu Cristo, então, ele começará seu reinado (11,15). A semântica do texto muda para prevalências dos termos “reinar” (ocorrido em 5,10, mas repetido em 11,15.17; 19,6; 20,4.6; 22,5) e “reino” (ocorrido em 1,6.7, mas repetido em 11,15; 12,10; 16,10; 17,12.17.18)1. . Também ocorrem com mais frequência o verbo “julgar” (6,10; 11,18; 16,5; 18,8.20; 19,2.11; 20,12.13), os substantivos: “julgamento” (17,1; 18,20; 20,4) e “juízo” (15,4; 19,8), e o adjetivo “justo” (15,3; 16,5.7; 19,2; 22,11). A adoração continua, mas passa-se de atribuições a Deus para a contemplação do seu julgamento. A designação do Cordeiro como Cristo se torna mais frequente (11,15; 12,10; 20,4.6). O leitor-ouvinte experimenta a ação divina mais do que expressa os adjetivos para Deus. O que antes era atribuição, agora passa a ser evento narrado.

O hino 12,10-12 declara o início da salvação (julgamento) (12,10). Deus e Cristo exercem sua autoridade e expulsam o acusador dos cristãos. Passa-se a dar atenção à comunidade perseguida e resistente que testemunha a fé em Cristo (12,11). A vitória se realiza “por meio” e “na” comunidade de fé. Logo, inicia-se o júbilo porque o Diabo foi expulso. O hino central do Apocalipse não mais se dirige a Deus para reverenciá-lo, mas para os leitores-ouvintes a fim de proclamar a realização da ação divina (salvação).

Por conseguinte, os hinos celebram a vitória de Deus utilizando a imagem do soberano que começa efetivamente a exercer seu reinado. Por isso, enaltecem-se as obras maravilhosas de Deus (15,3-4). À semelhança da libertação do povo de Israel do Egito, os cristãos podem experimentar a liberdade que acontece devido à manifestação dos juízos divinos (15,4). Ao mesmo tempo, as nações são convidadas à adoração conjuntamente com os cristãos, pois apenas Deus é santo (15,4). O mistério de Deus revelado se destina a todos.

A celebração do julgamento de Deus continua juntamente com o testemunho da comunidade cristã (16,5-7). O hino assume a descrição comum de Deus no Apocalipse (o que é e o que era) e soma a este os títulos apresentados em 15,3 (justo e santo), justificando que ele julgou todas as coisas. A atenção também se dirige aos cristãos que derramaram o próprio sangue e são chamados de dignos (16,6) assim como Deus e o Cordeiro (4,11; 5,9.12). Mais uma vez, enaltecem-se os verdadeiros e justos julgamentos de Deus (16,7) da mesma forma que seus caminhos em 15,4. Confirma-se a continuação da celebração do julgamento divino.

O fechamento hínico do Apocalipse ocorre em 19,1-8 com uma retomada dos temas, termos, personagens e atributos já dirigidos a Deus e ao Cordeiro nos outros hinos. A cena se recompõe para que o leitor- -ouvinte entre nesse reinado de Deus e cante o louvor a Deus por causa da condenação da prostituta e da vingança do sangue dos servos (19,2). O júbilo caracteriza esse hino: Aleluia (19,1); louvai ao Senhor (19,5); regozijemo-nos, alegremo-nos e glorifiquemos (19,5). Assim, conduz-se quem acolhe esse “desvelamento” para uma comunhão com Deus por meio do Cordeiro.

Passo a passo, quem se aproxima do Apocalipse penetra no mistério de Deus. O início acontece com a apresentação da sala do trono, onde Deus está sentado (4,8-11) e o Cordeiro imolado de pé (5,9-14). Então, proclama-se que a salvação pertence a Deus e ao Cordeiro (7,10-12). Logo, inicia-se o reinado de Deus e de seu Cristo (11,15-18) e a realização da salvação (12,10-12), que consistem no julgamento dos opressores dos cristãos. Finalmente, celebram-se as obras maravilhosas do Senhor (15,3-4) e seus verdadeiros e justos julgamentos (16,5-7), cantando o “aleluia” final a caminho das núpcias com o Cordeiro (19,1-8).

Dessa forma, o leitor-ouvinte passa da reverência a Deus e ao Cordeiro por meio dos diversos atributos para a celebração da ação divina que ocorre na experiência histórica dos primeiros cristãos. A vida real daquelas pessoas era considerada nesses hinos e celebradas reverenciando a atuação divina em Jesus Cristo.

Conforme os hinos, a adoração a Deus não é um ato “estático”, mas dinâmico e “extático” por mover o ser humano ao reconhecimento de sua ação salvífica entre aqueles aflitos e esperar por novos tempos. A experiência de garantia da vitória confortava os cristãos imersos naquele contexto sociocultural (CASALEGNO, 2017, p. 25. WENGST, 1991, p. 70-76). Os hinos podem ser considerados uma expressão do testemunho da fé em Cristo e estímulo para aqueles que têm acesso àquela mensagem que persevere ante as adversidades: “A recordação do culto torna-se, assim, recordação subversiva. Destarte, a leitura do Apocalipse ensina, não em último lugar, a celebrar o culto como treinamento na resistência”. (WENGST, 1991, p. 198).

Portanto, além de testemunhar a vida dos cristãos naquele tempo, os hinos provocam os leitores de hoje para semelhante testemunho de prática da fé em Cristo, inserido no contexto sociocultural.

Considerações finais

Os hinos trazem consigo a síntese do enredo e a Teologia do Apocalipse. Os seres assombrados com o mistério experimentam e assistem à execução do julgamento. As expressões de louvor comunicam o arrebatamento e o gozo espiritual da relação com a ação divina por meio do culto e na própria história do povo. Por isso, a mescla, no enredo, de atos e termos de cunho cúltico e político (BAUCKHAM, 1993, p. 33-34).

Conforme nossos textos, Deus é para quem se dirigem as reverências e honras, causando um temor religioso ou um “sentimento do estado de criatura”, conforme a descrição de Otto para designar o ser humano diante do numinoso (OTTO, 2005, p. 19). Somos conduzidos para diante de um mysterium tremendum (OTTO, 2005, p. 22). Contudo, Deus não é um terror, nem horrível, mas fascinante e admirável, que exerce uma atração no ser humano (OTTO, 2005, p. 49)

Passamos da poesia à experiência do mistério divino tremendum et fascinans. A narrativa se embeleza com as pausas poéticas dos hinos. Os eventos são recordados, celebrados, e assimilados pela comunidade que formou esse texto e por quem lê e interpreta a atualidade. Deus se faz presente na cedência desses hinos que faz o ser humano participante e em comunhão com sua justiça realizável na história.

A tessitura das palavras, a organização dessas peças na estrutura literária do livro e a sequência dos eventos e das aclamações sugerem um Deus fascinante que poetas e místicos de diferentes épocas experimentaram. Assim aconteceu com o autor do Apocalipse e pode ocorrer também aos leitores de outrora, como disserta Carlos Mendonza-Álvarez ao falar da experiência de Deus na pós-modernidade:

Aqui, neste “aquém’ da subjetividade desconstruída, encontramo-nos sós e ao mesmo tempo acompanhados. Sós em nossa liberdade pensante e acompanhados na sensibilidade de outros corpos. Sós no luto, mas acompanhados de nossos mortos e dos vivos a que com pena e com gozo, entremesclados sempre, mal conhecemos e amamos. (...) Um lugar que não é lugar, um sentido que é sem sentido, um ser que não é ente nem superente, mas abismo do ser. (...) Teremos de dar esse salto no vazio: uma fé que não é crença que se engana anelando possuir um objeto de latria, mas fé que é confiança incondicional no outro. Uma esperança não espera nada e, no entanto, dá todo na aposta de um amanhã. Um amor que não é correspondido porque não tem medida, mas só sabe ser pura doação. Tal será o lugar para falar da revelação divina no meio dos escombros da pós-modernidade. (MENDOZA-ÁLVAREZ, 2016, p. 42-44).

Embora haja, no Apocalipse, um anúncio de fim, há uma celebração para ele e o anseio de que se realize, pois ele representa essa experiência com o inefável apresentado na poesia dos hinos e o início de uma nova realidade na qual Deus “enxugará toda lágrima, não haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor” (21,4).

Referências

AUNE, David. Revelation 1-5. Dallas: Word, 1997.

AUNE, David. Revelation 17-22. Nashville: Thomas Nelson, 1998b.

AUNE, David. Revelation 6-16. Nashville: Thomas Nelson, 1998a.

BAUCKHAM, Richard. The Theology of the Book of Revelation. Cambridge: Cambridge Press, 1993.

CASALEGNO, Alberto. E o Cordeiro vencerá (Ap 17,14): leitura exegético-teológica do livro do Apocalipse. São Paulo: Loyola, 2017.

MENDOZA-ÁLVAREZ, Carlos. Deus ineffabilis: uma Teologia pós-moderna da revelação do fim dos tempos. São Paulo: É Realizações, 2016.

MORGEN, Michèle. Comment louer Dieu, “Celui qui siège sur le trône et l’Agneau”?: Étude sur la contextualization et la fonction des passages hymniques dans l’ensemble du livre de l’Apocalypse. In: ACFEB. Les hymnes du Nouveau Testament et leurs fonctions. Paris: Cerf, 2009, p. 209-237.

MUELLER, Ekkehardt. Christological Concepts in the Book of Revelation: the Lamb Christology. Journal of the Adventist Theological Society, v. 22, n. 2, p. 42-66, 2011.

NAM, Daegeuk. The “Throne of God” motif in the Hebrew Bible. Michigan: Andrews University, 1989.

OSBORNE, Thomas. “Récitez entre vous des psaumes, des hymes et des cantiques inspires” (Ep 5,19): Un état de la question sur l’étude des “hymnes” du Nouveau Testament. In: ACFEB. Les hymnes du Nouveau Testament et leurs fonctions. Paris: Cerf, 2009, p.57-80.

OTTO, Rudolf. O sagrado. Lisboa: Edições 70, 2005.

PAUL, André. Doxologie, liturgie et histoire dans l’Apocalypse. In:

SIMOENS, Yves; THEOBALD, Christoph. Sous le signe de l’imminence: l’Apocalypse de Jean pour penser l’histoire. Paris: Médiasèvres, 2001, p. 63-76.

SEAL, David. Shouting in the Apocalypse: the influence of First-Century Acclamations on the Praise Utterances in Revelation 4:8 and 11. Journal of the Evangelical Theological Society, v. 2, n. 51, p. 339-352, 2008.

STEFANOVIC, Ranko. The Background and Meaning of Sealed Book of Revelation 5. Michigan: Andrews University, 1995.

VANNI, Ugo. La struttura letteraria dell’Apocalisse. Brescia: Morcelliana, 1980.

WENGST, Klaus. Pax Romana: pretensão e realidade. São Paulo: Paulinas, 1991.

Notas

[1]O verbo “reinar” ora tem como sujeito Deus (11,15.17; 19,6), ora os cristãos (5,10; 20,4.6; 22,5). Anuncia-se o reinado de Deus (11,15: futuro) e logo apresenta-se a realização (11,17; 19,6: aoristo). Para os cristãos, há a promessa de que reinarão com Deus (5,10; 20,6; 22,5: futuro), apesar da ocorrência de um aoristo (20,4). O uso desse verbo demonstra a dinâmica escatológica presente no Apocalipse.