Poética do estudo na história da universidade: para um exame da correlação formativa entre religião, poesia e ciência.
Poetics of the study in university history: For an examination of the formative correlation between religion, poetry and science.

Eduardo Guerreiro Brito Losso*
* Doutor em ciência da literatura na UFRJ e na Universität Leipzig. Professor associado de Teoria Literária do Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ. E-mail: edugbl@msn.com
Voltar ao Sumário

 

Resumo
O estudo sempre foi entendido somente como um ponto de partida para uma profissão, sem fim em si mesmo? Se a universidade é o lugar do estudo superior, qual foi o propósito inicial dela, formar profissionais ou intelectuais? Qual o papel da tradição literária e religiosa na prática estudantil dos intelectuais? E como, afinal, que a universidade acolheu, abrigou e fomentou o desenvolvimento desses diversos fatores da atividade intelectual? Essas são as questões que o artigo pretende abordar ao percorrer momentos determinantes da história da universidade com o intuito de esclarecer a importância da ascese intelectual intramundana no desenvolvimento qualitativo do ensino e da pesquisa. Para entender, inclusive, o que é pesquisar, num sentido amplo da palavra, serão visitadas diferentes elaborações históricas do que podemos chamar de uma poética do estudo, inevitavelmente contendo um certo tipo de prática espiritual, que se desprende da mera repetição mecânica e invariante do trabalho profissional.

Palavras chave:história da universidade, religião, poesia, ciência, estudo

 

Abstract
Has the study always been understood only as a starting point for a profession, without end in itself? If university is the place of the higher study, what was its initial purpose, to train professionals or intellectuals? What is the role of the literary and religious tradition in the student practice of the intellectuals? And how, after all, did the university welcomed, sheltered and promoted the development of these various factors of intellectual activity? These are the questions the article intends to approach, while going through determinant moments of the university’s history in order to clarify the importance of intramundane intellectual asceticism in the qualitative development of teaching and research. To understand what to research is, in a broad sense of the word, we will visit different historical elaborations of what we may call a poetics of the study, inevitably containing a certain type of spiritual practice, which detach itself from the mere mechanical and invariant repetition of the professional work.

Keywords:university history, religion, poetry, science, study

Introdução

O estudo sempre foi entendido somente como um ponto de partida para uma profissão, sem fim em si mesmo? Ele sempre serviu para fazer concursos, concorrer a vagas ou, dentro de um emprego, só serviu para resultados produtivos quantificáveis? Ou ele também já se empenhava num objetivo diverso?

Se a universidade é o lugar do estudo superior, qual foi o propósito inicial dela? Formar profissionais ou intelectuais? Tais intelectuais sempre se viam e eram vistos como personalidades laicas, ou eles também continham em seus propósitos alguma motivação espiritual? Além disso, entre o pragmático e o espiritual, qual era o lugar da relação com a contemplação do belo e a dimensão poética da escrita? Qual o papel da tradição literária e religiosa na prática reflexiva dos primeiros intelectuais? Quando o literário se conflita com o religioso e quando se conjuga, no processo de formação do pensador? E como, afinal, que a universidade acolheu, abrigou e fomentou o desenvolvimento desses diversos fatores da atividade intelectual?

Essas são as questões que o artigo pretende abordar ao percorrer momentos determinantes da história da universidade com o intuito de esclarecer a importância da ascese intelectual intramundana no desenvolvimento qualitativo do ensino e da pesquisa. Para entender, inclusive, o que é pesquisar, num sentido amplo da palavra, serão visitadas diferentes elaborações históricas do que podemos chamar de uma poética do estudo, inevitavelmente contendo um certo tipo de prática espiritual, que se desprende da mera repetição mecânica e invariante do trabalho profissional. Se vivemos em tempos de ataque à universidade pública e laica, conflitos com crenças religiosas e hábitos morais, bem como questionamento de sua autonomia, a atenção a sua história pode nos ajudar.

Idade Média: estudo, espiritualidade e profissão

Na alta Idade Média europeia a educação era em geral constituída de escolas monásticas (JANOTTI, 1992, p.16-17). Estas privilegiavam um ideário voltado para “o crescimento espiritual na busca de Deus” (LAWRENCE, 1989, p. 176). O objetivo, quando chegava à produção literária, era de promover a meditação e a emulação de modelos de conduta, e não especular ou desenvolver a investigação. A pretensão do ensino no mosteiro não ultrapassava a tarefa de preparar para as atividades específicas do monge, recusando qualquer outro aluno ou qualquer outra finalidade. Ainda assim, vale destacar que as práticas ascéticas de leitura desenvolvidas nesse período, como a lectio divina (leitura em voz alta e meditação silenciosa) e a lectio spiritualis (praticar associações em torno do conteúdo lido), foram determinantes para a ligação intrínseca entre estudo e espiritualidade no Ocidente.

Do século VI ao X, as escolas episcopais ou catedráticas também existiam ao lado das monásticas, comportando-se de maneira muito semelhante a elas, ainda que servindo para formar clérigos e não monges. Mas foi no século XI e XII que elas se tornaram dominantes (ARMSTRONG, 1988, p. 54). Com o surgimento das primeiras cidades, seu crescimento exigiu uma maior organização de alunos, que criaram, em Bologna, a primeira universidade. Em seguida, em Paris, criou-se uma segunda universidade, advinda da própria estrutura das escolas catedráticas. O mais carismático dos professores de Paris, Abelardo (1079-1142), foi professor da Catedral de Notre-Dame, e sua fama contribuiu para a atratividade dos estudos parisienses.

Se houve um pequeno renascimento dos estudos clássicos no século XII, a universidade participou pouco disso. Sem dúvida, ela nasceu das controvérsias da descoberta da obra de Aristóteles, alvo de muitas suspeitas, mas que também provocou todo um projeto de readaptá-la a um novo modelo teológico, que foi chamado depois de escolástica. Apesar do estudo de suas obras ter sido proibido pelo papa de 1210 a 1215, em 1231 ele exigiu que elas fossem examinadas e já em 1254 foram incorporadas no currículo da faculdade de artes (onde se estudava o trivium e o quadrivium). Contudo, outros estudos clássicos, embora especialmente lidos nas escolas catedrais de Chartres e Orleães, foram pouco integrados ao ensino da universidade. Estudos literários se tornaram já extintos no século XIII (HASKINS, 2015, p. 31).

As três faculdades que integravam uma universidade eram direito, medicina e teologia, a última chamada Madame la haute science, a rainha das ciências, sendo o curso mais prestigiado e dificultoso; a Faculdade de Artes servia para o domínio de disciplinas iniciais que garantiam a formação para a diplomação das três, isto é, era meramente preparatória. Mesmo que a teologia fosse o curso mais prestigiado, não era o mais procurado: o que suscitava mais o interesse de seus aspirantes eram os cursos técnicos: direito canônico e medicina. Por isso mesmo, a universidade medieval servia primeiramente a um propósito profissionalizante.

A universidade sempre teve como meta o exercício crítico e formativo? Diante dessa questão, devemos responder que não. Pelo menos durante os três primeiros séculos de existência, ela esteve intrinsecamente ligada aos propósitos eclesiásticos e técnicos. O lugar da disciplina teológica, por certo, era paradoxal: se, de um lado, detinha o saber superior, de outro, sua supremacia não se traduzia em demanda. Mesmo numa sociedade em que ela se impunha como valor dominante diante de necessidades empregatícias, a busca de melhores postos e cargos ambiciosos, inclusive dentro da própria Igreja, dava preferência ao direito canônico.

Assim, se compararmos à noção moderna de universidade, temos duas grandes diferenças: primeiro, a teologia não era a guarida do pensamento livre. Pelo contrário, era uma faculdade orientada e controlada pela Igreja. Segundo, a universidade, desde seus princípios, serviu majoritariamente à formação técnica, que, de fato, não oferecia problemas doutrinais, isto é, a Igreja não se incomodava com detalhes funcionais.

Vida filosófica e ascese intelectual

Isso não significa, de forma alguma, que não tenha havido conflito entre a abertura de um novo modo de vida que a universidade proporcionava e as restrições da Igreja. É no interior da própria teologia que vai se interceder por uma vida filosófica, atribuída como tão louvável quanto a monástica, de modo a diminuir a diferença entre quem está fora do mundo e quem está dentro dele. Se, a partir dessa época, iniciam-se ordens mendicantes, como a franciscana, que trazem a espiritualidade para dentro do mundo, obrando nele, porque outro modo de ascese dentro da cidade também não ocorreria, no caso do professor universitário?

A abolição de distância entre o ócio e o negócio já dentro das escolas catedrais vai levar Abelardo a conceber uma sorte de abstinência egoísta, isto é, um tipo de renúncia de prestígios e contentamentos mundanos em prol de um delicioso silêncio estudantil solitário que, contudo, agora começa a ser experimentado por muitos estudantes e professores até constituir uma aliança corporativa, em suma, aparece um contexto comum que torna possível enunciar uma nova ética. É na experiência de desalienação do trabalho e de uma amizade feita de leituras, reflexões e escrita que nasce o intelectual. Ela introduz uma verdadeira laicização do ascetismo dentro do exercício de lucubração (LIBERA, 1999, p. 194-226)

Pouco depois, Dante Alighieri vai afirmar que a vida contemplativa é a melhor antecipação da felicidade espiritual no mundo. O caminho verdadeiramente nobre para a busca da beatitude está em ocupar-se da sabedoria teorética, o que cria condições para a vida filosófica surgir a partir da teologia (LIBERA, 1999, p. 254-255). Percebe-se que, para um intelectual como Dante (1265-1321), esse nascimento de uma atividade filosófica com matriz ascética de enobrecimento está inclusive ligado à leitura da poesia provençal nascente, à emergência de uma nova literatura a partir de novas línguas, que vão fazer emergir a lírica. Tanto para Dante quanto para Petrarca (13041374), a leitura da poesia lírica se tornará “uma forma válida de atividade reflexiva” e “um novo tipo de prática contemplativa eticamente orientada” (STOCK, 2007, p. 23 e 29). Assim como uma nova forma de filosofia está surgindo do modo de vida do estudo universitário, também está surgindo um modo de vida filosófico de uma ascese estética própria da atividade poética. Como diz Brian Stock: “Petrarca está convencido” de que “a poesia é um tipo de filosofia” (STOCK, 2007, p. 29). A partir de parâmetros teológicos e ascéticos, a filosofia e a poesia estão de fato ressurgindo no final da Idade Média.

Se Dante ocupou posições políticas e Petrarca burocráticas, se ambos não foram professores universitários, embora Petrarca tenha estudado direito em Bologna, os dois poetas foram humanistas determinantes para o nascimento da intelectualidade ocidental. De outro lado, Mestre Eckhart (1260-1328) foi professor de Paris e Colônia de teologia, além de prior de mosteiro dominicano de Erfurt e vicário da província de Teutônia. A posição de professor e de membro eclesiástico deveria reforçar sua responsabilidade de conter as beguinas de Teutônia, quando foi convocado para orientá-las. Contudo, ele se permitiu ouvi-las. Em vez de corrigi-las, a surpresa foi que usou de todo seu instrumental teológico para justificá-las, pregando um novo tipo de espiritualidade em outros conventos e escrevendo em língua vulgar. Por esse motivo, foi acusado de heresia. O processo se arrastou e, depois de morto, ele foi condenado.

Seu conceito de desprendimento (Abgeschiedenheit) radical de todas as coisas e da vontade própria, em favor do abandono integral da alma à vontade divina, é visto por Alain de Libera como um desejo de bem viver do mesmo tronco de Abelardo, porém, se Abelardo se situa temporalmente nos primórdios da universidade para conduzir seu modo de vida para dentro dela, Eckhart é um membro interno da universidade que se deixa influenciar pelo seu exterior, para, a partir de então, ser usado, na recepção póstuma de suas ideias, por anseios espirituais desligados da instituição, configurando, assim, uma posição singular na fronteira dos terrenos de controle do saber da Igreja (LIBERA, 1999, p. 291-295). Em outras palavras: ele foi marcado por uma espiritualidade selvagem, oral, para, em seguida, dar forma escrita em língua alemã a ela e, por conseguinte, influenciar movimentos que estavam nesse mesmo campo herético; foi o caso, por exemplo, dos Irmãos do Livre-Espírito.

Como grande representante da chamada mística renana, Eckhart deu expressão genial e singular a uma vontade coletiva de espiritualização fora dos termos usuais da especulação teológica acadêmica. Para ele o homem nobre é aquele que sabe abandonar a si mesmo completamente. De modo semelhante a Abelardo, ele quer dignificar um novo tipo de prática espiritual, porém, ao contrário do ascetismo intelectual egoísta, ele radicaliza, filosoficamente, o ideal monástico de renúncia do mundo, dando, contudo, essa possibilidade de vida às beguinas, que vivem fora dos mosteiros. Assim, há uma tensão dialética espantosa entre os extremos de humildade e poder no sermão 14: “O supremo, em sua deidade insondável, responde ao ínfimo, na profundidade da humildade. O homem verdadeiramente humilde não precisa pedir a Deus, ele pode mandar em Deus, pois a altura da deidade só tem olhos para a profundidade da humildade” (ECKHART, 2006, p. 114).

Longe dos humanistas, ele acolhe, dentro da teologia, um anti-intelectualismo nascente que defende, justamente, aquilo que Nicolau de Cusa (14011464), seguindo a trilha aberta por Eckhart, vai chamar de docta ignorantia. Enquanto Lesemeister (mestre de leituras), ele admite, privilegiando sua responsabilidade e valor como Lebemeister (mestre de vida), a existência de sabedoria nos êxtases femininos e põe em ação uma forma de dialética embriagada (LIBERA, 1999, p. 290-291; LÜCKER, 1950, p. 9, 112). Essa linguagem que mobiliza contradições extremas se aproxima dos excessos líricos, mesmo que se mantenha dentro dos gêneros literários propriamente evangelizadores; melhor dizendo: leva às últimas consequências o potencial literário do sermão. De modo semelhante, outras beguinas, que estavam muito próximas de suas ideias, como Marguerite Porete, demonstravam influência direta da poesia cortesã que se traduziam no fervor poético da escrita mística.

Nos diferentes exemplos dos primeiros intelectuais em surgimento no final da Idade Média, reconhecemos um nítido ponto em comum: todos se distanciaram do fim profissionalizante do saber universitário e buscaram outros tipos de realização individual que partiam da raiz da ascese monástica mas levavam a novos modos de viver no mundo, ou, no caso de Eckhart, em novas formas de renúncia a ele, destacadas do controle doutrinal e institucional.

Vê-se, portanto, que em boa parte do nascimento e crescimento da universidade, ela serviu à formação profissional, contudo, abriu espaço para um modo de vida contrário que germinou um enobrecimento do ócio estudantil, apetrechado no tipo de profissionalização inédita aberto pela nova instituição. Se a universidade não se fundamentava na independência do mundo do saber – somente fez germinar em seu seio alguns casos extremos –, o que a conduziu para tal seara?

Dissidentes ingleses e ecletismo em Halle

Agora podemos introduzir uma outra questão: quando foi, então, que a universidade se tornou crítica e buscou autonomia? Quando foi, especialmente, que esse modo de vida estudioso tomou consciência de si de tal modo que percebeu sua própria importância para o fortalecimento dos propósitos essenciais da universidade? Sem dúvida não foi espontaneamente: a conquista da independência e da tolerância vem do enfrentamento de muita dependência e intolerância. Um caso exemplar ocorre já na época da contrarreforma. Na Inglaterra desta época, as duas grandes universidades, Oxford e Cambridge, eram dominadas pelos anglicanos. À proporção que os protestantes “dissidentes” ganhavam força, a reação se tornava maior e diversas leis foram instauradas para excluí-los de espaços de circulação. Uma delas, ao longo dos anos 1670, foi a adoção de Test acts, testes de comprovação de fé na religião oficial, obrigando professores e alunos a subscrever 39 artigos de crença (SOARES, 2007, p. 70). Isso obrigou os dissidentes a fundarem academias de ensino próprias para dar aos seus filhos educação e qualificação superior, tanto para encontrar alguma chance de respeito e prestígio social quanto para o ingresso em postos de trabalho. Ao longo do século XVIII, a briga entre os Tories (grupo político monarquista e conservador) e os dissidentes foi aumentando. Em 1714, por exemplo, os primeiros tentaram implantar o Schism Act (ato de cisma), com fins de impedir dissidentes de ensinar em suas escolas e academias de ensino, mas a morte da rainha Anne e a entrada de George I possibilitou a garantia de forças liberais (SOARES, 2007, p. 72).

Isso significa que a conquista de espaços alternativos de ensino, que admitissem alunos e professores não católicos e não anglicanos, ocorreu em função da pura necessidade. Foram as universidades menores, aquelas que admitiam membros diversos e promoviam a tolerância (Glasgow e Edimburgo, na Escócia; Leiden e Utrecht, na Holanda), que se tornaram os primeiros centros do iluminismo. Contudo, onde de fato o iluminismo floresceu foi nas universidades alemãs.

O local que iniciou uma grande promoção de incentivo científico e especulação intelectual livre foi a Universidade de Halle, fundada em 1694 (WELLMON, 2015, p. 156). Lá, o professor de grego, línguas orientais e teologia, August Hermann Francke (1663-1727), ficou encarregado de ser o diretor do orfanato da cidade. De início, a relação entre um orfanato e uma universidade pode parecer despropositada, mas aqui é fundamental: a intercolaboração entre os dois permitiu que Francke estimulasse nas crianças do orfanato e nos seus educadores a prática da experimentação científica. O orfanato de Halle tinha a pretensão de se tornar o epicentro de uma reforma educacional para a multiplicação de escolas de modo a competir com os jesuítas.

Normalmente, o pietismo era associado ao entusiasmo religioso irracional e antissocial. Franke era um petista. Ele foi inicialmente proibido de ensinar onde se formou, em Leipzig, porque enfrentou autoridades locais. Em Erfurt, ele apoiou certas mulheres profetas e suas epifanias (WHITMER, 2016, p. 8), de modo que também foi expulso de lá (curiosamente, a mesma cidade onde Eckhart foi prior, logo, qualquer semelhança com o seu caso não é mera coincidência). Quando assumiu suas funções em Halle, preferiu evitar o termo “pietista”, com vistas a receber aprovação de mentalidades avançadas e, de qualquer modo, incentivar a tolerância religiosa e o ecletismo, isto é, a apresentação de diversas formas de pensamento e visões de mundo de modo a permitir ao aluno (do orfanato e da universidade) a possibilidade de escolha. Francke logo se associou com um filósofo racionalista, Leibniz, que tentava implementar em Berlin a reforma que ele estava obtendo em Halle.

A ideia da associação entre a universidade e o orfanato, apoiada por Leibniz, era nada menos que criar uma sociedade missionária protestante e competir mundialmente com as missões científicas dos jesuítas (WHITMER, 2016, p. 30-31). O estudo da matemática, por exemplo, era altamente valorizado dentro da própria faculdade de teologia. Por causa disso, um outro grande nome do iluminismo alemão, Christian Wolff (1679-1754), foi diretamente convidado para dar aulas de matemática, física e, depois, filosofia em Halle. A relação de Wolff com Francke era boa e Francke apoiava abertamente suas aulas de filosofia (WHITMER, 2016, p. 123). Porém, Wolff foi compelindo o crescimento da faculdade de filosofia frente a de teologia. Por causa disso, houve enfrentamento com um dos seus colegas filósofos, Johann Franz Buddeus (1667-1729), que era um defensor do ecletismo, porém respeitava a hierarquia superior da teologia e aspirava tornar-se professor desta cadeira (o que realmente conseguiu, em Jena), e discordava do excessivo racionalismo de Wolff. Enquanto Francke queria cuidar de fato da variedade de perspectivas da visada eclética, Buddeus conservava a restrição, e foi seu entendimento que predominou na queda de braço entre os teólogos de Halle e Wolff, de modo que este último foi expulso da cidade em 1723.

A marca resultante desse conflito é que, posteriormente, Wolff conseguiu apoio de grande parte do círculo iluminista, que aproveitou para ridicularizar a inclinação pietista da teologia de Halle, especialmente Voltaire (1694-1778), que se pronunciou endossando Wolff, narrando como ele era carismático diante dos alunos ávidos pelo verdadeiro conhecimento, enquanto os teólogos eram maçantes (WHITMER, 2016, p. 124).

No meio dessa briga política, sucedia também uma contenda conceitual. Trata-se da contraposição de teólogos luteranos como Christian Thomasius (1655-1728), que aprovavam o efeito do afeto na cognição, contra a visão estritamente mecanicista de Leibniz e Wolff. Thomasius não propunha uma mera rejeição ao progresso. Ele questionava a dominação da razão sobre outras faculdades, e Francke, que, aparentemente, deveria estar do lado Thomasius, fica do lado de Leibniz, pois é seu amigo e conta com sua ajuda para seus empreendimentos o que demonstra a complexidade desse jogo de forças teórico e político (WHITMER, 2016, p. 48). Enquanto Francke buscava de todo modo um ambiente de discussão tolerante entre abordagens empiristas, racionalistas e teológicas, Wolff espalhou, em seguida, que Francke não passava de um irracionalista intolerante – o que se tornou a versão predominante, a qual historiadores recentes como Kelly Joan Whitmer, no livro The Halle Orphanage as Scientific Community: Observation, Eclecticism, and Pietism in the Early Enlightenment, tem profundamente questionado.

Daí decorre que a atenção dos teólogos luteranos e pietistas ao papel do afeto na percepção tornou-se determinante para o nascimento da estética como disciplina filosófica, pois Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) foi treinado no orfanato e acompanhou o entendimento da aesthesis em Franke, o que o ajudou a criar uma nova teoria da educação moral e estética (WHITMER, 2016, p. 125). A abertura de Francke tanto aos experimentos científicos quanto espirituais, de modo a não considerar um tão distante do outro, impeliu-o a valorizar, por exemplo, a contemplação de imagens devocionais. Se, num primeiro momento, os protestantes radicalizaram a iconoclastia, neste momento estavam redescobrindo tal prática como meio para a iluminação (Erleuchtung). O que eles queriam examinar era a relação entre paixões, desejos e afecções, de modo a estimular o desenvolvimento moral das paixões dentro de seu próprio território (WHITMER, 2016, p. 47-48). Diferentes pensadores da época refletiam sobre modos de desenvolver o olho interno, que abre as potencialidades afetivas da “chama do coração”, como o teólogo Gottfried Arnold (1666-1714), que, em 1698, publicou o livro de poesia chamado Göttliche Liebes-Funken, marcando, por sua vez, o pensamento de Francke (WHITMER, 2016, p. 44-50). Quando, bem mais tarde, lemos em Friedrich Schiller (1759-1805) sua busca por uma liberdade especificamente estética que media o estado passivo da sensibilidade e o ativo do pensamento, de modo a encontrar na própria sensibilidade uma determinação ativa, de modo que a espontaneidade da razão seja iniciada já no campo da sensibilidade, para que o homem aprenda a desejar mais nobremente, e que isso somente pode ser possível exercitando a capacidade estética, não nos surpreende que a busca espiritual dos pietistas tenha preparado todo esse programa de educação do gosto para o desenvolvimento moral (SCHILLER, 1995, p. 117-121). Isso ocorre porque, na discussão teológica, ascética e mística do desenvolvimento do olho interno, a poesia não está desligada de um projeto de experimentação a um só tempo afetiva, sensível e espiritual.

Toda essa intrincada narrativa de forças políticas intelectuais indica o nível de complexidade que envolve a entrada do iluminismo nas universidades alemãs: nem sempre os supostos personagens mais avançados, ao enfrentarem o poderio teológico, foram necessariamente aqueles que melhor defenderam a tolerância e mesmo uma abordagem de fato mais rica e não mecanicista. Por outro lado, o esforço de Wolff de elevar o status da faculdade de filosofia frente a de teologia se tornou uma bandeira fundamental, que se efetivou na universidade de Göttingen, considerada a maior representante dos avanços do iluminismo.

O mais surpreendente em Halle, então, é a importância do pietismo para um ambiente tolerante e dialógico, isto é, como que a poética estudantil do pietismo de Francke continha já um traço para além do iluminismo. Weber, no clássico Ética protestante e o “espírito” do capitalismo, corrobora tal suspeita, quando caracteriza a praxis pietatis como um cultivo do “lado sentimental da religião” diverso da ascese racional típica do calvinismo, pois ela relê a mística medieval com vista a valorizar os afetos que a frieza calvinista inibia (WEBER, 2004, 118-119). Segundo o sociólogo alemão, Francke apontava no “trabalho profissional” “o meio ascético par excellence” (WEBER, 2004, 121), por conseguinte, Francke uniu sua devoção espiritual à pesquisa universitária, o que corrobora, nele, a nascedoura presença da ascese intramundana weberiana.

Vale salientar, contudo, que tal intramundanidade já estava em vigor desde o nascimento do intelectual universitário. A especificidade de Francke está no projeto de trazer o modo de vida espiritual e estudantil para o orfanato – que era um protótipo de ensino para todos – e criar um ambiente eclético de convivência entre diferentes teorias e práticas. O germe da concepção de Abelardo do estudo solitário encontra aqui um ambiente propício de coletivização no debate colaborativo de ideias individuais e mesmo um ideal de expansão dessa convivência de pensamentos autônomos; o germe da inserção de uma espiritualidade desinstitucionalizada, anti-intelectual, prenhe de afetos extasiantes que desembocam em purificações apofáticas, na especulação teológica de Eckhart, encontra em Halle um ambiente de valorização dos afetos enquanto objeto de exame interior, coligada à pesquisa científica exterior, que vai proporcionar o nascimento da área da estética dentro da filosofia.

Solidão e liberdade em Humboldt

Todos esses experimentos realizados especialmente em Halle e Göttingen, bem como também em outras universidades da Escócia e da Holanda, foram crescendo em número e fortalecendo seu impulso favorável à tolerância e ao desenvolvimento científico. O século XVIII e o início do século XIX testemunharam uma série de conflitos entre pendores autônomos das universidades e exigências administrativas centralizadoras dos Estados aos quais pertenciam. Na maior parte das vezes, tais conflitos não levaram necessariamente à conquista da autonomia, seja porque dissensões internas entre os professores e entre as faculdades impediam a união (o conflito entre teologia e filosofia em Halle é um exemplo), seja porque o hábito do ensino meramente profissionalizante se sobrepôs à inovação.

Foi precisamente na Alemanha que as condições propiciadoras do salto amadureceram. Segundo João Cesar de Castro Rocha, até meados de 1840, uma típica família alemã possuía poucos livros, geralmente a Bíblia e outros tipos edificantes e religiosos, lidos em voz alta e escutados por pequenos círculos. Depois desta data, no entanto, uma “súbita popularidade de livros seculares levou à disseminação de uma nova forma de leitura; solitária e silenciosa”. Entre 1763 e 1805, “a produção de livros conheceu uma expansão dez vezes maior do que a experimentada no período de 1721 a 1763” (ROCHA, 2003, p. 22-23). Por causa do enorme crescimento do número de jornais em circulação e um trabalho de seleção crítica de obras mais relevantes a serem lidas que outras, no século XVIII alemão surge uma real esfera pública literária. O crescimento avassalador do comércio de livros também foi acompanhado pelo advento de bibliotecas públicas, que pareciam, à primeira vista, descartar a figura do professor, logo, da instituição universitária.

A universidade deve então responder a essa invejável base social. Teve de enfrentar uma dura interrogação: sua existência não estaria sendo superada enquanto reservatório de difusão de conhecimento (ROCHA, 2002, p. 21-25)? É por isso que ocorreu uma mudança revolucionária na concepção da estrutura de ensino superior, com o conceito de pesquisa: a universidade é o lugar onde se lida, justamente, com a infinidade de informação, de modo a dar a ela uma sistematização com vistas tanto à formação sólida do aluno, para não cair nos problemas do autodidatismo, quanto ao avanço real do conhecimento de modo a saber valorar e ordenar o mero excesso. Foi desse tipo de questão que surgiu a nova concepção de universidade na sua conjunção de ensino e pesquisa.

Um filólogo chamado Wilhelm von Humboldt (1767-1835), formado em Göttingen e tendo observado criticamente diferentes universidades da Alemanha, encontrou-se na difícil tarefa de convencer as autoridades a investir na educação de qualidade como forma de fortalecer a Alemanha pelo espírito, diante da derrota da Prússia a Napoleão.

Com esse intuito, ele escreveu, em 1809, um memorando para a administração política prussiana intitulado Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores de Berlim, que se tornou o principal documento de uma gestão exclusivamente direcionada ao progresso científico das universidades alemãs.

O documento vai, justamente, na direção contrária do centralismo estatal de Napoleão e propõe com clareza, pela primeira vez, que a universidade precisa de autonomia diante do Estado, pois seu objetivo fundamental é a ciência pura e não necessidades impostas de fora. Ele deve “respeitar a diversidade dos métodos de trabalho dos cientistas”, isto é, “respeitar a lógica própria da atividade científica”, pois “sem a sua intervenção a instituição avançaria muito mais” (HUMBOLDT, 2003, p. 82). O que torna possível o avanço científico é a geistige Leben, que podemos traduzir como vida intelectual, mas não podemos ignorar que o termo geistig se refere ao plano espiritual, isto é, ele carrega a herança da ascese intramundana do intelectual desde os princípios da universidade medieval, atravessando a ascese secular pietista, que vai originar, segundo Weber, o modo ético de agir tanto do cientista quanto do capitalista, em outras palavras, uma espécie de devoção profissional. Não é à toa que, para Humboldt, a tarefa da ciência “nunca é apenas ‘intelectual’, mas sempre também ‘moral’” (GERHARDT, 2002, p. 15). Quem ignora essa história, tem dificuldade de entender claramente esse espaço intermédio, sempre misturado e confuso, entre a atividade contemplativa religiosa e a atividade reflexiva estudantil, que se condensa no termo tão famoso da filosofia idealista alemã, Geist, a qual Humboldt pertence. A “vida espiritual” do pesquisador precisa do ócio como condição externa para que se dê a possibilidade do surgimento de uma mobilização própria de sua condição interna (HUMBOLDT, 2003, p. 82), isto é, um tipo de trabalho não direcionado por uma ordem superior vinda de fora, mas conduzido pela dinâmica autônoma das exigências próprias da pesquisa.

Talvez a afirmação mais ousada de Humboldt, segundo seus comentadores, é que “os dois princípios mais importantes” da organização da universidade devem ser “a solidão e a liberdade” (Einsamkeit und Freiheit) (HUMBOLDT, 2003, p. 82). Embora a ideia de solidão pareça conter um elemento anárquico, dificilmente aceitável na mentalidade de gestores, de fato é ela que garante o princípio seguinte, a liberdade, já que se trata da liberdade de “organizar o trabalho segundo seu próprio entendimento” (GERHARDT, 2002, p. 19). Solidão, liberdade e autonomia não existem separados, devem andar juntos.

Não obstante, diferentemente das academias, as universidades promovem a colaboração não só entre cientistas, mas também entre professores e alunos qualificados. É esse relacionamento produtivo que permite à universidade permanecer aberta a uma vitalidade estudantil positiva para a relação do conhecimento com a sociedade, e permite ao mercado de trabalho obter profissionais bem qualificados para empreendimentos inovadores e para se disporem a enfrentar desafios imprevisíveis. Isso significa que o princípio da solidão da pesquisa e da autonomia da sua condução é contrabalanceado pela relação produtiva de gerações diferentes. Podemos reconhecer aqui um verdadeiro contato entusiasmante entre diferentes solidões, solidões que não se isolam, ao contrário, interagem-se intensamente.

É por isso que não há contradição entre solidão e convivência coletiva aqui. Sem dúvida, esse foi o princípio fundamental da ascese intelectual, desde as suas origens, aliás, mesmo na ascese tradicional, dos padres do deserto, o eremitismo foi rapidamente suplantado pelo cenobitismo. Humboldt forneceu um projeto de instituição para ascese intelectual com uma formulação cristalina e eficaz que convenceu seus superiores a fundar a universidade de Berlim de acordo com tais princípios e atingir o sucesso de um modelo imitado internacionalmente.

Deve-se acrescentar mais um intrigante escrito bem curto de Humboldt, possivelmente de 1820, intitulado “Sobre a relação da religião e da poesia com a formação moral” (Über das Verhältnis der Religion und der Poesie zu der sittlichen Bildung). Sendo um dos textos centrais de sua concepção de formação (Bildung), o filólogo defende que é falso pensar que a religião seja somente doutrina, pois ela vive mais de sentimentos. Através deles que ela não é somente meio de transmissão da moralidade, mas se torna una com a própria moral. Já a poesia se divide em forma (imaginação revestida de expressão rítmica) e conteúdo (busca do mais belo, sublime e puro, que conduz o gozo a uma satisfação interna, o terrestre ao infinito). Por isso, ele assevera que não há antagonismo entre religião e poesia: ambas trabalham pelo enobrecimento da humanidade. De qualquer forma, para que a poesia possa efetivar a moralidade, é necessária uma base de caráter (Gesinnung, disposição de ânimo) e de conhecimento (HUMBOLDT, 2017, p. 92-96).

Não se entende o esforço pela moralidade, que é próprio da ideia de Bildung, se a palavra “moral” só soar aos ouvidos pós-nietzschianos como restrição de liberdade e controle de conduta. O nexo essencial que Humboldt quer comprovar entre religião e poesia faz parte, na mesma medida, da tarefa científica, que, é bom repetir, nunca é somente intelectual, mas sempre também moral. A vida espiritual (gestige Leben) que ele considera essencial ao avanço científico é feita a partir do desenvolvimento integral das potencialidades humanas, na busca de uma grandeza que a religião anseia nos sentimentos direcionados ao divino e a poesia no trabalho formal de materiais sensíveis que proporcionam um gozo próprio da natureza mais elevada e espiritual da humanidade (im Menschen immer das Höchste und Geistigste seiner Natur, HUMBOLDT, 2017, p. 93). Em outras palavras, o trabalho de enobrecimento da humanidade feito, sem oposição, mas em cooperação, pela religião e pela poesia, é também o da ciência, humana e natural, que, aqui, deve se aliar com as duas. Não se deve esquecer que o propósito de uma educação estética que leve o homem a desejar mais nobremente de forma a desenvolver moralmente o gosto já tinha sido formulado por Schiller; e já foi visto que os primeiros traços desse projeto está no pietismo de Francke.

Essas três instâncias – ciência, religião e poesia – são, em suma, diferentes modalidades elaboradas pela ascese intelectual, que não podem existir, para a Bildung, sem intercolaboração, em outras palavras: é preciso que haja uma poética da ascese intelectual que não ocorra somente com vistas a uma obra escrita ou experimento de sucesso, mas que enerve todo o processo estudantil como um modo de vida, uma poética existencial feita, inevitavelmente, de anseios espirituais.

Desdobramentos posteriores

A partir deste pontapé alemão para o desenvolvimento simultaneamente espiritual e técnico, em que o ensino profissional deve se colocar condicionado à reflexão crítica e solitária de diferentes intelectuais, a inovação advém de pesquisas pessoais e, na interação comunicativa de resultados parciais apresentados, aparece o entusiasmo conjunto e o avanço tecnológico. A partir daí, mesmo os precursores franceses e ingleses do avanço científico dobraram-se ao desenvolvimento alemão e sofreram sua influência (RÜEGG, 2004, p. 12-20). Vale destacar que Humboldt era um filólogo, estudioso de várias línguas, que buscava uma visão antropológica geral a partir da diferenciação linguística do homem. Tal antropologia foi central para o projeto expansionista alemão, e a área da filologia foi, subsequentemente, adotada pelos outros países, como na França, por exemplo, que estabeleceu a filologia românica em 1866. Na briga filosófica entre Fichte e Schleiermacher, Humboldt escolheu o segundo e foi orientado por ele. Schleiermacher era teólogo e filósofo e foi introdutor do método hermenêutico. A primazia da linguagem e de sua história, nessa visada antropológica, dava-se sobre uma base protestante de retorno ao texto original bíblico, não à toa, a busca filológica das fontes bíblicas foi o fundamento de toda pesquisa de documentos posterior. Pode-se dizer que a ascese intramundana protestante alemã incidiu, de forma determinante, sobre a pesquisa profissional em torno da linguagem, ao examinar fontes documentais e desenrolar desdobramentos interpretativos potencialmente infinitos.

Tem-se, então, no início do século XIX, uma primazia filosófica, filológica e historicista, que, na segunda metade do século XIX, dará lugar à preeminência positivista francesa, cuja reação despontará nas filosofias espiritualistas e no desenvolvimento do historicismo alemão. Em inglês se desenvolvem conceitos gerais para se referirem às ciências que estudam a cultura, primeiro moral sciences (a partir do clássico Logic of the Moral Sciences, de 1843, de John Stuart Mill), depois humanities; em francês sciences humaines, termo que o português também adotou. Wilhelm Dilthey, representante central da hermenêutica e da filosofia da vida, por sua vez, fundamentará a distinção entre Geistwissenschaften, ciências do espírito, e ciências naturais, defendendo a especificidade das primeiras, contra a subordinação das primeiras pelas segundas no método positivista.

O núcleo central das faculdades originais das primeiras universidades – medicina, direito e teologia – foi dando lugar aos poucos a outros cursos. No Século XVIII, a filosofia se desprendeu definitivamente da teologia e buscou não só autonomia como preponderância, o que se deu primeiramente em Göttingen. A revolução humboldtiana de Berlin introduziu a filologia e tornou possível o surgimento de novas cadeiras e faculdades, que foram se implantando ao longo do século XIX e início do século XX: história, sociologia, biologia, matemática, economia, letras e outras áreas exatas e empíricas.

Entre o individual e o social

O que se deve sublinhar aqui é que a defesa humboldtiana da pesquisa indefinida e da autonomia universitária se deu a favor do desenvolvimento tecnológico, de modo que, num primeiro momento, parecia não haver contradição entre cultivo do espírito e capacitação técnica. Do mesmo modo, o conflito entre ensino profissionalizante e pesquisa parecia estar sendo superado. O fundamento religioso da ascese intelectual medieval também dava a impressão de estar devidamente secularizado numa instituição laica e tolerante, visto que a teologia foi definitivamente destronada assim como as restrições de ingresso dos alunos, o que aumentou a concorrência qualificada. A poética estudantil crítica se viu imbuída de tarefas sociais e passou a intervir decisivamente numa esfera pública literária, como queria o iluminismo, e foi nesse contexto que de fato a figura do intelectual se tornou determinante para projetos nacionais.

Contudo, o positivismo logo ameaçou essa harmonia entre o espírito e a técnica, quando colocou a ciência acima da filosofia e principiou um sistemático desprezo pelas ciências do espírito, de modo que a própria palavra, Geist, se se manteve, do idealismo alemão até correntes mais avançadas da hermenêutica e do marxismo, um sentido positivo, ainda que materialista, ao longo do século XX passou a ser cada vez mais motivo de descrédito; e a própria ideia de “ciência”, para se nomear estudos de humanidades, tornou-se estranha. Em seguida, toda a desconstrução do humanismo também colocou em jogo o conceito de ciências humanas, de modo que, hoje, na universidade pós-moderna ou contemporânea, a convenção de se chamar tais áreas de “ciências humanas” provoca sempre o desconforto de que não se vê nelas nem “ciência”, nem que sejam exatamente “humanas”.

Mas o percurso de etapas históricas representativas do processo de autonomia e laicização da universidade revela algo mais interessante do que os ideais de ciência e de humanismo e que, subterraneamente, deram impulso para ambos. Desde as origens da universidade, há uma vida contemplativa que extrai da matriz ascética monástica de enobrecimento uma prática de vida cuja atividade central é o estudo e não somente oração e meditação. Ela já se considera uma antecipação de felicidade espiritual no mundo e goza de uma curiosa abstinência egoísta, no caso do Abelardo caracterizado por Alain de Libera. Com a regularização da universidade, esse tipo de vida cria uma aliança corporativa que pode postular uma ética própria e originar as primeiras formas de existência do intelectual. Estes são sensíveis a espiritualidades selvagens que despontam fora da Igreja e podem dar uma forma escrita e filosófica a elas, radicalizando o ideal monástico de renúncia ao mundo e proporcionando um embasamento teórico novo a quem vive fora dos mosteiros. Nesse primeiro momento, a ascese intelectual pode tanto afirmar sua busca contemplativa de conhecimento e produção escrita quanto servir a projetos espirituais anti-intelectuais, retirando deles, inclusive, poderosos insights eufóricos e ousados de elevação a partir do esvaziamento da vontade, dando uma forma poética e filosófica para os mesmos. Todo esse esforço conjunto de intelectualidade e renovação da espiritualidade avançava na contramão da função meramente profissionalizante da instituição universitária.

Tal trabalho ocorria de forma mais ou menos silenciosa no diálogo de professores e alunos mais inquietos. Eles fomentavam uma experiência de liberdade que regras doutrinais, hábitos sociais e obrigações burocráticas não compreendiam nem admitiam. Essa ascese individual e intersubjetiva ganhava um espaço mais ou menos invisível que, com o tempo, vai buscar um reconhecimento mais visível e objetivos mais concretos.

Conclusão

A partir do momento em que anglicanos se assenhoraram de Oxford e Cambridge, além da maioria das instituições de ensino, e os protestantes dissidentes foram proibidos de estudar e lecionar, passaram a criar universidades menores, especialmente na Holanda e na Escócia, que se tornaram abrigos de tolerância e focos de iluminismo. A liberdade intelectual e espiritual encontrou, nesses abrigos menos privilegiados, força para se desenvolver. Foi assim que numa nova universidade, Halle, Francke elaborou um projeto de reforma educacional que combinava experimentação científica e meditativa, tolerância religiosa, racial e ecletismo filosófico. Por causa da abertura inédita e da variedade de personalidades, ele teve de lidar com visões de mundo opostas e lutas internas de protagonismo, em que uma queria avançar razão e técnica, outra afetividade e espiritualidade, o que preconizou os maiores embates do século XVIII.

Aqui merece menção os primeiros sinais de uma mudança histórica determinante: a ascese intelectual, quando começa a encontrar espaço para exposição e discussão, permite a contenda de diferentes visões de mundo e interesses políticos, criando situações melindrosas e delicadas, como foi o caso da relação de Halle com o pietismo. Quando a ascese intelectual ganha algum poder, e inicia uma disputa dentro da classe, geralmente se perde de vista o potencial individual transformador da própria ascese. Para ser mais explícito: quando a ascese busca objetivos fora da autotransformação, ela certamente vai ganhar mais poder, seja de influência ideológica, no caso da ascese intelectual, seja de puro acúmulo de capital, no caso da ascese do capitalista, segundo Weber. Em ambos os casos, não são objetivos desviantes nem indignos: o iluminismo de fato buscou defender a liberdade de expressão, a autonomia crítica e o direito universal de educação e conhecimento; no caso do capitalismo, houve a possibilidade de colocar à disposição de todos grandes avanços técnicos vindos da revolução industrial. No entanto, a questão aqui é que quando a ascese intelectual expande seus objetivos a uma escala maior, sai de sua pequena esfera privada e comunitária e abraça a praça pública, introduz-se um deslocamento da prática de um sujeito consigo mesmo para o trabalho na sociedade e, nesse âmbito, aparecem relações de poder. Se a ascese intelectual começou resistindo ao ensino meramente profissionalizante, quando ela busca algo que não é pessoal, é social, ela, bem ou mal, retorna ao mundo funcional. Nele, ela pode, sem dúvida, buscar soluções ou agravar problemas para si mesma e para os outros.

O que Humboldt conseguiu implementar na universidade de Berlin foi um avanço técnico e filosófico (isto é, no sentido idealista, intelectual-espiritual, geistig) inédito que inaugurou a universidade moderna, a ligação indissociável entre ensino e pesquisa. O idealismo continha um projeto de formação integral da pessoa que mobilizava, de forma específica mas também interconexa, religião, poesia e ciência. Essa meta central posta no “enobrecimento da humanidade”, que reúne poesia e espiritualidade, trabalho da forma sensível e anseio do divino, desdobra, de algum modo, a indissociabilidade dessas áreas, ainda inconsciente de suas diferenças, que constituía a ascese intelectual medieval, mas que também ainda fazia parte da devoção pietista.

Essa integralidade de diferentes instâncias é precisamente o que a ênfase moderna meramente pragmática e tecnocrática do ensino profissionalizante quer banir a todo custo. Ela não entende e não admite nenhum tipo de poética do estudo, nem espiritualidade intelectual. Se os conceitos, o vocabulário, as noções e os sistemas de concepções do passado não servem para responder questões contemporâneas a esse respeito, certamente temos muito a aprender com erros e acertos de seus percalços.

Referências bibliográficas:

ARMSTRONG, Hayward. Bases para la educación cristiana. El Paso: Casa Bautista de Publicaciones, 1988.

ECKHART, Meister. Sermões alemães: sermões 1 a 60. Petrópolis: Vozes, 2006.

GERHARDT, Volker. A ideia de Humboldt. Sobre a atualidade do programa de Wilhelm von Humboldt. In: ROHDEN, Valerio (org.). Ideias de universidade. Canoas: Ed. ULBRA, 2002, p. 13-34.

HASKINS, Charles Homer. A ascensão das universidades. Santa Catarina: Livraria Danúbio, 2015.

HUMBOLDT, Wilhelm von; CASPER, Gerhard. Um mundo sem universidades? Org. e trad. de Johannes Kretschmer e João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.

HUMBOLDT, Wilhelm. Schriften zur Bildung. Org. de Gerhard Lauer. Stuttgart: Reclam, 2017 (consulta do pdf de ebook).

JANOTTI, Aldo. Origens da Universidade. 2ª. ed. São Paulo: EDUSP, 1992.

KJØRUP, Søren. Humanities - Geisteswissenschaften - Sciences humaines: eine Einführung. Stuttgart; Weimar: Metzler, 2001.

LAWRENCE, Clifford Hugh. El monacato medieval: formas de vida religiosa en Europa occidental durante la Edad Media. Madrid: Gredos, 1989.

LIBERA, Alain de. Pensar na idade média. São Paulo: Ed. 34, 1999.

LÜCKER, Maria Alberta. Meister Eckhart und die devotio moderna. Leiden: Brill, 1950.

ROCHA, João Cesar de Castro. Antes que seja tarde: reflexões sobre o futuro da universidade. In: CASPER, Gerhard. ISER, Wolfgang. Futuro da universidade. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, p. 15-34.

ROCHA, João Cesar de Castro. Respostas à Pergunta: Que é Universidade? In: HUMBOLDT, Wilhelm von; CASPER, Gerhard. Um mundo sem universidades? Org. e trad. de Johannes Kretschmer e João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 15-34.

REILL, Peter Hanns; WILSON, Ellen Judy. Encyclopedia of the enlightenment. New York: Facts On File, 2004.

RÜEGG, Walter. A history of the university in Europe. Vol. 3: Universities in the nineteenth and early twentieth centuries (1800-1945). Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

SCHILLER, Friedrich. Educação estética do homem numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 1995.

SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada: ciência, religião, ilustração e comercialização do lazer na Inglaterra do século XVIII. Rio de Janeiro: 7 Letras FAPERJ, 2007.

STOCK, Brian. Ethics through Literature. Ascetic and Aesthetic Reading in Western Culture. London: University Press of New England, 2007.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

WELLMON, Chad. Organizing Enlightenment: Information Overload and the Invention of the Modern Research University. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2015.

WHITMER, Kelly Joan. The Halle Orphanage as scientific community: observation, eclecticism, and Pietism in the early Enlightenment. Chicago: The University of Chicago Press, 2016.