A PRESENÇA DO CÂNTICO DOS CÂNTICOS NA OBRA DE JUAN DE LA CRUZ1
THE PRESENCE OF THE “SONG OF SONGS” IN THE WORK OF JUAN DE LA CRUZ

Cicero Cunha Bezerra*
Josilene Simões Carvalho Bezerra**
*Doutor em Filosofia, Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe e Professor dos Programas de PósGraduação em Filosofia e Ciências da Religião da UFS. Pesquisador/CNPq. Contato: cicerobezerra@hotmail. com
** Mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe e Professora de Língua espanhola do Instituto Federal de Sergipe/Campus/ITA.
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Resumo
Em um artigo anterior intitulado A linguagem nupcial no “Cántico espiritual”, de Juan de la Cruz (2011), tratamos de apresentar os elementos eróticos presentes na obra juaniana e, de modo marginal, aludimos à dívida que este autor possui para com o texto testamentário do Cântico dos cânticos. Nesse trabalho, buscamos, por uma análise comparativa, revelar os vínculos textuais que fazem da obra juaniana um modelo interpretativo da tradição e, também, criativo no que concerne às suas raízes cristãs.

Palavras chave:Juan de la Cruz, Cântico dos cânticos, Poesia, Mística.

 

Abstract
In a recent article named “The Nuptial Language in the “Cántico espiritual” of Juan de La Cruz” (2011), we analyzed the erotic elements present in Juan´s work and, in a marginal manner, made reference to his debt to the scriptural text “Song of Songs”. In this talk, we will bring out, through a comparative analysis, the textual links which make Juan´s work an interpretative model of tradition and, at the same time, creative in relation to its Christian roots.

Keywords:: Juan de la Cruz, Song of Songs, Poetry, Mysticism

Considerações iniciais

É um fato suficientemente conhecido que quando o místico
dá testemunho de sua experiencia unitiva com Deus, seja
como autoafirmação ou como estímulo para outros, tende,
sempre, a fazê-lo de forma de exteriorização poéticas (…)
(HAAS, 1999, p.67)

Juan de la Cruz (1542/1591) expressa em seu Cântico Espiritual a força de um homem que vive o amor de Deus em toda a sua plenitude e ânsia. Inserido em um contexto em que a fé e a poesia convergiam na busca da unidade entre Criador e criatura, sua obra, mais do que expressão literária, ganhou força teológica, filosófica e espiritual. Herdeiro de tradições múltiplas como a poesia pastoril e o neoplatonismo, Juan de la Cruz pode ser considerado uma das expressões mais profundas da tentativa poética de construir um lugar comum em que a linguagem encarna a experiência interior da contemplação do caminho que leva a Deus.

Fala-se que ele recitava o Cântico dos cânticos quando estava encarcerado em Toledo e que este teria tido uma influência radical na construção do seu Cântico espiritual. Para o místico, a experiência da escuridão brutal sofrida no cárcere seguida do desvanecimento o levou à compreensão de que, para se chegar ao todo, ao absoluto, é preciso passar pelo caminho do nada que se confunde com o caminho da morte. Por essa razão afirma, Georges Bataille: “Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”(1987, p.11).

A conquista da unidade através do eros, cujo processo é retratado em um contexto indubitavelmente religioso, mas que mantém todos os aspectos da vida em sua forma mais cotidiana, é o tema central do esforço poético juaniano. Assim, são retratadas nos seus poemas as dúvidas e angústias pelas quais passou ao sentir-se abandonado por Deus, restando somente a fé e a esperança nascidas da escuridão e da intimidade dilacerantes. Nesse sentido afirma Armando López Castro:

A alma que buscou Deus na noite e se uniu a ele, deve regressar com a experiência da iluminação. Como a mística, a poesia nasce na escuridão do eu, que nos devolve a interioridade perdida (1998, p. 13).

Por sua vez, o Cântico dos cânticos é polêmico, poético e sedutor e, por isso, foi durante muito tempo objeto de discussão e análise2. O próprio nome já é significativo posto que aponta para um superlativo, ou seja, evoca uma ideia de plenitude que bem pode ser compreendida se associada a uma outra expressão também importante que é “Santo dos santos” usada pela tradição judaica para expressar a parte sagrada do Templo reservada somente ao Sumo sacerdote (PELLETIER, 2002, p.5).

Seu caráter quase profano, graças às imagens eróticas que o compõem, o faz, ainda hoje, ser um texto de difícil compreensão. A problemática sobre a “profanidade” dos Cânticos se justifica quando se pensa que a Bíblia é, por princípio, um texto moral, isto é, que comporta uma mensagem moralizante. No entanto, como observa Holanda, há que se levar em consideração que a Bíblia também possui um importante aspecto literário. Prova disso são os inúmeros autores, religiosos ou não, que encontraram, no texto bíblico, inspiração para composição de suas obras, como é o caso de Juan de la Cruz, Teresa de Ávila, Fray Luis de León, Cecília Meireles, Machado de Assis, Castro Alves, entre outros

Na expressão de Alfredo A. Lacruz,

os diversos componentes da relação matrimonial– desde o mais institucional ao sentimento mais íntimo, desde a procriação ao sentido religioso- permaneceram nas passagens do Antigo Testamento... os aspectos mais pessoais e íntimos estão expressos, principalmente, no Cântico dos Cânticos, que fala do amor humano entre um homem e uma mulher de modo realista e desmitificado, dado que a sua linguagem se assemelha a dos profetas quando falam das relações entre Deus e seu povo (2006, p.47).

Assim, o que poderia ser um aspecto privativo, isto é, ser um texto de difícil compreensão, parece ter resultado no seu oposto, ou seja, o Cântico dos cânticos se converteu em uma fonte de inspiração para inúmeros poemas que, de modo consciente ou não, derivam dele (CAVALCANTI, 2005, p.15). Neste sentido, este artigo busca realizar, a partir da intertextualidade entre o Cântico dos cânticos e o Cântico espiritual, uma análise que revele, por um lado, os elementos comuns que fazem, destas obras, expressões estéticas de uma visão espiritual que rompe, pela linguagem poética, sua indizibilidade e, por outro, o exercício de interprete e incorporador de tradições que encontramos no poeta, místico, pensador Juan de la Cruz.

O Cântico dos cânticos: entre o erótico e o alegórico.

Um fato instigante quando nos debruçamos sobre o Cântico dos cânticos é a dimensão de estudos, comentários e interpretações. Interpretações estas que não apenas tratam da maneira como foi escrito o Cântico dos cânticos,mas também sobre quem o escreveu e as razões pelas quais escreveu. A atribuição a Salomão é a mais aceita, inclusive pelos exegetas, apesar das inúmeras divergências entre os críticos. Como afirma Geraldo Holanda Cavalcanti:

Tradicionalmente o Cântico dos Cânticos tem sido atribuído a Salomão (c.970-933 a,C). Essa atribuição um pouco desacreditada, persiste ainda, sobretudo entre os exegetas do Cântico que se apegam à interpretação alegórica do poema. Assim a Bíblia de Jerusalém descobre o elogio a Salomão constante no versículo 18:17 do Eclesiástico (“ Por teus cânticos, provérbios, sentenças / e respostas todo mundo te admira”) uma clara referência à sua autoria (2005, p. 23).

Não cabe aqui tomar uma posição sobre uma discussão tão complexa e que exige um alto nível teórico, mas é importante ressaltar o aspecto controverso que se encontra nos textos dos comentadores. Basicamente, são duas linhas interpretativas dos poemas: natural e alegórica.

A linha naturalista, representada por Pablo R.Andiñach(1997), pauta seus argumentos nos seguintes pontos: a) o texto é interpretado pelo seu sentido óbvio, isto é, sem segundas intenções; b) as palavras de amor entre um homem e uma mulher são valorizadas como algo próprio do erotismo humano; c) a característica naturalista apresentada no Cântico dos cânticos se daria de um lado por revelar o desejo dos amantes (amado e amante), ou seja, uma atração sensual-erótica recíproca e, por outro lado, por ser um livro bíblico e não fazer nenhuma menção direta a Deus, levando assim, a diversas interpretações.

A linha alegórica, ao contrário da naturalista, encontra nos poemas do Cântico dos cânticos a base para uma interpretação transcendente em que as imagens são expressões de uma realidade superior, ou seja, de um desejo de unidade entre a alma e o próprio Deus.

É importante sublinhar que no Cântico dos cânticos a valorização da imagem e do corpo, mesmo apresentada de forma aparentemente ingênua, denota inocência por seu ambiente pastoril. Este ambiente, evocado em todo o poema, remete às imagens helênicas, às imagens de beleza cultuadas pelo homem grego. Como afirmam alguns comentadores, é praticamente certo que o Cântico tenha sofrido influências gregas pela sua forma e valorização da estética3 . Nelson Ascher, na introdução que faz a sua tradução brasileira do Cântico, afirma: “O Cântico dos cânticos não nos é familiar, pois, pertencendo à Bíblia, é puramente secular. É também uma coletânea erótico-amorosa fundamentalmente livre de culpa e da divisão entre o erótico e o amoroso” (2000, p.11).

Geraldo Holanda Cavalcanti, ao interpretar os comentários de Jerome H. Smitha os versículos finais do Cântico dos Cânticos, afirma:

O Cântico dos Cânticos se encerra como uma bela afirmação do prazer de Deus no amor físico entre um homem e uma mulher. A relação deve ser única e apreciada. A satisfação recíproca é o que procuram ao aderirem-se mutuamente. A intimidade sexual é seu objetivo, prelibação de um tempo de união, de alegria e de prazer e deve ser gozada com frequência e com a benção de Deus(2005, p.40).

Um dos aspectos importantes presente no Cântico dos cânticos consiste no fato dele ser uma afirmação, uma consagração do amor entre um homem e uma mulher. Distinto do amor platônico, é um amor realizado, como observa Geraldo Holanda Cavalcanti ao comentar uma importante passagem de Júlia Kristeva na sua obra Histores d`Amour:

Conjugal, exclusivo, sensual, ciumento, sim, o amor do Cântico é tudo isso ao mesmo tempo, com ainda o inumerável da fusão carnal. Notemos que essas particularidades o distinguem radicalmente tanto dos amores platônicos, dos quais não tem nem o psicodrama nem a abstração ideal, como da mística patética e entusiasta dos amores orgíacos próprios dos cultos pagãos, com os quais não compartem a ilusão da plenitude [...]. O amor dos Cânticos inaugura uma nova página na experiência da subjetividade ocidental (2005, p.42).

Alguns estudiosos, no entanto, como Teresa de Ávila, afirmavam que “por isto é bom que estas coisas não as leiam gente simples”(2006, p. 423). Cavalcanti observa, por sua vez, que Sor Juana de la Cruz, assim como também Santa Teresa, teve de destruir suas próprias reflexões baseadas na leitura do Cântico dos cânticos por ordem do seu confessor. Mas, o que há de tão especial no Cântico dos cânticos que o impede de ser lido por pessoas simples? Uma resposta pode estar na interpretação que faz Gregório de Nissa:

Quem pense em termos apaixonados e carnais, quando a consciência não está revestida com o hábito próprio do matrimônio divino, mas que permanece prisioneira dos próprios pensamentos, interpretará as palavras inocentes do esposo e da esposa como paixões bestiais e insensatas(2001,p.11).

Como se pode ver, Gregório de Nissa segue a linha interpretativa que enxerga no Cântico a inocência. Esta inocência é, também, revelada na Nova Enciclopédia Católica:

Não se espera encontrar na Bíblia tal conjunto de cantos apaixonados que exprimem a beleza do amor humano e evocam toda a artimanha amorosa de sedução e de posse. Cantando a dignidade do amor humano, o Cântico simboliza a relação de amor que a Aliança estabelece entre Deus e seu povo, entre Deus e o crente, entre o cristo e sua Igreja (NISSA apud CAVALCANTI, 2005, p.45).

A Tradução Ecumênica da Bíblia, no entanto, apresenta duas interpretações: uma que prega o sagrado e outra que defende o profano, ou seja, defende os dois tipos de amor, a saber, Eros e Ágape:

É bem possível que o amor de que fala o Cântico seja ao mesmo tempo sensual e sagrado, e a negação de um destes dois aspectos teria conduzido, num caso, ao sentido profano e, no outro, ao sentido alegórico. O Cântico descreve o amor humano como tendo um fim em si mesmo, na obra boa que é a criação de Deus – quase como um comentário a Gn 2:23-24. Para tanto, incorpora mais ou menos conscientemente os elementos da liturgia pagã do casamento sagrado, mas desmistificando-os radicalmente, a fim de mostrar que o verdadeiro papel do amor não é unir religiosamente a terra e o céu, mas sim unir duas criaturas que Deus criou complementares (CAVALCANTI, 2005, p.47).

Seguindo a interpretação da Tradução Ecumênica da Bíblia, um pouco distinta do que se viu acima na Enciclopédia Católica, pode-se entender porque o desejo, para alguns, era visto como algo que deveria ser reprimido e castigado, como é o caso de Orígenes, que se castrou para não cair na tentação do amor carnal, que, segundo ele, proviria de satanás.

Geraldo H. Cavalcanti nos mostra como McGinn esclarece a interpretação rigorosa de Orígenes em relação ao Cântico:

McGinn vê na hermenêutica de Orígenes a primeira manifestação catafática de utilização da linguagem erótica para descrever a relação da alma com a divindade. Platão ensinava que o desejo erótico era um desejo de perfeição. Orígenes, adaptando o Eros platônico à fé cristã, introduz o conceito revolucionário segundo o qual Deus é Eros e é o amor dele pelo homem, sua criação, que nos faz a ele retornar, com o nosso amor, na busca da sua fonte original. O poder do amor não é mais do que aquele que conduz a alma da terra até as mais elevadas alturas celestiais e a “ mais alta beatitude só pode ser atingida sob o estímulo do desejo amoroso”. O desejo erótico não se confunde com o desejo sensual relacionado com o amor carnal. Refere-se aos “sentidos espirituais da alma (CAVALCANTI, 2002, p.52).

De fato o aspecto ressaltado por Cavalcanti, ao afirmar ser o amor um retornar para Deus, é bem evidenciado, por exemplo, na obra de Dionísio Pseudo-Areopagita para quem o Eros divino reflete-se nas múltiplas teofanias, como manifestação (processão) das coisas que almejam regressar (conversão) para seu fim: Deus. Para este filósofo, o amor, como bem seguirá Juan de la Cruz, significa poder e condição da união divina (BEZERRA, 2006, p. 65).

A passagem 1:2 do Cântico: que me beije com os beijos de sua boca presta-se a interpretações diversas. Para Teresa de Ávila, a alma está falando com outra pessoa e pede a sua paz. Fray Luis de León, porém, remete a uma écloga pastoril, própria da visão mística, mantendo-se fiel ao sentido do texto, que, por sua sensualidade, lembra dois apaixonados, esposo e esposa, à maneira de pastores que se comunicam. Na ausência do amado, a amada sente-se desejosa e enfraquecida, por isso pede a seus companheiros que avisem a seu amado da sua convalescência. Ele vê a Sulamita como a esposa mística de Deus4.

Para esses poetas e místicos, o Cântico era visto como uma obra sapiencial, e o leitor não deveria se intimidar com a linguagem utilizada para exemplificação da relação amorosa entre a alma e Deus. Outro comentador importante do Cântico é Ricardo de Saint Victor (1173), que, numa visão alegórica, atribui à cegueira da inteligência espiritual a expulsão do ser humano do paraíso:

Neste livro que recebe o nome de Cântico dos Cânticos encontramos grande profusão de palavras que designam ao amor corporal. Todas estão aí para que a alma, relembrada de seu corpo por palavras a que está acostumada, possa inflamar-se de tal modo pelas palavras do amor do que é inferior que seja promovida ao amor do que é superior. Neste livro fala-se de beijos, de seios, de faces, de pernas. Ouvindo tais palavras, porém, não devemos pensar baixamente nas sagradas escrituras, mas considerando mais profundamente toda a extensão da misericórdia divina que assim nomeando os membros do corpo nos chama ao amor. Devemos notar quão admirável é conosco e quão misericordiosamente opera Aquele que, para incentivar nosso coração a inflamar-se ao amor sagrado, dignou-se humilhar-se descendo até as palavras de nosso torpe amor (CAVALCANTI, 2005 p.56).

Partindo para uma análise da construção do Cântico dos cânticos, percebe-se a profusão das figuras de linguagens, tais como a metáfora e o paralelismo. Este paralelismo se dá com maior intensidade na disposição dos versos em ABAC, sendo que o A e o C são idênticos, imprescindíveis para o sentido do B:

És jardim fechado,(A)
Minha irmã, noiva minha, (B)
és jardim fechado. (A)
Uma fonte lacrada. (Ct 4:12) (C)
Que é teu amado mais que os outros, (A)
Ó mais bela das mulheres? (B)
Que é teu amado mais que os outros, (A)
Para assim nos conjurares? (Ct 5:9) (C)
Há também a construção AABC:
Como és bela, minha amada, (A)
Como és bela!... (A)
Teus olhos são pombas. (B)
Teus olhos escondidos sob o véu. (Ct 4:1) (C)

A comunicação no Cântico dos cânticos retrata a busca incessante dos amantes, os quais utilizam as metáforas como forma de comunicação, à procura do outro. Esta busca pelo “outro” Octávio Paz define como a grande subversão que o amor causou no Ocidente. O amor ao contrário da libertinagem, na sua autonegação, abre para que o “outro” se venha ao encontro e se torne, “não a sombra, mas uma realidade carnal e espiritual” (1994, p. 113). Desta forma, pode-se afirmar que as metáforas são imprescindíveis nesse poema. Ao tratar do uso de metáforas, Fray Luis de León, na obra Cantar de los cantares, manifesta uma certa estranheza ao uso de certas metáforas, mas ele admite que quiçá estas sejam utilizadas para manifestar os costumes daquelas épocas (1973, p.15).

As metáforas dão ao texto uma riqueza de sentidos e são como objetos capazes de penetrar na imaginação poética e levar a imagens e interpretações de difícil compreensão. O Cântico dos cânticos, sendo uma obra sagrada, passa pelas vias interpretativas profanas. Se são corretas as palavras de George Bataille na sua obra O Erotismo (2007), dir-se-ia que o santo não busca a eficácia, mas é o desejo e apenas ele o que o anima.

Finalmente, importa aqui pensar que o Cântico dos cânticos carrega, em si, uma linguagem sensual, com palavras como: beijos, seios, pernas e faces que não desabonam o valor e a significação da obra, mas que evidenciam uma linguagem erotizada que aponta para os desejos dos amantes (espirituais ou carnais) e leva a pensar no poder fecundo do amor como busca de completude do ser humano.

O Cântico espiritual: encontro e perda

A filiação do poema juaniano à tradição veterotestamentária pode ser visualizada em várias passagens do Cântico espiritual como, por exemplo:

5 / 6 / 7 / 8

A segunda citação demonstra a semelhança temática: a alma, anseia pelo Amado, mas ele não se dá. A alma é definida, por um lado, a partir das ânsias de amores e, por outro, por sentir-se ferida e sofrer pela sua ausência; chagada, roga a Deus que se manifeste, que não a abandone. Mas, semelhantes a um grito no deserto, o desejo e as súplicas se perdem no silêncio. Outra imagem importante é a da Amada que “adoece” pelo Amado e que busca ajuda, no Cântico dos cânticos, “das filhas de Jerusalém” e, no Cântico espiritual, dos “pastores”. Em ambos os poemas, ocorre exatamente o mesmo sentido, ou seja, dores, aflições e tribulações são sinônimos para uma alma que não se apascenta diante da perda do seu Amado. Os “pastores” são, diz Juan, seus desejos, afetos e gemidos (1993, p. 584) que estão associados, na obra de Salomão, ao estado de aflição vivido pelo povo de Israel durante a servidão no Egito (Ibid., p. 602). Noutro sentido, é a busca de se deleitar e de se unir com o seu amado, cuja presença somente se alcança por amor e implica apaziguamento.

Nestas estrofes aparecem os aspectos mais profundos e enigmáticos da experiência amorosa, das paixões e dos desejos, dada a incapacidade de pensar em uma pureza inusitada na sua definição e expressão. Uma outra expressão, também importante, é:Alí me deu teu peito(27); imagem de repouso que também é proteção e oferecimento máximo do seu amor, a alma apaixonada entrega-se ao Amado como um objeto sublime e, ao se oferecer, assume uma posição de vulnerabilidade infinita do ser.

Como se pode constatar, os dois Cânticos têm como base a sensualidade, um convite para adentrar no mundo dos sentidos, visto que o amor entre os amantes é representado como valorização do sentimento natural do homem, uma celebração do amor corpóreo entre um homem e uma mulher sem, no entanto, desqualificar todo o simbolismo espiritual que caracteriza a leitura alegórica como teria feito Juan de la Cruz, uma leitura baseada na própria adesão do místico com a vida.

Um aspecto a ser analisado, em ambos os textos, é saber em que medida se pode dizer que o desejo não seria consumado. Desta forma os poemas retratariam os anseios, a dor e a ausência. Os desejos dos amantes são tratados como fio condutor que os leva ao amor. Cavalcanti expõe a importante opinião de Carey Walsh:

O Cântico diz respeito à questão provocativa de saber se a requintada sensação de desejar outrem poderia superar num sentido realístico o prazer da consumação sexual. A surpreendente pretensão de que pode parece ser a premissa do Cântico, que permanece focado na experiência do anseio, não na do alívio [...] Esse aspecto do Cântico, o de que o desejo dos amantes nunca é satisfeito, é crucial, no entanto passa frequentemente despercebido. O Cântico não trata do sexo per si, mas do desejo sexual [...]. Os dois amantes se desejam ardorosamente, sofridamente, mas nunca se reúnem. Essa situação é frustrante e quase insuportável para o leitor, que, ao cabo, espera ansioso uma trégua para a tensão (CAVALCANTI, 2005, p.77).

Esta afirmação remete à ideia de que é próprio do ser humano desejar aquilo que não possui. Com isto entende-se a relevância da sensualidade retratado nos poemas para a tradição cristã, pois não é proibido desejar, visto que o desejo é próprio do homem, e este o aproxima de Deus. Desejo e ausência, um binômio que reanima a alma num intento de provação de amor ao Esposo e de um fascínio recíproco em que a linguagem culmina na exaltação do corpo unindo, pela via do erótico, a natureza espiritual com a sensual. Neste sentido, a linguagem do corpo é a busca do belo que conduz ao amor.

O Cântico espiritual está escrito em forma de canções que compreendem uma ordem que vai desde o momento em que a alma começa a servir a Deus até o estado último de perfeição plena espiritual que, segundo o poeta, segue três vias de exercícios espirituais ou estados pelos quais passa a alma. José Vicente Rodríguez (1987, p. 216)estabelece uma divisão que revela o caráter ascensional da obra:

1) Via purgativa – representada pelos “principiantes”: estende-se da canção 1 - 5. 2) Via iluminativa – representada pelos “iniciados” (aproveitados), correspondendo às canções 6 - 12. 3) Via unitiva – representada pelos perfeitos e subdividida em dois níveis: a) Noivos – canções 13-21. b) Matrimônio – canções 36-40

O primeiro, a via purgativa, consiste na purificação da alma mediante oração e mortificação; o segundo, a via iluminativa, é o momento pelo qual a alma começa a gozar da presença de Deus; e, por fim, o terceiro, a via unitiva, a que produz a união amorosa da alma com Deus, ou seja, o matrimônio espiritual entre a Esposa e o Esposo9 .Baseando-se nesta ascensão, José Vicente Rodríguez descreve o Cântico espiritual como expressão de três mundos:

O Cântico Espiritual é uma história de amor com todas as suas matizes de paixão, busca, queixa, entrega, exclusão de outro afeto, aventura, namoro e união perfeita. Três mundos: sensível, espiritual e místico, se misturam e hierarquicamente se complementam e absorvem (1987, p. 217).

É necessário saber que a estrutura do Cântico espiritual também segue uma tripartição, isto é, antes de cada canção, tem-se uma anotação semelhante a um resumo geral; em seguida, a canção e, depois, a declaração.

Juan de la Cruz cita Salomão no Prólogo do Cântico espiritual ao afirmar:

As semelhanças, não lidas com a simplicidade do espírito de amor e inteligência que elas levam, parecem mais disparates que ditos da razão, como se ver nos divinos Cânticos de Salomão10 e em outros livros da Escritura Divina, onde não pudendo o Espírito Santo dá a entender a abundância de seus sentidos por termos vulgares e usados, fala mediante mistérios por meio das estranhas figuras e semelhanças (1993, p. 582).

São evidentes os traços comuns que norteiam ambos os autores na busca de unificação com Aquele que é desejo último e,como tal, Amor supremo. Como afirma Teresa de Ávila: No centro interior da alma...está Deus mesmo (2008, p.28).

Sobre este tema afirma Armando López Castro:

A união da alma com Deus, objeto de toda mística, se realiza graças ao amor, que aparece como o mais poderoso agente de transcendência. A identificação supõe uma mudança de identidade. A relação começa na separação, na desigualdade, e é a ausência do Amado que engendra a busca e o desejo de unir-se a ele (1998, p. 14).

O amor refletido no texto é visto, portanto, como perfeito e correspondido perpassando por todas as tentações, sensualidades e mantendo-se com toda a sua firmeza num suspirar desejoso da alma:

a) “que me beije dos beijos de sua boca” (Ct.1, 2)
b) “ pois são belos teus seios” (Idem.)
c) “ os seios teus vamos amar” (Ct. 4)
d) “ entre os meus seios Vai ter ele sua morada” (Ct. 13)
e) “ que viçoso ao pé de nossa cama estás” (Ct. 16)
f) “ Sob sua sombra me sentei, tive desejo, e me foi doce na garganta
o fruto seu” (Ct. 2,3)
g) “teus lábios fita rubra” (Ct. 4, 3)
h) “Onde os seios teus são cachos” (Ct.7,8)
i) “É lá que os seios meus te ofertarei” (Ct.7,13)

Os aspectos sensuais e eróticos acima são marcados por uma natureza intimista que revela a concepção do sagrado e do profano e que encontra, em Juan de la Cruz, uma interlocução profunda que transforma a “teologia em filografia” (EGIDO, 2010, p.164) e que faz do encontro impossível a expressão da possibilidade do deleite diante de Deus.

Considerações finais

Como conclusão deste trabalho, podemos dizer que Juan de la Cruz, como místico foi poeta e como poeta fez da sua obra espaço em que o sagrado e o profano encontram, no desejo irresistível de transcendência, a unidade fundante de uma experiência em que Deus, mundo e homem são faces de uma mesma vivencia marcada pela renúncia e entrega de si ao incondicional apelo do infinito.

A interlocução entre o Cântico dos cânticos e o Cântico espiritual permite que percebamos a construção de uma visão literária, marcada pelo trajeto espiritual que sob imagem matrimonial da alma (esposa) com Deus (Esposo), revela a condição de separação ou individualização que define a finitude humana. Se o Cântico dos cânticos, em suas interpretações judaica e cristã, propiciou leituras que ressaltaram as relações entre o povo e Deus ou a igreja e Cristo, o Cântico espiritual de Juan de la Cruz pode ser compreendido como um itinerário que tem como marca o que R. Barthes nomeou de abismo e sucumbência em que o outro (enamorado) é suplantado por um desfalecimento sem morte que aniquila toda responsabilidade e incumbência transferindo-a para Deus (BARTHES, 1981, P.10). Dito de outro modo, diante da presença/ausência de um Deus que escapa, não há lugar para o eu ou para a morte. Ao referir-se ao pensamento de Rusbrock, R.Barthes faz uma afirmação que nos parece, além de bela, bastante coerente com o que estamos aqui tratando, diz ele:

“O desejo aí está, ardente, eterno: mas Deus está acima dele, e os braços erguidos do Desejo não atingem nunca a plenitude adorada. O discurso da Ausência é um texto de dois ideogramas: há os braços erguidos do Desejo, e há os braços estendidos da Carência” (BARTHES, 1981, p.30).

É neste sentido que a poesia juaniana incorpora as imagens eróticas, presentes no Cântico dos cânticos, somadas aos aspectos contemplativos presentes em uma longa tradição que encontrou na erótica platônica, bem como na conversão (epistrophé) neoplatônica, referências filosóficas suficientes para unir o processo de ascensão da alma para Deus como um caminho interior que tem, no amor, seu impulso mais profundo. As recepções e reinterpretações, ao longo do Renascimento, sejam sob a forma de Cantigas de amigos ou de Discurso de amor, tão presentes na poesia trovadoresca e na filosofia de matriz ficiniana, revelam, além da importância da temática das bodas nupciais, um contexto marcado por um profícuo encontro em que filosofia e teologia se somam numa perspectiva poética que edifica a aventura da alma em busca da sua fonte e origem.

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Notas

[1]Este artigo é fruto dos diálogos e discussões desenvolvidos ao longo do trabalho de Dissertação de Josilene Simões Carvalho Bezerra junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFS defendido em 2011.

[2]Sobre a problemática interpretativa dos Cânticos,José Rubens L. Jardilino Cântico dos Cânticos: parte do cânon sob censura, disponível em: Revista Nures no 13 – Setembro/Dezembro 2009 – http://www.pucsp.br/revistanures. Bernard McGinn ressalta a importância do Cântico dos Cânticos no decurso do século II d.C e suas influências tanto na tradição cristã quanto na judaica (McGINN, 2012, p.48).

[3]Estudiosos afirmam que o Cântico dos Cânticos foi escrito sob a influência helênica. Cavalcanti afirma que Ariel e Chana Bloch defendem esta teoria e veem no poema indiscutíveis traços da poesia pastoral grega [...]. A lírica do Cântico na louvação da beleza física bem pode ser o reflexo desse encontro do poeta hebreu com a arte grega (CAVALCANTI, 2006, p.118).

[4]Bernard McGinn destaca a leitura primitiva rabínica que interpretou o Cântico na ótica do amor do povo de Israel (Noiva) com Deus, bem como a de Orígenes que, influenciado por esta, referiu-se a Cristo e à Igreja (MCGINN, 2012, p.49).

[5]Citaremos o número do capítulo seguido do versículo

[6]Utilizaremos a tradução portuguesa das Obras completas de São João da Cruz (1977) cotejando-a, sempre que necessário, com a Edição crítica espanhola Obras completas, Revisión, introducción y notas de José Vicente Rodríguez, Madrid: EDE, 1993.

[7]Segundo comentador da Bíblia de Jerusalém, nota 3, p.1089 os antigos poetas árabes contrapunham a tez clara das jovens de nascimento nobre à tez das escravas e servas ocupada com trabalhos externos.

[8]Substituímos a tradução portuguesa que utiliza “ Aquele que estremeço” por “aquele que mais quero”, no entanto, mantemos “feneço”, ao contrário de “morro”, presente no original, para garantir a rima poética em língua portuguesa.

[9]Sobre o tema ver: BEZERRA, J.S.C. A espiritualidade erótica em San Juan de La Cruz, Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades XXIII, OUT – DEZ 2007, p. 70-77.

[10]Grifo nosso.