A Metafísica Poética de Machado de Assis e a sua relação com a filosofia brasileira
Machado de Assis’ Poetry Metaphysics and its relation to the Brazilian philosophy

*Alex Lara Martins
*Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Fez a graduação em Filosofia na UFMG, com formação complementar aberta e ênfase em letras, e mestrado em Filosofia pela mesma Universidade. É professor de filosofia do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais desde 2013. Como pesquisador, atua principalmente nos seguintes temas: Filosofia no Ensino Médio, Literatura e Filosofia, Ceticismo, Machado de Assis, Teoria da ficção, Filosofia no Brasil, Blaise Pascal. E-mail: alexlm@bol.com.br
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Resumo
A ficção de Machado de Assis possui vocação filosófica. O objetivo deste artigo é rastrear, a partir de sua obra poética, os elementos filosóficos de uma visão estética de mundo que se torna, na maturidade, cética e pessimista. Na primeira parte, analisam-se as poesias da juventude de Machado que apresentam temas marcadamente cristãos, cujos fundamentos teóricos partem da concepção teológica agostiniana que congregava as duas perspectivas adotadas pelo poeta: o ecletismo romântico e a escatologia soteriológica. Essa concepção teológica é construída de maneira indireta por meio da recepção dos Pensamentos de Pascal. A hipótese é de que a Machado pensa a poesia como uma estratégia metafísica de acesso à verdade. Na segunda parte, considera-se o desenvolvimento deste pensamento ficcional no contexto da filosofia brasileira oitocentista. A filosofia pascaliana é o eixo ao redor do qual os intelectuais brasileiros respondem a questões de ordem política, religiosa e econômica. Discute-se, ao fim, como Machado de Assis reconfigura, em sua obra de juventude, as suas três principais influências: Chateaubriand, Pelletan e Monte Alverne.

Palavras chave:Machado de Assis; Teologia; Poesia; Filosofia; Ecletismo.

 

Abstract
The fiction of Machado de Assis has a philosophical vocation. The aim of this article is to trace, from his poetic work, the philosophical elements of an aesthetic vision of the world that becomes, at maturity, skeptical and pessimistic. In the first part, we analyze the poems of the young Machado, which present Christian themes, and whose theoretical foundations depart from the Augustinian theological thesis. It brought together both perspectives adopted by the poet: romantic eclecticism and soteriological eschatology. This theological conception is constructed indirectly through the reception of Pascal’s Pensées. The hypothesis is that Machado thinks of poetry as a metaphysical strategy of access to truth. In the second part, the development of this fictional thought in the context of nineteenth-century Brazilian philosophy is considered. Pascal’s philosophy is the key with which Brazilian intellectuals respond to questions of political, religious and economic order. In the end, it is discussed how the young Machado de Assis reconfigures his three main influences: Chateaubriand, Pelletan and Monte Alverne.

Keywords:Machado de Assis; Theology; Poetry; Philosophy; Eclecticism.

Introdução

Machado de Assis é um artista com vocação filosófica. A sua obra ficcional foi reconhecida, em verbete da enciclopédia de filosofia da Stanford, como uma importante contribuição para o ceticismo na América Latina. As tramas de sua ficção enredam-se, ainda, em interpretações históricas e sociológicas sobre a sociedade brasileira, alargando as barreiras acadêmicas em direção à interdisciplinaridade. A obra de Machado é variada em gêneros: de ensaios filosóficos a crítica literária e de teatro, de poesia a contos e romances, de pensamentos avulsos a crônicas e memórias. O nosso recorte será em torno da poesia e dos ensaios da juventude, período relativamente pouco estudado, quando as influências do poeta congregavam a perspectiva romântica defendida por Chateaubriand e Gonçalves de Magalhães, a perspectiva eclética desenvolvida por Victor Cousin e a perspectiva teológica fundamentada pelo frei de Monte Alverne e por Eugène Pelletan. Na primeira parte deste artigo, analisam-se as poesias da juventude de Machado que apresentam temas marcadamente cristãos, cujos fundamentos teóricos partem da concepção teológica agostiniana que congrega as duas perspectivas em jogo: o ecletismo romântico e a escatologia soteriológica. A hipótese é que a Machado pensa a poesia como uma estratégia metafísica de acesso à verdade. Na segunda parte, considera-se o desenvolvimento e as discussões políticas, econômicas e religiosas a partir de representantes da filosofia brasileira oitocentista. A estratégia é considerar a filosofia pascaliana como o eixo ao redor do qual os intelectuais brasileiros respondem as questões. Discute-se, ao fim, como Machado de Assis reconfigura, em sua obra de juventude, as suas três principais influências: Chateaubriand, Pelletan e Monte Alverne.

Antes de conformar para a sua ficção um ponto de vista consistente com o ceticismo, Machado percorreu um caminho teórico cujos fios condutores se relacionam com teses teológicas de matriz pascaliano- -agostiniana, especialmente nos âmbitos da antropologia e da soteriologia. Ao circunscrevê-lo nessa matriz de pensamento, a intenção deste artigo é oferecer, de modo colateral, uma explicação alternativa para a própria revolução literária ocorrida após as Memórias póstumas de Brás Cubas (1880-1881).

Os jovens brasileiros da geração de 1850 tinham condição de adquirir conhecimentos na área da filosofia. Ofereciam-se aulas régias, cursos de teologia e filosofia nos conventos provincianos e nos institutos universitários das áreas do direito e da medicina. Havia compêndios e manuais de filosofia, além de centros acadêmicos e extra-acadêmicos que publicavam as ideias filosóficas de seus membros em periódicos. Nesta época, a filosofia começava a se estabelecer como fato cultural. Naqueles centros era possível debater juízos, formular teorias e divulgar, através de panfletos, jornais e revistas, o conhecimento adquirido no estrangeiro (PAIM, 1997, p. 386). A seguir, veremos que o aporte de capital inicial filosófico em Machado de Assis é bem anterior a Memórias póstumas de Brás Cubas e não é resultado do simples autodidatismo. Esse capital filosófico está ligado à tradição pascaliana-agostiniana, tanto no que diz respeito à atenção ao modo pelo qual é possível expressar o conteúdo teológico e tocar a sensibilidade do descrente, mais do que convencê- -lo racionalmente da verdade da doutrina, quanto na expressão de um saber cristológico da salvação possível ao ser humano.

A teologia de artista e a soteriologia cristã

Sabemos pouquíssimo sobre a primeira infância de Machado e de como lhe foram transmitidas as letras; menos ainda, do tempo de adolescente, entre os anos 1850-54. Contudo, as suas produções poéticas, a partir de 1855, passam a revelar a consistência das leituras e algumas influências intelectuais, tomadas aos grupos literários aos quais o jovem pertenceu e através dos quais ele incorporou simbolicamente os instrumentos de conhecimento, construindo então a sua visão conceitual de mundo.

Numa crônica tardia, Machado nos revela parte importante de sua educação, entre a igreja e a influência de Chateaubriand:

Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas igrejas. Quando um dia li o capítulo dos sinos em Chateaubriand, tocaram-me tanto as palavras daquele grande espírito, que me senti (desculpem-me a expressão) um Chateaubriand desencarnado e reencarnado (ASSIS, 2015, IV, p. 840).

Essa crônica foi publicada em 3 de julho de 1892 na Gazeta de Notícias. O capítulo “Dos sinos” de O gênio do cristianismo, a que Machado se refere, revela a sensibilidade dos cristãos numa época em que o ritmo da vida era compassado pelos sinos da igreja. A tese geral de Chateaubriand era que o progresso intelectual e material da Europa fora obra do cristianismo. A defesa da tradição cristã foi providencial contra os ataques que vinha sofrendo desde antes da Revolução Francesa por intelectuais como Voltaire:

Dever-se-ia, pois, curar e provar que, pelo contrário, de quantas religiões existentes, a cristã é a mais poética, a mais humana e favorável à liberdade, às letras, e às artes; que o moderno mundo tudo lhe deve, desde a agricultura até às ciências abstractas, desde os hospícios de desgraçados até aos templos edificados por Miguel Ângelo, e opulentados pelo gênio de Rafael. Dever-seia mostrar que a sua moral é o que há de mais divino; e seus dogmas, doutrina e culto o que há de mais pomposo e amável. Dever-se-ia dizer que ela instiga o génio, aperfeiçoa o gosto, germina e desenvolve as paixões honestas, vigoriza o pensamento, ocorre ao escritor com modelos novos, e com perfeitos moldes ao artista; que não é vergonhoso crer com Newton e Bossuet, Pascal e Racine (CHATEAUBRIAND, 1952, I, p. 12-13)

Chateaubriand quer provar a superioridade – quem sabe, a verdade – do cristianismo recorrendo a sua tradição multicultural. Essa espécie de prova tem lugar na ideologia tradicionalista, que reduz a discussão de uma razão universal para o âmbito local das nacionalidades, dando primazia às instituições intermediárias que assentam as relações entre o Estado e o indivíduo. No caso, a Igreja católica, por sua força social, política e moral deveria estabelecer e proteger as liberdades daquele agrupamento, por exemplo, disseminando a teologia do pecado original e da concessão divina do livre-arbítrio. O despudor romântico e ecletista de Chateaubriand o levou a reunir obras díspares sob o rótulo único de “poética do cristianismo”. Para combater hereges, sofistas e zombeteiros da religião, o apologista se utilizava do método de exposição pascaliano que não exigia das coisas da religião a mesma ordem de provas demonstrativas que a ciência exige da razão. O apologista deveria sensibilizar o coração que sente a Deus para que o espírito esteja em boas condições para aceitá-lo. Essas e outras teses de Chateaubriand podem ser encontradas em Pascal.

Há bastante nostalgia em lembrar do tempo em que as ruas se iluminavam a gás. Escrevendo já na virada do século, o sentido laico das alusões à cristandade juvenil é apenas um entre os diversos sentidos de religiosidade. Comparado ao espírita, ao brâmane e ao pagão, o cristão é colocado como termo de equipolência para o cronista, segundo o qual há “coisas na vida que é mais acertado crer que desmentir; e quem não puder crer, que se cale” (ASSIS, 2015, IV, p. 841). Assim é que, naquele mesmo periódico, Machado relembra a infância e os tais sinos: “Nós mamamos ao som dos sinos, e somos desmamados com eles; uma igreja sem sino é, por assim dizer, uma boca sem fala” (ASSIS, 2015, IV, p. 871). Machado adere à tese de Chateaubriand, segundo a qual “se os sinos estivessem adjuntos a quaisquer monumentos que não fossem igrejas, teriam perdido a simpatia moral de nossos corações” (CHATEAUBRIAND, 1952, II, p. 120).

Católico como seus pais, talvez o menino tivesse exercido a função de coroinha na igreja de Nossa Senhora da Lampadosa. Certo é que conviveu e recebeu ensinamentos na sacristia, familiarizando-se com as escrituras. Os seus primeiros poemas apresentam um conjunto de escrúpulos cristãos, como a criação de um ambiente de agonia, a crença na existência da alma e do paraíso, o recurso à escatologia e à soteriologia, o elogio à cultura cristã, o pessimismo diante da fraqueza humana numa sociedade devassada moralmente e a constante ideia da redenção no salvador.

A experiência das mortes da irmã, do pai e, sobretudo, da mãe convulsionaram a visão de mundo algo byroniana do adolescente. Os seus primeiros experimentos artísticos em verso lembram a ausência da figura da mãe e a vontade de juntar-se a ela no paraíso celestial. São exemplos as poesias “O meu viver”, “Saudades”, “Lágrimas”, “Um anjo” e “Minha mãe”, todas composições de 1856. Se essas poesias eram tão malfeitas que não pudessem participar de seu primeiro livro, por outro lado, as poesias de Crisálidas guardam a antropologia cristã e o dualismo que culpa os prazeres do corpo pelos desvios da alma:

Pouco antes, a candura, / Co’as brancas asas abertas, / Em um berço de ventura / A criança acalentava / Na santa paz do Senhor; / Para acordá-la era cedo, / E a pobre ainda dormia / Naquele mudo segredo / Que só abre o seio um dia / Para dar entrada a amor. [...] Criança, verás o engano / E o erro dos sonhos teus; / E dirás, –então já tarde, – / Que por tais gozos não vale / Deixar os braços de Deus (ASSIS, 2015, III, p. 387-388).

O mundo canta uma melodia da sedução. O cristianismo é verdadeiro, de acordo com Pascal, pois é a “única religião contrária à natureza, contrária ao senso comum e aos nossos prazeres” (PASCAL, 2005, p. 118). Dito de outro modo, ela é a única que “nos ensina que há no homem um grande princípio de grandeza e um grande princípio de miséria” (PASCAL, 2005, p. 61). Esse dispositivo da exclusividade mereceu os protestos de Voltaire. Para o iluminista, era Pascal quem escrevia “contra a natureza humana” e contra os ensinamentos do cristianismo, quais sejam, a “simplicidade, a humanidade e a caridade” (VOLTAIRE, 1733). Chateaubriand defendeu Pascal, alçando-o à posição de “gênio assombroso” da filosofia cristã. Por parte de Machado, a franca expressão da religiosidade culminava no desejo de morte, não uma morte heroica, de outro modo, uma morte cristã e libertadora.

Chama-se a vida um martírio certo / Em que a alma vive se morrer não pode, / É crer que há vida p’ra o arbusto seco, / Que as folhas todas para o chão sacode. [...] / Quero despirme desta vida má, / Quero ir viver com minha mãe nos céus, / Quero ir cantar os meus amores todos, / Quero depois em ti pensar, meu Deus! (ASSIS, 2015, III, p. 689).

A biblioteca de Machado possui traduções para o português e francês das Confissões de Agostinho, dois livros de Chateaubriand, incluindo Le Génie, e as Pensées de Pascal. A apologia de Chateaubriand é sabidamente agostiniana, por exemplo, nas discussões sobre a queda como chave de interpretação do destino do homem, a presença de Deus na exuberância da natureza e a superioridade da moral cristã. Para o filósofo, os benefícios das ciências empíricas e a investigação sobre a natureza humana deveriam se associar a uma finalidade metafísica, que alcançasse a divindade por meio de uma poética específica, o que se pode chamar de “teologia de poeta”, isto é, a assunção de que apenas o artista é capaz de atingir a condição de epifania e então transmitir, em versos, a sua experiência sobrenatural.

Num ensaio de setembro de 1856, Machado confunde a tradição agostiniana com o mito sebastianista, tão importante no imaginário português e brasileiro dos séculos XVI e XVII:

Se não tivera de escrever as minhas ideias tão rapidamente, eu evocaria as veneráveis sombras daqueles mártires da Idade Média, mártires pela fé, e pelo dogma, cuja história tão sanguinolenta foi cantada pelo imortal Chateaubriand. Evocaria, porque vou falar de um homem tão crente, tão resignado, tão virtuoso, como os ilustres batalhadores cruzados que nas épocas calamitosas da Cristandade deram seu sangue a prol da religião (ASSIS, 2015, III, p. 979).

Os partidários do bem possuem o coração convicto da fé e cheio das virtudes cristãs. A moralidade regrada por dogmas seria superior ao relativismo pagão, interesseiro e opiniático. Ao contrário deste, “no mundo religioso, há só um ponto fixo [...] à roda do qual se volvem todas as ideias; esse ponto é sublime, e se se falar dele com a mais simples linguagem, isso mesmo será eloquente” (ASSIS, 2015, III, p. 980). A exigência de um ponto fixo é decorrente da medicina moralista de dissecar o ser humano e encontrar um organismo movediço, que “não é anjo nem besta”, mas cheio de contrariedades, desde que “quem quer se mostrar anjo se mostre besta” (PASCAL, 2005, p. 279). O movimento de um barco à deriva só pode ser notado por quem está imóvel em terra. Do mesmo modo, existe uma perspectiva correta, nem longe nem perto demais, “um ponto indivisível que é o verdadeiro lugar” (PASCAL, 2005, p. 7) para julgar uma pintura. No âmbito moral, quem indica o ponto fixo é Jesus Cristo, imagem da condição humana, captada por apologistas como o próprio Pascal, Bossuet, Chateaubriand e Monte Alverne.

Nessas poesias da juventude, a liberdade está circunscrita ao dogma do pecado original, que fez padecer de maldade o ser humano, mas cujo remédio depende da Graça. A religiosidade não se separava do fazer artístico. Isso porque a imagem poética era considerada a expressão que persuadia o coração, tal como a poesia “Reflexo” anuncia. Através dessa combinação, o Machadinho talvez alcançasse um modo de sublimar a angústia e as demais emoções juvenis, como a saudade, sentimento que dá título a quatro poesias. Mais importante do que uma sensação pessoal, interesse de biógrafos, a poesia religiosa era uma forma de transcender as disputas humanas e de comungar uma verdade superior. Tome-se de exemplo o poema “Consummatum est!”, publicado em março de 1856, com a epígrafe de João de Lemos: “Povos, curvai- -vos / A redenção do mundo consumou-se”. Trata-se de uma exortação a Cristo como forma de redenção humana:

De Cristo os martírios, a dor tão intensa, / De santa humildade, são provas fiéis, / E as gotas de sangue, as bases da crença, / Da crença que fala nos povos, nos reis! (ASSIS, 2015, III, 693)

Com efeito, diz-nos Pascal, “a fé cristã não visa, principalmente, senão a estabelecer estas duas coisas: a corrupção da natureza e a redenção de Jesus Cristo” (PASCAL, 2005, p. 169). Nesse jogo de contradições e simetrias, a baixeza de Cristo é a prova inconteste de sua grandeza. O mesmo tema é explorado, sem prejuízo da retórica antitética, nas poesias “O Profeta”, “Deus em ti” e “A um poeta”, no longo poema “A redenção”, nos versos de “Fascinação” e “Ícaro”:

[...] Aspira para o infinito; / Pede tudo e tudo quer! / É ambição desmedida? / Prevejo tal pensamento: / A inclinação de um momento / Não me dá direito a mais. / A chama ainda indecisa / Uma hora alimentaste, / E agora que recuaste / Quebras os laços fatais. / [...] Alma de fogo encerrada / Em livre, em audaz cabeça, / Não pode crer na promessa /Que os olhos, que os olhos dão! / Talvez levada de orgulho / Com este amor insensato / Quer a verdade do fato / Para dá-la ao coração. E sabes o que eu te dera? / Nem tu calculas o preço... / Olha bem se te mereço / Mais que um só olhar dos teus: / Dera-te todo um futuro / Quebrado a teus pés, quebrado, / Como um mundo derrocado / Caído das mãos de Deus! (ASSIS, 2015, III, p. 744-745)

Ícaro é a representação do homem pascaliano-agostiniano: as asas o diferenciam dos animais terrestres, mas elas não são suficientes para equipará-lo aos deuses. Deslumbrado com a imagem do sol, o homem alado esquece que a sua natureza lhe permite apenas um voo médio, equidistante das bestas e do firmamento. A ambição desmedida, a concupiscência, o vasto querer e a aspiração para o infinito também compunham a antropologia negativa de Pascal: o amor-próprio e a suposição de grandeza devem ser reconhecidos e destruídos em favor da autonomia do sujeito.

Cristo é a exceção. Voltado para si, considerado em comparação ao que existe, entre o ínfimo espaço de um átomo e a grandeza do universo, o homem vacila “entre esses dois abismos do infinito e do nada” (PASCAL, 2005, p. 80). O desejo de glória faz o homem praticar ações miseráveis. Essas mesmas contradições são tema de um poema de 1858:

Dormi ébrio no seio do infinito / Ao fogo da ilusão que me consome; / A lira tateei na treva... embalde! / Nem uma palma coroou meu nome! Os meus cantos morrerão no deserto, / Quebrou-me as notas um noturno vento, / E o nome que eu quisera erguer tão alto / No abismo há de cair do esquecimento. Sou bem moço, e talvez uma esperança / Pudesse ainda me despir do lodo; / E ao sol ardente de um porvir de glórias / Engrandecer, purificar-me todo. Talvez, mas esta sede era tamanha! / E agora o desespero entrou-me n’alma; / A brisa de verão queimou-me passando / A jovem rama da nascente palma! E esse nome, esse nome que eu quisera / Erguer como um troféu, tornou-se em cruz; / Não cabe aqui, senhora, em vosso livro. / Pobre como é de glórias e de luz. Mas se não tem as palmas que esperava. / Filho da sombra, em jogo de ilusões/ Vossa bondade, a unção das almas puras, / Há de dar-lhe a palavra dos perdões! (ASSIS, 2015, III, p. 737-738)

As vantagens de se reconhecer a verdade do cristianismo estão para lá de se ter a imagem mais correta do ser humano. O reflexo da miséria humana, da qual Cristo redime, é a disposição contrária, a grandeza, que o permite ultrapassar-se infinitamente. Esse era o reflexo humano de luz e de positividade ignorado por Voltaire, redescoberto por Chateaubriand e conquistado por Machado: o “jogo de ilusões” não é vencido por quem conquista a glória, mas por quem se liberta das mundanidades, conhece e perdoa a miséria humana, apesar de tudo.

As diretivas para as ações do verdadeiro cristão no mundo são assim resumidas por Erich Auerbach:

Por um lado, devia libertar-se dele e, por outro, submeter-se a ele – a libertação devendo realizar-se num sentido interior, e a submissão, num sentido exterior. Quem pudesse libertar-se exteriormente, isto é, entrando para a vida monástica, que o fizesse. Mas aqui, como em todas as coisas, um cristão deveria seguir a vontade de Deus mais do que a sua própria [...]. Quanto à submissão, ela consiste em reconhecer as instituições, particularmente as instituições políticas e sociais deste mundo, obedecer aos poderes seculares e servi-los de acordo com a posição de cada um; pois embora o mundo tenha sucumbido à concupiscentia e seja, portanto, mau, o cristão não tem o direito de condená-lo, já que ele próprio está no mesmo estado de pecado e que o mal deste mundo é a justa punição e a justa penitência determinadas por Deus ao homem caído (AUERBACH, 2007, p. 173)

As diferenças encontradas entre o contexto de disputas teológicas e políticas nas quais o jansenismo se envolveu, o contexto da libertinagem, do caos revolucionário e da dessacralização de mundo à época de Chateaubriand e o contexto de esperanças liberais após a Primavera dos Povos vivenciado por Machado são ilustradas pelo grau de engajamento de cada um na militância religiosa e política. Pascal viveu a escalada do Absolutismo, do qual parecia emanar toda arbitrariedade da lei e da força. “A opinião é a rainha do mundo”, diz ele, desde que o seu reinado se sustente pela força (PASCAL, 2005, p. 15). A força é indisputável e amplamente reconhecida. Mas, sozinha, a força é tirânica. A justiça varia conforme o capricho das leis e do costume. Sozinha, ela é impotente. O melhor dos mundos reuniria força e justiça (PASCAL, 2005, p. 36). A instituição de Pedro é uma boa candidata. Mas enquanto o mal triunfasse dentro da igreja, a única posição legítima e justa consistia em dar um passo atrás e encontrar a razão da efeméride humana – da queda ao sacrifício de Cristo –, desmascarando toda a arbitrariedade da lei terrena.

Entre o reino da força material e o reino de Deus era preciso delimitar o reino do pensamento. Assim o fez Chateaubriand ao descrever as obras do gênio cristão. Que não se julgasse mal a cruzada, a inquisição e as missões no novo mundo. Nada disso diminuía os benefícios do cristianismo. Porque se fazia necessário contornar o despotismo e o caos revolucionário, flagrados no feitio de Napoleão Bonaparte. Num contexto de estabilidade do cristianismo, o jovem Machado de Assis não cuidou propriamente de defender o catolicismo nem de atacar as posições a ele contrárias.

De acordo com Massa (1971, p. 204), o engajamento político de Machado apresenta seus sinais a partir de 1858. Chama a atenção um poema publicado durante a semana santa deste ano, “A morte no Calvário”, dedicado ao seu primeiro orientador intelectual, o padre-mestre Antônio José da Silveira Sarmento, em que se fundem os procedimentos políticos e os anseios religiosos:

[...] sim, é a hora. A humanidade espera / Entre as trevas da morte e a eterna luz. / Não é a redenção uma quimera, / Ei-la simbolizada nessa cruz! / [...] Povos! realizou-se a liberdade, / E toda consumou-se a redenção! / Curvai-vos ante o sol da Cristandade / E as plantas osculai do novo Adão! (ASSIS, 2015, III, p. 709).

Além do evangelho e de alguma teologia, o padre Sarmento pode ter lhe ensinado o básico de latim através dos clássicos – Consummatum est! Certo é que a maior parte de seu conhecimento sobre a literatura latina derivou de traduções para o francês e para o vernáculo, especialmente as traduções de Odorico Mendes, Filinto e Castilho. Há que se lembrar a participação de Machado na Arcádia Fluminense, durante a década de 1870, cujos membros eram arcades omnes, todos árcades. Em versos, é ao censor romano Catão a primeira citação direta a um personagem do universo latino. Já aos dezesseis anos, Machado antecipa a profissão de fé liberal da próxima década, pelo que carrega na tinta todo seu patriotismo, no poema “Minha Musa”: “A musa que inspira meus cantos é livre / Detesta os preceitos da vil opressão / O ardor, a coragem do herói do Tibre, / Na lira engrandece, dizendo: – Catão!” (ASSIS, 2015, III, p. 691).

Uma referência intelectual importante dessa época é Eugène Pelletan, autor de Le monde marche (1857), considerado por Machadinho “um livro de ouro, que tornou-se o Evangelho de uma religião” (ASSIS, 2015, III, 991). Segundo Jean-Michel Massa, a revelação de um Deus do progresso seduziu Machado e lhe abriu novas perspectivas, especialmente no campo da filosofia das religiões. O livro de Pelletan (1966) tratava de conciliar o programa desenvolvimentista do Século das Luzes, em pleno vigor nas economias mais avançadas, com os dogmas da tradição cristã. Pascal encabeçou a lista de filósofos que pregavam o dogma da perfectibilidade humana, seguido por pensadores benquistos entre os ecléticos, como Chateaubriand e Jouffroy. Essa interpretação otimista de Pascal é aceitável na medida em que ele figurava como um herói da ciência e do progresso.

A tese central do livro de Pelletan é que a história da humanidade acompanha uma lei divina, a saber, a lei do progresso contínuo:

Cada movimento do ser operado na criação, pela lei da criação, tem seu polo, seu fim. Este polo, este fim é Deus, é o infinito. A vida universal [...] tende constantemente a Deus, em virtude de sua inspiração divina, e constantemente a ele remonta pela infatigável espiral e inesgotável circunvolução do progresso. [...] Quem diz progresso diz movimento de Deus (PELLETAN, 1866, p. 184)

A leitura desta “Bíblia” e a descoberta de um Deus do progresso devem ter ocorrido no final de 1858, quando o escritor-profeta passou a ter a missão gloriosa, cuja profissão de fé anunciava-se em “Esperança” e “A missão do poeta”. No mesmo ano, Machado escreveu “O progresso”, com a seguinte dedicatória: “hino da mocidade, ao St. E. Pelletan, Eppur si muove”. A geração de Machado se moveu nesse processo de grandes transformações culturais, orbitando ao redor do pensamento liberal e do espírito progressista de sua época: “Fala mais alto, irmãos, a ardente humanidade! / Marchando a realizar uma missão moral; / pregando uma lei, uma eterna verdade, / Do progresso subir a mágica espiral” (ASSIS, 2015, III, p. 714).

A tese de que o espírito humano tende à perfectibilidade é novamente defendida no ensaio O jornal e o livro. A diferença entre escrever poesia e escrever um artigo de jornal não é apenas formal. É que a poesia e a política são “duas faces bem distintas da sociedade civilizada” (ASSIS, 2015, III, p. 987). A poesia do Machadinho insinua-se como teologia de artista, como se lhe fosse determinado recuperar e reviver o mito cristão, desde o sofrimento até as boas novas:

Mas é tua missão... Do pesadelo / Hás de acordar radiante de alegria! / Deus pôs na lira do infortúnio o selo, / Mas há de dar-lhe muita glória, um dia! / É forçoso sofrer... Deus no futuro / Guarda-te a c’roa de uma glória santa, / Vem sonhar, este céu é calmo e puro! Vem, é tua missão!... Ergue-te e canta! (ASSIS, 2015, III, p. 713)

O substrato religioso é tragado no peito do artista e expelido através de uma linguagem própria, poética, capaz de decifrar os enigmas do mundo e da vida. Apesar disso, num mundo sacralizado, o instinto estético está desclassificado pelo saber racional, daí que a missão do poeta de decifrar o mundo e converter as almas é também a missão política de compreender as relações de produção e libertar as massas para o progresso. Afinal, a poesia era um “dom onipotente”, com muito mais energia do que o teatro e o jornal. A premissa que restava escondida, descoberta com a bíblia de Pelletan, era que a missão do jornalista coincidia com a última volta da roda do progresso. A tarefa do jornal era determinada pelas novas leis de mercado, segundo o princípio da livre iniciativa, da liberdade de troca e da balança invisível entre oferta e demanda:

o desenvolvimento do crédito quer o desenvolvimento do jornalismo, porque o jornalismo não é senão um grande banco intelectual, grande monetização da ideia, como diz um escritor moderno (ASSIS, 2015, III, p. 995).

A originalidade desse artigo consistiu em testar a hipótese ao caso local. Esse artigo (jan. 1859) compunha o desenvolvimento de uma tese, juntamente com artigo “A odisseia econômica do Sr. Ministro da Fazenda” (jun. 1859), a série Aquarelas (set. e out. 1859) e “A reforma pelo jornal” (out. 1859). A questão de fundo era saber se nosso espírito estava no mesmo compasso do espírito europeu, melhor dissera se estávamos em condições de compartilhar e usufruir dos resultados da civilização. Antes era preciso responder outra questão: seria o jornal a manifestação do espírito livre e republicano, superior ao livro?

Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um sintoma, um exemplo desta regeneração. A humanidade, como o vulcão, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve no centro. A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em que preenchesse o fim do pensamento humano? Não; nenhum era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum democrático, como ele. Foi a nova cratera do vulcão (ASSIS, III, p. 991-992).

O jornal parecia mais perfeito às exigências do pensamento contemporâneo. Ele era o meio adequado de propagar ideias ao público em geral, pois propiciava a tomada de consciência das massas populares em relação a sua importância no firmamento do pacto social. E mais: o jornalismo era imprescindível para formação de uma república das letras, não mais pautada pelo favor nem pelo mecenato de salão, mas pela liberdade de expressão e pelo talento individual.

O jornal representava a nova revolução “do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo social, do mundo literário e do mundo econômico”. Machado completava esse raciocínio renegando parte de suas recentes utopias, isto é, “ideias muito metafísicas e vaporosas em um artigo publicado há tempos” (ASSIS, 2015, III, p. 994). A referência deve ser ao artigo publicado no ano anterior, O passado, o presente e o futuro da literatura, em que se defendia a tese chateaubriandiana do aperfeiçoamento espiritual da sociedade moderna via moral cristã:

A sociedade atual não é decerto compassiva, não acolhe o talento como deve fazê-lo. Compreendam-nos! nós não somos inimigos encarniçados do progresso material. Chateaubriand o disse: “Quando se aperfeiçoar o vapor, quando unido ao telégrafo tiver feito desaparecer as distâncias, não hão de ser só as mercadorias que hão de viajar de um lado a outro do globo, com a rapidez do relâmpago; hão de ser também as ideias”. Este pensamento daquele restaurador do cristianismo – é justamente o nosso; – nem é o desenvolvimento material que acusamos e atacamos. O que nós queremos, o que querem todas as vocações, todos os talentos da atualidade literária, é que a sociedade não se lance exclusivamente na realização desse progresso material, magnífico pretexto de especulação, para certos espíritos positivos que se alentam no fluxo e refluxo das operações monetárias. O predomínio exclusivo dessa realeza parva, legitimidade fundada numa letra de câmbio, é fatal, bem fatal às inteligências; o talento pede e tem também direito aos olhares piedosos da sociedade moderna: negar-lhos é matar-lhe todas as aspirações, é nulificar-lhe todos os esforços aplicados na realização das ideias mais generosas, dos princípios mais salutares, e dos germens mais fecundos do progresso e da civilização (ASSIS, 2015, III, p. 989).

A pedagogia de tentativas e erros explica o humor político bipolar do jovem Machado, variável conforme suas referências intelectuais: de um lado o tradicionalismo cristão de Chateaubriand, que subsidiava a defesa de uma monarquia constitucional, de outro, Pelletan e sua máquina divina do progresso, bem afeiçoada a um liberalismo republicano. Hoje chamaríamos de ingênuo o excesso de entusiasmo aos valores desse novo sistema econômico. Tanto mais porque o próprio trabalho do jornalista e do artista, ao contrário do prognóstico daquele jovem, se transformava em mercadoria como outra qualquer, sem maior deferência e concessão ao talento do indivíduo. Por aqui o liberalismo teórico esbarrava nas determinações do favor e da clientela. Para que tudo se diga, acrescente-se que Machado ignorava que o outro prato da balança comercial, a demanda leitora, era pequena demais para compor um verdadeiro mercado. O ensaio, a tentativa e o erro providenciaram algum senso crítico e a precaução de não se concluir verdades enquanto as premissas forem falsas. Por sorte ou por virtude, esse entusiasmo excessivo pelo capital não durou mais do que um ano.

Machado de Assis e o ecletismo espiritualista no Brasil

A bíblia do progresso acompanhou o curto período republicano da vida intelectual de nosso literato. A tentativa de solucionar os problemas políticos e estéticos adquiriu maior vulto através do ecletismo espiritualista. Se a práxis poética fora estabelecida por meio do contato com o poeta Francisco Gonçalves Braga, a quem o Machadinho dedica e imita nas primeiras poesias, comparando-o a Bocage e Virgílio, é através das indicações de Sarmento, de acordo com Massa (1971, p. 108), que a sua visão poética adquire robustez teórica. Entre o discípulo e o mestre, encontra-se a filosofia espiritualista do frei Monte Alverne: mais os seus sermões, é verdade, do que as suas anotações sobre os problemas de metafísica. Machado dedica ao padre uma poesia escrita por ocasião da morte de Alverne, em 1858. Em nota, explica-se:

[A] dedicatória desta poesia ao padre-mestre Silveira Sarmento é um justo tributo pago ao talento, e à amizade que sempre me votou este digno sacerdote. Pareceume que não podia fazer nada mais próprio do que falar- -lhe de Monte Alverne, que ele admirava, como eu. Não há nesta poesia só um tributo de amizade e de admiração: há igualmente a lembrança de um ano de minha vida. O padre-mestre, alguns anos mais velho do que eu, fazia-se nesse tempo um modesto preceptor e um agradável companheiro. Circunstâncias da vida nos separaram até hoje (ASSIS, 1864, p. 171).

Desenvolvida com distinção pelo frei e Pregador Imperial, entre 1816 e 1830, a influência da sermonística perderia vigor nas duas décadas seguintes devido ao reboliço de forças nacionalistas do período regencial (DURAN, 2004, p. 126). As ideias do frei retornam à cena na década de 1850, por intermédio de Gonçalves de Magalhães, que passa a considerá-lo o precursor do romantismo brasileiro e mestre filosófico de toda a sua geração. Essa consideração pode parecer, hoje, despropositada, na medida em que o próprio Magalhães estivesse em melhores condições de realizar o projeto filosófico espiritualista.

Ao discutir, no Compêndio, a origem das ideias, Alverne afirma numa nota de rodapé a adoção do ecletismo cousiniano como método filosófico de reconstrução dialética da verdade: “o sistema sublime de Mr. Cousin apenas é conhecido no Brasil, e por desgraça, seus trabalhos filosóficos ainda não estão completos, e nem impressos, e conhecidas aqui as suas obras posteriores” (ALVERNE, 1859, p. 104). O editor do Compêndio fala da intenção de Alverne, já em 1833, de continuar o projeto cousiniano. Contudo, não há consenso nessa referência. Segundo Ubiratan Macedo,

[esta] é a primeira manifestação, no país, de adesão ao espiritualismo, embora Monte Alverne estivesse mais próximo do sensualismo de Condillac. O seu compêndio, se excetuarmos a nota citada, parece ter sido redigido numa etapa anterior à sua descoberta de Cousin, que lhe foi proporcionada por Gonçalves de Magalhães quando de sua estada por Paris, e não ao contrário, como se diz muitas vezes, dando o poeta como discípulo do franciscano. A figura de Silvestre Pinheiro Ferreira, estudada por Paim como o primeiro dos ecléticos, independe do espiritualismo francês. Trata-se de uma meditação análoga de resultados semelhantes mas autônoma (MACEDO, 1997, p. 69).

Embora se possa contestar, hoje, a consideração de Alverne como um epígono do ecletismo espiritualista brasileiro, a impressão de que tinham dele os românticos espiritualistas, guiados por Magalhães e PortoAlegre, basta para o alinharmos, desta perspectiva interna, ao projeto filosófico de conquista teologal das virtudes cristãs. Professor de filosofia do Colégio São Paulo e do Convento São Francisco de Assis, Alverne defendeu uma proposta político-filosófica modernizadora, aos moldes do empirismo mitigado, no Compêndio, e do espiritualismo, nos Sermões.

Parte dessa concepção filosófica é bem ajustada ao espiritualismo, que pretendia proteger a prática religiosa dos avanços epistemológicos e técnicos da modernidade. O projeto iluminista, favorável ao progresso do conhecimento humano em bases puramente empiristas, seria substituído pela possibilidade de transcendência através da prática das virtudes cristãs. Apesar disso, somente a revelação poderia suprir totalmente as limitações do entendimento humano. Seria o caso, então, de distinguir ordens autônomas e complementares de compreensão.

O sério debate sobre o liberalismo brasileiro surgiu do legado das reformas pombalinas no Império português e do conhecimento das experiências revolucionárias de França, Inglaterra e Estados Unidos. O Correio Brasiliense, fundado por Hipólito da Costa, contribuiu significativamente para familiarizar a elite com o ideário desse novo regime. Esse jornal assumiu um caráter doutrinário, por meio do comentário de obras e fatos históricos e da apresentação de um programa liberal, que incluía a criação de universidades, liberdade de imprensa, independência do sistema judiciário e eleitoral, abolição da escravatura, investimento tecnológico, avanço científico etc. Além disso, surgiram, na segunda metade da década de 30, condições materiais para a efetivação do debate filosófico, como a edição da revista Niterói, a estruturação do Colégio Pedro II e a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Do ponto de vista político, o ecletismo foi importante para a superação da crise institucional pós-Independência, pois o seu exercício incutia, entre os adeptos, a flexibilidade ideológica e a capacidade criativa agregadora. Pouco a pouco, as ideias ecléticas “penetraram fundo em amplos setores da elite nacional conservadora em formação” (PAIM, 1997, p. 373). O ecletismo serviu para naturalizar e normalizar as contradições performativas das mais diversas áreas da sociedade brasileira no segundo reinado, contradições captadas por Machado de Assis, etransformadas em princípio formal de composição a partir da década de oitenta. Segundo Paim, tais contradições envolvem, entre outras coisas,

a valorização da experimentação científica num meio que não dispunha de condições efetivas para realizá- -la; adoção dos princípios do liberalismo econômico quando as atividades produtivas eram realizadas pelo braço escravo; disposição de praticar o liberalismo político defrontando-se, ao mesmo tempo, com o imperativo de preservar a unidade nacional; empenho de dotar o país de instituições modernas partindo de muito pouco (PAIM, 1997, p. 374-375).

No final da década de 1840, o ecletismo já é a doutrina filosófica oficial do país, ocupando os principais centros educacionais. A elite intelectual adere a essa doutrina, com destaque para Gonçalves de Magalhães, que a vincula ao Romantismo, e para Monte Alverne, que a associa à moral religiosa.

Gonçalves de Magalhães não é apenas a principal figura do movimento romântico no Brasil e “fundador do teatro brasileiro”. O poeta- -modelo de Suspiros e Saudades buscava casar-se, como Machado afirma, em fevereiro de 1866, em análise dedicada ao seu teatro, “o fervor poético à contemplação filosófica” (ASSIS, 2015, III, p.1108). Ano e meio antes, Machado considerava que o êxito da obra de Magalhães é “a união da poesia e da filosofia” (ASSIS, 2015, IV, p. 191). A ideia de casar poesia e filosofia não expressava falsa erudição. Esse casamento foi o resultado da longa meditação que o filósofo-poeta fizera sobre o cartesianismo.

A tendência espiritualista de Magalhães associava-se a uma ética do dever, no caso, da resistência contra os limites corporais e contra as finalidades utilitaristas. Segundo Magalhães, a liberdade vincula-se, antes, à boa vontade e à própria moral religiosa, cujas prescrições encaminham o espírito a buscar um sentimento nacionalista de pertencimento. A literatura é considerada o “espírito de um povo [...], o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas ideias, de mais filosófico no pensamento, de mais heroico na moral, e de mais belo na natureza” (MAGALHÃES, 2004, p. 283).

O padre “preceptor” de Machado certamente estava a par dessa corrente de pensamento e pode ter tido sobre o seu pupilo alguma influência. O problema que se colocava para Machado e para seus pares era o mesmo: como conciliar o liberalismo político e o conservadorismo cristão? Ou como apanhar as vantagens do progresso ocidental sem prejuízo do estado de coisas retrógrado, mas ainda assim nacional? Certamente não eram problemas novos. Numa análise sobre a visão filosófica do período barroco, Paulo Margutti afirma que

o português transplantado para os trópicos experimenta, assim, na sua própria consciência uma contradição insuperável entre, de um lado, os ideais morais europeus, representados pela elevação moral do projeto jesuítico, e, de outro lado, o comportamento imoral que ele mesmo compartilha com os demais colonos. Isso gera um tipo especial de consciência cético-pessimista [...] A solução paradoxal da contradição por eles vivida compreende a constatação da inutilidade e da transitoriedade das coisas, com a consequente renúncia aos prazeres e vaidades deste mundo para obter um contato mais íntimo e duradouro com a transcendência (MARGUTTI PINTO, 2013, p. 172-173)

A solução ecletista foi outra forma de derramar “vinho velho em garrafa nova”, conforme metáfora recorrente no estudo de Margutti. Digamos que essa nova garrafa trazia no rótulo a vinícola a que pertencia, o “sistema sublime de M. Cousin”, a variedade da uva, mescla de “sensualismo e idealismo”, e os efeitos que essa recém-descoberta bebida poderia causar, a saber, “reconstruir a filosofia, apresentando as verdades, de que espírito humano esteve sempre de posse” (ALVERNE, 1859, p. 105).

Na cartilha de Cousin, o espiritualismo possuía aplicações estéticas, políticas e morais. O projeto chateaubriandiano de reconstituição da arte cristã bem o exemplificou. No caso da política, o espiritualismo “conduziu gradualmente as sociedades humanas para a verdadeira república, aquele sonho de todas as almas generosas, que hoje na Europa apenas pode realizar a monarquia constitucional” (COUSIN, 1854, p. 5). Esse sistema político de mediações, ordenador pela hierarquia de sangue, mas amigo das liberdades e das ciências. É através desse prisma eclético que Alverne e Machado enxergavam a figura do segundo Imperador.

A figura de Pascal era hasteada para representar a conciliação entre os movimentos do progresso e do cristianismo. A invenção da primeira máquina aritmética, a Pascaline, revolucionou o modo como pensamos a interface entre homem e máquina, uma vez que a feitura de cálculos, o raciocínio e a inferência pareciam ser exclusividades da mente humana. Foi no contexto das discussões filosóficas modernas que se disseminou a tese de que o corpo humano se assemelha a uma máquina, pois ambos funcionam segundo regras mecânicas. Os dualistas, discípulos de Descartes, pensavam que o homem era composto de matéria e espírito. Isso significa dizer que somos uma espécie de máquina pensante. Essa conclusão foi interpretada de dois modos distintos: por um lado, tratou- -se de pensar, como o filósofo La Mettrie, que o homem se reduzia à sua mecânica ou, em termos contemporâneos, aos seus aspectos físicos e neurológicos. Por outro lado, tratou-se de preservar a autonomia e as possibilidades da mente humana frente às tecnologias mecânicas, afirmando, por exemplo, que o espírito prevalecia sobre a matéria. Nesse caso, se dizia que o ser humano possui capacidades inatas ou adquiridas que lhe possibilitam compreender as leis gerais da natureza.

Para Alverne, o homem é uma espécie de máquina animada por uma força simples e imaterial. Essa força pode ser contemplada indiretamente através de seus efeitos, isto é, os movimentos do corpo. O cérebro faz a mediação entre a alma, fonte de energia vital, e os corpos que interagem no ambiente. Alverne (1859, p. 100) refere à tese do influxo físico, presente nas Lições de Filosofia de Laromiguière. Sem ignorar as teses empiristas de sua época, Alverne retoma as provas racionalistas sobre a existência de Deus: da necessidade de uma causa primeira e da imaterialidade do criador, cuja origem deve ser qualitativamente distinta daquilo que é por ele criado. Ao mesmo tempo, essa causa primeira deve ser dotada de uma inteligência ordenadora.

Mas lá dentro o espírito fervente / Era como um fanal; / Não, não dormia nesse régio crânio / A alma gentil do Cícero dos púlpitos, / – Cuidadosa Vestal! /[...] Pátria, curva o joelho ante esses restos / Do orador imortal! / Por esses lábios não falava um homem. / Era uma geração, um século inteiro, / Grande, monumental! (ASSIS, 1864, p. 113-114)

No início de setembro de 1856, no folhetim A Marmota (n. 768 e 769), Machado publica o último artigo de suas Ideias Vagas, com o subtítulo Os Contemporâneos, sobre Monte Alverne. Ele afirma, de início, a tese maniqueísta segundo a qual

A humanidade flutua entre dois pontos totalmente opostos: – o bem e o mal. Os sectários do mal são os inimigos declarados da virtude; são os viciosos, esses que têm uma crença por necessidade e não por convicção, para quem o nome de Deus é uma expressão vulgar e à qual se não deve respeito algum. Os sectários do bem são os adversários do vício: são os virtuosos, em cujo coração convicto se aninha a fé e a crença com todo o ardor e pureza, com todo o respeito e entusiasmo (ASSIS, 2015, III, 979)

Pascal e Chateaubriand trataram a questão da liberdade a partir da visada agostiniana. Pelletan encontrava-se no lado oposto desse espectro filosófico, colorido pela defesa das liberdades abstratas do arbítrio e do mercado. No meio desse espectro, os sectários de Cousin tentavam conciliar uma coisa à outra. Porém, Alverne fugia a essa regra, pelo menos nesse detalhe, ao defender a concepção esotérica de liberdade da indiferença. Para Alverne,

a liberdade é aquela força da alma, pela qual estando em ordem as faculdades e ajudada com o auxílio divino, se pode escolher um objeto com preferência a outro, ou tomar com certeza um, deixando o outro, cuja raiz na verdade é a amplidão do entendimento e a indiferença do juízo; a essência, porém, [é] a indiferença da vontade (ALVERNE, 1859, p. 246).

Os atos voluntários da alma – que podem depender de reflexão ou determinação – são desejos ou deles derivam. A liberdade humana possui três condições: que tenhamos cópias de ideias suficientes e autênticas para podermos deliberar, que raciocinemos corretamente e que as paixões sejam controladas e moderadas. Ubiratan Macedo (1997, p. 89) defende que essa concepção voluntarista e humanista deve ter alguma fonte teológica não jansenista. Mas quem se dá o trabalho de estudar a apostila de Ética do Compêndio percebe uma colcha em que cabem muitos retalhos e emendas, por exemplo, que a própria concepção de liberdade, como uma atividade da alma de autodeterminação, realiza-se na indiferença entre opções contrárias, cuja ação deve ser “ajudada com o auxílio divino”, como seja esse auxílio não sabemos ao certo, mas ele não parece compatível com a interpretação humanista de Macedo.

Uma concepção diferente e menos retalhada encontra-se nas Obras Oratórias, cujos sermões foram proferidos desde 1811. Aqui Alverne celebra o “gênio da civilização” de Chateaubriand como maneira de afugentar nossa “profunda miséria”. Os mártires do cristianismo deveriam servir de exemplo moral para os “concidadãos, para os acostumar com a linguagem da virtude, familiarizá-los com as ideias de justiça, e levantar em seu coração uma barreira contra a sedução das paixões” (ALVERNE, s.d., I, p. 395-396). Num de seus mais famosos panegíricos, o de S. Pedro D’Alcântara, Alverne antecipa a profissão de fé no progresso empunhada, entre outros, por Pelletan:

Nenhum acontecimento manifesta com mais fulgor a impressão inofuscável da onipotência, de que as vitórias do Cristianismo. Vencedora de todos os erros, triunfante de todos os preconceitos, a Religião do Proscrito restabeleceu a moralidade, fundou a civilização, reformou o direito público, restaurou as ciências, fomentou as artes e reuniu em torno de sua bandeira sagrada o Universo espantado de sua regeneração (ALVERNE, s.d., II, p. 173).

Repetia-se a ideia de uma “marcha progressiva do gênero humano”. Marcha progressiva, mas em baixa rotação, guiada pela religião e pela força ordenadora do Estado. A civilização e a emancipação do povo eram questões de tempo.

A liberdade não pode existir sem o espírito público, sem elementos de justiça e princípios de equidade; mas esses sentimentos elevados, essas brilhantes qualidades são a consequência de uma educação virtuosa estabelecida na Religião e na verdadeira filosofia (ALVERNE, s.d., II, p. 342-343).

A filosofia como a razão devem se submeter ao crivo da fé, reconhecer que não podem ir além de si mesmas e penetrar nos mistérios da Criação. Acompanhando Pascal, o sermonista poderia dizer que o conhecimento metafísico é “inútil e incerto”. O jansenista lida com a difícil questão da ineficácia da evangelização, pois adota uma versão intransigente da teoria da graça, segundo a qual a salvação e a fé independem de ato da vontade individual. Por isso, o apologista não é capaz de conduzir seus leitores à fé nem garantir que ações caridosas possam redimi-los. A função do apologista – em certa medida, tão pragmática quanto a do orador e a do poeta – era tirar a sua plateia da indiferença. Mostrando-lhe o drama de sua existência, preparava-se o espírito e o coração, sem precisar empenhar as garantias para receber os mistérios. Pascal, Alverne e Machado estavam lidando com a espinhosa questão da eficácia de seus discursos (a apologia, o sermão e a poesia) no que diz respeito ao convencimento e à sedução mística. Aqui a noção de liberdade está bem ajustada, genericamente, ao ecletismo espiritualista e, especificamente, à antropologia jansenista:

Era forçoso, que a nova legislação, projetando libertar o homem do predomínio de suas más inclinações, baralhasse suas ideias orgulhosas, desenvolvendo a seus olhos o espetáculo de sua miséria, e o quadro horrível de sua degradação. Nada é mais capaz de humilhar o homem do que o sentimento de sua própria fraqueza: só a ideia de suas desgraças o pode subtrair às seduções da vaidade, e ao encanto dos sentidos (ALVERNE, s.d., I, p. 48).

O arbítrio e a inconstância limitam a posição ontológica do ser humano: “Sinto, diz Pascal, que posso não ter existido [...] não sou um ser necessário. Tampouco sou eterno e infinito; porém vejo perfeitamente que existe na natureza um ser necessário, eterno e infinito” (PASCAL, 2005, p. 50). Sem esse ponto fixo, a própria linguagem, os julgamentos morais e as teses científicas não fariam qualquer sentido. Mas a partir de um porto seguro da moral, a cristandade, podemos compreender o homem movendo-se entre os infinitos, como um barco à deriva, como o hiato de um entre dois equidistantes. Deve-se, pois, utilizar a finura como parte do juízo, convencendo pela simplicidade e pela doçura.

A eloquência, a arte do bem falar, virtude máxima do frei, é o meio pelo qual se pode contemplar o divino e convencer os céticos da necessidade de caminhar até o ponto em que a graça o pode ser concedida. Certo, não podemos conhecer racionalmente aquela força imaterial que nos determina a alma. Por isso, nenhuma ação é garantia para a salvação. O crédito do apologista não estava, de todo, a título perdido. Quando propõe a necessidade da aposta no Deus cristão, o filósofo jansenista também está a apostar, inaugurando o que conhecemos por teoria dos jogos, ao decidir ante o comportamento racional de outrem. Essa não é uma aposta cega como a outra, porque a sublimidade da linguagem deveria servir para falar, ao cético e ao ateu, do drama da existência humana, cujo bom termo, nossa miséria e nossa glória, encontra-se consubstanciado na figura de Jesus. As palavras do apologista

gravam-se na memória de todos; em todos os corações acham um eco, em todas as consciências plantam uma convicção! É que na tribuna sagrada aquele apóstolo de Cristo não define sentimentos que não sinta, não ensina virtudes que não pratica; ele é o exemplo, é a personificação da crença e da virtude, e por isso sua voz sublimada pela verdade, cimentada pela filosofia da religião, é um brado das suas convicções, é a voz do homem eloquente, do homem filósofo, do homem consciencioso, que todas se fundam no homem crente (ASSIS apud MASSA, 2013, p. 105)

Segundo a biógrafa Lúcia Miguel Pereira, o pendor religioso e a fé do jovem, sendo características fugazes, não chegariam à idade adulta. Essa interpretação deve ser colocada em perspectiva, pois algumas obras literárias da década de 1860 possuem forte marcação cristã. É verdade que até o final da década de 1850, as produções de Machado revelam um pietismo mais bem-acabado. A superioridade da fé se manifestaria mediante a conjunção entre valores cristãos e aquilo que Pascal denominava esprit de finesse, uma atitude consciente de medir o que não tem medida, quero dizer, de reter na forma de expressão um tipo de conteúdo totalmente permeável. Parafraseando Vinicius de Moraes, a poesia deveria ser mesmo uma forma de oração. De acordo com Machado, a ordenação estética-cristã de mundo era a via alternativa para que o entendimento pudesse adquirir alguma certeza.

Conclusão

Até o final da década de 1850, Machado de Assis se acomodou a teses do ecletismo espiritualista, que conferiam ao artista e ao apologista a condição transcendental da aquisição de verdades. Neste período, a maior parte de sua produção artística concentrou-se naquilo que se denominou “teologia de poeta” expressa em forma de poesia religiosa, isto é, um gênero literário em que o artista, e apenas ele, pode acessar as verdades metafísicas, as quais, por meio de algum tipo de inspiração divina, seriam transmitidas em forma de versos. Algo semelhante ocorrera com a sermonística e a apologética cristãs, das quais as principais figuras, segundo Chateaubriand, foram Bossuet e Pascal. Por aqui, tivemos o Monte Alverne, que também pretendeu comunicar a seu público o efeito da transcendência. Para essa geração de artistas e filósofos metafísicos, valia a tese tradicionalista de Chateaubriand e de Magalhães, segundo a qual este tipo de ação era possível para o gênio poético cristão.

O gracejo feito em correspondência ao amigo Joaquim Nabuco sobre ter lido, desde cedo, entre outros filósofos, Pascal, e tê-lo lido muito e sem distração (ASSIS, IV, p. 1310), confirma o lugar central dedicado à filosofia pascaliana e, de resto, ao cristianismo e à história da filosofia no projeto de trabalho traçado pelo jovem literato. Diferente de Pascal, que viveu no mundo como que por nojo (daí a sua situação trágica), e de Chateaubriand, que se satisfez em contemplar os triunfos de sua religião como que por desdém, Machado alimentará, por um par de anos, a esperança na militância religiosa como maneira de modificar o mundo. O filósofo de Port-Royal conservou a visão depreciativa da realidade humana, das instituições sociais, políticas e eclesiásticas. A prescrição trágica do jansenista consistia, primeiramente, em autoanálise facilitada pelo afastamento do mundo e pela reclusão espiritual. Em seguida ao reconhecimento da miséria pessoal, o homem deveria vivenciar outros homens e outras misérias, até que a graça o libertasse. Diferentemente, a visão de mundo tradicionalista de Chateaubriand percebia força suficiente na instituição religiosa que fizesse valer a coesão de um agrupamento social, parcialmente desintegrado por ideias e práticas iluministas. O ecletismo emergente no Brasil proporcionaria a Machado de Assis uma alternativa ao “salto da fé” pascaliano e à ideologia conservadora de Chateaubriand. De modo que se conciliassem o cristianismo e a missão liberal para melhorias e reformas sociais, institucionais, políticas e culturais.

A crença em uma teologia de poeta espalhava-se entre os ecléticos brasileiros. Na advertência dos Suspiros poéticos, Gonçalves de Magalhães afirmava que a missão do poeta, baseada na moral cívica cristã, é a de “elevar o pensamento nas asas da harmonia até as ideias arquétipas” (MAGALHÃES, 1836, p. 5). Aventa-se aqui a possibilidade da transcendência através da arte poética. A faculdade compreensiva e transcendente do poeta prevalece sobre a racionalidade, fazendo dele um mensageiro da verdade. O espírito romântico de Machado também acreditava que o ofício do artista, e somente ele, poderia revelar algum tipo de verdade. Em O passado, o presente e o futuro da literatura (1858), ele defendeu que o artista poderia construir para o país “um edifício de proporções tão colossais e de um futuro tão grandioso” (ASSIS, 2015, III, p. 991). Ainda avaliando o estado de coisas da literatura nacional, ele afirmou que os literatos-políticos são a marca distintiva da sociedade civilizada, os “verdadeiros apóstolos do pensamento e da liberdade [...], novos Cristos da regeneração de um povo, cuja missão era a união do desinteresse, do patriotismo e das virtudes humanitárias” (ASSIS, 2015, III, p. 987). E alegava que Alverne era o exemplo de homem que, como Pascal, entendera a natureza contraditória humana, exemplificando-a em sua própria vida: Alverne morreu cego, na solidão do claustro. A sua linguagem era simples e, mesmo assim, eloquente.

Referências

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VOLTAIRE. Lettre à Monsieur de Formont (1 jun. 1733). Disponível em: Acesso em 30 mar. 2019.

De modo diferente, Northrop Frye nos chama a atenção para o fato de que existe um liame entre religião e linguagem sob um ponto-de- -vista literário, já que a concentração da poesia é a exigência mínima para que um livro seja considerado sagrado, o que significa um íntimo relacionamento entre a sacralidade e as condições de sua linguagem (FRYE, 2004, p. 25). Por mais que seja perturbadora aos fiéis de uma dada religião a ideia de se pensar o seu livro sagrado literariamente, o que Frye está nos dizendo é que é difícil separar essas instâncias, mesmo se tratando de um livro sagrado. Nesse sentido, percebe-se que os limites entre aquilo que chamamos de sagrado e profano são muito tênues, e essa imprecisão se torna terreno fértil para as novas e criativas respostas, como afirmou Eliade.

Partimos aqui do pressuposto de que Geni e o Zepelim de Chico Buarque (HOLLANDA, 1982) é uma obra que nos permite essas transgressões de fronteira entre o sagrado e o profano. Conta-se entre aquelas obras de arte que tem o poder de fraturar o ritmo involuntário do cotidiano, exigindo-nos novas respostas. Trata-se de uma das principais canções do musical de Chico Buarque, a Ópera do Malandro, de 1977- 1978, que resultou da confluência de dois desejos iniciais: uma adaptação da Ópera dos mendigos (1729), de John Gay, projeto que nasceu do diretor Luiz Antônio Martinez Corrêa, e uma adaptação da Ópera dos três vinténs (1928), de Bertolt Brecht, projeto de Chico Buarque. Do estudo das duas peças nasceu a Ópera do Malandro, que estreou em 26 de junho de 1978 (HOMEM, 2009, p. 166).

Como uma das músicas de maior sucesso da peça e do álbum lançado um ano após a estreia do musical, Geni e o Zepelim logo passou a ser tocada em todas as principais rádios da época, tornando-se popular em plena ditadura militar. Suas críticas à hipocrisia de uma cidade que discrimina sua heroína prostituída até hoje revelam vestígios de bondade que, embora timidamente misturados ao material aleatório vulgarizado, abrem espaço para a compreensão do sagrado a partir de categorias alternativas, bem como nos chama a atenção para a complexidade do humano, este que sempre escapa às catalogações e taxonomias. Como uma das músicas de maior sucesso da peça e do álbum lançado um ano após a estreia do musical, Geni e o Zepelim logo passou a ser tocada em todas as principais rádios da época, tornando-se popular em plena ditadura militar. Suas críticas à hipocrisia de uma cidade que discrimina sua heroína prostituída até hoje revelam vestígios de bondade que, embora timidamente misturados ao material aleatório vulgarizado, abrem espaço para a compreensão do sagrado a partir de categorias alternativas, bem como nos chama a atenção para a complexidade do humano, este que sempre escapa às catalogações e taxonomias.

Na tentativa de buscar as marcas de um sagrado camuflado, o artigo se divide em quatro partes: inicialmente apresenta-se a estrutura da música e os seus principais temas, ao modo de uma antecipação das intuições que serão exploradas; em seguida, busca-se identificar o lugar do coadjuvante no contexto da obra buarqueana; na terceira seção intenta-se apresentar o conceito de camuflagem do sagrado, privilegiando o aporte teórico de Mircea Eliade; finalmente, identifica-se na quarta seção o tema da bondade como exemplo de camuflagem do sagrado no contraponto com as chancelas da religião.

Estrutura e apresentação dos principais temas

Embora Geni e o Zepelim possa ser analisada a partir de outras estruturas, sobretudo por se tratar de uma canção, neste artigo privilegiou-se a estrutura literária (o poema escrito) e suas ressonâncias nos termos da relação que deriva da dissimulação do sagrado no profano. A poesia é o modo como a linguagem se pronuncia e se mantem em seu próprio vigor, em seu próprio pudor, já que “A poesia de um poeta está sempre impronunciada. Nenhum poema isolado e nem mesmo o conjunto de seus poemas diz tudo” (HEIDEGGER, 2003, p. 28).

A estrutura da canção se compõe de quatro estrofes, com 18 versos cada, acompanhadas respectivamente de quatro versões diferentes do coro que vão delineando o próprio movimento crescente da peça literária. Vejamos a estrutura da obra e os principais temas que a perpassam.

“Ela dá pra qualquer um”. Esta frase sintetiza a primeira estrofe da canção e nos expõe a personagens e espaços não-autorizados. Há uma profusão de seres proscritos e espaços profanos que se encontram intimamente vinculados à protagonista, de modo a caracterizá-la. Na verdade, desde que renegados em nome da moralidade oficial, deparamo-nos mesmo é com a presença de “não-seres” e “não lugares”.

De tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do porto / Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes / Dos cegos, dos retirantes /É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina / Na garagem, na cantina / Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos / Das loucas, dos lazarentos / Dos moleques do internato E também vai amiúde / Com os velhinhos sem saúde / E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade / E é por isso que a cidade / Vive sempre a repetir (BUARQUE, 1982).

Os “não-seres” são representados por uma gama de personagens normalmente discriminados por nossa sociedade hipócrita, que sobrevivem atravessados pelas contingências e em cujo processo se revelam humanos; são viventes que estão presentes em nossa sociedade, mas, como sujeito negado, como ausência. Somos apresentados a grupos marginalizados (“de tudo o que é nego torto”), aos sem-lugar (os “errantes” e “retirantes”), aos deficientes físicos (os “cegos”), aos desprovidos de recurso e de esperança (“quem não tem mais nada”); também àqueles que são confinados aos lugares de reclusão (os “detentos”), aos insanos e leprosos (“loucas” e “lazarentos”), aos frágeis e inexperientes (“moleques do internato”), aos impotentes e deficientes (“velhinhos sem saúde”) e até às solitárias e desesperançadas (“viúvas sem porvir”).

Não apenas seres ignóbeis são narrados nessa primeira estrofe, mas, também, percebemos que os locais onde Geni oferece o seu corpo são, na verdade, não-lugares, pelo menos quando considerada a legitimidade da própria união dos corpos nos termos da sacralidade do matrimônio. Os locais escolhidos pelo poeta seriam lugares legítimos e comuns não se prestassem aqui à perversão de Geni. Por isso o “mangue”, que embora seja um ecossistema, na canção carrega uma clara conotação pejorativa, já que em perspectiva popular nos remete a um lugar fétido, lamacento, cheio de mosquitos e muitas vezes impenetrável; também o “cais do porto”, mencionado de modo pejorativo em função da promiscuidade que normalmente carreia; são apresentados ainda os espaços escuros da “garagem” e da “cantina”, mas, também, deparamo- -nos com a imprudência e insegurança refletidas na escolha de lugares, tais como “atrás do tanque” e “no mato”.

O não-lugar dos não-seres é, por outro lado, o próprio lugar da vulnerabilidade humana. É assim que Geni, na perspectiva do narrador, ao “dar pra qualquer um” expressa sua estranha bondade no contexto de personagens e espaços não-autorizados. Por outro lado, pelas mesmas razões, a cidade impropera a primeira versão do coro:

Joga pedra na Geni! / Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar! / Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um! / Maldita Geni! (BUARQUE, 1982).

“Joga pedra na Geni!”. “Jogar pedra” nos remete a uma prática punitiva muito comum no mundo antigo, também associada a leis de caráter religioso, tal como se pode notar na narrativa neotestamentária da “mulher adúltera”, prática evocada pelas autoridades religiosas por se tratar de um caso de adultério e contestada por Jesus em função de sua hipocrisia (Jo 8, 1-11). O coro ainda sugere uma ontologização da punição, na medida em que a cidade trata Geni como aquela que “foi feita pra apanhar”. Aqui não apenas se encontra entremeado o pressuposto de que o destino e vocação de Geni supostamente são constitutivos de sua humanidade, como também implícita está a ideia de uma profanidade inexorável e inelutável, ou seja, a profanidade como destino irremediável e irrevogável do ser. Além disso, apesar de o narrador considerá-la como “um poço de bondade”, numa clara legitimação do altruísmo dissimulado, essa profanidade em sentido pejorativo qualifica como “maldita” aquela cuja bondade se manifesta no oferecimento de seu próprio corpo ao público marginalizado, afinal, na perspectiva dos guardiões da moralidade, ela é abjeta exatamente porque “dá pra qualquer um”.

“O comandante e a formosa dama”. A segunda estrofe narra a chegada do Zepelim e seu comandante. É quase inevitável que se contraste o brilhante dirigível aos não-lugares e o comandante aos não-seres, tais como caracterizados na primeira estrofe. Estaríamos aqui diante de um ser e um lugar supostamente autorizados?

Um dia surgiu, brilhante / Entre as nuvens, flutuante / Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios / Abriu dois mil orifícios / Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada / Se quedou paralisada / Pronta pra virar geleia
Mas do zepelim gigante / Desceu o seu comandante / Dizendo: “Mudei de ideia!”
Quando vi nesta cidade / Tanto horror e iniquidade / Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama / Se aquela formosa dama / Esta noite me servir (BUARQUE, 1982).

O Zepelim e seu comandante são qualificados pelo poder e majestade, pela pompa e imponência, características que os colocam, num certo sentido, em contraponto à fragilidade de Geni, e em outro, à indefensabilidade da cidade. No entanto, embora o seu poder e imponência tragam terror à cidade e ameacem subjugá-la, o comandante não é tão diferente dos seus habitantes, tanto daqueles que se colocam como os guardiões da moralidade como dos desprezíveis amantes de Geni. O comandante, por um lado, está especialmente atento à iniquidade do outro, afinal, também possui lá seus princípios morais; por outro, está inclinado a aplacar sua ira, absolver a cidade e negociar seus princípios morais caso a formosa dama aceite servi-lo com seu corpo. O horror e iniquidade, palavras que caracterizam a condição à qual a cidade está entregue, mostram uma linguagem religiosa propositadamente misturada aos elementos profanos da peça literária. Há belos contrapontos inferidos na poesia, que evocam a relação sagrado-profano e merecem nossa atenção.

“Mas não pode ser Geni!”. Esta frase sintetiza a reação do povo que caracteriza a segunda versão do coro.

Essa dama era Geni! / Mas não pode ser Geni! /
Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni! (BUARQUE, 1982).

A exclamação do povo mostra também a sua perplexidade quando se percebe que a infame Geni poderá ser a expiadora da cidade. A estrutura principal do coro se mantém, mas, é por meio de sua peculiar genialidade literária que Chico Buarque, com pequenas mudanças, altera completamente o sentido do coro colocando-o à serviço do movimento crescente da narrativa poetizada. Em outras palavras, como Geni poderia se transformar na salvadora da cidade, se “Ela é feita pra apanhar”, se “Ela é boa de cuspir, se “Ela dá pra qualquer um”? É assim que a cidade se queda transtornada pela possibilidade de ser salva pela “Maldita Geni”.

A terceira estrofe desenvolve aquilo que já se encontra anunciado no final da estrofe anterior: Geni, de fato, encantara o forasteiro!

Mas de fato, logo ela / Tão coitada e tão singela / Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso / Tão temido e poderoso / Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela / (E isso era segredo dela) / Também tinha seus caprichos
E ao deitar com homem tão nobre / Tão cheirando a brilho e a cobre / Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia / A cidade em romaria / Foi beijar a sua mão O prefeito de joelhos / O bispo de olhos vermelhos / E o banqueiro com um milhão (BUARQUE, 1982).

“A coitada cativara o forasteiro”. Salta aos olhos aqui o fato de que todo essencialismo parece malograr diante das ambiguidades que se encontram no texto. Ao contrário do que encontramos na estrofe anterior, estamos diante de uma transgressão das fronteiras materializada na inversão de papéis e lugares. Agora somos expostos ao poder de Geni que se contrapõe à fragilidade do comandante, afinal, “O guerreiro tão vistoso, tão temido e poderoso, era dela prisioneiro”. Enquanto a fragilidade de Geni se constitui sua força, a força do comandante se constitui sua fraqueza. É o fato de ser “coitada” — numa sutil e ambígua referência tanto à singeleza quanto ao coito — que torna Geni poderosa a ponto de cativar o comandante.

Também somos perspicazmente apresentados aos valores de Geni, já que ela “Também tinha os seus caprichos”. Esperaríamos que a formosa dama não tivesse qualquer problema em se “deitar com homem tão nobre, tão cheirando a brilho e a cobre”, posto que isso aparentemente se afiguraria como um prêmio se comparado aos não-seres com os quais costumava se deitar. Mas, curiosamente, ao contrário do que a cidade pressupunha, ela tinha os seus princípios e exatamente por isso “Preferia amar com os bichos” a se deitar com tão vistoso guerreiro.

Novamente a linguagem religiosa se apresenta em meio às contradições propostas por Chico Buarque. Agora os princípios e o pudor de Geni soam como “heresia” aos olhos da cidade que, “em romaria”, “foi beijar a sua mão”. Contrição, quebrantamento e recompensa, elementos facilmente teologizáveis, representam respectivamente as ações penitentes do prefeito, do bispo e do banqueiro que se somam ao clamor da cidade. Os guardiões da moralidade não hesitam em suplicar a expiação da prostituta, na forma magistral da terceira versão do coro:

Vai com ele, vai, Geni! / Vai com ele, vai, Geni!
Você pode nos salvar / Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um / Bendita Geni! (BUARQUE, 1982).

A frase “Você dá pra qualquer um”, até aqui recorrente e inviolável, nesse momento se encontra à serviço de um novo sentido: antes justificativa de sua maldição, agora fundamento de sua bendição.

“Entregou-se a tal amante”. A quarta e última estrofe narra a compaixão de Geni pela cidade e sua entrega ao carrasco.

Foram tantos os pedidos / Tão sinceros, tão sentidos / Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante / Entregou-se a tal amante / Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira / Lambuzou-se a noite inteira / Até ficar saciado
E nem bem amanhecia / Partiu numa nuvem fria / Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado / Ela se virou de lado / E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia / E a cidade em cantoria / Não deixou ela dormir (BUARQUE, 1982).

Os principais personagens da narrativa — os “guardiões da moralidade”, o comandante e a própria Geni — se aproximam na medida em que todos parecem negociar seus princípios. Entretanto, há de se notar as significativas diferenças nos motivos que levam ao afrouxamento dos valores que os animam. Os “guardiões da moralidade” (o prefeito, o bispo, o banqueiro e a maioria dos citadinos) negociam seus princípios pra salvarem a própria pele (tolerância resignada à expiação de Geni); o comandante negocia os seus princípios em nome de um prazer momentâneo e por isso está disposto a absolver os citadinos; Geni, por outro lado, negocia seus princípios movida exclusivamente por abnegação, altruísmo e solidariedade para com o outro.

Mas, nem sempre a abnegação, altruísmo e solidariedade transformam aqueles que apressadamente colonizam seres e espaços. Uma vez que a cidade se encontra redimida, voltam a insultar sua salvadora, mas agora de uma forma ainda mais hostil e implacável.

Joga pedra na Geni! / Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar! / Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um! / Maldita Geni! (BUARQUE, 1982).

Sempre pelos mesmo detratores, Geni foi inicialmente maldita pela convicção e depois pela perplexidade; tornou-se bendita pela resignação e, finalmente, ainda mais maldita pela insensatez e obtusidade.

A cultura do protos e o lugar do coadjuvante no contexto da obra buarqueana

Nossa cultura atual, muito afeita às celebrações em torno da figura do “protagonista”, normalmente não visibiliza aquilo que está para aquém da exposição e do extraordinário da vida. Há muito mais reunido sob o signo do “protagonista” — protos + agonistès (BUENO, 1974, p. 3227) — do que nossa cultura consegue legitimar. Entretanto, normalmente privilegia-se o protos — ou seja, o “primeiro”, o “mais importante”, o que se coloca em “relevo” — em detrimento do agonistès, expressão a partir da qual seríamos remetidos à ideia de um “combatente”, um “lutador”. Este acaba sendo recorrentemente subsumido e tornado refém dessa tirania do espetáculo, da necessidade cultural de se legitimar pela exposição. Como já diagnosticava Guy Debord, na década de 1960, tanto mais se é quanto mais se parece ser (DEBORD, 1997). No contexto da espetacularização do mundo, lutar e combater supostamente cumpririam apenas o fado de nos transformar em seres relevantes e notórios. Na cultura do protos, o prot-agonista não tem a ver apenas com o personagem principal de uma tragédia, drama ou comédia em torno do qual se constrói e se realiza toda a trama. Na verdade, traduz-se numa imagem que resulta da vontade de poder, do anseio por alcançar o lugar mais sublime, desejo diante do qual toda luta e combate é relegado a segundo plano e só vige para cumprir o destino almejado.

O discurso sobre o qual a cultura do protos se constrói é dualista porquanto inflaciona certos aspectos da realidade e ignora outros, afinal, nem todos os que lutam e combatem nos contextos cruéis e desumanos de nossa sociedade significativamente injusta se tornam importantes ou mesmo visibilizados. Em grande medida os coadjuvantes são lutadores e combatentes, todavia, apesar disso, permanecem coadjuvantes. Em sociedades injustas, marcadas pela subalternidade, as aspirações são consideravelmente menos pretensiosas: sobreviver é mais do que suficiente! A cultura do protos tem o poder de gerar moldes sociais que vão se tornando parâmetros para a vida, movimentam a produção de artigos de consumo e nos levam a construir uma cultura de preconceito e exclusão, de simulacros e simulações (Cf. BAUDRILLARD, 1991.) que, além de desumanizante, também é ineficaz quando se trata de assumir a dor de se viver e suas implicações.

Tal cultura ignora que no teatro da vida, todos estão por demais implicados no espetáculo; não há um lugar seguro onde se possa sentar confortavelmente como espectador e admirar as brilhantes performances, a linda paisagem, a alegria ou a dor do outro, cenários que facilmente se tornariam da ordem do entretenimento. Tudo e todos estão imbricados: ricos e pobres, profetas e povo, vida e morte, palco e plateia (ROCHA, 2019, p. 119).

A cultura do protos, nesse sentido, ignora a própria vulnerabilidade humana como elemento constitutivo do ser. Ao evocar autores como Lévinas, Dussel, Hinkelammert e Logstrup, Sturla Stalsett insiste que a demanda ética surge desde a vulnerabilidade do Outro, afinal, não se pode escutar e responder à voz que emerge da vulnerabilidade se não se reconhece a própria vulnerabilidade. Nas palavras Stalsett,

Sin reconocimiento de la propia vulnerabilidad no es posible percibir la vulnerabilidad del Otro, y por lo tanto no es posible la acción ética. Dicho de otra forma, sin el reconocimiento de la interdependencia que surge de una vulnerabilidad compartida, no puede escucharse y responderse al grito del sujeto [...] Esta interdependencia expresada en la vulnerabilidad compartida [...] se afirma en la frase de Franz Hinkelammert: ‘el asesinato es suicidio’. Lo que aquí se ve, es el carácter constituyente de la vulnerabilidad, tanto en sentido antropológico como en sentido ético. Antropológicamente dicho: ‘Yo soy solo si tú también eres (ubuntu); éticamente expresado: “Ama a tu prójimo, porque tú lo eres” (STALSETT, 2002, p. 33.).

Essa vulnerabilidade, enquanto marca do sujeito ausente, está na contramão dos fundamentalismos, sejam os tradicionais religiosos de cunho protestante, católico, islâmico, hindu ou mesmo o fundamentalismo do Império neoliberal globalizado, na medida em que estes não aceitam sua própria vulnerabilidade — consequentemente, tornam-se insensíveis à vulnerabilidade do outro. O sonho de todos os fundamentalismos é a invulnerabilidade absoluta, mas, segundo Stalsett, as maneiras de se buscar a realização desse sonho são distintas nos dois casos. O fundamentalismo religioso procura eliminar seu adversário mediante a violência simbólico-religiosa que se nutre dos textos sagrados, da história e do dogma. Inquisições, por um lado, terrorismo islâmico, por outro, marcam as posteriores materializações dessa violência. O fundamentalismo do Império global, por sua vez, busca na supremacia absoluta da tirania capitalista e da tecnologia a realização de seu sonho de invulnerabilidade. Portanto, à vulnerabilidade dos viventes, traço constitutivo de sua humanidade, contrapõe-se a força dos fundamentalismos.

O globo como um todo é vulnerável e tal vulnerabilidade é compartilhada por todos os habitantes do planeta. Tal vulnerabilidade se percebe em realidades que vão da ameaça nuclear e os problemas ecológicos que derivam do desenvolvimento desenfreado às ameaças terroristas que a todos apavoram. No entanto, embora compartilhada, essa vulnerabilidade é assimétrica no sentido de que existem poucos ganhadores e muitos perdedores. Então, quando nos referimos à ética frente ao fenômeno da globalização, referimo-nos a uma vulnerabilidade compartilhada, porém assimétrica. Portanto, a ética constitui-se no reconhecimento dessa vulnerabilidade compartilhada e assimétrica, assumida como tarefa pessoal e coletiva.

Stalsett também chama a atenção para o fato de que a busca excessiva por segurança, na esperança de eliminar a vulnerabilidade humana, pode ter consequências desumanizantes, já que a vulnerabilidade é constitutiva do ser humano — “ser humano é ser vulnerável” —, além de se constituir abertura ao outro, na acepção de Emmanuel Lévinas. A vulnerabilidade, nesse sentido, é o fundamento de toda sensibilidade, compaixão e comunidade. A ausência de reconhecimento da vulnerabilidade inviabiliza o reconhecimento da vulnerabilidade do outro e a demanda ética que daí decorre. Para o teólogo norueguês, o sonho da invulnerabilidade, central no projeto moderno e desejado pelos impérios históricos e atuais, é um sonho imoral, porquanto desumanizante (STALSETT, 2004, p. 145-157).

A cultura do protos também poderia ser compreendida nos termos daquilo que Lévinas chamou de “modelos da satisfação”. Segundo tais modelos, “a posse comanda a procura, o gozo é melhor que a necessidade, o triunfo é mais verdadeiro que o fracasso, a certeza mais perfeita que a dúvida, a resposta vai mais longe que a questão” (LÉVINAS, 2005, p. 111). Subsidiados por esses modelos, procura, sofrimento, fracasso, dúvida, questão tornam-se apenas diminuição do achado, do deleite, da felicidade e da resposta, palavras-chave em torno das quais a cultura do protos cria os seus enredos. Embora frequentemente colonizado no contexto dos “modelos da satisfação”, o agonistès nos lembra que pessoas reais — aqueles que lutam cotidianamente em face de uma cultura opressora —, na verdade, definem-se mesmo pela procura, pela carência, pelo revés, pela perplexidade ou mesmo pelas contínuas indagações. Segundo Lévinas, estaríamos diante de um ineludível e constitutivo estado de indigência, sem o qual não haveria humanidade possível. Os modelos da satisfação que orientam nossa cultura, embora pareçam constantemente atropelados pela vida assim “como ela é”, cativam pelas promessas que lhe são implícitas ao modo de uma vida assim “como deveria ser”.

Também é oportuna a alegoria kantiana, que surge no contexto de uma crítica ao chamado mito da caverna de Platão (Cf. KANT, 2015, p. 50), que normalmente se tornou uma espécie de tipologia da insistência pelo novo, pela liberdade, pela autonomia e racionalidade, elementos caros à Modernidade Ocidental, sobretudo quando consideramos sua sôfrega busca pelo progresso e dominação da natureza. Quanto à crítica de Kant à perspectiva platônica, assim se expressa Rocha:

pouco se percebem que sob o manto da univocidade da Verdade platônica escamoteia-se a negação do lugar onde mais somos humanos: a caverna, o mundo sensível, finito, natural, albergue da multiplicidade, da relatividade e da experiência. E é nesse sentido que outra metáfora, a de Kant, surge como crítica contundente: a leve pomba, na medida em que corta o ar e sente sua resistência, poderia imaginar que seria muito melhor voar no vácuo [...] Movimentar-se na vacuidade do mundo metonímico da abstração e do ideal, tal é o anseio e sofreguidão daqueles que desejam apressadamente abandonar o chão da experiência humana, esta que se traduz na própria resistência do ar enfrentada pela leve pomba em seu voo. A finitude humana, condição inescapável, embora resista à vontade de poder, surge como elemento constitutivo sem o qual não haveria voo (ROCHA, 2019, p. 120).

No contexto de uma cultura que celebra os modelos de sucesso, as grandes performances, o prot-agonismo a qualquer custo, são dignas de nota as críticas que se colocam à serviço da visibilidade de tudo aquilo que se tornou da ordem do banal. Essa postura filosófica que se traduz no encanto diante do que foi banalizado e epistemologicamente colonizado, pode ser percebida ao longo de toda a obra buarqueana, já que é flagrante o destaque que dá aos sujeitos mundanizados e invisibilizados. Tal acento dificilmente se faz notar sob as “lentes jornalísticas”, metáfora que muito bem poderia traduzir o modo como nossa cultura nos condiciona a nos aproximarmos das pessoas: considerando o grande, explorando as crises, editando e resumindo o ordinário, entrevistando o fascinante (PETERSON, 1987, p. 149). É característica marcante da obra buarqueana a protagonização daqueles coadjuvantes mais invisibilizados de nossa sociedade, mas, não à revelia de sua condição subalternizada. Chico Buarque nos expõe o tempo todo ao vigor que deriva da capacidade humana de gritar, interpelar e se rebelar. Quando compõe é como se tivesse a “câmera” em suas mãos e, assim, a oportunidade de enquadrar os coadjuvantes, tirando-os da condição de figurantes e dando-lhes a chance de revelar seus desconfortos, suas cicatrizes mais profundas, sua invisibilização e anti-heroísmo.

Arquétipos de todos nós são as dezenas de personagens comuns e desconhecidos, em situações cotidianas, lutando e combatendo como coadjuvantes, que povoam a obra de Chico Buarque. Ele não apenas é um conhecedor da realidade brasileira, mas, consegue de forma poética traduzir tal realidade de modo a permitir a fácil identificação dos vários e reais coadjuvantes com os seus múltiplos personagens. Que mulher subalternizada não se identificaria com a ironia implícita na experiência das “mulheres de Atenas”, conhecidas por renunciarem a seus desejos com vistas a satisfazer o desejo de seus maridos, “orgulho e raça de Atenas”? Que operário brasileiro, homem ou mulher, não se identificaria com a história de um trabalhador comum que vive o seu último dia “como se fosse o último”, entre o lar e a “construção”, e experimenta a absurdidade e despropósito de uma morte que mais parece finamento? A morte, como muito bem nos lembra Heidegger, não se trataria de uma experiência que pressupõe sentido, que é elaborada enquanto se vive, quando se pode viver1 ? Mas, qual o sentido na morte de tantos coadjuvantes do nosso Brasil, que lutam dia a dia para sobreviverem, à despeito de serem oprimidos por estruturas injustas e finalmente se resumirem aos números estatísticos? Quem mesmo inflado pela cultura do protos não se identificaria finalmente com aqueles que querem “ter voz ativa” e no próprio “destino mandar”, mas, “eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá”? Mesmo os que não querem se calar, bebendo o “cálice” de vinho tinto de sangue, todos os dias não são obrigados a “tragar a dor e engolir a labuta”? E o que dizer daqueles que vivem aqui e ali suas experiências extraordinárias? Não é plausível dizer que no final das contas se definem mesmo pela recorrência do “cotidiano” que insistentemente os desafia a ver o novo no velho? Certamente há muitos que se sentiriam convidados a ressignificarem sua dor ao verem “passar” na avenida “um samba popular”, alegria fugaz que bamboleia por sobre os paralelepípedos que trazem à memória os que sangraram pelos nossos pés e sobre os quais sambaram nossos ancestrais! Um convite a acessar os bastidores da nossa infeliz história”, “passagem desbotada na memória”, tempo em que os filhos da “nossa pátria mãe tão distraída “levavam as pedras feito penitentes erguendo estranhas catedrais”! O que dizer daqueles personagens ordinários, cotidianos, sofridos, que — “à toa na vida” — se despedem da dor “pra ver a banda passar”, mesmo que depois novamente tudo tome o seu lugar?

Chico Buarque nos tira da plateia e nos lança pujantemente no palco — morada do improviso —, o ambiente no qual todos nós, protagonistas ou coadjuvantes, nos revelamos constitutivamente vulneráveis. Aqueles que estão no palco não têm tempo para idealizações, contracenam o tempo todo, razão pela qual vivem constantemente a experiência da aproximação de outros personagens. É nesse sentido que a obra buarqueana nos desperta para uma demanda ética que surge desde a vulnerabilidade do outro.

Em Geni e o Zepelim nos deparamos com uma personagem que facilmente se camufla e se perde no cenário em função do papel social que está fadada a cumprir. Entretanto, a “câmera” de Buarque se recusa ao vício jornalístico, sempre à serviço do fascinante e extraordinário. Busca, ao contrário, construir uma narrativa na qual a figura subalternizada de Geni assume o papel principal e, ao contrário de todos os outros personagens principais, ganha um nome. Os demais — os citadinos, o comandante, o prefeito, o bispo e o banqueiro — são conhecidos por seus títulos e posições, reveladores que são das diversas instâncias nas quais se destila o preconceito da sociedade. Geni é figura arquetípica, mas, também, a encarnação dos muitos subalternizados que, sob as lentes das “câmeras” certas, podem emergir vigorosamente em meio à gama de personagens metonímicos. “É com ela que nos solidarizamos e por quem nos simpatizamos; é dela que nos aproximamos e com a qual nos identificamos; e é a ela que recorremos quando por conta da injustiça e do preconceito nos convulsionamos” (ROCHA, 2019, p. 122).

O sagrado camuflado e a colonização dos loci de sentido

Geni e o Zepelim inevitavelmente nos convida à discussão da relação entre sagrado e profano, ricamente explorada pela literatura afim. De modo geral, entretanto, é preciso inicialmente destacar alguns elementos aos quais somos remetidos quando consideramos essa relação. Primeiramente há de se considerar o caráter ambíguo do sagrado, essência de toda religião. Se, por um lado, sua acepção indo-europeia nos conduz à ideia de separação, por outro, também somos remetidos à ideia de contato (GALIMBERTI, 2003, p. 11-12). Ou seja, o sagrado sempre impõe uma certa distância com respeito ao que se venera, mas, ao mesmo tempo, é isso em relação ao qual nos sentimos atraídos. Temor e reverência, por um lado; intimidade e atração, por outro.

Em segundo lugar, destaca-se o caráter hermenêutico do sagrado. Isso significa que não se trata de uma propriedade inerente a certas pessoas, coisas, tempos ou lugares, ou seja, não deve ser compreendido como substância (ousía), como estrutura necessária e permanente. Ao contrário, trata-se de uma operação do olhar, o que significa que está mais no olho de quem vê do que propriamente naquilo que é visto. O fato de o sagrado ser refém das operações hermenêuticas possibilita a constatação de que as mesmas coisas podem ser concomitantemente sagradas e profanas. A experiência com o sagrado, como nos diria Mircea Eliade, é uma experiência de ser, de sentido e de verdade. Nas palavras do fenomenólogo das religiões,

Com efeito, é difícil imaginar como poderia funcionar a mente humana sem a convicção de que existe algo de irredutivelmente real no mundo, e é impossível imaginar como poderia ter surgido a consciência sem conferir sentido aos impulsos e experiências do Homem. A consciência de um mundo real e com um sentido está intimamente relacionada com a descoberta do sagrado. Através da experiência do sagrado, a mente humana apreendeu a diferença entre aquilo que se revela como real, poderoso, rico e significativo e aquilo que não se revela como tal — isto é, o caótico e perigoso fluxo das coisas, os seus aparecimentos e desaparecimentos fortuitos e sem sentido (ELIADE, 1989, p. 9).

Percebe-se que para Eliade o sagrado não é um estágio na história da consciência, como tantas “histórias das religiões” já afirmaram, mas, trata-se de um elemento da estrutura da consciência, o que significa que na medida em que o ser humano não pode viver no caos, o mundo de sentido resulta de um processo dialético que pode ser visto como uma manifestação do sagrado. Assim, pode-se dizer que o mundo de sentido é, desde o início, captado pela reflexão filosófica como algo genética e estruturalmente “religioso”, e essa experiência do sagrado na medida em que desvenda o ser e a verdade e capta o sentido em meio a um mundo desconhecido e caótico, acaba por delinear o caminho para o pensamento sistemático (ELIADE, 1989, p. 10).

Em terceiro lugar, há de se estabelecer uma distinção entre sagrado e profano, mas, não ao modo de uma lógica dualista, afinal, esta pressupõe que os termos da relação se coloquem de forma hierarquizada e excludente, em que uma das dimensões representadas sempre se legitima em detrimento da outra. A lógica dualista, nesse sentido, sempre exigirá uma relação essencialista, a partir da qual categorias, como sagrado e profano, tornam-se fixas e permanentes. Por outro lado, assumir a relação entre sagrado e profano numa perspectiva alternativa — dialética, por assim dizer — é significativo para se compreender alguns temas em Geni e o Zepelim. A lógica dialética está amparada no pressuposto de que os termos da relação, conquanto distintos, não se hierarquizam. A relação entre sagrado e profano, numa perspectiva dialética, evoca a interdependência entre essas realidades, no sentido de uma coexistência paradoxal. Ou seja, sagrado e profano conquanto mantenham-se em sua alteridade, relacionam-se de tal maneira que o profano, sem perder sua identidade, manifesta o sagrado, enquanto o sagrado dissimula-se no profano.

É em sentido dialético que Eliade propõe a irredutibilidade do sagrado, ou seja, o sagrado como qualitativamente distinto do profano ou — acompanhando Rudolf Otto — como ganz andere, como realidade “totalmente outra” (OTTO, 2007; ELIADE, 2001, p. 18). Há uma dissociação no real, provocada pela experiência com o sagrado, que permite qualificar o profano como aquela realidade carente de sentido, enquanto o sagrado se mostra como realidade significativa. Para Eliade, “Um mundo com sentido — e o Homem não pode viver no ‘caos’ — é o resultado de um processo dialético a que se pode chamar manifestação do sagrado” (ELIADE, 1989, p. 10). Nesse sentido, embora o sagrado seja radicalmente oposto ao profano — sobretudo quando considerado o sentido que lhe é inerente e que o destaca de seus pares —, manifesta- -se, contudo, numa realidade distinta de si mesmo, quer dizer, em pessoas, objetos, tempos e lugares do mundo natural e profano. Na verdade, a irrupção do sagrado no mundo humano é constitutivo de sua natureza, já que seu absoluto encobrimento implicaria em nada significar, o que inevitavelmente comprometeria também sua condição de sagrado. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que o sagrado se mostra irredutível, para que seja dotado de sentido é preciso manifestar-se no profano.

É no contexto desse movimento dialético que Eliade nos sugere o fenômeno da camuflagem do sagrado, afinal, sua manifestação não se dá de forma escancarada. Ao contrário, à semelhança da concepção heideggeriana do ser, há de se assumir sua condição “pouco evidente” e “discreta”. Em Heráclito, Heidegger traduz duas estórias supostamente atribuídas ao pensador éfésio que podem lançar luz ao fenômeno da camuflagem do sagrado. Eis a primeira estória:

Diz-se (numa palavra) que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele encorajou os visitantes espantados a entrar, pronunciando as seguintes palavras: “Mesmo aqui, os deuses também estão presentes” (HEIDEGGER, 2002, p. 36).

A segunda estória diz:

Ele se dirigiu ao santuário de Ártemis para lá jogar dados com as crianças; dirigindo-se aos efésios (seus conterrâneos), que estavam de pé ao seu redor, exclamou: “Seus infames, o que estão olhando aqui tão espantados? Não é melhor fazer o que estou fazendo agora do que cuidar da πόλις junto com vocês? (HEIDEGGER, 2002, p. 37).

“Forno” e “jogo” indicam, concomitantemente, a transgressão de fronteiras entre sagrado e profano. A primeira estória, caracterizada pelo “forno”, mostra-nos um lugar cotidiano onde os deuses supostamente também se fazem presentes. A segunda, ao contrário, mostra-nos um lugar sagrado (o santuário de Ártemis), mas, precisamente aí há “descontração e serenidade”, “o balanço e a liberdade”, próprios do jogo que revela uma profanidade em meio à sacralidade (Heidegger, 2002, p. 38). Nas duas estórias somos expostos ao contrário do que poderíamos esperar. “No forno decepcionamo-nos. No santuário espantamo- -nos” (Heidegger, 2002, p. 37). Heidegger nos convida, por meio dessas estórias, a abandonar o olhar curioso das pessoas que vê apenas o que aparece de imediato. Para ele, o olhar da multidão não consegue perceber aquilo que se mostra para além do claro e evidente; são cegos para os sinais e se atêm ao simplesmente dado2 . A multidão reclama os seus lugares fixos, previamente chancelados pela razão, mas, faz parte do modo de ser do sagrado subverter esses loci e sinalizar àqueles que possuem um olhar atento.

Sagrado e profano, portanto, não o são desde sempre! Não se mantêm em sua univocidade! Não se trata de concebê-los de modo substancial, como dissemos anteriormente, mas, de compreender o caráter constitutivo do sagrado em sua vocação de camuflar-se no profano. A Modernidade Ocidental, que se construiu sobre uma razão deveras inflacionada, celebrou muito apressadamente a expatriação da religião dos espaços profanos da cultura. A necessidade de distinguir e seccionar, características da razão instrumental, também trouxe a ilusão de uma secularização plenamente capaz de dessacralizar o mundo. Entretanto, o contestável exílio do sagrado era apenas uma característica de seu modo de ser, afinal, mesmo em culturas radicalmente secularizadas é possível perceber o seu vigor, ainda que latente e camuflado. Eliade indica a necessidade de se recuperar o sagrado em meio aos fenômenos culturais aparentemente não religiosos:

Nas sociedades mais radicalmente secularizadas e entre os movimentos de juventude contemporâneos mais iconoclastas (como o movimento “hippie”, por exemplo), existe uma série de fenômenos aparentemente não religiosos nos quais se podem decifrar novas e originais recuperações do sagrado — se bem que não sejam confessadamente reconhecíveis como tal de uma perspectiva judaico-cristã. Não me refiro à “religiosidade” evidente em tantos movimentos sociais e políticos, tais como os direitos cívicos, as manifestações contra a guerra, etc. Mais significativas são as estruturas religiosas e os valores religiosos (por enquanto inconscientes) da arte moderna, de alguns filmes importantes e extremamente populares, de uma série de fenômenos relacionados com a cultura dos jovens, em especial a recuperação das dimensões religiosas de uma “existência humana no Cosmos” autêntica e cheia de sentido (a redescoberta da Natureza, os costumes sexuais desinibidos, a ênfase dada ao “viver no presente” e a ausência de “projetos” e ambições sociais, etc.) (ELIADE, 1989, p. 11)

Pode-se dizer que essa recorrente necessidade de “lotear os espaços” deriva dos nossos vícios da razão, essa faculdade que possibilita que as coisas sejam tiradas do indiferenciado e ganhem uma identidade. Por ela, somos sempre expostos ao cenário das diferenças, afinal, é da distinção que se nutrem as abstrações e conceitos, perímetros no seio dos quais significamos o mundo e nos manifestamos como humanos. “Sob os olhos da razão nunca se poderiam reunir num mesmo ser Deus e homem, santos e pecadores, bondade e maldade, força e fraqueza, nobreza e vileza, sagrado e profano” (ROCHA, 2019, p. 122). Conquanto a razão também nos caracterize como humanos, sua operação pode ser violenta quando ignora a plasticidade da vida. Embora a razão circunscreva, adestre e estereotipe, as identidades, mais cedo ou mais tarde, entregam-se às mais variadas metamorfoses, porquanto são carentes de fidelidade e memória. A vida sempre encontra um jeito! Como disse Michel Maffesoli, necessário se faz “submeter a razão à plasticidade do que é vivo” (MAFFESOLI, 2007, p. 28.).

A instrumentalização violenta da razão se presta à colonização dos espaços e à autoctonização dos sujeitos, mas, de um modo a vinculá-los de forma injustificada a certos lugares. Não falamos aqui da legitimidade dos contextos e lugares de sentido, capazes de prover novas e criativas formas de conhecimento. Falamos do caráter inautêntico desse modo de ser. Falamos da possibilidade, sempre à espreita, de uma espécie de absolutização do próprio lugar, capaz de nos seduzir a hierarquizar o mundo e deslegitimar os vários loci de sentido. A exacerbação da condição de pátrios sempre nos leva à deslegitimação de outras paragens, de modo que o outro paulatinamente se transfigura em mal. Reclamamnos continuamente esses lugares aconchegantes, convenientes e ao mesmo tempo entorpecentes — onde se cultivam determinados valores, costumes e doutrinas —, mas, também, é deles que frequentemente somos desinstalados por alguns textos e autores que nos escandalizam por abruptamente nos lançarem em lugares inóspitos, onde os mapas possuem pouca ou nenhuma relevância. Esse é o efeito que Geni e o Zepelim produz em todos nós, na medida em que nos provoca uma perturbação e instabilidade derivadas de se ver migrar para ambientes desconhecidos aqueles elementos que foram cultivados em nossa própria casa ou, ao contrário, de lidar com a presença sempre ameaçadora e temida do outro em nosso próprio território. Felizmente, entretanto, a confusão e perplexidade para a qual somos permanentemente arrastados por Chico Buarque em canções como Geni e o Zepelim são, na verdade, manifestações da vida. Trata-se de pulsações que nos convocam às releituras e ressignificações.

Geni e o Zepelim é um terreno estranho à religião, onde os limites que separam o sagrado do profano são indiscerníveis. A canção nos convida a compreender o fenômeno da camuflagem, na medida em que somos capazes de abrir mão do dualismo que compartimentaliza pessoas, coisas, tempos e lugares. Nesse sentido, rejeitar o dualismo também significa superar a compreensão segunda a qual o profano supostamente deveria ser compreendido pejorativamente. Na perspectiva eliadiana, o profano é tão somente um modo de ser no mundo, uma categoria que designa o mundo natural, humano, cotidiano, ordinário e que, nesse sentido, contrapõe-se ao sagrado, densamente dotado de sentido por sua condição extraordinária. Por outro lado, a hierofania é constitutiva do sagrado, o que significa “a manifestação de algo ‘de ordem diferente’ — de uma realidade que não pertence ao nosso mundo — em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo ‘natural’, ‘profano” (ELIADE, 2001, p. 17). Assim como para Eliade o ser humano ocidental moderno é acometido de um mal-estar sempre que se vê diante da multiplicidade de manifestações do sagrado, o que o desinstala de seu lugar, como vimos há pouco, o mesmo se dirá das supostas manifestações do sagrado em Geni e o Zepelim. Há um paradoxo que constitui toda manifestação do sagrado, na perspectiva do fenomenólogo romeno, e que devemos manter à vista a fim de compreendermos o sagrado que se camufla na canção buarqueana:

Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania (ELIADE, 2001, p. 18).

Uma puta bondade! A bondade camuflada e as chancelas da religião

Normalmente aquilo que se manifesta de forma explícita também se incorpora naturalmente ao conjunto de saberes que se mobilizam de modo involuntário e, assim, ajuda a consolidar nossa visão de mundo. Mas, como temos visto aqui, o fato de ser constitutivo do sagrado a sua hierofania em estruturas profanas, não estamos lidando com manifestações explícitas, escancaradas. Ao contrário, falamos de algo que se mostra com certo pudor, com certa dissimulação e ironia, e esse modo de ser nos convida permanentemente à perscrutação. O fato de o sagrado se camuflar também explica os constantes tropeços, sobretudo quando o profano é considerado em sentido pejorativo, como algo espúrio, previamente relegado a um estado de indigência, instância na qual já sabemos exatamente o que encontrar.

Em Geni e o Zepelim muitas são as marcas que mostram a falta de nitidez com respeito às zonas que distinguem sagrado e profano. Como vimos na primeira parte deste artigo, isso pode ser notado até na linguagem a partir da qual a canção é construída. Tais dimensões se entremeiam e se aproximam na escrita. A linguagem profana, por exemplo, é percebida em alguns versos e expressões, tanto no comum propriamente dito quanto no vulgar em sentido pejorativo. Com respeito à Geni, somos informados que “O seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes”; “dá-se assim desde menina”; “É a rainha dos detentos”; ela “dá pra qualquer um”, mas, por outro lado, também é descrita como uma “formosa dama”. A linguagem profana, refém de uma razão sempre impaciente e interessada em separar, distinguir, avaliar, facilmente justificaria a classificação da canção como indecente, imoral e grosseira. Mas, Chico Buarque mistura à linguagem profana palavras e expressões de caráter flagrantemente religioso, operação que certamente confunde aqueles que são seduzidos a precipitadamente classificar seres e não- -seres, lugares e não-lugares. Senão, vejamos: na canção, Geni é tanto “bendita” quanto “maldita”; a cidade está entregue à “iniquidade”; o asco de Geni pelo comandante é interpretado pelo povo como “heresia”, o que justifica o bispo e a cidade “em romaria” ir “beijar a sua mão”; a cidade clama por “salvação” e “redenção”, o que, incompreensivelmente, está nas mãos de Geni.

Chico Buarque também celebra a ambiguidade e ironia na linguagem, fazendo ecoar reminiscências de textos sagrados, e isso nos facilita caracterizar a relação entre sagrado e profano na peça literária. “Jogar pedra na Geni” é tanto uma ação profana quanto religiosa, sobretudo quando somos remetidos à imagem da mulher adúltera trazida a Jesus para o apedrejamento (Jo 8,1-11). Geni também é reputada como “singela” e “coitada”, ironia que relativiza sua suposta devassidão ao mesmo tempo em que nos remete à ideia de coito. A profanidade de Geni não impede que diante dela flagremos “o prefeito de joelhos” e “o bispo de olhos vermelhos”; também os impropérios iniciais contra Geni em razão de “dar pra qualquer um”, numa alusão à sua depravação, agora cedem lugar a uma desesperada súplica pela “salvação” que pode vir de sua abnegação, altruísmo e bondade que derivam do fato de “dar pra qualquer um”.

Em termos de linguagem, ainda se destaca o modo como um vocabulário aparentemente profano pode revelar significações de fundo religioso. É o que acontece com as diversas instâncias representadas na canção: militar (o comandante), social (a cidade), política (o prefeito) e religiosa (o bispo). Nesse sentido, não se pode ignorar a motivação do comandante em destruir a cidade, motivado por sua percepção do “horror e iniquidade” que lá grassava, além de reclamar pela “absolvição” de Geni, já que se vê momentaneamente prisioneiro de seus encantos. A linguagem também escamoteia o sagrado nas ações e expectativas de um povo que tanto “condena” Geni quanto anseia por “expiação”. Deparamo-nos com uma religião que rapidamente é evocada pelo prefeito quando o flagramos “de joelhos”, arquétipo de todos aqueles que possuem relações meramente políticas com a religião. Esta também se encontra inequívoca — mas, não menos interesseira e individualista —, na figura do bispo. De modo geral, Chico Buarque nos expõe à ambiguidade e ironia a partir das quais personagens se reúnem tanto nos interditos e preconceito da religião — representados nos estereótipos e na exclusão da protagonista —, quanto no inesperado anseio por sua bondade controversa.

Subsidiados pela percepção eliadiana, segunda a qual o sagrado se camufla no profano, identificamos na canção de Chico Buarque uma bondade dificilmente reconhecida nos espaços chancelados da religião. A face profana e escandalosa da canção Geni e o Zepelim facilmente faria tropeçar um religioso de raiz, comprometido com a prática zelosa e com a complexidade simbólica de sua religião, bem como com o seu próprio lócus. Afinal, ecoando a pergunta retórica de Natanael no Evangelho de João (Jo 1,46)3 , semelhantemente poderíamos perguntar: de alguém classificada como puta, poderia vir algo de bom? Notadamente a pergunta, implícita na peça literária, perde de vista o humano e sua suposta integridade que se esconde nos estereótipos sociais e religiosos.

Deparamo-nos com uma bondade que se encontra sepultada na vulgaridade e libertinagem que caracterizam a protagonista. Para além do claro e evidente, que normalmente surge de imediato aos olhos da multidão, como nos advertiu Heidegger, a canção de Chico Buarque denuncia que nos espaços autorizados da religião não basta que a bondade seja simplesmente boa, não basta que surja do simples altruísmo humano; é preciso chancelas. Nesse caso, a religião entra em cena como um distintivo que autoriza ações, define valores e protege conteúdos. A religião, na medida em que coloniza determinados temas, como bondade e expiação, transforma-se em foro definidor do bem e do mal, ao sugerir que mesmo a bondade precisa estar no lugar certo, nas pessoas certas. Mais do que isso, a canção sugere que mesmo maldade e perversão se sacralizam e se legitimam quando se encontram nos limites de espaços sagrados chancelados. Nessa perspectiva, os não-lugares e os não-seres nunca seriam instâncias no interior dos quais o sagrado se manifestaria. O “puto”, então, transforma-se numa categoria que designa a camada de material estranho, capaz de esconder os vestígios do divino ignorados pela mente seduzida pelos “modelos da satisfação”, na acepção de Lévinas. Nesse tribunal, onde Geni é julgada e sumariamente condenada, normalmente não se avança para além da mobília cultural e social, dos estereótipos que impedem que o humano seja desnudado e o seu valor reconhecido.

Certamente estamos diante de uma crítica contundente às versões violentas da religião que se sustentam sobre o falso pressuposto de que as virtudes humanas precisam de autorização da própria religião para terem alguma validade. Embora a violência não seja uma propriedade intrínseca e constitutiva da religião, pode por ela ser instrumentalizada (Cf. ROCHA; ROSA, 2019). No mundo dos espetáculos e do sôfrego consumismo, a religião certamente se tornou mais poderosa e determinante do que a própria divindade que a anima. Em muitos casos, esta acaba chegando muito tarde no mundo da religião e — diante da oferta de bens de consumo — isso contribui para que se arrefeça toda subversão que supostamente carreia. Legitimar a bondade de Geni exigiria uma nova religião; uma que estivesse disposta a abandonar a segurança e conforto de seu “lugar sagrado” e se aventurasse pelos meandros não higienizados da natureza humana, numa busca incessante e sincera pelos vestígios do divino que se camuflam no profano.

Pode-se dizer que em Geni e o Zepelim encontramos uma bondade profundamente libertadora, mas, que antecede o sentido religioso. A canção nos faz lembrar que, antes de ser cooptada pela religião, toda experiência de libertação é profundamente humana, o que significa que o sentido religioso é ato segundo, afinal, como muito lucidamente afirma Edward Schillebeeckx, “Fatos só se tornam história dentro de um quadro de sentido, numa tradição de fatos interpretados”. Ou seja, a libertação humana, na medida em que se realiza e se experimenta, é o primeiro nível de sentido. No contexto de uma tradição religiosa de experiência da fé, a mesma libertação humana é interpretada em segundo nível de sentido (SCHILLEBEECKX, 2012, p. 23.). Ou seja, a libertação é um processo mundano, humanamente relevante porquanto libertador de seres humanos, que se transforma em história da salvação no contexto de uma tradição de fé, mas que, no entanto, não depende desta para ser atribuída a Deus (“etsi Deus non daretur”). Isso também significa que professar uma religião não torna pessoas religiosas mais humanas que outras. E é por isso que nesse contexto é sempre imprudente falar muito cedo sobre Deus, sob o risco de se falar amparado por uma imagem envelhecida da divindade (SCHILLEBEECKX, 2012, p. 24.). É nesse sentido que se poderia dizer que a expiação resultante da bondade de Geni não depende da autorização de uma sociedade religiosa altamente moralista e desumana.

Chico Buarque certamente exige de todos nós uma capacidade hermenêutica capaz de recuperar a bondade de Geni ao preço de se atravessar muitas camadas de estereótipos e interditos. Mesmo os de boa vontade facilmente poderiam tropeçar nessa busca, visto que aquilo que se busca se confunde com o próprio material do qual é constituído essas camadas. Afinal, a bondade de Geni, muito distante das virtudes que são celebradas em espaços sagrados, revela-se no ato repugnante de se deitar com os proscritos e desclassificados. Em outras palavras, a bondade se deixa entrever na própria “coitada”, posto que “o seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes, é de quem não tem mais nada!”. A bondade de Geni não se faz notar nos templos sagrados, mas, “na garagem, na cantina, atrás do tanque ou no mato”. Embora não seja amada pelos religiosos, é “a rainha dos detentos, das loucas, dos lazarentos e dos moleques do internato”. Quando retornamos à metáfora de Kant, chegamos à conclusão que é tão impossível separar a bondade de Geni daquilo que a torna bondosa quanto seria separar o ar que constitui resistência ao voo da pomba da própria possibilidade do seu voo. A bondade de Geni, portanto, revela-se naquilo que mais abominamos, o que nos choca profundamente.

Certamente aqueles e aquelas que se sentem importantes apenas na medida em que satisfazem a sofreguidão de uma sociedade consumista, egoísta e violenta, prontamente se identificariam com Geni:

O coro que manifesta a excitação coletiva em busca de um bode expiatório se inicia no impropério: “Joga pedra na Geni! / Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! / Ela é boa de cuspir! / Ela dá pra qualquer um! / Maldita Geni!”; avança para a manifestação de uma radical perplexidade: “Essa dama era Geni! / Mas não pode ser Geni! / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni!”; tem o seu clímax na total rendição da cidade à redenção de Geni diante do perigo iminente: “Vai com ele, vai, Geni! / Vai com ele, vai, Geni! /Você pode nos salvar / Você vai nos redimir / Você dá pra qualquer um / Bendita Geni!”; entretanto, termina mais ou menos onde começou, mas, com um requinte de crueldade ainda maior: “Joga pedra na Geni! / Joga bosta na Geni! / Ela é feita pra apanhar! / Ela é boa de cuspir! / Ela dá pra qualquer um! / Maldita Geni!” (ROCHA, 2019, p. 128).

A canção de Chico Buarque sugere que ainda que muitos religiosos não aceitem o fato de que o sagrado seja uma operação do olhar, são recorrentemente surpreendidos por sua própria arrogância todas as vezes que negociam seus princípios em função dos próprios interesses. Em Geni e o Zepelim percebemos que conceitos teológicos, como os de bênção e maldição — tão caros a algumas religiões —, frequentemente acabam se definindo mais por critérios pragmáticos ou ideológicos do que propriamente por critérios puramente teológicos. A maldição que parece ser um princípio absoluto na boca daqueles que se reúnem na primeira manifestação de execração da Geni, estranhamente transfigura- -se (adultera-se?) em benção, num claro movimento de manutenção do próprio bem-estar. Os olhos da multidão (lembremo-nos de Heidegger), incapazes que são de entrever o caráter instável do sagrado e do profano, não titubeiam em sacralizar aquilo que mais repudiam quando o que está em jogo é a própria vida.

O profano é esse terreno comum onde os humanos — crentes e não crentes — se reconhecem como tais, e para onde todos temos que retornar quando o sagrado se torna opressor, para uma vez mais reconstruir o sentido, postular o sagrado libertador. Em Geni e o Zepelim somos convidados a procurar nos escombros da profanidade aquela bondade extremamente simples, muitas vezes ausente dos recantos complexos da religião. Tal bondade é subversiva, escandalosa — por vezes, atrapalha a religião —, mas, extremamente fecunda quando consideramos a urgência de uma religião humanizadora e libertadora. A bondade pulsa como pulsa a vida, mesmo que sua potência se manifeste em páthos, misericórdia, entrega. Embora temporariamente tenha todos em suas mãos — o comandante que se inclina à sua beleza e mesmo a cidade que a reverência por sua expiação —, Geni bondosamente faz pouco caso de seu poder e se entrega aos seus algozes. Uma vez mais será usada, amaldiçoada e finalmente descartada. Mas, a vida, mesmo em sua profanidade, sempre encontra um jeito!

Referências

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Notas

[1]Para Heidegger, diferente dos animais que apenas findam, os seres humanos morrem e por isso podem ser chamados de mortais, desde que morrer significa saber a morte como morte. “Chamamos aqui de mortais os mortais — não por chegarem ao fim e finarem sua vida na terra, mas porque eles sabem a morte, como morte. Os homens são mortais antes de findar sua vida” (HEIDEGGER, 2002, p. 156).

[2]Ecos de Lucas 11, 29-30 poderiam ser inferidos das palavras de Heidegger. Segundo o texto bíblico, assim teria dito Jesus quando diante da multidão em busca de um sinal: “Essa geração é geração má; procura um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, exceto o sinal de Jonas. Pois assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim também o Filho do Homem será um sinal para esta geração” (Bíblia de Jerusalém)

[3]Perguntou-lhe Natanael: “De Nazaré pode sair algo de bom?” Filipe lhe disse: “Vem e vê (Bíblia de Jerusalém).