Os diferentes olhares sobre Monte Santo, o coração místico do sertão baiano
The different looks on Monte Santo, the mystical heart of the bahian backlands

Neffertite Marques Costa*
*Mestra em Ciência da Religião pela PUCSP, Especialista em Ciências da Religião pela PUC-SP, Pedagoga pela Universidade de São Paulo e Licenciada em História pela Uninove. Contato: profa.neffertite@gmail.com
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Resumo
No sertão baiano, existe uma peregrinação que rememora a Paixão de Cristo, estabelecendo o chamado Caminho da Santa Cruz, com capelas construídas no século XVIII, pela ação do missionário capuchinho Apolônio de Todi, dando origem ao município de Monte Santo, vizinho de Canudos, que se tornou o Belo Monte de Antônio Conselheiro, no final do século XIX, sendo Monte Santo a base de operações do Exército brasileiro durante a Guerra de Canudos, ocorrida entre os anos de 1896 e 1897. O presente artigo apresenta o início dessa peregrinação, assim como as diferentes narrativas sobre Monte Santo e o Santuário da Santa Cruz, passando por Euclides da Cunha, pelas memórias do Frei João Evangelista de Monte Marciano e pela Literatura de cordel. Conclui-se verificando a religiosidade dos peregrinos, que, mesmo diante da cruz, que seria então o maior do símbolo do cristianismo, se voltam para a devoção mariana, característica do catolicismo popular, evidenciado com a mística popular sertaneja

Palavras chave: Monte Santo; Euclides da Cunha; Frei João Evangelista de Monte Marciano; Minelvino Francisco Silva; Literatura de cordel.

 

Abstract
In the backlands of Bahia, there is a pilgrimage that remind the Passion of Christ, establishing the called Way of the Holy Cross, with chapels built in the 18th century by the capuchin missionary Apolônio de Todi, giving birth to the municipality of Monte Santo, neighbor of Canudos, that became the Belo Monte of Antônio Conselheiro, in the end of the 19th century, Monte Santo being the base of operations of the Brazilian Army during the Canudos War, between 1896 and 1897. The present article shows the beginning of this pilgrimage, as well as the different narratives about Monte Santo and the Sanctuary of the Holy Cross, passing by Euclides da Cunha, by the memoirs of Brother João Evangelista de Monte Marciano and by the Cordel Literature. It concludes by verifying the religiousness of the pilgrims, who, even before the cross, which would then be the greatest symbol of Christianity, turn to the Marian devotion, characteristic of popular Catholicism, evidenced with the folk mystic of the backlands.

Keywords: Monte Santo; Euclides da Cunha; Frei João Evangelista de Monte Marciano; Minelvino Francisco Silva; Cordel Literature.

Introdução

Monte Santo, no sertão do Estado da Bahia, no norte do Estado, parece ainda ser pouco conhecida pelos teólogos e cientistas da Religião. Praticamente não se verifica nos estudos da área referências à localidade, que recebe anualmente milhares de peregrinos, vindo não só do Estado da Bahia, sobretudo para as festas religiosas da Paixão de Cristo, nos meses de março ou abril, dependendo do calendário litúrgico, e de Todos os Santos, em novembro.

Neste trabalho, mais do que uma descrição do Caminho da Santa Cruz, composto por vinte e quatro capelas e o Santuário da Santa Cruz, distribuídos ao longo de quase 4 quilômetros, em um monte com quinhentos metros de altura, serão abordados os diferentes olhares sobre Monte Santo, além de uma breve análise acerca da religiosidade expressa pela figura do sertanejo, responsável pela construção das capelas e o principal personagem da peregrinação.

Para tal, serão utilizados o relato de Euclides da Cunha, registrado no livro Os sertões; as memórias do Frei João Evangelista de Monte Marciano, organizadas por Ayrton Cesar Marcondes; e a Literatura de cordel, tanto o resultado do levantamento feito pelo pesquisador José Calasans Brandão da Silva acerca dos folhetos que retrataram a Guerra de Canudos, quanto o relato de uma peregrinação à Monte Santo em um folheto do poeta popular Minelvino Francisco Silva, disponível no acervo digital da Fundação Casa de Rui Barbosa, localizada no Rio de Janeiro.

Os diferentes olhares sobre Monte Santo

Monte Santo, embora tenha iniciado a sua história no século XVIII, talvez tenha passado quase desconhecida por pessoas de fora do sertão nordestino, tão carente de milagres, gerando diversos santuários pelo Nordeste, até a eclosão da Guerra de Canudos, no final do século XIX, quando o município foi ocupado pelas tropas do Exército, detalhe que Euclides da Cunha, que registrou o conflito, destacou como sendo o mais importante do local, embora tenha relatado a existência do Caminho da Santa Cruz, elemento responsável pelo município adquirir o tpitulo de Coração místico do sertão baiano

No dia 29 de dezembro entraram os expedicionários em Monte Santo. O povoado de frei Apolônio de Todi ia, a partir daquela data, celebrizar-se como base das operações de todas as arremetidas contra Canudos. (...) É natural que seja Monte Santo, desde muito, uma paragem remansada, predileta aos que se aventuram naquele sertão bravio. Não surgia pela primeira vez na história. Muito antes dos que agora o procuravam, outros expedicionários, por ventura mais destemerosos e, com certeza, mais interessantes, por ali haviam passado, norteados por outros desígnios. Mas quer para os bandeirantes do século 17, quer para os soldados destes tempos, o lugar predestinado constituiu-se escala transitória e breve, mal relembrando em acontecimentos de maior monta. Não deixa, contudo, de ser expressiva a sua função histórica, entre devassadores do sertão, distintos por opostos intuitos e desunidos por três séculos, porém tendo – como veremos – a afinidade dos mesmos rancores e das mesmas arrancadas violentas. (...) E hoje quem segue pelo caminho de Queimadas, trilhando um solo abrolhando cactos e pedras, ao divisá- -la, das cercanias de Quirinquinquá, duas léguas aquém – estaca: volve em cheio para o levante a vista deslumbrada, e acredita que o ondular dos ares referventes e a fascinação da luz lhe alteiam defronte, entre o firmamento claro e as chapadas amplas, uma miragem estonteadora e grande. (...) A serra feita dessa massa de quartzito, tão própria às arquiteturas monumentais da terra, alteia-se, ao longe, acrescida a altitude pelas várzeas deprimidas em torno. Lança, retilínea, a linha de cumeadas. A vertente oriental cai, a pique, lembrando uma muralha, sobre o vilarejo. Este ali se encosta, sobre o socalco breve, humílimo, assoberbado pela majestade da montanha. Entretanto é por esta acima até o vértice que se prolonga, saindo da praça, a mais bela de suas ruas – a via-sacra dos sertões, macadamizada de quartzito alvíssimo, por onde tem passado multidões sem conta em um século de romarias. A religiosidade ingênua dos matutos ali talhou, em milhares de degraus, coleante, em caracol pelas ladeiras sucessivas, aquela vereda branca de sílica, longa de mais de dois quilômetros, como se construísse uma escada para os céus... Esta ilusão é empolgante ao longe. Veem-se as capelinhas alvas, que a pontilham a espaços, subindo a princípio em rampa fortíssima, derivando depois, tornejantes, à feição dos pendores; alteando-se sempre, eretas sobre despenhadeiros, perdendo-se nas alturas, cada vez menores, diluídas a pouco e pouco no azul puríssimo dos ares, até à última, no alto... (CUNHA, 2018, p. 190-192).

É significativo o fato de Euclides da Cunha comparar os soldados do Exército brasileiro com os bandeirantes do século XVII, posto que, em relação à Guerra de Canudos, ocorrida entre os anos de 1896 e 1897, ambos invadiram terras que não eram as suas, longe do seu local de origem, e destruíram aquilo que tinham sido ordenados, incluindo os seus habitantes, sejam quilombos, como Palmares que foi destruído sob o comando do bandeirante Domingos Jorge Velho, em 1694, seja o Arraial de Belo Monte, na guerra travada contra Antônio Conselheiro e aqueles que com ele ali se estabeleceram após o seguirem.

Euclides da Cunha citou o Frei Apolônio de Todi como o fundador do povoado que deu origem a Monte Santo, mas não trouxe nenhuma informação acerca desse personagem. O historiador José Calasans Brandão da Silva, em seu trabalho lido na Câmara de Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Natural do Conselho Estadual de Cultura da Bahia, em 1983, contribuiu não só para uma pequena biografia do Frei Apolônio de Todi mas para a história da fundação de Monte Santo.

Em 1779, aportou na cidade do Salvador, que não era, aliás, o destino de sua missão. A tarefa missionária, da qual fora revestido, deveria ser desempenhada na ilha de S. Tomé. Percalços do mar trouxeram-no até a ex- -capital do Brasil, onde chegou com problemas de saúde. Não prosseguiu por isso mesmo a projetada viagem. (...) Após haver percorrido algumas dezenas de localidades pregando santas missões e realizando obras de utilidade, dirigiu-se, atendendo a “grandes rogos”, à serra de Piquaraçá, que alcançou em outubro de 1785. Saíra da missão de Massacará. (...) Inspirado pelo ambiente, imaginou ornar logo o lugar de passos de N. S. das Dores e passos de N. Senhor. A área aproveitada media quase uma légua. Contou com o trabalho e dedicação dos sertanejos, que cortaram e levaram para o monte, paus de aroeira e cedro. Logo surgiram carpinas e pedreiros, solícitos no atendimento de frei Apolônio. Ao término da Santa Missão, no dia de todos os Santos, o frade organizou uma procissão para subir a serra e foi colocando cruzes de madeira no caminho “no modo e na distância que ordenam os Sumos Pontífices”. (...) Exortou aquele povo espiritualmente tão abandonado, a nos próximos anos visitar as santas cruzes, no dia santo. Por fim, tomou decisão de momento, determinando que daí por diante ninguém chamasse mais serra de Piquaraçá, aquele local piedoso. Principiara a era de Monte Santo, pontilhada de milagres. (SILVA, 1983, p. 3, 4).

Além de oferecer essa contribuição para o registro da história de Monte Santo e a construção do Caminho da Santa Cruz, José Calasans também se interessou pela forma como a figura de Antônio Conselheiro e as batalhas da Guerra de Canudos foram retratadas pela Literatura de cordel, importante expressão da cultura popular nordestina, que, de alguma forma, confirmou a tese de Euclides da Cunha de que Monte Santo iria ficar conhecida como base de operações do Exército durante a Guerra de Canudos.

Foi Sílvio Romero, em 1879, o primeiro escritor brasileiro a dar notícias de um ciclo de poesia popular que se estava formando em torno da figura messiânica de Antônio Conselheiro, na época conhecido apenas no centro das Províncias da Bahia e de Sergipe. (...) A produção rimada sobre o “messias” cearense pode ser apontada, em nossos dias, como das maiores da nossa poética popular. No campo da luta de Canudos no ano de 1897, o repórter de O Estado de S. Paulo, Euclides da Cunha, depois consagrado ensaísta de Os sertões, sentiu a importância que os conselheiristas davam às criações da ira anônima, usadas como armas de combate na guerra de vida e morte da jagunçada contra as forças poderosas da República. Dir-se-ia que versejar ajuda a combater. Os conselheiristas, enfrentando dificuldades sem conta, não abandonaram as musas nas horas difíceis e dramáticas da peleja suicida. Vem da própria gente do Conselheiro a primeira contribuição ao hinário canudense. Depois é que os vencedores contaram a tragédia do Vaza-barris. Euclides da Cunha ficou impressionado com os papéis encontrados nos humildes casebres do Belo Monte e apontou sua significação para a psicologia da luta. (CALASANS, 1984, p. 1, 2).
onde uma única praça partem vielas estreitas e cercadas por casas de aspecto lúgubre. E dizer que, no entanto, Monte Santo é para nós capuchinhos motivo de tanta estima. Logo que chegamos falei a frei Caetano sobre Apolônio de Todi, capuchinho italiano que em 1785 viu a Serra de Monte Santo uma réplica natural do Calvário de Jerusalém e nela construiu uma capela. No acesso para essa capela – os três quilômetros da serra do Piquaraçá – foram colocadas cruzes que representam as estações do trajeto de Jesus Cristo e de Nossa Senhora das Dores. Estava criado o santuário de Monte Santo para o qual converge ainda hoje grande número de romeiros à espera de bênçãos e milagres. Mais tarde o padre Sabino nos contaria que o Conselheiro e sua gente visitavam amiúde o santuário e que, pouco antes de partir para Canudos, haviam empreendido a restauração das vinte e quatro pequenas capelas existentes entre o sopé e o alto da serra. (MARCONDES, 1997, p. 74, 75).

O sacerdote citado, Padre Vicente Sabino dos Santos, que acompanhou a Missão do Frei João Evangelista de Monte Marciano, era vigário no município de Cumbe, prestando atendimento em Canudos e, por conseguinte, em Belo Monte, onde tinha uma casa reservada quando se dirigia à localidade a fim de celebrar as missas e ministrar os sacramentos, o que é comum até hoje no catolicismo em regiões que possuem poucos sacerdotes.

Nos dias atuais, o próprio Caminho da Santa Cruz registra a obra realizada por Antônio Conselheiro e seus companheiros com uma placa no início da subida da serra, no término do trecho murado. Monte Santo também foi utilizado como cenário do filme Deus e o diabo na terra do sol, de 1964, do diretor Glauber Rocha, assim como para a minissérie O pagador de promessas, com cenas gravadas no local, em 1987, e exibida pela Rede Globo de Televisão, em abril de 1988.

Minelvino Francisco Silva, nascido, em 1926, na Fazenda Olhos d’Água de Belém, no povoado de Palmeiral, no município de Mundo Novo, no centro-norte do Estado da Bahia, foi criado no município de Jacobina, conhecida como cidade do ouro, razão pela qual trabalhou como garimpeiro antes de se dedicar à poesia, mudando-se para Itabuna, no sul do Estado da Bahia, em 1948, e passando a viver da Literatura de cordel

O poeta, que adotou o título de Trovador apóstolo, teve o elemento religioso como marca característica dos seus folhetos, frequentando e escrevendo versos sobre diversas peregrinações realizadas no Estado da Bahia, principalmente aquelas destinadas ao Santuário de Bom Jesus da Lapa, no interior do Estado, mas também relatou as peregrinaçõe ao Santuário de Nossa da Ajuda, no litoral do Estado, e ao Santuário da Santa Cruz, em Monte Santo, no sertão baiano, sobre o qual apresentou a seguinte descrição:

São vinte e quatro capelas
Pra chegar na Santa Cruz
Pode mesmo ir de noite
Que em todo canto tem luz
Com bastante pasciência
Todos fazem penitência
Em louvor ao Bom Jesus
Cinco mil metros de altura
Pra na capela chegar
Onde está a Santa Cruz
É mesmo de amargar
Quem não tiver muita fé
Pra subir o Monte a pé
Começa renunciar
A primeiro de novembro
Ninguém pode contar tanto
Carro grande e pequeno,
Romeiros de todo canto
Que vão fazer a visita
Mostando que acredita
Nessa Cruz de Monte Santo
Quando chega em Monte Santo
Cada se sente feliz
O choufer do caminhão
Pra todo romeiro diz:
Podem se assegurar
Três vezes vamos passar
Arredor dessa matriz
O carro passa três vezes
Na Igreja arrodeando
Os romeiros lá em cima
Alegres todos cantando
Bendito da Santa Cruz
E o Coração de Jesus
Tudo ali glorificando
Assim que desce do carro
Com respeito e com cuidado
Entra logo na Igreja
E se põe ajoelhado
Diante de São José
Bom Jesus de Nazaré
Nosso Senhor de lado
Depois destas orações
Que fazem aos pés de Jesus
Também de Nossa Senhora
E São José que a conduz
Pedindo a eles socorro
Depois vão subir o morro
Vizitar a santa cruz
Vão subindo o Monte Santo
Com grande satisfação
Dando esmola aos penitentes
Que pedem por precisão
Com pandeiros, com violas
Pedindo suas esmolas
Pela Sagrada Paixão
Vão subindo, vão subindo
Que suor da pra pingar
Na segunda capelinha
Entram ali pra visitar
Muitos sentindo cansaços
Avistam Senhor dos Passos
Que morreu pra nos salvar
Vão subindo novamente
Pela mesma estradazinha
Aqui, ali, aculá
Vão vendo uma capelinha
Na mesma tendo uma cruz
Chamando a todos pra luz
Naquela linda igrejinha
Vão subindo mais a mais
A Jesus dando louvores
Até chegar onde está
Nossa Senhora das Dores
Os romeiros ficam olhando
Parecendo estar chorando
Pelos filhos pecadores
Continuando a subir
Com paciência e coragem
Olhando de lá de cima
Avistam linda paisagem
A cidade é uma beleza
Parece que a natureza
Ali deixou sua imagem
Subindo mais um pouquinho
Pra santa cruz visitar
As pernas dão pra doer
A roupa da pra molhar
O suor por todo canto
Se não tiver fé no santo
É obrigado a voltar
Até chegar na capela
Onde tem a santa cruz
Com uma toalha branca
Onde brilha clara luz
Mais duas cruzes dos lados
Que foram crucificados
Dois ladrões, com o Bom Jesus
Quem chega nesta capela
No pé da cruz logo avista
Senhora da Soledade
E São João Evangelista
Quando Jesus expirou
Antes a mãe o entregou
Sobre o seu ponto de vista
(SILVA, s.d., p. 3-7).

O poema apresenta uma descrição do Caminho da Santa Cruz – a altura do monte, a data da principal peregrinação, a iluminação noturna do caminho, o número de capelas, a construção iconográfica do espaço do altar na igreja matriz e no santuário – e a relação dos peregrinos com o ato de peregrinar – a alegria da chegada em Monte Santo, a fé que os coloca a caminho para pedir, o sentido de sacrifício, as devoções dos peregrinos (Senhor Bom Jesus, Nosso Senhor dos Passos, Nossa Senhora das Dores, São José) e as simbologias que os atos dos devotos assumem.

Uma outra relação, além da relação devoto-devoção, é identificada nos versos: a relação com a cidade, a parte habitada de Monte Santo. Enquanto o poeta popular registrou no poema a sensação provocada pela visão da cidade do alto do monte, a qual seria uma beleza de imagem da natureza, sem contrastar a paisagem natural da paisagem humanizada, Euclides da Cunha registrou Monte Santo como um povoado triste, decadente e abandonado em meio a uma natureza que, embora estivesse localizada na aspereza do sertão, era vigorosa.

Monte Santo, afinal, resume-se naquele largo. Ali desembocam pequenas ruas, descendo umas em ladeiras para larga sanga apaulada; abrindo outras para a várzea; outras embatendo, sem saídas, contra a serra. Esta por sua vez, de perto, perde parte do encanto. Parece diminuir de altitude. Sem mais o perfil regular que assume a distância, tem, revestindo-lhe as encostas, uma flora de vivacidade inexplicável, arraigada na pedra, brotando pelas frinchas dos estratos e vivendo apenas das reações maravilhosas da luz. As capelinhas, tão brancas de longe, por sua vez aparecem exíguas e descuradas. E a estrada ciclópica de muros laterais, de alvenaria, a desabarem em certos trechos, cheias de degraus fendidos, tortuosa, lembra uma enorme escadaria em ruínas. O povoado triste e de todo decadente reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que morre, desconhecida à história, entre paredes de taipa. Nada recorda o encanto clássico das aldeias. As casas baixas, unidas umas contra as outras, feitas à feição dos acidentes do solo, têm todas a mesma forma – tetos deprimidos sobre quatro muros de barro – gizadas todas por esse estilo brutalmente chato a que tanto se afeiçoaram os primitivos colonizadores. Algumas devem ter cem anos. As mais novas, copiando-lhes, linha a linha, os contornos desgraciosos, por sua vez nascem velhas. Deste modo, Monte Santo surge desgracioso dentro de uma natureza que lhe cria em roda – como um parêntese naquele sertão aspérrimo – situação aprazível e ridente. (CUNHA, 2018, p. 192, 193).

Na citação anterior, foi possível perceber o preconceito de Euclides da Cunha em relação ao Caminho da Santa Cruz e de seus peregrinos, que ele qualificou como uma religiosidade ingênua dos matutos. Os adjetivos utilizados para se referir ao centro urbano, à arquitetura local e aos moradores de Monte Santo ilustram essa visão pejorativa. Tanto a população local – raça que morre desconhecida à história –, quanto a herança colonial – primitivos colonizadores – são vistas de forma negativa pelo escritor, representante do ideal republicano que tentava apagar Belo Monte e tudo o que a comunidade de Antônio Conselheiro poderia significar, tal qual os bandeirantes tentaram fazer antes com os quilombos e com as tribos indígenas.

Em suas memórias, em texto recolhido por Ayrton Cesar Marcondes, o Frei João Evangelista de Monte Marciano, leitor da obra Os sertões, de Euclides da Cunha, após o tempo necessário para refletir acerca da experiência vivenciada em Canudos, registrou a incompreensão dos próprios missionários acerca da religiosidade popular, assim como do contexto sócio-político em que estavam inseridos, o que fica evidente quando aponta a existência de uma determinada relação entre a Igreja Católica e o Estado na História do Brasil, a qual que se deu por meio do Padroado1:

Se os estudantes pregariam para o povo do sertão, então precisavam conhecer a sua religiosidade. O movimento missionário partia da premissa de que o povo era cristão. Entretanto a prática religiosa popular em muito diferia dos preceitos recomendados pela Santa Sé. Posso dizer, sem medo de errar, que não só no sertão mas nos interiores do Brasil reinava – e reina – uma outra forma de catolicismo a qual não sei denominar. Esse catolicismo, talvez rústico, em muito difere daquele outro, o tradicional, praticado pelas classes burguesas. Essa religião do povo é muito diferente da religião dos intelectuais e da pregada pela hierarquia eclesiástica. Imagino, nessa quase pré-história em que vivo, quão acalorados debates essa situação motivará a partir do momento em que a inteligência brasileira se debruçar sobre as conexões entre Igreja e Estado, ao longo da história do país. Chego a pensar que um dia venham a negar esse catolicismo do povo, alegando que a inexistência de um verdadeiro catolicismo o desqualifica. Esse erro muito previsível, se acontecer, certamente será lavrado em nome de um excesso de filosofismo. Se estamos falando sobre condição de existência, não importa se de fato as classes burguesas praticam um catolicismo verdadeiro, interessa-nos o fato de que as elites têm consciência dele. Isso quer dizer que o catolicismo tradicional existe e sempre existirá enquanto atividade do espírito. A partir daí admite variantes, sincretismos e toda sorte de combinações. (MARCONDES, 1997, p. 27).

O religioso apontou para a existência de dois tipos de catolicismo, que ele chamou de catolicismo tradicional e de catolicismo rústico, enquanto os pesquisadores estabeleceram os conceitos de catolicismo tradicional ou catolicismo popular e de catolicismo renovado ou catolicismo oficial. Foi interessante o uso do termo rústico, que Alexandre Otten utilizou para designar um traço bem específico de religiosidade, um terceiro tipo, verificado ao estudar justamente o movimento liderado por Antônio Conselheiro, que seria a religiosidade do sertão, baseada na visão de mundo do sertanejo.

Circunscrevendo este catolicismo, é ele popular, opondo-se assim ao oficial. Leigo, ele foi introduzido no Brasil não tanto pelo clero, mas pelos colonizadores portugueses, proveniente do “catolicismo das aldeias portuguesas”. E desenvolveu-se aqui, longe do clero que estava a serviço do Estado e dos senhores e se limitava à ministração sumária dos sacramentos. Assim, deu amplo espaço à elaboração leiga de formas religiosas. (...) Sendo rústico, ele se opõe ao catolicismo citadino, que primeiro se centrava em organizações leigas como irmandades, confrarias e ordens terceiras, mas com a forte urbanização a partir da Independência se transformava ou se secularizava. O catolicismo rústico demonstra uma visão sacral do mundo, contém “sobrevivências de uma ‘mística da natureza’ em que o homem se vê numa dependência incondicional em face das forças do cosmo, vividas como manifestações do sagrado”. (OTTEN, 1990, p. 93, 94).

As formas de vivenciar, experimentar o catolicismo nas zonas litorâneas, nas cidades, perto dos centros de poder na Colônia, no Império e depois na República seriam diferentes das formas vividas no campo, no interior do Brasil, assumindo características ainda mais específicas no sertão, além do Rio São Francisco, que, desde o início do processo de colonização, esteve à margem do projeto colonial, posto em prática pelo Padroado, razão pela qual a evangelização na região ocorreu pela ação dos capuchinhos, que não dependiam desse sistema.

Desde 1646 temos capuchinhos franceses atuando em Pernambuco: eram frades que, na rota da África, foram desviados para o Brasil e ficaram aqui, conseguindo simpatia da população pela sua atuação contra os holandeses. (...) Após a expulsão dos holandeses do Nordeste, os capuchinhos começaram a entrar no sertão do rio São Francisco, e aldear indígenas da cultura cariri ou quiriri nas pequenas ilhas existentes no curso deste rio: abriu-se uma época de intensa atividade missionária nestas regiões do baixo rio São Francisco, interrompida pelo rompimento das relações diplomáticas entre Portugal e a França em 1698. Com esta data termina o “ciclo” dos capuchinhos franceses no Brasil. Contudo, poucos anos depois, capuchinhos italianos reassumem o trabalho de seus colegas, chegando à Bahia em 1705 e atuando com intensidade na primeira parte do século XVIII. No tempo da regência, já no século XIX, estes capuchinhos italianos serão por sua vez expulsos do Brasil por decreto de 25 de agosto de 1831. (...) A missão dos capuchinhos era relativamente livre (...) em primeiro lugar, os capuchinhos no Brasil não eram portugueses e por conseguinte estavam menos ligados aos projetos de colonização portuguesa; em segundo lugar e principalmente, eles dependiam da Propaganda Fide2 e não do Padroado, o que constituiu enorme vantagem: a relação entre religiosos que ficam no esquema de suporte e apoio (hospício) e os que entram nos sertões (aldeias, missões) sempre foi mais funcional entre os capuchinhos do que entre as demais ordens (...). Por isso mesmo os capuchinhos tiveram missionários de grande aceitação por parte do povo: Martinho de Nantes e Bernardo de Nantes do período francês; Apolônio de Todi, Clemente de Adorno, Carlos José de Spezia, Aníbal de Gênova do período italiano. (HOORNAERT et al, 1983, p. 64, 65).

A narrativa do Caminho da Santa Cruz foi construída em torno do relato de milagres, o que passou a atrair peregrinos para o local, tornando a primitiva capela da Santa Cruz, a vigésima quinta do complexo, em uma igreja e, depois, dado o número de visitas, em um santuário. Cada relato de um milagre alcançado, atraía mais peregrinos e passava a constituir um verdadeiro ciclo em torno de Monte Santo.

Contudo, é possível identificar um movimento muito interessante do sertanejo que se apropriou desse discurso a seu modo, a partir dos elementos que constituem a sua religiosidade. Pelo folheto de Minelvino Francisco Silva, verifica-se uma outra versão para a construção do Caminho da Santa Cruz, que, segundo o poeta, era contada pelos moradores antigos, estabelecendo um mito de origem baseado em uma imagem que retorna a um determinado lugar, “escolhendo” onde queria ficar e, portanto, o local onde deveria ser construída a igreja.

A muitos anos passados
Dizem os velhos moradores
Que apareceu numa pedra
Nossa Senhora das Dores
Quem ali ficasse olhando
Parecia está chorando
Pelos filhos pecadores
No cume do alto monte
Apareceu uma cruz
Com uma toalha nos braços
Que se vê em plena luz
Toda alvinha sem ter malha
Só pode ser a toalha
Que embrulharam Jesus
Pegaram a imagem da santa
Colocaram no altar
De sua igreja matriz
Mas ela não quiz ficar
Porque dali exalou
Depois o povo a encontrou
Na pedra no seu lugar
Outra vez pegaram a imagem
E trouxeram novamente
Ela tornou a voltar
Pra seu lugar pretendente
Precisou edificar
Uma Igreja no lugar
Que apareceu certamente
E lá no pico do monte
Construiram outra capela
Onde tem a Santa Cruz
Com a toalha tão bela
Para todo penitente
Que tem fé no Onipotente
Ir fazer a visita a ela
(SILVA, s.d., p. 1, 2).

Assim, a explicação para a construção da capela de Nossa Senhora das Dores e do Santuário da Santa Cruz é, respectivamente, a aparição de uma imagem sob uma pedra, definindo o lugar de edificação da igreja ou, no caso, da capela e a aparição de uma cruz no cume do monte, indicando a construção de outra capela. Dessa forma, coloca-se em pé de igualdade as figuras de Jesus e Maria, diferente do discurso teológico oficial tridentino.

A mística popular sertaneja tem cunho marial, estabelecendo a sua relação com o sobrenatural, com a figura de Deus por meio das práticas de devoção à figura de Maria. Este culto mariológico se realiza a partir do entendimento do que seria um milagre obtido pela figura de Maria, seja através de sua imagem, seja por uma medalha, independente da iconografia; podendo, também, chegar ao futuro devoto pelo discurso de um sacerdote ou pela crença no relato de um milagre recebido por outra pessoa. Assim, o devoto estabelece uma relação direta com a figura de Maria, por meio da sua fé no poder do “santo”, sem a necessidade de um intermediário, como o sacerdote na liturgia oficial. (COSTA, 2018, p. 126, 127).

Como observou Otten (1990), o sertanejo possui uma visão sacral do mundo, entendendo os diferentes fenômenos naturais e o próprio fluxo da vida como uma manifestação do sagrado, experiência que no catolicismo rústico é vivenciada como uma forma de dar sentido à vida, satisfazendo a necessidade religiosa do sertanejo de estar em contato com as forças do cosmo, com as forças divinas, o que, segundo Eicher (1993), caracteriza a mística, no caso a mística popular sertaneja.

Trata-se manifestamente de um fenômeno no qual se articulam necessidades religiosas. Delimitando-se a necessidade religiosa de outras necessidades espirituais (a necessidade de relações pessoais, a necessidade de reconhecimento social) enquanto necessidade de sentido ou enquanto resposta à pergunta de onde vem e para onde vai o homem, “mística” é, então, maneira de fazer com que este sentido tome forma como experiência ou que a pessoa fique próxima a ele de maneira perceptível. Caracteriza a mística, em primeiro lugar, a intensidade da expressão da necessidade religiosa no pensamento e no sentimento, na vivência e no estilo de vida. (EICHER, 1993, p. 564).

Dessa forma, o sertanejo busca a satisfação de suas necessidades religiosas, caracterizadas na busca de milagres, os quais poderiam ser alcançados por meio do sacrifício oferecido a uma entidade divina, como na realização do Caminho da Santa Cruz. Essa experiência pode ser vivida de forma tão intensa nos sentimentos e nas práticas que se tornaria um verdadeiro estilo de vida, o modo de ser sertanejo, uma mística popular sertaneja, encenada e reencenada no Coração místico do sertão baiano.

Conclusão

Resgatou-se aqui, em primeiro lugar, uma variedade de registros da experiência vivida em Monte Santo – Euclides da Cunha (1866-1909), escritor e jornalista, alguém de fora do sertão e que se recusou a enxergar de fato o sertanejo; Frei João Evangelista de Monte Marciano (1843- 1921), missionário capuchinho italiano radicado no Brasil, alguém de fora do sertão mas que, apesar dos limites impostos pelos preceitos religiosos, tentou ver o sertanejo como ele era; e Minelvino Francisco Silva (1962-1999), poeta popular nascido no sertão, que registrou em verso diversas peregrinações religiosas e esteve presente em Monte Santo.

É perceptível a mudança no discurso dependendo do local de fala de cada um desses personagens, assim como no relato dos milagres atribuídos à Nossa Senhora das Dores, ao Santuário da Santa Cruz e ao próprio Caminho da Santa Cruz. A religiosidade, experimentada de uma forma única, por meio da mística popular sertaneja, é que confere a especificidade dessa peregrinação e do Caminho da Santa Cruz, que necessita ser mais estudado pela área da Teologia e da(s) Ciência(s) da Religião.

Referências bibliográficas

CALASANS, José. Canudos na literatura de cordel. São Paulo: Ática, 1984.

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CUNHA, Euclides da. Os sertões. Barueri, SP: Ciranda Cultural, 2018.

EICHER, Peter. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. Tradução de João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1993.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14. ed. atual. e ampl. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

HOORNAERT, Eduardo et al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo - Primeira época. 3. ed. Petrópolis; São Paulo: Vozes; Paulinas, 1983.

MARCONDES, Ayrton Cesar. Canudos: As memórias de frei João Evangelista de Monte Marciano. São Paulo: Editora Best Seller, 1997.

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SILVA, Minelvino Francisco Silva. A aparição de Nossa Senhora das Dores e a Santa Cruz do Monte Santo. s.l., s.d. Disponível em: . Acesso 04 mar. 2019.

Notas

[1]“O padroado consistiu em uma ampla concessão da Igreja de Roma ao Estado português, em troca da garantia de que a Coroa promoveria e asseguraria os direitos e a organização da Igreja em todas as terras descobertas. O rei de Portugal ficava com o direito de recolher o tributo devido pelos súditos da Igreja conhecido como dízimo, correspondente a um décimo dos ganhos obtidos em qualquer atividade. Cabia também à Coroa criar dioceses e nomear bispos” (FAUSTO, 2013, p. 55).

[2]A Congregação para a Evangelização dos Povos, mais conhecida por Sagrada Congregação da Propagação da Fé ou Propaganda Fide, foi criada pelo Papa Gregório XV, pela Bula Inscrutabili Divinae, de 22 de junho de 1622, com a missão de oferecer as diretrizes missionárias e sustentar os religiosos que estivessem em missão.