O ASPECTO MESSIÂNICO DO SUPERMAN NA GRAPHIC NOVEL REINO DO AMANHÃ, DE MARK WAID E ALEX ROSS
Superman’s messianic aspect in the graphic novel Kingdom Come, by Mark Waid and Alex Ross
Nataniel dos Santos Gomes*
Vanderlis Legramante Barbosa**
*Doutor em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de PósGraduação em Letras (Mestrado Profissional em Letras e Mestrado Acadêmico em Letras) da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Contato: natanielgomes@ uol.com.br.
**Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Contato: vanderlis1@ yahoo.com.br
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Resumo:
“Aqueles que, uma década antes, sentiram o peso da maior e mais fundamental falha do Superman, sua incapacidade de se ver como a inspiração que é.” (Reino do Amanhã) É a partir dessa citação que gira a história de Reino do Amanhã, uma graphic novel que resgata os heróis clássicos da DC Comics, quando o mercado editorial buscava histórias cheias de violência e com personagens visualmente grandiosos, mas com histórias pueris. Depois que o Superman decide abandonar sua vocação como herói e salvador da humanidade, a sociedade entra em crise e espera pela sua volta, que é retratada na história, fazendo uma intertextualidade com o livro de Apocalipse, escrito pelo apóstolo João. A figura do Superman é apresentada como o messias da fé cristã, que é o pano de fundo da criação do super-herói e é explorado ao extremo nessa história e em outras plataformas em que o Homem de Aço protagonizou. Entre a análise dessas questões, a trama ganha corpo a partir da observação dos elementos visuais e simbólicos explorados na história em quadrinhos. É por meio deles que a intertextualidade expande-se e ilustra a personalidade do herói não só no livro de Apocalipse, mas também em outras passagens bíblicas, resgatando algumas interfaces entre Superman e Jesus Cristo.
Palavras chave:Quadrinhos. Intertextualidade. Cristianismo
Abstract
“Those who, a decade previous, felt the crush of Superman’s greatest and most necessary faillure, his perceive himself as the inspiration he is.” Kingdom Come is totally connected to this quotation, rescues the classic heroes of DC Comics, when the publishing market looked for stories full of violence and with visually impressive characters but with puerile stories. After Superman decides to abandon his vocation as hero and savior of humanity, society is in crisis and awaits his return, which is shown in the story making an intertextuality with the book of Revelation written by the apostle John. Superman is portrayed as the messiah of the Christian faith, which is the background to the creation of the superhero and is exploited to the extreme in this story and on other platforms in which the Man of Steel starred. Among the analysis of these topics, the plot gains body from the observation of the visual and symbolic elements explored in this graphic novel. Because these elements, the intertextuality expands and illustrates the personality of the hero not only in the book of Revelation but also in other biblical passages, rescuing some interfaces between Superman and Jesus Christ.”
Keywords:Comics. Intertextuality. Christianity.
Introdução
A maioria das pessoas lê o Antigo Testamento pela perspectiva histórica, mas também percebem uma série de representações proféticas do messias ali contidas por meio de simbolismos. A Teologia costuma apresentar o estudo de símbolos na Bíblia por meio dos chamados tipos.
O tipo é uma ilustração que serve para prefigurar uma verdade que será apresentada posteriormente. O cumprimento do tipo é chamado de antítipo, e costuma aparecer no Novo Testamento como uma realidade de um tipo prefigurado de forma profética anteriormente.
Dessa forma, o tipo pode ser representado por uma pessoa, como Adão prefigurando Cristo conforme se observa em “Todavia, a morte reinou desde o tempo de Adão até o de Moisés, mesmo sobre aqueles que não cometeram pecado semelhante à transgressão de Adão, o qual era um tipo daquele que haveria de vir.” (Romanos 5.14); um evento histórico que aponta para o futuro, como: “Essas coisas aconteceram a eles como exemplos e foram escritas como advertência para nós, sobre quem tem chegado o fim dos tempos.” (1Coríntios 10.11); um objeto, como “por um novo e vivo caminho que ele nos abriu por meio do véu, isto é, do seu corpo.” (Hebreus 10.20) ou mesmo uma festa, “Livrem-se do fermento velho, para que sejam massa nova e sem fermento, como realmente são. Pois Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi sacrificado. 1Coríntios 5.7”
O Antigo Testamento é recheado de exemplos de vidas que servem como um tipo e podem ser vistos nas experiências de personagens, como Abraão, Isaque e José. Gênesis 22 mostra o padrão do sacrifício de Isaque por Abraão prefigurando eventos que refletem a morte e a ressurreição de Jesus.
Outro exemplo é a vida de José como uma prefiguração do relacionamento entre Israel e o Messias. Ele revela seu sonho a seus irmãos e sua autoridade, sendo rejeitado por eles, inclusive, com tentativa de assassinato, e vendido como escravo (Gênesis 37). Essa história serve como ilustração da morte, do sepultamento e da ressurreição de Jesus.
Os casos são inúmeros na Teologia de tradição cristã, e a cultura popular também traz esses exemplos que podem ser encontrados na literatura, no cinema, nos quadrinhos (doravante, HQs), principalmente no Ocidente, que tem como base de formação duas tradições: a judaico-cristã e a helênica, por exemplo, em filmes como Matrix, que reconta a história dos evangelhos em forma de ficção, À espera de um milagre, que revisita o evangelho em uma prisão ou mesmo E.T., o extraterrestre, que apresenta o messias vindo do céu, morrendo e ressuscitando.
Assim, entre tantos formatos que recorrem à Teologia, analisaremos, em especial, a relação dos quadrinhos como instrumentos de referência religiosa e também formas conscientes ou não que trazem elementos religiosos e messiânicos, desde Bíblias ilustradas, passando por arquétipos representados nas histórias em quadrinhos e personagens.
Para tanto, passaremos para a descrição do Superman, herói criado inicialmente em quadrinhos, como uma representação de Jesus Cristo em diferentes suportes, desde quadrinhos, televisão e no cinema. Por fim, analisaremos alguns aspectos messiânicos na graphic novel1 Reino do Amanhã.
As HQs, cultura popular e religião
Observando as religiões praticadas e os recursos empregados na sua divulgação, nota-se que as histórias em quadrinhos ainda estão sendo utilizadas de forma muito limitada como instrumento de difusão da fé. São pouquíssimas as iniciativas e, na maioria das vezes, com uso muito limitado e pouco criativo dos recursos dos quadrinhos.
Aqueles interessados em usar os recursos dos quadrinhos para propagar a fé, perceberam que os leitores dessas histórias têm uma percepção da mensagem muito mais direta do que nos livros, independente da faixa etária, já que há acesso ao texto e à imagem. E, quanto mais jovens, mais claro isso se torna.
Sobre a utilização dessa mídia entre os grupos religiosos, Vergueiro afirma:
Parece-me que os únicos materiais nessa linha que têm uma certa constância, sendo publicados há muitos anos, são a revista do Smilingüido, lançada em bancas, e as cartilhas do Toinzinho, distribuídas, em geral de forma gratuita, em vários lugares. A primeira relaciona-se com uma religião protestante [...], e a segunda é produzida por uma associação espírita. As cartilhas do Toinzinho são as que mais perto chegam de uma utilização razoável da linguagem quadrinística em favor de um credo religioso.(Entrevista ao site Deus no gibi)
Como instrumento de proclamação da fé cristã, existem, no Brasil, algumas biografias de santos católicos e diversas Bíblias em quadrinhos. Inclusive, na década de 1970, um artista haitiano que viveu no Brasil, André Le Blanc, preparou uma Bíblia em quadrinhos para a Igreja Anglicana, The Picture Bible, que teve apenas o Novo Testamento publicado por aqui. Atualmente a Bíblia em ação, de Sérgio Carielo, tornou-se um grande sucesso comercial, dentro e fora do segmento religioso. Toda colorida, com 200 narrativas inspiradas no texto bíblico em 750 páginas, o produto conseguiu romper as barreiras do segmento religioso, provavelmentepor ter uma artista que já produziu material para a Marvel e para a DC Comics, as duas maiores editoras de quadrinhos do mundo.
Já que a distribuição de quadrinhos parece não compensar pequenas tiragens nas bancas de jornais, a melhor alternativa é criar as chamadas graphic novels com distribuição em livrarias, mesmo em tempos de mudanças radicais no segmento em todo o mundo, com as vendas sendo feitas cada vez menos para o formato físico.
Por outro lado, observa-se que o tipo de histórias em quadrinhos que mais atrai novos leitores no Brasil são os mangás, inclusive, excluindo os outros modelos que sempre tiveram espaço em nosso país, como os quadrinhos norte-americanos, alternativos, cômicos e outros. Seguindo essa linha doutrinária, foi lançado no Brasil A Bíblia em Mangá, de Siku.
Já nos Estados Unidos, Vergueiro comenta sobre as primeiras revistas de quadrinhos religiosos de caráter educacional, tais como:
True Comics, Real Life Comics e Real Fact Comics, editadas durante a década de 1940, traziam antologias de histórias em quadrinhos sobre personagens famosos da história, figuras literárias e eventos históricos. Na segunda metade daquela mesma década, a editora Educational Comics dedicava-se à publicação de histórias em quadrinhos religiosas e de fundo moral, como Picture Stories from the Bible, Picture Storiesfrom American History, Picture Storiesfrom World HistoryePicture Stories from Science. Títulos como Classics Illustrated, reproduzidos praticamente no mundo inteiro, inclusive no Brasil, buscavam aproximar as histórias em quadrinhos das grandes obras literárias, vertendo para a linguagem das histórias em quadrinhos os livros dos maiores autores da literatura mundial, como Charles Dickens, William Shakespeare, Daniel Defoe, Victor Hugo, Jonathan Swift, Edgar Allan Poe etc. Outras publicações faziam da catequese seu maior objetivo, dedicando-se à transmissão de valores defendidos pela religião católica, sobressaindo-se aqueles, como Topix Comics e Treasure Chest, que se dedicavam às biografias de santos e personagens bíblicos. Mais ou menos na mesma época, na Itália, editoras ligadas à Igreja Católica também utilizaram fartamente a linguagem dos quadrinhos para incutir nas crianças o sentimento religioso, em revistas que foram depois traduzidas e publicadas em muitos países do mundo. (2014, p. 17)
Ruben Pirola, o Rubinho2, é outro artista que usa os quadrinhos para divulgar suas ideias ligadas à religião, inclusive, denunciando contradições e hipocrisias. Sua metodologia éfazer o leitor rir e se chocar com as imagens. Diferente de alguns pregadores que usam do humor apenas para divertir o público, Rubinho usao tom jocoso para expor conteúdos sérios. Em entrevista, afirmou: “prego e luto (...) para dar dor de cabeça e não para anestesiar a alma que quer fugir de Deus.”3 Ele ainda sugere a leitura de Mafalda, de Quino, por ser “a coisa mais próxima de uma boa pregação bíblica, no que diz respeito ao respeito pela vida humana e essa santa indignação que brota no coração de um crente ao ver os desvios da raça.”
Outra artista que usaos quadrinhos com intenção doutrinária e grande aceitação popular é Márcia d’Haese. Em uma época que não existiam atrativos para as crianças e adolescentes na igreja e os desenhos animados eram raros, ela criou a famosa formiguinha Smilinguido e a turminha de Mig & Meg. Essa formiguinha ganhou histórias, marcadores de páginas, cartões e desenhos animados, sendo mais um produto que foi além do segmento religioso, virando tema até de festas infantis de aniversário.
Tanto Rubinho quanto Márcia d’Haese são exemplos da aceitação desse tipo de manifestação textual, imprimindo para o leitor inferências e significações que muitas vezes não são despertadas pelo texto verbal. Esse diálogo se amplia na percepção religiosa, em que a combinação de elementos visuais remete ao leitor associações muito particularizadas, não abreviando o olhar, mas possibilitando leituras por lentes muito mais plurais.
Como foi apresentado, quadrinhos e religião nunca foram dissociados completamente. No próximo item, avaliaremos mais uma dessas articulações, como é o caso da figura do Superman como arquétipo do messias cristão desde sua criação, na década de 1930, até as obras mais recentes, em seus oitenta anos de existência.
Superman como a tipologia popular do Messias
Poucos conceitos da filosofia têm sido usados de forma tão ampla nos quadrinhos quanto o Übermensch4, que descreve a noção de um “super-homem” que, segundo Nietzche, é capaz de realizar feitos dos humanos comuns, superando o niilismo e os valores antigos:“Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizeste para superá-lo?” (NIETZCHE, 2011, p. 13) e “o homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem – uma corda sobre o abismo” (NIETZSCHE, 2011, p. 13).
O conceito de Nietzsche está articulado à noção de Eterno Retorno, como ferramenta para se chegar ao super-homem, a ideia de amor fati5 como forma de superação a todo ressentimento e a Vontade de Potência.
Ao desenvolver este conceito do super-homem, Nietzsche instituíaoposição ao europeu moderno, domesticado, obediente, anestesiado, abarrotado de cultura, emperrado ao seu tempo. Este está em franco declínio, e ele ama aqueles que querem abrir mão do modelo estabelecido, pois é a partir daí que irá nascer o super-homem, cheio de valentia, de impetuosidade, de altivez e de vivacidade.
Para ele, o super-homem vence o niilismo, supera a forma humana, velha e desgastada, supera todos os humanismos, toda a cultura que o prende em si mesmo (NIETZSCHE, 2011, p. 18), o homem europeu é escravo do seu tempo, que não consegue ir além da mera conservação do mesmo.Logo, o super-homem é a negação dos valores vigentes baseados na cultura greco-medieval. “Eu vos digo: é preciso ter ainda o caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante, eu vos digo: tendes ainda o caos dentro de vós” (NIETZSCHE, 2011, p. 18).O super-homem apreendeu o sentido do eterno retorno: o regresso da diferença, embora ele avise que ainda tais seres não existem por enquanto.
O conceito tem sido reinterpretado por muitos pensadores, até mesmo nos quadrinhos, como Grant Morrison na graphic novel Grandes Astros: Superman (2006), que representa o mito do Superman a partir dos seguintes elementos: um planeta condenado (Krypton), um cientista desesperado com a tragédia inevitável que se aproxima (Jor-el), casal gentil que adota a criança no interior dos Estados Unidos (Jonathan e Martha Kent). Ao juntar todos esses dados temos a figura do HomemdeAço.
A mitologia do Superman em seus oitenta anos sofreu pequenas mudanças, mas a essência se manteve a mesma: ele é um alienígena. Logo, nenhum ser humano poder ser como ele. Mesmo que o conceito por Nietzsche afirme que no futuro surgirá um Übermensch e que é uma meta alcançável, como dito anteriormente. Em uma perspectiva darwinista, essa noção tem sido entendida como o próximo passo evolutivo da humanidade, enquanto conceito filosófico, a moral. Biologicamente é impossível tornar-se o Superman, mas no plano da moralidade tanto o herói quanto o seu alter-ego são humanos. Como diz Batman na graphic novel Superman/Batman: Inimigos Públicos (2004): “é uma dicotomia notável. De muitos modos, Clark é o mais humano de nós. Então... ele dispara fogo do céu e é difícil não pensar nele como um deus. E quão afortunado somos todos nós por ele não pensar nisso.” Deixando claro como o herói é visto em seu próprio universo: uma natureza humana e uma natureza divina, como anuncia o credo cristão sobre Jesus de Nazaré.
Em outra graphic novel, Crise infinita (2005-2006), Batman culpa o Superman por se identificar demais com a humanidade, logo não conseguindo muniros outros heróis de liderança, de força, de confiança e da inspiração de que eles tanto precisam.
A questão religiosa e mesmo messiânica no Superman sempre fizeram parte da mitologia do personagem. Os criadores do heróisão judeus, “El”é a palavra hebraica para “Deus” servindo para batizar o personagem com seu nome alienígena “Kal-el”6 e sua história possui paralelos com história de Moisés, como um libertador do seu povo.
Seu nome humano é “Clark”, que no inglês antigo, significa “clérigo”,7 e “Kent” é uma forma da palavra hebraica que significa “encontrei um filho”, uma menção que aponta ao verdadeiro, o único, que pode ser conectado à palavra krista, que significa em português, “Cristo”8. O nome de seu planeta natal, “Krypton”, vem do grego que dá origem à palavra “escondido”9.
O Superman dos quadrinhos tornou-se um herói da versão judaico-cristã, que aceitou o amor pelos mais fracos. Ainda que seus criadores, Siegel e Shuster, baseassem uma parte de seu personagem em Moisés, que também foi enviado por seus pais para não morrer, tornando-se o salvador de seu povo, além disso, os paralelos com Jesus são ainda mais diretos, no plano do mito e da moralidade de forma intencional e explicita. Na revista Superman n. 1 (1939), a mãe adotiva de herói é Martha Kent, que se chamava Mary (Maria, em português), e seu pai adotivo, Joseph (José, em português), especificamente Jonathan Joseph Kent, sendo que o nome do meio desaparece nas edições posteriores. Na série de TV Smallville, Martha chega a parafrasear o apóstolo João no episódio piloto, “não que amássemos Deus, mas ele que nos amava”, quando o Evangelho traz “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito...” (João 3.16).Sobre o seu filho adotivo, ela afirma, “nós não o encontramos, mas ele nos encontrou” de forma semelhante ao que diz o apóstolo Paulo “Porquanto, Deus nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença.” (Efésios 1.4)
Em sua transposição mais famosa para o cinema, Superman, o filme (Donner, 1978) e Superman II – A aventura continua (Donner; Lester, 1980), o tema messiânico fica explícito quando o Jor-El manda seu filho único para a Terra, onde poderá, servindo de luz, mostrar o caminho da grandeza da humanidade, o que retoma o conceito apontado por Nietzsche, servindo também para popularizar o aspecto cristológico do personagem, principalmente quando seu pai, Jor-El, o envia para a Terra e diz: “Muito embora você tenha sido criado como um ser humano, você não é um deles”, “Eles podem ser grandiosos, Kal-El, se eles assim desejarem. Eles apenas não têm uma luz que lhes guie o caminho. Por esse motivo, acima de tudo, por sua capacidade de fazer o bem, que eu estou lhe enviando, meu único filho”. Nota-se que assim como Jesus de Nazaré foi criado no anonimato e iniciou seu ministério por volta dos 30 anos, assim é a narrativa do filme para descrever o Superman. Da mesma forma, no segundo filme da franquia, Jor-El diz “o filho se torna o pai e o pai se torna o filho”. A mesma noção pode ser vista no Novo Testamento na fala de Cristo em passagens como, “Eu e o Pai somos um.” (João 10.30), “Quem me vê a mim vê o Pai” (João 14.9), entre outros textos.
O tema messiânico continuou em Superman, o retorno (Singer, 2006), uma espécie de continuação dos filmes citados acima, que desconsidera a cronologia do cinema de Superman III e IV, e na série de TV Smallville (2001-2011), que narra a juventude do Superman até assumir a identidade do herói, com todas as dúvidas e questionamentos diante do seu destino.
Ainda no filme de 2006, ele diz para Lois: “Eu escuto tudo. Você escreveu que o mundo não precisava de mim, de um salvador, mas todos os dias eu escuto as pessoas clamando por um.” Entre diversos textos bíblicos que apontam para a mesma noção, podemos destacar “Porque os olhos do Senhor estão sobre os justos e os seus ouvidos estão atentos à sua oração” (1Pedro 3.12 )
O filme O Homem de Aço (2013) resgata o simbolismo do messias. De acordo com Snyder, diretor do longa:
A relação entre Jesus Cristo e Superman não foi inventada por nós. Existe desde a criação do personagem. Mas é uma dessas coisas que desapareceram nas últimas décadas... eu achei que deveríamos voltar a falar dessa mitologia e da importância desse personagem e sua relevância para o momento.10
No filme podemos encontrar inúmeras referências ao aspecto messiânico do Superman que o diretor utilizou, conforme citação acima. Destacamos apenas duas, por uma questão de espaço.Na sequência que ocorre na igreja, podemos ver Clark Kent conversando com o pastor e ao fundo a imagem de Jesus com uma vestimenta vermelha, que se assemelha à capa do Superman.
Em outro momento, na cena que ocorre na nave do General Zod11, observamos Jor-el falando para o Superman que ele pode salvar a todos. Em seguida, o herói sai da nave assumindo a postura de Jesus crucificado.
O filme Batman Vs Super Homem (Snyder, 2016) faz referência ao Superman como se fosse um messias, sendo que o herói é chamado por alguns de falso deus, inclusive, o vilão Lex Luthor, afirmando como ele esperou ajuda dos Céus (no caso, ajuda de Jesus) e não foi atendido, mas depois de adulto surge esse “homem que caiu do céu” personificando o “Jesus Cristo” da Bíblia, ele tem poderes e quer ajudar a todos. Mas o vilão, assim como os religiosos da época de Jesus, faz de tudo para provar a sua teoria de que ele é perigoso para humanidade.
Em diversos momentos do filme, ele é adorado como uma divindade, como na cena abaixo em que a população o idolatra depois do salvamento em um incêndio.
Em outro momento do filme, a morte do Superman emula a escultura Pietà (Piedade, em português), de Michelangelo, que representa Jesus morto nos braços de Maria. Na cena temos cruzes ao fundo, corvos empoleirados nelas, Lois Lane chorando a morte do herói, uma luz divina iluminando o corpo e a Mulher-Maravilha vestida como se fosse um soldado romano.
Em 2018, o diretor do filme, Zack Snyder, revelou várias pistas, referências e metáforas sobre o aspecto cristão do personagem no filme. Em um deles, o diretor explica porque o Batmanescolheu uma lança de kryptonitana luta contra o Superman. Snyder compartilhou um quadro que mostra Jesus tendo seu coração transpassado pela Lança do Destino, explicando que esse foi o simbolismo que fez Batman escolher uma lança de kryptonita.
Além de tudo isso, nos quadrinhos, a dependência do Superman ao Sol remete à dependência de Cristo ao Pai, uma forma metafórica para representar a verdade e a justiça, como se fosse uma guinada para cima, em direção a algo profundo, irredutível e atemporal, sendo uma representação de Deus. O Sol para os kryptonianos recebia um nome e era citado como uma divindade, Rao, o deus do calor, do fogo e da vida, embora não fosse venerado.
O respeito do Superman à lei que prioriza a vida humana tem base judaico-cristã contrastando com a ideia de Nietzsche, que vê o amor-sacrificial como uma fraqueza, enquanto o Superman vê como sua força, aquilo que o torna o ser humano ideal, assim como Jesus, mesmo sendo o enviado e o messias, traduz em suas atitudes e atos a representação do amor e da necessidade de justiça na Terra.
Após ressaltarmos o aspecto messiânico do Superman nos quadrinhos e nas adaptações para a TV e para o cinema, no próximo item, apresentaremos a graphic novel Reino do Amanhã, em uma representação ainda mais explícita de intertextualidade com o livro bíblico de Apocalipse de João, demonstrando o papel messiânico do Superman.
A Graphic Novel Reino do Amanhã, de Mark Waid e Alex Ross, e o Superman como Messias
Depois de Alex Ross ilustrar a minissérie Marvel escrita por Kurt Busiek em 1994, ambientada entre os anos de 1939 e 1974, mostrando o olhar de um fotógrafo descobrindo um mundo cheio de personagens com superpoderes, o ilustrador ofereceu uma proposta semelhante para a editora concorrente, a DC Comics, Reino do Amanhã.
A graphic novel Reino do Amanhã foi uma minissérie escrita em quatro partes em 1996 e depois publicada em volume único. Ela foi escrita como uma resposta à questão ética dos super-heróis publicados nos anos 1990, em especial os personagens da editora Image Comics, muito marcados pelo visual exuberante, violência, mas que traziam histórias com roteiros pouco desenvolvidos.
Reino do Amanhã é uma história do selo Elseworlds, da DC Comics, dedicada a publicar histórias fora da cronologia normal. A expressão inglesa Kingdom Come, título original de Reino do Amanhã, é retirado da famosa oração modelo do Pai-Nosso, a prece que Jesus ensinou para seus discípulos. Entre outras coisas, essa oração diz “Venha o teu reino, seja feita tua vontade, assim na terra como no céu”. A forma pronominal teu (vosso em algumas traduções) refere-se a Deus Pai, e a expressão venha o teu reino é entendida como uma realidade presente do reino eterno de Cristo e como uma realidade futura, que ainda não foi instaurada.
Para justificar a análise do Superman como Jesus Cristo em Reino do Amanhã, os artistas se valeram da intertextualidade com o livro de Apocalipse. A intertextualidade foi uma das primeiras preocupações de Bakhtin em seus estudos, porque para ele “o sujeito perde seu papel principal no enunciado e é substituído por duas vozes sociais que fazem dele um sujeito histórico e ideológico; e considera esse dialogismo como princípio constitutivo da linguagem e a condição de sentido do discurso.” (CORRALES, p. 7). Para Fiorin, o discurso literário “não é um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de várias escrituras”. (FIORIN, 2006, p. 440). Assim, todo texto é formado por citações, absorções de outros textos mesmo transformados.
Barros e Fiorin lembram de que a noção foi mencionada por Kristeva (1969), mencionando que “Bakhtin, ao falar de duas vozes coexistindo num texto, isto é, de um texto como atração e rejeição, resgate e repelência de outros textos, teria apresentado a ideia de intertextualidade.” (BARROS; FIORIN, 1999, p. 50), levando a um patamar de associações textuais, em que é possível a
transposição de um (ou de vários) sistema(s) de signos noutro (...) “num sistema significativo, o qual exige uma nova articulação do tético da personalidade enunciativa e denotativa”. Quando ocorre um diálogo entre os muitos textos de uma (ou várias) cultura(s) que se instala no interior de cada texto e o define, tem-se o fenômeno da intertextualidade, um ponto de intersecção de muitos diálogos, cruzamento de vozes oriundas de práticas da linguagem socialmente diversificada, que têm no texto sua realização. (PORTELA, 1999, p. 69).
Em outras palavras Koch e Travaglia (2011, p. 101), também assumem a mesma visão de que “todo texto faz remissão a outro(s) efetivamente já produzido(s) e que faz (em) parte da memória social dos leitores.(...)” Assim, é essencial à compreensão o conhecimento prévio que do leitor tem sobre determinado assunto, o que o autorizará a fazer as inferências para que possa relacionar diversas partes do texto de modo coerente. A intertextualidade ainda se apresenta de forma explícita e implícita. A primeira se dá quando “há citação da fonte do intertexto” (KOCH e TRAVAGLIA, 2011), utilizando trechos, frases de outros textos ou autores, por meio de aspas, notas, citações do nome do autor e outros.
Já a segunda, ocorre quando, um texto está inserido em outro texto já produzido, sendo parte do domínio de referências dos leitores, com a necessidade de um saber enciclopédico para identificar a fonte. A implicação é que as informações apresentadas no texto façam parte do conhecimento do leitor. Tal noção nos leva ao conceito de leitura, que segundo Antunes (2003) é:
A atividade da leitura completa a atividade da produção escrita. É, por isso, uma atividade de interação entre sujeitos e supõe muito mais que a simples decodificação dos sinais gráficos. O leitor, como um dos sujeitos da interação, atua participativamente, buscando recuperar, buscando interpretar e compreender o conteúdo e as intenções pretendidas pelo autor. (ANTUNES, 2003, p.67)
Podemos notar que essa interação ocorre logo na primeira página do Reino do Amanhã, com algumas citações explícitas de Apocalipse. A primeira, em Apocalipse 16.18:“Houve, então, relâmpagos, vozes, trovões e um forte terremoto. Nunca havia ocorrido um terremoto tão forte como esse desde que o homem existe sobre a terra.” Visualmente na primeira página a imagem de uma águia lutando com um morcego, que remete ao texto que diz “Enquanto eu olhava, ouvi uma águia que voava pelo meio do céu e dizia em alta voz: “Ai, ai, ai dos que habitam na terra, por causa do toque das trombetas que está prestes a ser dado pelos três outros anjos!” (Apocalipse 8.13 NVI)12 Esses versículos são apresentados, na sequência, por meio de uma imagem apocalíptica, em que o fogo, o sangue e as figuras humanas misturam-se em movimentos de tensão, de desespero, de angústia e a sensação de caos parece cobrir a humanidade. A essas imagens é possível identificar a ilustração das seguintes passagens de Apocalipse8.7, em que temos “O primeiro anjo tocou a sua trombeta, e granizo e fogo misturado com sangue foram lançados sobre a terra. Foi queimado um terço da terra, um terço das árvores e toda a planta verde” e em Apocalipse 8.10, “O terceiro anjo tocou a sua trombeta, e caiu do céu uma grande estrela, queimando como tocha, sobre um terço dos rios e das fontes de águas”.
Todas essas citações servem para apontar para uma releitura de Apocalipse, que apresenta Jesus Cristo como o salvador e vem estabelecer seu reino de forma definitiva na Terra e encerrar a presença do mal, da mesma forma que o Superman vai realizar na graphic novel.
A presença do livro de Apocalipse é tão fortemente resgatada na graphic novel que em cada uma das quatro partes da obra é iniciada por uma citação do livro. A segunda parte cita Apocalipse 8.2 (“Vi os sete anjos que se acham em pé diante de Deus; a eles foram dadas sete trombetas.”), a terceira se refere a Apocalipse 10.3 (“E clamou com grande voz, como quando ruge um leão; e, havendo clamado, os sete trovões emitiram as suas vozes.”) e o 4 usa Apocalipse 8.5 (“Então o anjo pegou o incensário, encheu-o com fogo do altar e lançou-o sobre a terra; e houve trovões, vozes, relâmpagos e um terremoto.”)
Em todas essas citações há associações muito diretas aos recursos visuais, apresentando imagens que remetem ao medo de um fim do mundo, como costuma ser a interpretação mais popular do Apocalipse, com chamas, trovões, destruição e morte.
Assim, para que o conceito do Superman como messias fique explícito na obra analisada, os autores usaram o recurso da intertextualidade com Apocalipse, fazendo com o que o leitor busque esse sentido na leitura, indo além da mera decodificação do texto. Logo, a estratégia é apresentar a história em um futuro alternativo em que o Superman deixou o mundo sem esperança, por causa do autoexílio ele retorna, com a finalidade de restaurar a justiça e a ordem.
No texto de Apocalipse, o apóstolo João revela como será a volta de Jesus, a partir de suas visões na ilha de Patmos, enquanto estava preso. “Eis que vem com as nuvens, e todo o olho o verá, até os mesmos que o traspassaram; e todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele. Sim. Amém.” (Apocalipse 1.7)
A história continua narrando que os heróis tradicionais e clássicos estão aposentados há uma década e o mundo vive com os “filhos e netos” dos heróis, inspirados pelas lendas de seus antepassados que viveram e lutaram antes deles, o que os leva à imitação. “Não lutam mais pelo que é correto. Eles lutam simplesmente por lutar, seus inimigos são outros.” A violência chega a patamares que destroem o estado do Kansas, fazendo com o que o Superman retorne de seu exílio. Ele está de volta para restaurar a ordem, para guiar com sabedoria. O herói começa a perceber que ao lutar, ele precisa lutar ainda mais e, quanto mais ele luta, mas dura fica a sua tarefa.
O retorno do Superman com mais seis super-seres faz alusão ao texto de Apocalipse 8.2: “Vi os sete anjos que se acham em pé diante de Deus; a eles foram dadas sete trombetas.” Nota-se que na imagem abaixo, o herói aparece com os braços abertos e a pernas juntas, representando Jesus crucificado vindo dos céus. Por outro lado pode ser entendido um como os sete anjos descritos na passagem bíblica citada.
Há um conceito teológico polêmico aceito por parte da cristandade sugere que Jesus foi ao Hades, local de habitação dos mortos, para pregar aos rebeldes. Para Hanegraaff (1996),
Parte do argumento também depende da distinção entre Hades e Gehenna. Compreendo que esses dois termos transmitem ideias distintas. Em termos simples, Hades é o equivalente grego do hebraico Sheol. É retratado como um lugar das almas ou espíritos desencorporados. A Bíblia retrata-o como contendo duas áreas distintas. Uma é o lugar de tormento para os ímpios; a outra, de bênção consciente para os piedosos (“paraíso” ou “seio de Abraão”). Ambos os lugares representavam apenas experiências parciais do que haveria de vir. Que Jesus foi para o Hades (especificamente ao lugar chamado paraíso) evidente com base em 1Pe 3.18-20. Ali Jesus proclamou o término da expiação na cruz, aos “espíritos em prisão”. E então, conforme lemos em Ef. 4.8-9, ele tomou os justos do Hades (isto é, do seio de Abrãao ou paraíso) e levou-os para o recinto do trono de Deus. De fato, 2Co 12.2-4 esclarece que o paraíso não está mais no Hades, mas está agora no recinto onde se acha o próprio trono de Deus. Os injustos, que permanecem no Hades, estão aguardando o Dia do Juízo, quando estarão defronte de Deus e receberão a sua sentença final. A morte e o Hades serão lançados para dentro do lago de fogo, que e a Segunda morte (Ap. 20.14). Nesse lago de fogo, que as Escrituras chamam por inferno ou Gehenna – o futuro lugar da punição no estado eterno. Apesar de que os estudiosos da Bíblia diferem sobre o que ocorreu exatamente quando Jesus desceu ao paraíso ou Hades, sobre uma coisa concordam: Jesus não desceu ao inferno para ser torturado por Satanás e seus capangas.(p.445)
Apesar de inúmeras interpretações sobre o texto na graphic novel, tal ideia é representada pela imagem do Superman entrando no local onde se encontram os novos heróis. O aspecto do ambiente é desolador e inspira desordem e descaso uns com os outros, fato que chama a atenção do pastor Norman, que acompanha o Espectro durante durante a história, indignando-se com as cenas que presencia, comenta que “esses garotos... são mostros-animais!”. Em resposta, Espectro reponde que serão “domados”, nisso, entra Superman, convocando-os para se unirem a ele.
Outra referência do Superman na obra como o messias da fé cristã se dá quando os heróis estão reunidos no satélite da Liga da Justiça e o Homem de Aço aparece ao centro com seis super-seres de cada lado, fazendo referência ao quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci.
Depois que o Superman sai de cena e se aposenta, um novo herói surge em seu lugar, exercendo a justiça com as próprias mãos, Magog13! Visualmente ele é carregado de simbolismos, com chifres, cicatrizes e culpando o Superman pelo que estava acontecendo com o mundo, deixando o ser humano escolhendo que herói deve representá-lo na luta contra o mal e a injustiça.
A teoria literária, como reflexão sobre o que é literatura e como esta poderia ser interpretada, desde há muito tempo, tem exercido uma grande influência sobre os estudos bíblicos (BROWN, 2007, p. 38). Prova disso é o desenvolvimento de vários métodos e abordagens exegéticas de interpretação da Sagrada Escritura, a partir dos novos estudos da linguística e literatura, como a Narratologia, a Semiótica, Retórica (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2005, p. 194202; MAGALHÃES, 2012, p. 134) e a Pragmática-linguística. No respeito dos vários gêneros literários presentes na Bíblia, estas abordagens mais sincrônicas têm acrescentado novas perspectivas de acesso à mensagem contida no texto, que a abordagem diacrônica sozinha não era capaz de propor, apesar da sua importância.
De acordo com a Bíblia, Magog foi o neto de Noé (Gênesis 10.2). Os descendentes de Magog provêm do lado extremo a Israel, provavelmente da Europa e Norte da Ásia (Ezequiel 38.2). Magog é usado para referir-se aos “bárbaros do norte” em geral, mas pode se referir a uma pessoa. O povo de Magog é descrito como um povo guerreiro (Ezequiel 38.15; 39.3-9). Gogue e Magogue são descritos em Ezequiel 38-39 e em Apocalipse 20.78. Em Ezequiel, Gogueéum líder de um grande exército que ataca a terra de Israel. Gogue é descrito como “da terra de Magogue, príncipe de Meseque e Tubal” (Ezequiel 38.2-3). Em Ezequiel, a batalha de Gogue e Magogue ocorre no período da tribulação no fim dos tempos. Gogue e Magogue são mencionados novamente em Apocalipse 20.7-8. O uso duplicado dos nomes demonstra a mesma rebelião contra Deus e antagonismo. O livro de Apocalipse usa a profecia de Ezequiel sobre Magog para mostrar os últimos tempos, o ataque final ao povo escolhido por Deus (Apocalipse 20.8-9). O resultado final desse conflito é que tudo que é conhecido será destruído, e o mal será lançado no lago de fogo e enxofre (Apocalipse 20.10).
Muito embora o Reino do Amanhã siga o esboço de uma história de super-heróis, existem dois aspectos que a tornam diferentes. Um, Superman não ganha, como acontece normalmente. Cada decisão que ele toma o leva a outras crises, e não à resolução ou à vitória. Outro, algo incomum acontece na batalha que ocorre no Gulag que muda a luta e o Superman: uma morte.
As imagens que aparecem quando vemos o Superman pela primeira vez na Fortaleza da Solidão (no original, Fortaleza da Solitude), recriando sua velha vida na fazenda, em um esforço de esquecer o mundo real, o representam como uma figura similar a Cristo: ele está fazendo carpintaria, cabelos e barbas longas, semelhantes às imagens icônicas de Cristo na tradição católica, principalmente, levando uma pesada madeira nos ombros, como se fosse uma cruz e no bolso traseiro três espinhos. A esse tipo de relação entre os elementos simbólicos da imagem, atribui a construção de sentidos do texto à interação entre produtor-texto-receptor, como no caso da imagem a seguir.
A teologia apresentada em Reino do Amanhã é lúgubre e pessimista, afirmando que tudo que valorizamos será um dia enterrado em escombros de um universo em ruínas, conforme diz Bertrand Russel, ou seja, tudo que amamos no universo da DC Comics está ruindo. Será que poderia existir algo mais desesperador? Uma teologia assim entende que o ser humano é uma existência acidental e que não há nada que determine o seu viver.
O benefício da esperança em um poder messiânico é apresentado quando a Mulher-Maravilha deixa o Superman sem respostas para as perguntas que ele fez. “Por que você não me escuta? Eu trouxe notícias! Que abalaram o mundo!” e “Entendo. Vai viver só de mentiras?” Ela resolve procurá-lo porque estava vivendo isolado na Fortaleza da Solidão, em um simulacro de uma fazenda do Kansas, mostrando que ele é a esperança que o mundo tanto precisa para poder seguir e ao mesmo tempo o único que pode colocar ordem no caos que foi instaurado com a sua ausência.
O leitor não vê nenhuma evidência que ele vai voltar a lutar, mas algumas páginas depois o pastor idoso, Norman, em crise de fé, que acompanha a história, está vendo dois grupos de heróis lutando se volta para seu guia, o Espectro, e diz: “Se algum de nós vai sobreviver. Precisamos de esperança!” Logo em seguida o vento sopra e aparece o borrão vermelho e alguém diz: “Olhe!”. Outro diz: “Lá no céu!” O Superman voltou trazendo esperança. A história continua com outros heróis seguindo o exemplo dele e o narrador afirma: “Um mundo com fome de esperança vai aos poucos entregando seu medo aos céus.”
O simbolismo do Superman como o messias cristão aparece mais adiante na história quando o Superman aparece nos degraus da ONU (Organização das Nações Unidas) e um observador diz: “A segunda vinda do Superman.”
A história do Superman em Reino do Amanhã vai além dos dilemas humanos, mas representam uma adaptação da história da intervenção divina na Terra, mostrando a esperança em um poder maior, como na pessoa de Jesus Cristo.
Um Gulag é construído com prisão para os super-heróis que não cooperam com a visão do Superman e a Liga da Justiça. Os presos acabam conseguindo realizar uma rebelião que coloca os heróis clássicos e novos em guerra, representando o conflito final retratado no Apocalipse.
E os congregaram no lugar que em hebreu se chama Armagedon. E o sétimo anjo derramou a sua taça no ar, e saiu grande voz do templo do céu, do trono, dizendo: Está feito.E houve vozes, e trovões, e relâmpagos, e houve um grande terremoto, como nunca houve desde que há homens sobre a terra; tal foi este tão grande terremoto. (Apocalipse 16.16-18)
Durante o conflito, o poder mágico do Shazam, um herói tão forte quanto o Superman, com poderes místicos, evoca raios contra o herói sete vezes, da mesma forma como é retratado no texto de Apocalipse. “E clamou com grande voz, como quando ruge um leão; e, havendo clamado, os sete trovões emitiram as suas vozes.” (Apocalipse 3.10)
Enquanto lutavam, o Superman tampa a boca do Shazam, e diz que uma escolha importante precisa ser tomada: deixar que a ogiva mate todos os meta-humanos, ou permitir que o Superman pare a ameaça e consinta que a guerra entre os meta-humanos trague o mundo. Superman diz que seu rival no conflito deve tomar a decisão, já que ele também tem uma dupla natureza: humano e herói. Ele decide se sacrificar no lugar do Superman.
No final, o pastor Norman McCay recebe a sua missão do Espectro dentro de uma igreja: “Bem, Norman, você viu titãs caminharem pela Terra e acompanhou o passo. Talvez você seja mais como eles do que imagina. Você existe para dar esperança.” Tanto o pastor idoso como o Superman na história proporcionam a verdadeira esperança ilimitada, diferente de uma escatologia pautada na desesperança impassível.
Desde as primeiras páginas Reino do Amanhã apresenta o Superman com o Messias para o universo dos super-heróis e para isso faz uso da intertextualidade com o livro de Apocalipse, do apóstolo João, resgatando o que já havia sido apresentado inúmeras vezes nos quadrinhos, no cinema e na TV, inclusive, por meio de imagens que emulam a figura de Cristo para a história.
4. Considerações finais
A intertextualidade é um dos critérios de textualidade e, em uma produção escrita, depende da experiência de seu leitor e do seu repertório de leitura anteriores. Logo, os conteúdos dos textos estão relacionados entre si, tratando de um mesmo assunto ou área de conhecimento.
O ato de ler é uma interação entre o leitor e o autor. Nesse sentido, texto apresenta pistas da finalidade e dos significados do texto, sendo assim, o autor é um mediador dessa interação. Esse tipo de relação desenvolve-se em cada indivíduo de formas diferentes, no entanto, ao nos referirmos à intertextualidade, fica manifesto que a finalidade do texto ultrapassa a noção de uma leitura pueril. A intertextualidade lida com as analogias, com a necessidade de captar as intenções e os sentidos resguardados em percepções muitas vezes sutis, mas de expressiva complexidade e construção de sentido. Assim, o texto é encarado como “produtividade”, pois ele não está pronto, mas é construído junto ao seu destinatário, que interpreta e assume uma atitude responsiva ativa.
Ler incide saber consolidar e estruturar as categorias interpretativas. Assim, quanto mais o leitor ler mais elementos de referência terá a sua disposição para interpretar e analisar e maior ficará sua experiência intertextual. Como foi dito anteriormente, os novos textos são sistematicamente ligados a textos anteriormente lidos. Somados a essa experiência, os sistemas semióticos não verbais dão ao leitor novas possibilidades de leitura.
A obra analisada, Reino do Amanhã, é um exemplo amplo de aberturas e conexões com o texto bíblico. O detalhismo da graphic novel representado pelas escolhas dos elementos simbólicos (verbais e não verbais) é resgatado a todo momento por meio de inferências, traduzindo, assim, muitos aspectos que podem ser comparados e/ou ressignificados de acordo com a perspectiva no ato da leitura e da interação textual.
Como qualquer obra que faz uso dos quadrinhos para entreter, Reino do Amanhã vai além dessa iniciativa. Essa visão se deve à composição biográfica na criação do personagem Superman em que observamos como são relacionados ao cristianismo. Essa obra nos mostra que um gênero, usado para entreter os leitores e contar histórias de heróis do universo das histórias em quadrinhos, pode contribuir com o conhecimento, estabelecendo interfaces com outros temas que vão desde a sensação de aventura e supremacia vivenciadas por poderes indescritíveis, até a temas existenciais retratados por aspectos religiosos. Nesse sentido, analisar os aspectos messiânicos de Reino do Amanhã é se voltar para a sempre presente necessidade de se ter esperança, tanto na vida quanto na humanidade, independentemente de como esse herói se personificará.
Sendo assim, a partir da afirmação feita por Espectro sobre “Aqueles que, uma década antes, sentiram o peso da maior e mais fundamental falha do Superman, sua incapacidade de se ver como a inspiração que é.” (Reino do Amanhã), é a referência de que Superman, no auge do descrédito próprio, fragilizado por perdas e pelo sofrimento, não percebeu a necessidade e a diferença que representava para a humanidade. Essa observação, logo nas primeiras páginas da graphic novel,é o ponto crucial para o próprio Superman buscar em si e em suas atitudes as razões de ser a inspiração e a resposta para a crença de muitos que, com a sua volta, acreditaram que “a fé foi recompensada”.
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Referências
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SNYDER, Zack. O Homem de Aço. Produção: Charles Roven, Christopher Nolan, Deborah Snyder. Direção: Zack Snyder. EUA/Canadá/Reino Unido, 2013.143 min. Color. Som. — [1]“Geralmente considera-se Graphic Novel uma história mais longa e elaborada, semelhante às obras literárias compostas no gênero conhecido como prosa. Embora os tradicionais gibis consumidos principalmente pelas crianças sejam também insistentemente rotulados de histórias em quadrinhos, este formato se caracteriza hoje por abrigar igualmente narrativas mais densas e complexas.” (https://www.infoescola.com/literatura/ graphic-novel/)
[2] Ele foi professor da Faculdade de Artes Plásticas e de Arquitetura da Universidade Federal de Uberlândia, deu aula de desenho, criação de forma, design e histórias em quadrinhos, além de ter estudado criação publicitária e cinema de animação. Tornou-se conhecido em 1995 com a publicação do livro de cartuns Café com Deus, inclusive com a premiação de autor revelação pela Associação Brasileira de Escritores Cristãos (ASEC) com 11 reimpressões e mais duas nos Estados Unidos, com mais de 100 mil exemplares vendidos. Além disso, é pastor evangélico.
[3]Disponível em: http://www.deusnogibi.com.br/.
[4]As traduções mais recorrentes para Übermensch são “super-homem” e “além-do-homem” e trazem a ideia desuperação, de alguém que se eleva, a criação de um novo tipo de humanidade.
[5]Expressão estoica que significa “amor pelo destino”. Para Nietzsche, o termo pode ser traduzido como “amor pelo fato, pelo acontecimento: “Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas – assim me tornarei um daqueles que fazem belas coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!” (NIETZSCHE, 2003, p. 166). O termo também tem o sentido de amor pelo que há de necessário nas coisas e pelo que não pode ser previsto, o desconhecido e o incompreensível, que representa a grandeza do homem vivendo a vida de forma intensa, considerando o eterno retorno. Para ele, o amor fati tem coragem para lidar com a vida, com os conflitos de cada situação sem atribuir a Deus, à moral ou à outra pessoa.
[6]Seu nome real foi revelado depois, “Kal-El”. A palavra hebraica El significa “Deus”, sugerindo uma forte conexão entre Deus e o Superman. Mesmo quando a palavra El passa a ter um sentido kryptoniano nos quadrinhos para “crianças”, perdendo a conotação divina, o “kal” significa “estrela”, com o sentido de “filho das estrelas”, como Jesus, o nascimento foi anunciado pela estrela de Belém. Outra possível interpretação para o nome alienígena do Superman apresenta “kal” como uma corruptela da palavra hebraica kol que significa “voz’. Assim, “Kal-El” seria “Voz de Deus”.
[7]Disponível em: https://www.behindthename.com/name/clark
[8]BAILEY (1742).
[9]Disponível em: https://www.etymonline.com/word/krypton
[10]BORGO (2018).
[11]O General Zod é um vilão dos filmes e dos quadrinhos do Superman. Sua primeira aparição foi em Adventure Comics #283 (1961), criado por Robert Bernstein e desenhado por George Papp. Assim como o Superman, é um dos kryptonianos sobreviventes à destruição de seu planeta natal e possui os mesmos poderes do herói.
[12]Na versão encadernada em capa dura, nos anexos, há algumas notas explicativas dos autores. Para essa imagem, o texto diz: “O símbolo do morcego representa o Batman, o símbolo da águia representa a Mulher-Maravilha.”(p. 303)
[13]O personagem foi criado por Waid exclusivamente para a graphic novel.Filmes:
Notas