A virtude da fortaleza entre espartanos e hobbits
The virtue of fortitude among Spartans and hobbits
Diego Genu Klautau*
*Graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004), mestrado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007) e doutorado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012), onde realizou estágio de pós-doutorado em Ciências da Religião (2014-2015). Atualmente é professor da Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de Medeiros (Centro Universitário FEI), onde é coordenador da disciplina Moral e Religião. Tem experiência na área de História e Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas:moral e ética, cristianismo, ciências da religião, sociologia e educação. Integrante do Grupo de Pesquisa RELIGIÃO E ARTES - Perspectivas Interdisciplinares, certificado junto ao CNPq.
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Resumo:
Este artigo trata da virtude cardeal da fortaleza, conforme entendida na perspectiva da Suma Teológica de Tomás de Aquino, remontando sua permanência histórica a partir de Platão, Aristóteles e Agostinho. Como método comparativo, investigamos a presença da virtude em duas obras de Histórias em Quadrinhos (HQ), sendo a primeira a minissérie Os 300 de Esparta (1999), de Frank Miller, publicada no Brasil em cinco edições, que apresenta uma versão da batalha das Termópilas (480 a.C.), liderada pelo rei espartano Leônidas contra os invasores persas, conforme o relato do grego Hesíodo em sua obra História (V a.C.). A segunda publicação é o volume único Bilbo o Hobbit (1990), com a adaptação do texto para HQ de Charles Dixon e Sean Deming e arte de David Wenzel, baseada no romance O Hobbit (1937), do escritor britânico J.R.R. Tolkien, que narra as aventuras de Bilbo Bolseiro na Terra-Média, onde enfrenta o dragão Smaug com a ajuda dos anões da comitiva de Thorin Escudo-de Carvalho e do mago Gandalf, o Cinzento. Por fim, é possível inferir que a virtude da fortaleza, em seus cinco aspectos na perspectiva tomista (fortaleza, magnanimidade, magnificência, paciência e perseverança), é ponto fundamental na narrativa de ambas as HQ´s.
Palavras chave:Esparta, Hobbit, Virtude, Fortaleza, Tomás de Aquino
Abstract
This article deals with the cardinal virtue of the fortitude, as understood in the perspective of the Summa Theologica of Thomas Aquinas, tracing its historical permanence from Plato, Aristotle and Augustine. As a comparative method, we investigated the presence of virtue in two Comic books, the first being Frank Miller’s The 300 of Sparta (1999), published in Brazil in five editions, which presents a version of the battle of Thermopylae (480 BC), led by the Spartan King Leônidas against the Persian invaders, according to the report of Hesiod in his Historia (V BC). The second publication is Bilbo the Hobbit (1990), adapted from the text for HQ by Charles Dixon and Sean Deming and David Wenzel’s art, based on the novel The Hobbit (1937) by the british writer JRR Tolkien, which narrates the adventures of Bilbo Baggins in Middle-earth, where he confronts the dragon Smaug with the help of the dwarves of the entourage of Thorin Oakenshield and the wizard Gandalf the Gray. Finally, it is possible to infer that the virtue of fortitude, in its five aspects in the thomistic perspective (fortitude, magnanimity, magnificence, patience and perseverance), is a fundamental point in the narrative of both comics.
Keywords:Sparta, Hobbit, Virtue, Fortitude, Thomas Aquinas
Introdução
No livro II de A República (377b-379E), Platão (2016, p. 213215) relata a necessidade da vigilância sobre os criadores de fábulas (mythopaios), para que eles não mintam sobre a natureza (ousía) dos heróis e dos deuses e, com isso, não influenciem negativamente a formação das almas das crianças na cidade ideal. Essa conhecida crítica platônica aos poetas é reveladora da importância que o filósofo atribui à formação de imagens e a construção de narrativas na educação de todos os cidadãos, a começar pelos infantes, mas que se estende até aos anciãos.
De fato, a célebre exortação para a expulsão dos poetas da cidade se restringe àqueles que não se submeterem aos critérios de verdade do projeto platônico empreendido n´A República de erigir uma ordem cívica fundada na contemplação do Bem, através da busca da Verdade e do Belo1. Assim, é a natureza dos heróis e dos deuses que deve ser respeitada pelos poetas, e quem determina qual é essa natureza é a filosofia. Ora, o herói como exemplar da natureza humana e o deus como exemplar do Bem transcendente são a matéria-prima para a construção do mito ou fábula.
Nesse mesmo sentido, Aristóteles reafirma a importância da criação de mitos no capítulo IX de sua Poética (1451b)
Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta, o particular. Por “referir-se ao universal” entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e acções que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes aos seus personagens. (ARISTÓTELES, 1986, p.115-116).
A tensão entre particular e universal é fulcral para a fabricação de mitos, uma vez que o verdadeiro conhecimento deve superar a variação das opiniões e aparências para encontrar na ciência e nas essências a verdade das coisas, e a fábula ajustada à filosofia deve seguir esse critério. Um indivíduo, particular e com acidentes, só se torna caminho para o saber científico (no sentido aristotélico) na medida em que, a partir dele, se alcança a natureza de sua espécie, de seu gênero e de tudo o que existe, como as estruturas do Devir e do Ser. Daí a superioridade do conhecimento universal em detrimento do particular, pois é no universal que a natureza dos entes exibe sua forma inteligível, e a partir do qual conhecemos as relações que organizam a própria Existência. Assim, a necessidade (anankè) é o inexorável processo que instaura a ordem no caos, que origina a lógica na própria realidade, apreendidos pelas virtudes intelectuais do entendimento (nous) e da sabedoria (sophia), sendo a verossimilhança a analogia entre a concretude do factual e a possibilidade do ficcional.
Seja em A República ou na Poética, percebemos uma relação entre a produção ficcional e uma investigação sobre a natureza humana e da realidade. Platão insiste na vigilância acerca da natureza dos deuses e Aristóteles no seguimento dos critérios lógicos da necessidade e da verossimilhança. Seja como for, a afirmação de que a natureza humana, seja em seu ideal heroico como exemplar, seja como universal a ser desenvolvido na atualização de suas potências, pode e deve ser descrita por meio de fabulações e mitos é um consenso entre os dois filósofos gregos. Nesse contexto filosófico, a virtude é hábito (repetição de atos) bom (que realiza a natureza) do homem, sendo o caminho para sua realização, sua finalidade (télos). Essa perspectiva teleológica concebe a virtude como um meio para a realização da natureza de um ente, sendo o homem virtuoso mais plenamente homem, mais realizado em sua essência.
Dessa forma, quando Aristóteles afirma que a ficção (poética) é mais filosófica que a história (factual) porque aquela busca o universal, entende com isso que a criação de fábulas tem a capacidade de atribuir a um indivíduo pensamentos (falas, discursos, diálogos) e ações (cenas, atos, gestos) que sejam convenientes a sua natureza, por ditames da necessidade e da verossimilhança. Tais ações podem relacionar-se com a virtude (ou o vício) enquanto expressas por pensamentos e ações, descrevendo o movimento da natureza do indivíduo da potência para o ato (ou sua corrupção). O universal é, portanto, a natureza humana, da qual a virtude faz parte enquanto acidente (no sentido de categoria de qualidade, diferente da substância)22
Esse preâmbulo sobre o arcabouço teórico acerca das virtudes é necessário para justificar a delimitação da fortaleza como virtude cardeal para a realização da natureza humana, retratada ficcionalmente nas HQ´s Os 300 de Esparta (1999) de Frank Miller e Bilbo o Hobbit (1990) de Charles Dixon e Sean Deming e arte de David Wenzel.
No primeiro subtítulo, A Virtude da Fortaleza, apresentamos como as reflexões de Platão e Aristóteles se alinham, ainda que sob ângulos diferentes, no reconhecimento dessa virtude como fundamental para a realização humana. Nesse sentido, Agostinho e Tomás de Aquino integram essa discussão da ética pagã na filosofia cristã medieval, a partir da elaboração conceitual da fortaleza em cinco aspectos: coragem, magnanimidade, magnificência, paciência e perseverança.
No segundo subtítulo, Espartanos, demonstramos como esses cinco aspectos estão presentes nas edições da HQ Os 300 de Esparta, especificamente nas ações e pensamentos (discursos e diálogos) do rei Leônidas, ocasionalmente apresentando personagens secundários para reforçar a comparação. O mesmo acontece no terceiro subtítulo, Hobbits, no qual analisamos os mesmos cinco aspectos na HQ Bilbo o Hobbit, com ênfase no personagem Bilbo Bolseiro. O quarto subtítulo, A Lei Natural, comparamos as duas HQ´s e a discussão da filosofia tomista sobre a natureza humana3 e sua ordenação moral, seja em seu eco da antiguidade pagã grega, tal como retratada pela batalha do Rei Leônidas, seja na fantasia de inspiração medieval do hobbit Bilbo.
De fato, a lei natural é ponto essencial para a análise do filólogo J.R.R. Tolkien (1997, p. 20-23) do poema medieval Beowulf (VIII d.C.). Em seu ensaio Beowulf: the monsters and the critics (1936), o escritor, na época professor da cátedra de anglo-saxão (Old English) da Universidade de Oxford, defende a existência de um dogma da coragem no poema medieval, oriundo da mitologia pagã escandinava, sendo que tal narrativa é, admitida por Tolkien em uma carta pessoal de 1938 (TOLKIEN, apud CARPENTER, 2006, p.35) uma das principais influências para sua criação literária O Hobbit. Dentro dessa perspectiva, esse ensaio sobre Beowulf contribui teoricamente com argumentos para validar a equivalência de narrativas maravilhosas e fantásticas (contendo ogros, monstros e dragões) em relação a reconstruções ficcionais mais fiéis aos paradigmas comuns da história, tal como a guerra entre gregos e persas, no tocante à produção de fábulas adequadas ao paradigma filosófico que sustente a discussão da lei natural.
1) A Virtude da Fortaleza
No livro IV (430B) de A República, Platão apresenta as quatro virtudes cardeais, justiça, prudência, temperança e, a de nosso enfoque nesse artigo, a fortaleza ou coragem (andreía). Para o filósofo, essa virtude é a garantia de que o guardião da cidade vencerá o suplício das dores e as tentações dos prazeres para se manter firme em suas convicções e propósitos: “Essa força salvadora da opinião verdadeira e legítima a respeito do que é ou não é de temer é que denomino coragem.” (PLATÃO, 2016, p. 353-5). Em sua tríplice divisão da alma (concupiscente, irascível e racional), Platão entendia que a fortaleza se ajustava à dimensão da irascibilidade (também chamado colérica), onde o impulso e a vontade eram importantes para manter o ardor e o ímpeto da ação, próprios do guerreiro.
Aristóteles (2009, p. 102-111), no livro III (11151a1-11171b20) de Ética a Nicômaco, retoma a perspectiva das virtudes cardeais, explicando a teoria da mediania, na qual a virtude é concebida como um ponto equidistante entre um excesso e uma falta na ação do homem. No caso clássico da coragem, esta é compreendida como a intersecção entre a covardia (a falta) e a temeridade (o excesso), entendendo sempre que a mediania é ela mesma um extremo. A coragem, portanto, é uma mediania em relação à disposição diante das coisas que provocam medo em determinadas circunstâncias, na qual uma autoconfiança se apresenta como capaz de suportar os perigos.
Quais são, então, as coisas temíveis em relação às quais se mostra coragem? Suponho que sejam as maiores, pois ninguém é mais firme do que o homem corajoso quando se trata de suportar o perigo. Ora, a mais temível de todas as coisas é a morte, uma vez que é o fim e quando alguém está morto, nada – penso – seja bom ou mau, pode atingi-lo mais... Que espécie de morte, então, representa um teste de coragem? Presumivelmente a mais nobre delas. Ora, a mais nobre espécie de morte é a morte em batalha, pois é encarada em meio do maior e mais nobre dos perigos. E esta conclusão é roborada pelo princípio segundo o qual honras públicas são conferidas nas repúblicas e monarquias. O homem corajoso, portanto, no exato sentido da expressão, será aquele que sem medo enfrenta uma morte nobre ou algum perigo súbito cuja ameaça é a morte. (ARISTÓTELES, 2009, p. 103-104).
Agostinho (1995, p. 57-58), no capítulo 13 do Livro I de sua obra O Livre-Arbítrio, retoma a classificação platônica das virtudes cardeais, considerando estas como requisitos para um amadurecimento de nossa boa vontade, da ordenação racional de nossas paixões. No texto em questão, Agostinho denomina a fortaleza simplesmente como força, inspirado na citação bíblica de 1Cor 1, 22-31, onde São Paulo se refere a Cristo como Força e Sabedoria de Deus, por sua vez remetendo-se a textos do Antigo Testamento, tais como Dn 2, 20-23; Jó 36, 5 e Is 11,2.
Nesse sentido, Agostinho apresenta Jesus Cristo na discussão das virtudes, não apenas o homem ideal como em Platão, ou a excelência humana enquanto finalidade teleológica, como em Aristóteles, mas como um modelo histórico concreto e, devido à fé na Encarnação divina, uma presença contínua entre os homens através da Igreja e seus sacramentos e da ação do Espírito Santo. Assim, a maior prova da virtude da força (fortaleza ou coragem) foi a morte de cruz experimentada por Jesus Cristo, obedecendo a missão que o Pai tinha confiado para a redenção da humanidade4.
Em diálogo com Evódio, seu interlocutor em O Livre-Arbítrio, o bispo de Hipona, na sequência de entendimento das virtudes cardeais, define a coragem: “Pois bem! E a força, não é aquela disposição da alma pela qual nós desprezamos todos os dissabores e a perda das coisas que não estão em nosso poder?” (AGOSTINHO, 1995, p. 58). Na mesma obra, no capítulo 19 do Livro II, Agostinho (1995, p. 138-139) descreve as virtudes como grandes bens do homem, nas quais reina a reta razão, ordenadora das paixões e orientadora do homem em direção à beatitude. Todavia, dentro da filosofia de Agostinho, toda a Criação, inclusa a humanidade, é dependente de Deus, sendo as próprias virtudes morais dons divinos, tal qual a razão, para que o homem se encaminhe para a unidade com Deus e sua satisfação na contemplação de Sua Presença.
Finalmente, em São Tomás de Aquino encontramos os cinco aspectos da virtude da fortaleza que utilizamos para a análise comparativa das HQ´s selecionadas para este trabalho. Como primeiro aspecto, em A Suma Teológica, na II seção da II parte, questão 123, artigo 04, São Tomás (2005, p.52) pergunta se a fortaleza tem por objeto apenas o medo da morte, na qual responde que sim, pois a virtude da fortaleza tem a responsabilidade de proteger a vontade do homem das tentações da covardia e dos recuos diante dos perigos corporais.
Assim, Tomás reafirma a linha agostiniana de relação entre Deus e o homem pela via da razão que encontra o bem e que deve se impor ao mal enquanto desordem das paixões e do caos do mundo. Essa firmeza de propósito diante do despedaçamento do entorno é dada pela virtude da fortaleza, sendo que a maior das dissoluções é a própria morte corporal, inevitável devido à condição humana: “E, assim, a virtude da fortaleza tem por objeto o medo dos perigos da morte.” (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 53).
No artigo 05 dessa mesma questão, Tomás pergunta se além do objeto da fortaleza ser o medo da morte, este é especificamente o medo da morte em combate, entrando na difícil relação entre cristianismo e a guerra. De fato, apesar da fortaleza ter como objeto o medo da morte, e esta poder vir de diversas causas, como doença, desastres naturais, de crimes e acasos, é na guerra em que este perigo se torna mais evidente, especialmente quando o guerreiro está envolvido com plena consciência e vontade, pois em tal caso: “ele está defendendo o bem comum numa guerra justa” (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 54), sendo que guerra justa é definida de duas maneiras: primeiro, de forma geral, como a simples defesa de seu exército, e em segundo, de forma precisa, como quando emitida por um juiz de julgamento justo apesar das ameaças mortais.
Na questão 128 dessa mesma II Seção da II Parte da Suma Teológica, encontramos a divisão da fortaleza em outras quatro partes, além de sua matéria principal, sendo duas delas ligadas à dimensão ofensiva e outras duas, à dimensão defensiva. No primeiro aspecto, ofensivo, temos a magnanimidade (confiança) e a magnificência, e no segundo, defensivo, a paciência e a perseverança. Tomás dedica as questões seguintes (129 a 138) a esmiuçar essas partes e seus vícios correspondentes, tanto por excesso quanto por falta. Para os limites de nosso artigo, nos restringiremos à análise somente das virtudes.
A magnanimidade (questão 129), é definida como a grandeza de alma, sua busca por grandes honras5 por meio de grandes atos, com os quais podemos entender, em primeiro lugar, a matéria para qual o ato é orientado, como temas públicos difíceis, tarefas árduas e exclusivas, missões intimidadoras. Com efeito, podemos também entender como grandeza o próprio ato em sua realização, a maneira como tal matéria é executada, sua excelência de execução, seu primor e elegância ainda que em tarefas menores. Em terceiro lugar, os grandes atos podem ser entendidos como quando se usam bens superiores, como o poder do Estado, a honra entre os cidadãos e aliados.
Por sua vez, a magnificência (questão 134), segunda virtude ofensiva, é definida como a capacidade de lidar com grandes somas de dinheiro para grandes obras de maneira excelente, performando obras magníficas de forma inconteste. Para tal, o amor ao dinheiro deve ser controlado, a supervisão dos gastos e o controle da distribuição de tarefas e supervisão de serviçais e de contratos deve ser realizada de forma racional e honrosa, visando o bem comum da comunidade para qual tal obra magnífica é destinada.
Na dimensão defensiva, a paciência (questão 136) é definida como a virtude “que proteja o bem da razão contra a tristeza, para que ela não abata a razão” (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 154). Nesse sentido, a paciência é o hábito de suportar as condições menores de aborrecimentos, dores e males não mortais diante das quais nada podemos fazer e que podem levar a alma à escuridão e à desesperança. Suportar tais provações com firmeza e com ânimo, permitindo que a razão mantenha a consciência dos bens superiores ausentes, mesmo com as dores presentes, é a verdadeira natureza da virtude da paciência.
Por fim, a perseverança (questão 137) é definida como a capacidade de resistir longamente, numa extensão temporal considerável, às dificuldades e dores da vida. O fator temporal é essencial à perseverança, seja permeando todas as tarefas cotidianas árduas, como o trabalho, tratamentos de saúde, um encarceramento, uma injustiça, ou uma missão penosa, que exige energia e comprometimento, não vislumbrando resultado a curto e nem a médio prazo, como uma grande construção, ou seja no decorrer da vida inteira do homem, como a perseverança das obrigações religiosas, cultos divinos, sacramentos e obras de piedade, tarefas que nunca acabarão enquanto a vida durar.
2) Espartanos
Na HQ de Frank Miller, inspirada no relato clássico de Hesíodo (2001, p.864-886), encontramos a viagem do rei Leônidas de Esparta junto com seus 300 guerreiros em direção ao desfiladeiro das Termópilas, onde esperavam conter a invasão do rei persa Xerxes e, a despeito de seus valorosos esforços, perecem. A batalha das Termópilas é datada em 480 a.C., e os autores Frank Miller e Lynn Varley reproduziram certos diálogos e descrições presentes em Hesíodo, mas criaram outras cenas, gestos e conversas a partir de sua própria imaginação, fabulando certos traços possíveis na interpretação da história.
O aspecto essencial da virtude da fortaleza, o enfrentamento da morte de maneira digna, é relatado na primeira edição, com o subtítulo Honra (MILLER e VARLEY, 1999), que começa, na marcha dos soldados espartanos da cidade para o desfiladeiro. Em certo momento de parada, o espartano Dilios, que ocupa a função de poeta e contador de histórias, relata aos soldados como o rei conquistou essa posição. Na narrativa, percebemos como o então jovem Leônidas demonstra a virtude da fortaleza ao não temer um lobo que o caçava, durante o processo de iniciação espartana na qual os meninos deveriam passar um tempo na floresta, no frio, sobrevivendo da melhor maneira possível. Nesse caso, Leônidas, por sua estratégia e frieza, consegue matar o lobo atraindo-o para um estreito entre rochas, sem demonstrar medo. Quando o lobo salta para o ataque, fica preso no estreito, permitindo o menino usar sua lança rudimentar e matá-lo.
Em várias outras passagens dos demais volumes os espartanos demonstram desprezo pela morte e descaso pelos perigos em batalha, mas este primeiro momento é central, logo no começo da narrativa, porque é o indicativo do critério da eleição do rei Leônidas, o comandante máximo e o maior exemplo para seus soldados. O menino que enfrenta o lobo destemidamente e de maneira inteligente é a história contada no início da jornada, como forma de reafirmação da identidade espartana, que passa diretamente pelo cultivo e valorização da virtude da fortaleza. É importante ressaltar que nesse mesmo volume, existe uma analogia entre o lobo morto por Leônidas em sua infância e o rei Xerxes e seu exército indo para o desfiladeiro das Termópilas. Nesse sentido, a HQ descreve como o rei de Esparta matou o mensageiro enviado por Xerxes para negociar a rendição da cidade, fazendo uma relação desse ato como uma forma de provocação ao exército persa, tal como o menino provocou o lobo para o estreito entre as rochas.
Na segunda edição, subtítulo Dever (MILLER e VARLEY, 1999), encontramos outra descrição de uma lembrança do rei, dessa vez de seu diálogo com os éforos, os sacerdotes dos deuses antigos de Esparta, desprezados por Leônidas. No caso, os sacerdotes se negam a seguir o plano do rei, que consiste em bloquear o avanço das forças de Xerxes no desfiladeiro das Termópilas, estreitando o combate num corredor, impedindo que o número maior de guerreiros persas seja uma vantagem a ponto de cercar os gregos. A metáfora usada por Leônidas é a de ondas do mar contra um rochedo inflexível. Contudo, a HQ narra a corrupção dos éforos, subornados por Xerxes, que alegam a festa da Carnea para impedir o deslocamento do exército espartano. Diante da negativa dos sacerdotes, Leônidas decide levar sua guarda pessoal para as Termópilas, os 300 melhores guerreiros, e liderar uma coalização de outras cidades-estado gregas (como Arcádia e Tebas), alegando que iria apenas caminhar e não ir abertamente à guerra e, dessa forma, não estaria desrespeitando a proibição dos éforos.
Nessa cena, podemos comparar a virtude da magnanimidade nos atos de Leônidas, pois essa grandeza de alma do rei em não romper com a tradição religiosa e ao mesmo tempo prosseguir com seu plano de defesa da cidade se manifesta através de seu desprendimento e segurança numa estratégia cheia de riscos e perigos. Assim, primeiramente, a decisão do próprio ato, de defender a cidade com a própria vida, é uma missão intimidadora e honrosa. Em segundo lugar, o próprio ato de Leônidas é magistral, pois defender com poucos homens sua cidade diante de um vasto exército através de estratégia excelente é magnânimo; e, por fim, liderar essa coalizão de forma superior e nobre é a virtude de um governante pleno de magnanimidade.
Nesse mesmo sentido, podemos aproximar a cena em que Leônidas reúne seus aliados, contando com os soldados, os alimentos e equipamentos, organizando a campanha militar como um grande feito. Se enfocarmos nessa perspectiva, da organização da guerra como a administração de grandes quantias de recursos, relacionamos Leônidas com a virtude da magnificência, embora, de fato, esse aspecto da fortaleza seja o menos presente na HQ de Frank Miller. Seja como for, a descrição de que Leônidas foi capaz de se colocar no comando de sete mil homens de dezenas de cidades gregas, administrando alimentação e ordem durante cerca de um ano de marcha é um indício forte suficiente para associarmos a magnificência ao rei.
Na terceira edição, subtítulo Glória (MILLER e VARLEY, 1999), existe a cena em que o poeta Dilios tece outra de suas narrativas com um grupo de soldados ao redor de uma fogueira, já nas Termópilas, como manobra diversionista para um emissário persa que viera observar o que tinha acontecido com seu grupo de batedores, sendo que tal grupo tinha se transformado num muro de cadáveres construído pelos espartanos, diante do qual Dilios contava suas histórias. Quando o emissário tentou chicotear os espartanos, seu braço foi decepado rapidamente pelo jovem espartano Stelios, sendo o persa mutilado enviado de volta para Xerxes como recado intimidador de Leônidas.
A presença de Dilios, autorizada, apreciada e estimulada pelo rei reflete a virtude da paciência, na qual a tristeza é combatida pelo ânimo de rememoração dos grandes atos, sejam do próprio Leônidas, como a morte do lobo, sejam de outros gregos, como a que contava Dilios diante do muro de cadáveres persas. É essa função da narrativa de manter a consciência nos bens últimos, amparada pela virtude da paciência de suportar a provação da tristeza e do desânimo, na qual podemos refletir na metalinguagem dessa mesma obra de Frank Miller e de Lynn Varley, assim como da teoria aristotélica dos universais na literatura, presente na HQ de forma estruturante, uma vez que é o próprio Dilios, como se conta no volume final da edição, o narrador da bravura dos 300.
Ainda nesse volume, nos é apresentado Ephialtes, um homem corcunda e disforme, com o corpo atrofiado, ainda que forte, com o rosto deformado. É pela narrativa de Ephialtes que conhecemos o processo de educação espartana, que começa com a inspeção do recém-nascido para averiguar fraqueza, doença ou deformidade e caso exista alguma dessas condições, o bebê é descartado do alto de uma colina. Após esse momento, os meninos são ensinados a suportar fome, torturas, intempéries do tempo, com treinamento para roubar, lutar e matar e, segundo a própria HQ, o treinamento nunca termina. Ora, Ephialtes nasceu com deformidades, mas seus pais fugiram de Esparta por amor ao filho e se tornaram pastores, embora tenham ensinado o filho a ser um guerreiro e a manejar a lança, o escudo e a espada. Ao se apresentar a Leônidas nas Termópilas, Ephialtes se julga apto a lutar ao lado dos espartanos e honrar todo o amor que os pais lhe dedicaram, ainda que o rei recuse sua ajuda, justamente porque a deformidade impediria que o exilado pudesse integrar a defesa da linha de combate pela dificuldade no manejo do escudo. Por fim, rejeitado, Ephialtes se lança do alto da montanha, envergonhado e desejando a morte. O que nos é revelado aqui é a virtude da perseverança, primeiro em todos os espartanos, por meio de seu treinamento árduo e constante, que dura a vida inteira, independentemente de tempos de guerra ou de paz, e de maneira particular no próprio Ephialtes, que apesar de sua condição física, manteve a força de vontade em treinar o que era possível, empenhando-se diuturnamente para atingir o máximo de suas capacidades, numa tarefa de longa duração, contra aborrecimentos severos.
Na quarta edição, subtítulo Combate (MILLER e VARLEY, 1999), a metáfora usada por Leônidas no primeiro volume, do oceano raivoso contra o rochedo inflexível, se encarna de maneira sangrenta, quando dezenas de milhares de soldados persas perecem diante da defesa imperturbável dos espartanos. Nesse momento, o próprio imperador Xerxes exige um encontro com Leônidas, no qual o rei espartano destila ironia e sarcasmo diante das ofertas e ameaças do soberano persa. Essa atitude de desdém diante da morte reforça a virtude da fortaleza, e Leônidas chega até mesmo a comentar entre seus pares, ao recusar escolta para encontrar Xerxes, que espera que seja morto, porque daí todos os gregos se levantarão contra os persas, independente das proibições religiosas.
Na quinta edição, subtítulo Vitória (MILLER e VARLEY, 1999), vemos a grande virada trágica, no sentido de catástrofe (acontecimento patético), quando sabemos que, sobrevivente, Ephialtes trai os espartanos, chamados por ele de os homens mais corajosos do mundo, e indica para Xerxes uma rota que permitira uma travessia do desfiladeiro das Termópilas de forma mais segura. Ao saber disso, Leônidas dispensa todos os outros gregos, mantendo consigo somente os sobreviventes de seus 300. Em seu último discurso, o rei evoca a importância da lei, da verdade e da razão, que pairam acima das vontades dos homens, os quais devem se submeter para que se tornem dignos em sua resistência, luta e morte. Ao despachar Dilios, Leônidas envia seu poeta, seu cronista, seu narrador, para contar a toda Grécia a história dos 300 e provocar os ânimos e a unidade necessária para o rechaço do império persa.
Finalmente, com Leônidas e seus 300 cercados, a trilha secreta dominada, todas as forças de Xerxes circulando os espartanos e com as montanhas repletas de arqueiros, sem a menor chance de sobrevivência, existe a cena da morte de Leônidas. Nela, a memória do lobo é resgatada, numa comparação dessa situação limite, na morte iminente do próprio rei e de seus guerreiros prontos a seguir seu líder. A descrição do arremesso da lança de Leônidas em direção à Xerxes, ainda que apenas ferindo-o na boca, é um ato extremo de coragem que desafia a vantagem absurda do inimigo e o ataca em vez de se atemorizar. Nesse trecho, a HQ liga a ascendência dos espartanos ao próprio Hércules, afirmando que Leônidas faz jus a essa linhagem ao olhar a morte de frente, ri, com um rosnado longo, alto e pleno de gargalhadas.
3) Hobbits
A HQ Bilbo o Hobbit (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990), é inspirada no romance O Hobbit do escritor J.R.R. Tolkien, publicado originalmente em 1937, no qual se narra as aventuras de Bilbo Bolseiro, um hobbit, uma espécie de homem de pequena estatura (cerca de 1 metro), que vive num contexto agrícola, sem eletricidade ou motores, mas com estradas e jardins, bons livros e belas casas. A chegada do mago Gandalf, figura de barbas brancas, alta e cheia de poderes, convocando Bilbo para uma aventura, acaba levando o pacato hobbit a uma jornada na comitiva de Thorin Escudo de Carvalho, líder dos anões6, homens um pouco maiores que os hobbits, mais carrancudos e fortes, em direção à antiga montanha solitária, onde o dragão Smaug dormia, pois tinha se apossado do tesouro dos ancestrais de Thorin, que outrora eram os reis sob a montanha. No fim, após grande tensão, o dragão é morto, mas a decisão dos espólios do tesouro causa contenda entre homens, elfos e anões, provocando grande dor em sua resolução. A modulação da narrativa de Bilbo comparada com a de Leônidas é muito discrepante.
Enquanto os espartanos consideram a fortaleza como a virtude que define inclusive seu modo de existir no mundo, os hobbit entendem que o mundo pacato e livre de perigos é seu habitat natural. A proposta de encontrar a coragem nessa narrativa advém justamente dessa pequenez que lentamente é elevada, de forma sutil e discreta, a grandes atos de bravura. Logo no começo da HQ, quando Gandalf e os anões estão reunidos na casa de Bilbo, antes mesmo de se explicar sobre o dragão e a montanha, Thorin fala que se trata de: “uma jornada que para alguns pode ser sem volta” (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.09), e Bilbo desmaia imediatamente depois de ouvir.
Após recuperar-se, Bilbo escuta sobre Smaug, a montanha solitária e o tesouro dos anões. Gandalf mostra uma chave e o mapa de Thror, avô de Thorin, que exibe o caminho para uma porta secreta, por onde se pode entrar sem ser visto pelo dragão e recuperar uma parte do tesouro, daí a necessidade de um ladrão, ou de um “perito em caça ao tesouro” (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.09), como diz Balin e, por isso, convidaram Bilbo na qualidade de ladrão, por indicação de Gandalf.
Seguem algumas discussões, cantorias, os convidados liquidam a despensa do anfitrião e todos adormecem. Ao acordar, Bilbo se vê sozinho, aliviado ao ver que os anões tinham partido, mas estranhamente decepcionado. Apenas Gandalf estava com ele, e o entregou uma carta-contrato, na qual Thorin prometia uma décima quarta parte do tesouro, cobertura das despesas da viagem e auxílio funeral, se necessário e marcando um encontro numa estalagem já na estrada, caso o hobbit se interessasse. A reação de Bilbo é a primeira mostra da virtude da fortaleza, pois este sai em disparada mesmo com a referência anterior à morte e explícita na carta-contrato. A simples possibilidade de morte já era um motivo de rejeição para um hobbit comum, razão do desmaio da noite anterior, ainda mais quando se tratava de dragões e longas viagens. Contudo, Bilbo demonstra uma natureza surpreendente em aceitar participar da companhia de Thorin, mesmo com a morte ao seu lado. A escolha de Bilbo de partir com Thorin e os anões pressupõe um ato de grandeza, de recuperar um tesouro há muito perdido diante de perigo terrível e, assim, também podemos encontrar a magnanimidade nessa partida, no entusiasmo com a aventura feita de grandes tradições.
Durante a viagem, o narrador da história comenta que “O grupo viajava tranquilamente. Pelo caminho, contando histórias e entoando canções. Bilbo começava a achar que afinal de contas as aventuras talvez não fossem tão ruins assim” (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.14). Mas ele enfrentou trolls, gigantes de pedra e orcs7, e passou por vários momentos em que a morte estava à sua frente, crescendo sempre em fortaleza. Nesse período de travessia é a própria perseverança que se manifesta, onde as dores das intempéries do tempo e do desconforto da aridez da estrada e fugas dos perigos, às vezes mortais, se tornam inevitáveis (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.15-40).
Da mesma forma, a virtude da paciência pode ser observada quando Bilbo estava entre os elfos na Última Casa Amiga, do sábio Elrond. Assim, logo antes de adentrar nas terras selvagens, os membros da comitiva de Thorin “ficaram cerca de 15 dias naquela Casa confortável e foi difícil partir” (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.25), e lá acumularam conhecimentos com Elrond sobre os dragões, o mapa e a chave, as armas que encontraram no caminho, ouviram canções e histórias que aqueceram o coração diante da difícil tarefa que contemplavam, e partiram em direção às montanhas sombrias.
Todavia, o momento mais importante na narrativa é quando Bilbo, fugindo dos orcs, perdido nas cavernas das montanhas sombrias, encontra a criatura Gollum e o anel de invisibilidade, item mágico fundamental para a aventura. (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.44-54). Nesse momento, Bilbo e Gollum jogam um desafio de charadas, cujo prêmio para Bilbo é a indicação da saída e para Gollum a morte de Bilbo para servir de refeição. Dessa vez, é a fortaleza, enfrentamento da morte iminente, que se manifesta para Bilbo, ainda que a luta não seja física, mas mental, pelo jogo de raciocínio lógico subjacente e de percepção das descrições das advinhas. Bilbo consegue fugir de Gollum, encontrar a saída das cavernas e se reunir novamente com Gandalf e os anões.
Na saída das montanhas sombrias, enfrentaram patrulhas orcs e lobos, foram ajudados pelas águias gigantes aliadas de Gandalf e encontraram-se com Beorn que, nas palavras de Gandalf, “muda a própria pele; às vezes, ele é um enorme urso negro, outras um homem grande e forte, de cabelos negros, braços imensos e uma grande barba” (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.63). Na casa de Beorn, recuperaram forças, ouviram canções e histórias, tal como na Última Casa Amiga de Elrond, exercendo a virtude da paciência, passando alguns dias com o metamorfo. Bilbo teve que ter paciência em algumas situações, como quando acordou com sons na parede da casa “e se perguntou se poderia ser Beorn, na sua forma encantada..., em um urso para matá-los” (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.66), ainda que tivesse sido avisado que nada aconteceria se ele não saísse da casa.
A próxima travessia da comitiva era a floresta das trevas, partindo da casa de Beorn, onde Gandalf deixa temporariamente a comitiva e Bilbo novamente é testado em sua perseverança, devido ao caminho árduo e intrincado pela densa mata da floresta (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.70-71), além de terem que enfrentar ilusões dos elfos que lá moravam, que não eram tão amigáveis como Elrond, e as aranhas gigantes, que acabaram capturando os anões em suas teias, restando ao hobbit a tarefa de salvá-los, enfrentando e matando pela primeira vez um inimigo, uma aranha gigante que vinha devorá-lo. Isso foi importante para Bilbo, pois “ele se sentiu diferente, muito mais forte e corajoso, apesar do estômago vazio. (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.75-76).
De qualquer maneira, mesmo salvos das aranhas, os anões acabam capturados pelos elfos, aprisionados em seus calabouços. Primeiro Thorin e depois os demais, com exceção de Bilbo, que escapa usando seu anel de invisibilidade. Durante esse período em que os anões estão presos, cerca de duas semanas, Bilbo tem que exercitar a perseverança e a paciência para se alimentar escondido, estudar o palácio do rei elfo e pensar num plano de fuga para todos, sozinho e sem ajuda, entristecido e arrependido de ter embarcado na aventura. Por fim, conseguiu arquitetar uma estratégia para escapar, usando barris que eram descartados através do rio que passava pelo palácio, novamente sendo o grande auxiliador da comitiva (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.80-88).
Ao fugirem do rei elfo pelo rio, os anões chegam à Cidade do Lago, Esgaroth, aos pés da montanha solitária, onde morava o dragão Smaug e o tesouro perdido. Ao se apresentar, Thorin consegue, a contragosto do mestre da cidade, ajuda para montar uma caravana de expedição para a montanha solitária, primeiro com barcos depois com pôneis e provisões (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.91-95). Ao chegar na montanha, a comitiva encontra a porta indicada pelo mapa e no momento certo, utilizam a chave para a entrada secreta. Depois de certo debate, Bilbo adentra na montanha, e, apesar de usar seu anel de invisibilidade, “tremia de medo, mas seu pequeno rosto estava firme e decidido. Ele já tinha se tornado um outro hobbit, bem diferente daquele que tinha saído correndo de bolsão” (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.100) e encontra Smaug, o magnífico, adormecido em cima do tesouro secular dos anões.
Maravilhado pela imponência do dragão e pelo esplendor do tesouro, Bilbo pega uma taça de ouro e leva para os anões. Porém, isso foi suficiente para despertar Smaug, que percebe a falta de sua taça e percorre a montanha a procura do ladrão. O terror dos anões é enorme, se escondem e discutem o que fazer. Bilbo decide encarar Smaug (com o anel de invisibilidade), para encontrar um ponto fraco em sua escama. Ao conversar com o dragão, este consegue perceber o cheiro de Bilbo, associando-o a anões e aos homens de Esgaroth e, por não conseguir ver o hobbit, parte para a cidade dos homens para destruí-la. Aproveitando a ausência do dragão, os anões entram na câmara do tesouro e Bilbo encontra a pedra Arken, citada por Thorin, a mais preciosa do tesouro, chamada de o coração da montanha, herança da linhagem real dos anões (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.108), e a escolhe como a décima quarta parte de seu espólio, guardando-a em segredo.
Na cidade, Smaug causa enorme destruição, mas é morto por Bard, da antiga linhagem dos reis que uma vez comandaram o reino de Valle, cuja capital era Esgaroth. Com a morte de Smaug, Bard reassume seu trono, pede auxílio para os elfos da floresta das trevas, com as quais tinha antigas alianças, e lentamente começa a construir abrigos para os sobreviventes do ataque de Smaug. Elfos e homens se voltam, então, para sonhar com os tesouros desprotegidos deixados pelo dragão. Lá, por sua vez, os anões entram em contato, através de pássaros encantados falantes, antigos servidores dos reis de outrora, com seus aliados de outras terras, solicitando ajuda para proteger as riquezas. Nessa tensão, elfos, homens e anões se encontraram diante da montanha, com seus exércitos prontos para a batalha, discutindo a legitimidade dos donos do tesouro (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.117-118).
É aqui que Bilbo exerce a virtude derivada da fortaleza que ainda não tinha manifestado, a magnificência. Enquanto Thorin exige que a comitiva procure incessantemente pela pedra Arken ao mesmo tempo em que se nega a dialogar com Bard e o rei elfo, Bilbo, que estava com a pedra, decide sair da montanha usando seu anel, ir até o acampamento dos homens e entregar a pedra Arken para que possam usar como negociação com Thorin, em troca de ouro, prata e gemas preciosas. Essa consciência do uso justo de grandes valores materiais, às custas do próprio benefício, é uma dimensão da magnificência. Mesmo que não seja para a construção de algo material, é uma negociação de paz e de distribuição de recursos que exige uma coragem surpreendente (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.120-121).
No acampamento, Bilbo encontra-se com Gandalf, entrega a pedra e volta para a montanha. Na manhã seguinte, a negociação acontece, Thorin se sente traído, mas aceita os termos. Contudo, a chegada dos exércitos dos parentes de Thorin agrava a tensão e a batalha entre elfos, homens e anões está pronta para explodir. Nesse momento, exércitos de orcs, lobos e morcegos, que vieram das montanhas sombrias vingar seus mortos, invadem o campo e atacam a todos, instaurando-se a Batalha dos Cinco Exércitos. Após esse combate, com a vitória dos Povos Livres (homens, anões e elfos), uma trégua entre eles é formada. Thorin, ferido mortalmente, tem a conversa derradeira com Bilbo, reconciliando-se: “Há mais coisas boas em você do que imagina, filho generoso do Oeste. Uma mistura certa de coragem e sabedoria. Se mais de nós apreciassem a comida, a alegria e as canções em vez de ouro acumulado, o mundo seria bem melhor”. (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.127).
Bilbo participa do funeral de Thorin, dos demais que tombaram e dos ritos de coroação do novo rei anão sob a montanha. Sua volta para casa transcorre sem maiores problemas, revendo o rei elfo da floresta das trevas, a casa de Beorn, a Última Casa Amiga de Elrond. Ao chegar em sua casa, ainda tem que enfrentar certos contratempos como provar que não estava morto e impedir que seus bens fossem leiloados, mas tudo se encerra bem, com uma conversa em sua casa, tempos depois, com Gandalf sobre profecias, aventuras e sorte (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.129-134).
4) lei natural
A comparação entre as HQ´s demonstrou a presença da virtude da Fortaleza e seus aspectos secundários segundo a Suma Teológica. Todavia, a antropologia teleológica subjacente à ética das virtudes pressupõe, especialmente em Tomás de Aquino, uma tradição moral, fundamentalmente cristã, que postula a existência da lei moral8. Dentro dessa perspectiva, a especificidade da lei natural, entendida como a consciência dos princípios da ação humana adequada à sua finalidade natural, tem sua origem na lei de Deus. É, em suma, a participação da criatura racional na lei eterna.
Uma das primeiras expressões da lei natural é encontrada em Justino, o mártir (século II d.C.), em sua obra II Apologia, na qual, ao se referir aos filósofos pagãos, afirma que eles tem certo valor para os cristãos, pois “pelo menos na ética eles se mostram moderados, assim como os poetas em determinados pontos, por causa da semente do Verbo, que se encontra ingênita em todo gênero humano” (JUSTINO, 1995, p.98). Ao recuperar os poetas (mythopaios) e colocá-los ao lado dos filósofos, Justino endossa a perspectiva aristotélica de que a poesia é mais filosófica que a história porque trata dos universais, especialmente em termos da ética, no caso das virtudes enquanto qualidades universais da substância homem. Verbo é a expressão usada para se referir a Cristo, a Segunda Pessoa da Trindade, em sua Encarnação em Jesus e em seu princípio ordenador do mundo enquanto Logos. É a expressão usada no Evangelho de João (Jo 1, 1-5).
Em outras palavras, os pagãos, seja por meio do pensamento filosófico, seja pela racionalidade inerente ao artesanato de mitos, participam em germe da realidade de Cristo enquanto Sabedoria Divina, Palavra que ordena o mundo, que revela a verdade dos atos humanos e da natureza em ato. Nessa linha, Agostinho, em sua obra O Espírito e a Letra, comenta a carta de São Paulo (Rm 2, 14), na qual o apóstolo diz que os gentios seguem naturalmente a lei de Deus. A lei natural é posta como caminho de salvação para os gentios e como sinal da pertença ao Evangelho.
Este grego foi indicado com o nome de gentios, que praticam pela lei natural o que é prescrito pela Lei e possuem a obra da Lei escrita em seus corações. Consequentemente, os gentios pertencem ao Evangelho, para os quais a Lei foi escrita no seu coração e para eles, como para os que creem o Evangelho, é a força de Deus para a salvação. (AGOSTINHO, 1998 p. 67).
As virtudes cardeais - prudência, justiça, fortaleza e temperança - são consideradas parte da lei natural e constituem a reta consciência moral. Essa derivação da presença da fortaleza nas HQ´s e sua ligação com uma explicitação da lei natural9 pode ser inferida de maneira sutil, mas inegável. Na obra de Heródoto, existe uma referência à queda de Leônidas e o que seria dito aos transeuntes das Termópilas, nos tempos vindouros que relacionavam esse testemunho da virtude da fortaleza à lei: “Caminhante, vai dizer aos Lacedemônios que aqui repousamos por havermos obedecido às suas leis” (HERÓDOTO, 2001, p. 879) e, na HQ Os 300 de Esparta , na edição 05, subtítulo Vitória: “Caso alguma alma livre passe por este lugar em todos os incontáveis séculos por vir, que nossas vozes sussurrem das rochas imemoriais. Vá dizer aos espartanos, transeunte: Aqui, pela lei espartana, jazemos nós” (MILLER e VARLEY, 1999).
Em termos gerais, é importante ressaltar que toda a restrição a Leônidas em relação ao número de seus soldados foi devido à Carnea, ao tempo religioso que, segundo a edição 02, subtítulo Dever, eram “tradições que nem mesmo Licurgo, o legislador, pôde desafiar. Lêonidas deve obedecer a palavra dos éforos. É a lei. Nenhum espartano, escravo, cidadão ou rei está acima da lei” (MILLER e VARLEY, 1999). Ainda que a HQ tensione a razão de Leônidas e a tradição dos Éforos como elementos contraditórios, ao mesmo tempo revela que na cultura espartana existia uma mentalidade de confluência entre a lei civil e a lei dos deuses, tendo a última primazia sobre a primeira.
No caso da HQ Bilbo o Hobbit, recorremos a uma carta do autor de O Hobbit, J.R.R. Tolkien, no qual a HQ foi baseada, em que o escritor inglês afirma, em relação às fontes que teria se inspirado para escrever o romance que “Beowulf está entre minhas fontes mais valiosas, embora não estivesse conscientemente presente na minha mente no processo de composição” (TOLKIEN, In: CARPENTER, 2006, p. 35). Tal poema é uma fonte importante para as aventuras do pequeno hobbit Bilbo. Para os limites deste artigo, enfatizamos a coragem como elemento de ligação entre a interpretação de Tolkien sobre o poema, o romance e a HQ. Segundo Tolkien, em Beowulf: the monsters and the critics:
Beowulf é considerado, naturalmente, um documento histórico de primeira ordem para o estudo do modo e do pensamento do período... Mas é o estado de espírito do autor, o molde essencial de sua apreensão imaginativa do mundo, que é meu interesse, não a história em si. Estou interessado nesta época de fusão somente enquanto pode nos ajudar a compreender o poema. E no poema eu penso que podemos observar não a confusão, um coração dividido ou assuntos misturados, mas sim uma fusão que tenha ocorrido em um ponto certo no contato entre velho e novo, um produto de pensamento e emoção profunda. Um dos elementos mais potentes nessa fusão é a coragem nórdica: a teoria da coragem, que é a grande contribuição da incipiente literatura nórdica (TOLKIEN, 1997, p. 20, tradução própria).10
Segundo Tolkien, os elementos cristãos e pagãos presentes no poema buscam uma harmonia que se desdobra em muitos aspectos literários, históricos e mesmo metafísicos. Contudo, é na dimensão da moralidade que podemos traçar essa comparação entre o romance e a HQ com o poema. A teoria da coragem é exaltada durante toda a narrativa do herói viking, inicialmente descrito como arrogante e orgulhoso, desde seu combate com o ogro Grendel até seu encontro derradeiro, já como rei idoso, com o dragão que é despertado por um roubo de uma taça de seu tesouro (tal qual Bilbo rouba Smaug). Beowulf mata o dragão, mas encara sua morte e consequente despedida feita por seu povo ao enterrar o tesouro amaldiçoado.
Essa aproximação de uma virtude cardeal, a fortaleza, feita por um homem letrado (o autor de Beowulf), um cristão que conhecia as escrituras, com a mitologia pagã, faz eco às sementes do Verbo defendidas por Justino, assim como à lei natural1111 denominada por Agostinho, numa alusão à lei no coração dos pagãos, conforme São Paulo. No caso do poema Beowulf, o coração pode ser entendido não apenas como a razão prática, dos princípios morais, mas também à reflexão poética do mythopaios nórdico, em busca dos universais que se direcionam à salvação, enquanto limite de realização natural das possibilidades humanas.
Para a HQ Bilbo o Hobbit, a superação das diferenças entre elfos, anões e homens é um fator essencial para a solução da guerra. Mesmo com o perigo imediato do enfrentamento do exército dos orcs e lobos, e a pacificação do pós-guerra, expressa pelo arrependimento de Thorin (que afirma que Bilbo possui o equilíbrio entre coragem e sabedoria, tal qual a expressão bíblica de 1Cor 1, 22-31), demonstra essa universalidade da moralidade para além dos limites dos povos. Toda a transformação de Bilbo de pacato morador do vilarejo dos Hobbits para um herói valente capaz de enfrentar trolls, orcs, aranhas gigantes, elfos, o dragão e até mesmo o rei anão enlouquecido por cobiça, é uma longa ode, uma fabricação de fábula que está envolta na teoria da coragem. Nos vários momentos em que Bilbo fraqueja e acaba sendo tentado pelo desânimo ou pela covardia, a HQ sempre expressa essa forma de recuperar a virtude e prosseguir na missão.
Enquanto o poeta olha para o passado, examinando a história dos reis e dos guerreiros em antigas tradições, vê que toda a glória (ou como nós poderíamos dizer a ‘cultura’ ou a ‘civilização’) termina num anoitecer. A solução dessa tragédia não é tratada – não surge no material. Nós temos de fato um poema de um momento fecundo de equilíbrio, com o olhar voltado para o abismo, feito por um homem erudito em contos antigos, que se esforçava para obter uma visão geral do conjunto, percebendo sua tragédia comum de ruína inevitável, e, contudo, sentindo mais poeticamente uma vez que ele próprio estava fora da pressão direta desse desespero. Ele poderia ver de fora, mas ainda sentir imediatamente e de dentro, o velho dogma: desespero do evento, combinado com a fé no valor da resistência condenada... nós quase poderíamos dizer que este poema era (em certo sentido) inspirado por um debate que tinha sido feito por muito tempo e continuado desde então, que tratava de uma das principais contribuições à seguinte controvérsia: devemos ou não condenar nossos antepassados pagãos à perdição? (TOLKIEN, 1997, p. 23, tradução própria)12
É esse valor que o autor cristão de Beowulf encontrou nos mitos vikings: a virtude cardeal, integrante da lei natural inscrita nos corações dos gentios, caminho da salvação pelas sementes do Verbo, que Tolkien admirou e se inspirou para seu romance, que, por usa vez, está presente na HQ Bilbo o Hobbit, inclusive com a referência à uma realidade externa, um Logos (Verbo) Providencial, à vontade dos seres mundanos. No diálogo final, já em sua casa, anos depois de sua aventura com os anões, Bilbo conversa com Gandalf sobre as profecias, impressionado em como se tornaram realidade, sendo a resposta do mago a seguinte: “Você não deixou de acreditar nas profecias só porque deu uma mãozinha para torná-las realidade, né? Não está achando, de fato, que todas as suas aventuras e fugas foram resultado de mero acaso, apenas para seu próprio benefício?” (DIXON, DEMING e WENZEL, 1990, p.134).
Conclusão.
A virtude da fortaleza e suas virtudes secundárias (magnanimidade, magnificência, paciência e perseverança) estão presentes nas HQ´s os 300 de Esparta e Bilbo o Hobbit. Tais qualidades são correlatas à apreensão imaginativa tanto de Heródoto quanto do autor de Beowulf, que por sua vez foram base tanto para Miller e Varley em sua HQ sobre Leônidas quanto para o romance O Hobbit, de J.R.R. Tolkien, que fundamentou a HQ Bilbo o Hobbit de Dixon, Deming e Wenzel. A discussão sobre as virtudes cardeais está tanto no contexto da antiguidade, como vimos em Platão e Aristóteles, quanto na medievalidade, com Agostinho e Tomás de Aquino. Seja a inspiração da Grécia antiga com os espartanos ou a analogia da fábula hobbit com o dogma da coragem do Beowulf medieval, a perspectiva da lei natural é um ponto de partida hermenêutico válido, ainda mais com a perspectiva da fabricação de mitos como raciocínio em busca da virtude enquanto qualidade universal expressa em ficção.
Referências
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LEWIS, C.S. Cristianismo Puro e Simples. Tradução Gabrielle Greggersen. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017a.
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MILLER, Frank; VARLEY, Lynn. Os 300 de Esparta. Tradução Jotapê Martins. Edições 1-5. São Paulo: Abril S.A., 1999.
DIXON, Charles; DEMING, Sean; WENZEL, David. Tradução Helena Soares. Bilbo o Hobbit. São Paulo: Devir Livraria, 1990.
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TOLKIEN, J.R.R. O Hobbit. Tradução Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Tradução Ivo Storniolo. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Paulus: São Paulo, 2003
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Notas
[1]A tradição filosófica grega e sua respectiva proposta de educação estavam ligadas essencialmente a uma concepção universalista e metafísica da natureza humana, desde seus primeiros momentos pré-filosóficos, em período mítico e heroico. Tal perspectiva foi uma constante no desenvolvimento do pensamento da civilização grega sobre educação e nobreza, enfatizando como fim os transcendentais do Bem, Belo e Verdadeiro. Ver Jaeger (2003, p. 3-36).
[2]A questão dos universais é uma das mais controversas da filosofia. Aristóteles (2016, p.39), em Categorias (Ia20-Ib20) afirma que podem existir substâncias particulares (primeiras, individuais), substâncias universais (segundas, as espécies e gêneros), qualidades particulares (a virtude naquele indivíduo) e qualidades universais (a forma da virtude). Porém, no Livro VII da Metafísica (1038b10-15), Aristóteles (2012, p.206) afirma que só podemos chamar de substância o individual e parece descartar a proposta de substância segunda. A controvérsia dos universais é célebre na filosofia medieval e: “consiste em estabelecer qual seja o estatuto ontológico dos universais: se são Ideias transcendentes, pensamentos de Deus etc., ou se são apenas conceitos mentais, ou até mesmo apenas palavras insignificantes, ou se existe uma solução que medeia as várias posições.” (REALE; ANTISERI, 2003, p.154).
[3]A perspectiva da natureza humana compreendida na tradição aristotélico-tomista concebe certos elementos invariáveis no tempo e no espaço em relação à essência da humanidade. Apesar de conceber a mediação contextual social e histórica, determinadas estruturas antropológicas são permanentes no diálogo filosófico. A concepção de uma lei natural deve ser entendida dentro de um sistema filosófico que postula uma capacidade racional de atingir a verdade enquanto adequação da mente à realidade, elevando-se da mera opinião ou subjetividade em direção a verdades universais (tais como os princípios da lógica, normas morais, a liberdade e a busca religiosa). Daí a coerência de se manter um diálogo atemporal com filósofos que encontraram essa verdade, para além de seus particularismos. É nesse sentido que Bohener e Gilson (2000, p. 10) falam de uma “filosofia perene”, ou São João Paulo II (1998, p. 8) descreve uma “filosofia implícita” como patrimônio espiritual comum da humanidade.
[4]Na questão 124 da II seção da II parte da Suma Teológica, São Tomás (2005, p. 68-79) apresenta o martírio como um ato de virtude que integra a fortaleza e a caridade como expressão do testemunho da verdade. Como essa perspectiva pressupõe uma virtude teologal, a caridade, e nosso artigo se restringe à virtude cardeal da fortaleza, optamos por não aprofundar a questão.
[5]Devido à sua origem aristocrática pagã aristotélica e sua consequente tensão com a humildade cristã, essa virtude é resolvida, de forma geral, com o entendimento de que não é imoral depositar confiança em si mesmo desde que com justas razões, tornando-se ainda mais legítima essa confiança quando subordinada à fé e à esperança em Deus.
[6]Nas narrativas de Tolkien, para essa raça fantástica (diferente dos portadores de nanismo em nossa realidade comum) o plural original em inglês é dwarves, não dwarfs, como usualmente escrito. Na tradução da HQ, assim como nas primeiras traduções para o português, manteve-se anões, como usaremos nesse artigo. Nas novas traduções para o português, optou-se pelo plural anãos, para acompanhar o estranhamento que também ocorre no inglês.
[7]A palavra orc é mantida na HQ como no original utilizado por Tolkien, assim como nas traduções anteriores nos romances. A versão em português das edições atuais é orque.
[8]A configuração da lei moral dentro do cristianismo é um processo amplo e cheio de sutilezas. Em termos gerais, a lei moral é a consciência da estrutura da realidade do homem, da criação e de Deus e de quais consequências morais (comportamentais e cognitivas) são necessárias para um correto ordenamento nessa estrutura da realidade. A lei moral é um reflexo possível de ser conhecido pelo homem da lei eterna que harmoniza o próprio cosmo criado por Deus, sendo tal lei eterna a própria vontade de Deus que sustenta tudo que existe. São Tomás divide a lei moral em três pilares: a lei natural, presente em todos os povos humanos pela própria estrutura da racionalidade, seja nas manifestações míticas bárbaras e tribais ou no auge da filosofia grega e romana; a lei antiga, do Antigo Testamento, com seus preceitos morais, cerimoniais e judiciais, que revela a dependência do homem a Deus, a condição inescapável do pecado e a insuficiência do homem de estabelecer a justiça sem a completa entrega a Deus; e, pôr fim, a lei nova, trazida por Jesus Cristo e o Evangelho, que revela a possibilidade de participação do homem na própria Trindade e imersão do homem em Deus, sendo esse processo de santidade promovido pela graça de Deus, pelo sacrifício de Cristo e pela ação do Espírito Santo juntamente com a vontade e a busca do homem.
[9]Aristóteles (2009, p. 198), no Livro VI (1144b1-b30) de Ética a Nicômaco, utiliza a expressão virtude natural para se referir à essa disposição natural ao bem, que deve ser aperfeiçoada pela razão. A noção de que as leis civis, positivas, deveriam seguir um princípio natural e de origem divina, posto de forma objetiva na ordenação do mundo, era bastante difundido no mundo grego antigo.
[10]So regarded Beowulf is, of course, an historical document of the first order for the study of the mood and thought of the period...But it is the mood of the author, the essential cast of his imaginative apprehension of the world, that is my concern, not history for its own sake; I am interested in that time of fusion only as it may help us to understand the poem. And in the poem I think we may observe not confusion, a half-hearted or a muddled business, but a fusion that has occurred at a given point of contact between old and new, a product of thought and deep emotion. One of the most potent elements in that fusion is the Northern courage: the theory of courage, which is the great contribution of early Northern literature. (TOLKIEN, 1997, p. 20).
[11]Em seu estudo sobre outro poema medieval, Sir Gawain and the Green Knight (séc. XIV), Tolkien (1997, p. 91, 95, 105) cita explicitamente a lei moral como parte integrante da composição poética. C.S. Lewis, colega de Tolkien em Oxford e interlocutor durante décadas sobre os romances e estudos acadêmicos, publicou obras apologéticas que tratavam das relações entre a lei natural e a literatura, tais como Cristianismo Puro e Simples (LEWIS, 2017a, p. 29-64) e A abolição do homem (LEWIS, 2017b, p. 45), relacionando-o com os princípios da Razão Prática de Aristóteles.
[12]As the poet looks back into the past, surveying the history of kings and warriors in old traditions, he sees that all glory (or as we might say ‘culture’ or ‘civilization’) ends in night. The solution of that tragedy is not treated – it does not arise out of the material. We get in fact a poem from a pregnant moment of poise, looking back into the pit, by a man learned in old tales who was struggling, as it were, to get a general view of them all, perceiving their common tragedy of inevitable ruin, and yet feeling this more poetically because he was himself removed from the direct pressure of its despair. He could view from without, but still feel immediately and from within, the old dogma: despair of the event, combined with faith in the value of doomed resistance... Almost we might say that this poem was (in one direction) inspired by a debate that had long been held and continued after, and that it was one of the chief contributions to the controversy: shall we or shall we not consign the heathen ancestors to perdition?(TOLKIEN, 1997, p.23)