Da krisis à metanoia: a poética do sagrado em Jorge de Lima e Murilo Mendes
From crisis to metanoia: a poetics of the sacred in Jorge de Lima and Murilo Mendes

Sergio Carvalho de Assunção*1
*Doutorado e Mestrado em Estudos de Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Concluiu estágio de pesquisa e Pós-Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense (2016), com projeto de pesquisa sobre a poesia de Jorge de Lima e Murilo Mendes. Concentra linha de pesquisa sobre Poesia, Contracultura, Música, Vanguardas e Teopoética. Atualmente desenvolve projeto de pesquisa com abordagem voltada para o estudo da poesia em tempos de barbárie. Contato: scassuncao@uol.com.br
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Resumo
Durante as primeiras décadas do século XX, enquanto os valores culturais eram transformados em bens de consumo pela macroestrutura econômica do materialismo industrial, o sujeito se viu mergulhado em uma crise que o esvaziava psíquica e espiritualmente, abalado pela barbárie das guerras, pelo colapso socioeconômico e pela eclosão do nazi fascismo. Em face dessa perturbadora realidade, o cultivo da poesia moderna se afirmou como uma ação crítica, proporcionando ao sujeito uma experiência de reinvenção do seu lugar no mundo através da linguagem. Efetivamente, o cultivo da poesia assumiu-se como uma experiência e uma ética, de transgressão e resistência contra a lógica industrial e a alienação moral do capital, propiciando ainda uma experiência de transformação espiritual (metanoia) desse mesmo sujeito. Nesse sentido, este artigo propõe abordar a poesia de tonalidade espiritual em Jorge de Lima e Murilo Mendes, examinando o modo pelo qual suas respectivas poiesis foram movidas essencialmente pela crise do sujeito moderno no início do século XX em dissidência com o mundo civilizado, através da tensão permanente entre a negatividade profana e a espiritualidade cristã, experimentadas ao nível do corpo e no plano da poesia.

Palavras chave:Poesia; Crise; Metanoia; Murilo Mendes; Jorge de Lima.

 

Abstract
During the first decade of the twentieth century, while cultural values were transformed into consumer goods by the macroeconomic and industrial materialist, the subject was plunged into a crisis of psychic and spiritual emptying, shaken by the barbarism of wars, by the collapse socioeconomic and by the outbreak of Nazi fascism. In the face of this disturbing reality, the cultivation of modern poetry was affirmed as a critical action, giving the subject an experience of reinventing his place in the world through language. In effect, the cultivation of poetry took as an experience and an ethic of transgression and resistance against industrial logic and the moral alienation of capital, providing an experience of spiritual transformation (metanoia) of this same subject. In this sense, this article proposes to approach the poetry of spiritual tonality in Jorge de Lima and Murilo Mendes, examining the way in which their respective poiesis were moved essentially by the crisis of the modern subject in the early twentieth century in dissidence with the civilized world, through permanent tension between profane negativity and Christian spirituality, experienced at the level of the body and in the plane of poetry

Keywords:Poetry; Crisis, Metanoia; Murilo Mendes; Jorge de Lima.

Introdução: crise e barbárie

Se a poesia moderna revelou ao homem uma verdade, essa verdade se inscreveu sob o signo de uma crise do sujeito. Desde Charles Baudelaire na segunda metade do século XIX, passando pelo surrealismo de Antonin Artaud e Guillaume Apollinaire no século XX, até a poesia beat norte americana de Allen Ginsberg, inapelavelmente, a evidência do mal-estar do sujeito diante da barbárie da era industrial foi uma tônica recorrente na lírica moderna.

Para Hugo Friedrich, a tensão dissonante da poesia moderna exprime-se tanto no nível formal quanto em seu conteúdo, tornando-se indissolúveis no plano de sua significação. Estilisticamente, além de incorporar os aspectos contrastantes, a lírica moderna trouxe à tona o absurdo, a obscuridade e a anormalidade sob um tom de tenacidade e precisão, provocando a surpresa, o choque e o estranhamento:

Pode-se falar de uma dramaticidade agressiva do poetar moderno. Ela domina na relação entre os temas ou motivos que são mais contrapostos do que justapostos, além disso, domina na relação entre esses e um comportamento inquieto de estilo que separa, tanto quanto possível, os sinais do significado. (FRIEDRICH, 1978, p. 17)

Incapaz de encontrar sentido em seu espaço social, o sujeito se viu mergulhado em uma crise que o esvaziava psíquica e espiritualmente, tamanho o sentimento de impotência diante da degradação moral provocada pela euforia desenvolvimentista da era industrial, na medida em que os valores culturais eram transformados em bens de consumo pela lógica industrial. Assim, ao retornar sua consciência sobre si, já nas primeiras décadas do século XX, o estado de crise foi acentuado pelas guerras e suas irreparáveis consequências, sobretudo a neurose em viver sob a iminência da destruição atômica.

Todavia, se na segunda metade do século XIX o poeta sofreu com a asfixia da macroestrutura econômica que o desumanizava, relegando-o à condição de estrangeiro em sua própria sociedade, foi na virada do século que essa tensão se agravou. No século XX, a incidência do materialismo industrial provocou um esvaziamento existencial e espiritual no sujeito moderno, abalando sua ordem íntima com o sagrado ao coisificá-lo sob uma ordem utilitarista e ordinária, subtraindo-o, definitivamente, da perspectiva de uma vida em transcendência.

Eis que o sujeito se viu, nesse momento, deslocado da concepção cosmogônica e transcendente do sagrado, ao perceber a existência organicamente, pela força instintiva do desejo em imanência com o mundo. Pois, quando a totalidade metafísica foi rompida, o indivíduo se redescobriu a partir de uma dupla acepção do ser como sujeito e objeto, na medida em que foi separado da natureza e devolvido à gravidade das coisas finitas. A objetividade da lógica industrial promovia uma corrosão dos sonhos e afetos, esvaziando o sentido da própria existência, sob a gradativa materialidade que sobrepujava a experiência humana, limitando a imaginação e as potências criadoras.

Como escreveu Georges Bataille:

A massa da humanidade concordou com a obra industrial, e a seu lado tudo o que pretende subsistir faz o papel de soberano destronado. É claro que a massa da humanidade tem razão: comparado ao progresso industrial, o resto é insignificante. Essa massa, sem dúvida, se deixou reduzir à ordem das coisas. Mas essa redução generalizada, essa perfeita realização da coisa, é a condição necessária à posição consciente e inteiramente desenvolvida do problema da redução do homem à coisa. É somente em um mundo onde a coisa reduziu tudo, onde o que outrora lhe era oposto revela a miséria das posições equívocas — e de inevitáveis deslizes — que a intimidade pode se afirmar sem outro compromisso além da coisa. (BATAILLE, 2015, P. 69)

Em meio a esse cenário, a poesia moderna se afirmou como um lugar crítico, proporcionando ao sujeito uma experiência vivencial através da linguagem, ao ressignificar seu espaço e reinventar sua perspectiva para além da experiência estética. O cultivo da poesia assumiu-se, efetivamente, como uma experiência ética de resistência e transgressão contra a barbárie da lógica utilitarista e a alienação moral proveniente do capital. No entanto, ao revelar a crise e mal-estar do sujeito diante do mundo civilizado, a lírica moderna proporcionou ao sujeito voltar-se sobre si por meio do outro, dando passagem a um acontecimento pelo qual se inscreveu um saber acerca da dimensão humana.

Nesse sentido, a presente abordagem da poesia de Jorge de Lima e Murilo Mendes visa examinar o modo pelo qual suas respectivas experiências poéticas foram potencializadas por esse estado de crise e inquietude do sujeito no início do século XX, expressando a dissidência com o mundo civilizado através da tensão permanente entre a negatividade profana e a espiritualidade cristã, experimentadas ao nível do corpo e no plano da poesia.

Tensão e queda

Em 1935 Jorge de Lima e Murilo Mendes lançaram o livro Tempo e Eternidade, logo após a conversão dos dois poetas ao cristianismo. Este livro foi determinante para o rumo de suas respectivas poéticas, tornando-se o ponto divisório na obra de cada um, ao consolidar a busca de ambos pelo sagrado e sobrenatural. Além da expressão agônica da crise, havia o imperioso desejo de compreensão desse mal-estar sob a perspectiva espiritual e por meio da experiência poética.

Para Murilo Marcondes Moura, o questionamento e os conflitos do poeta mineiro com relação à fé, à crença e à devoção religiosa antecedem e se manifestam posteriormente à conversão e à produção de Tempo e Eternidade, como se essa inquietude fosse parte do próprio processo de consolidação ética e estética do poeta.

Envolvido nessa perspectiva do eu lírico há, sem dúvida, um questionamento da fé (que já aparecia em momentos esparsos dos livros anteriores do poeta, exceção feita a Tempo e Eternidade), embora ainda dentro do âmbito religioso. Em todo caso, ele tem consequências enormes na produção posterior do poeta. A perspectiva escatológica, que vinha sempre precipitar a história para o seu final, cede lugar a uma religiosidade cuja ‘procura obsedante da esperança’ se dá num contato mais direto com a experiência concreta. [...] Essa crise, por outro lado, era previsível em um poeta cuja a inquietação não podia ser aprisionada nos quadros de um credo muito ortodoxo. (MOURA, 1995, p. 189-190)

Evidentemente, ainda que Murilo ou Jorge assumissem claramente a conversão religiosa - o que implicou, consequentemente, em uma transformação ética, estética e espiritual -, em nenhum momento este fato comprometeu o caráter moderno, crítico e experimental de suas poesias, jamais circunscrevendo-as sob expressão ascética ou proselitista. Como salienta Marcondes, a ousadia e a radicalidade experimental desses poetas demonstram o caráter pioneiro de ambos na utilização das técnicas das fotomontagens, uma vez que, “no Brasil, Murilo Mendes e Jorge de Lima efetuaram pesquisas semelhantes, basicamente em relação à fotomontagem”. (28)

Notoriamente, essa vocação moderna dos poetas revelava- -se ainda mais nítida na medida em que o desejo de transcendência espiritual se amalgamava à visão crítica diante da degradação humana, sobretudo em vista das guerras. Além do mais, suas poéticas traduziam a experiência de confronto e paixão com o Evangelho, ao revelar a tensão entre o desejo de elevação beatífica e a negatividade que se inscreviam ao nível do corpo e dos afetos.

Lutei convosco, fiquei cansado,
fiquei caído. Quando acordei
Tu me ungiste. Tu me elevaste.
Tu eras meu pai e eu não sabia
eu sofri muito. Furei as mãos.
Ceguei. Morri. Tu me salvaste.
Eu sou teu filho e não sabia.
Lutamos muito: eu te feri.
Perdoa Pai, pensai meus olhos:
eu era cego e não sabia.22

Evidentemente, é neste livro (Tempo e Eternidade) que foram deflagradas as marcas de uma nova sintaxe poética, revestida pela crise do sujeito e sob a perspectiva da dissonância - fato inédito na moderna poesia brasileira até aquele momento. Percebeu-se a modernidade de uma nova poesia de tonalidade espiritual que abordava o grotesco e o escatológico como elementos de subversão do belo moral. Pela primeira vez produziu-se uma linguagem que desrealizava o real, reinventando-o, simultaneamente, sob dimensões míticas e oníricas, ao retirar o tempo de seu fluxo contínuo para dar vazão à eternidade, constituindo, desse modo, uma supra realidade.

Na esfera da produção poética de Jorge de Lima e Murilo Mendes, vemos uma poesia que tem seu núcleo fundado na imagem, adotando procedimentos técnicos assimilados das vanguardas e tomados como solução formal que propiciasse tal dimensão mítica e/ou espiritual. A radicalidade estilística de suas linguagens residia na tensão entre eixos temáticos, como por exemplo entre as ruínas da instituição eclesiástica cristã e o anseio de libertação espiritual do homem, entre o tempo e a eternidade, entre o histórico e o utópico, entre a negatividade e a sobrenaturalidade.

Com efeito, abordar a poesia de Jorge de Lima e Murilo Mendes é, sobretudo, aproximar-se da dimensão existencial e espiritual dohomem do século XX, marcada pela evidência de um estado de crise e contradição permanentes. A radicalidade expressional de ambos se demonstrou intrínseca tanto à busca ascensional pelo estado beatífico do sagrado através da poesia, quanto ao desconcerto de um sujeito diante de um mundo que o sobrepujava. Deste modo, o cultivo da experiência poética de ambos buscava compreender e comunicar a crise e a contradição que delineavam o sujeito moderno, tomando a poesia como um meio de (re)fazer-se a si mesmo por meio do outro.

Pêndulo que marcas o compasso
Do desengano e solidão,
Cede o lugar aos tubos do órgão soberano
Que ultrapassa o tempo:
Pulsação da humanidade
Que desde a origem até o fim
Procura entre tédios e lágrimas.
Pela carne miserável,
Entre colares de sangue,
Entre incertezas e abismos;
Entre fadiga e prazer.
A bem-aventurança.3

Assim, reinventava-se a existência ao produzir um saber cultivado na e pela poesia, elevando-a de um lugar estético para um lugar crítico, ético, fundindo-se a ela como um puro devir. Ao ser potencializada pelos afetos e pela alteridade, a poesia tornou-se uma experiência vivencial capaz de transformar a subjetividade a partir das tensões e contradições que se interpenetram na linguagem, no corpo, no tempo e no espaço.

Segundo Fábio de Souza Andrade, embora o livro Tempo e Eternidade tenha sido escrito a quatro mãos, corroborando a motivação primordial de “restaurar a poesia em Cristo”, ou seja, no cristianismo original e ainda imaculado de sua institucionalização, é possível perceber claramente as distintas abordagens e concepções formais empregadas por cada poeta em suas respectivas linguagens.

Nos poemas de Tempo e Eternidade, mais do que a demonstração de dois tipos de simplicidade poética, há o registro de duas aproximações diferentes e complementares a um mesmo tema. Os textos de Jorge de Lima tendem a condensar imagens que falem do poder angustiante da passagem do tempo, confrontando o presente ao absoluto implicado na ideia do Juízo Final, enquanto Murilo Mendes preocupa-se mais com a ideia complementar, a perspectiva mítica da reconciliação do homem com o universo e com o criador. (ANDRADE, p. 42-3)

Sob outro ângulo, para Georges Bataille, em A literatura e o mal, a poesia moderna é marcada por um paradoxo que corresponde à natureza humana mais profunda, ao expressar a essência dualista e dinâmica de nossa condição, configurada pela tensão entre o bem e o mal, como ele exemplificou em vários poetas, com destaque para William Blake e Charles Baudelaire. Segundo Bataille, a significação do Mal se proclama a partir de uma autocondenação da própria condição humana, seja na inclinação para a morte, para a guerra ou para o erotismo, o que poderia forjá-lo para um estado de angústia, de raiva e repugnância. Para ele, o Mal é tomado como um impulso, uma paixão ou uma atração irrefletida, diferentemente de uma intencionalidade calculista, crapulosa e egoísta.

Deste modo, o Mal é deslocado de um lugar moral, sujeito à lei, porém, situado sob a espessura humana e passional, já que, segundo ele, “A literatura mais humana é o alto lugar da paixão”, isto é, como se esse embate apaixonado fosse absolutamente necessário ao homem para reconhecer sua natureza.

O Mal, nessa coincidência de contrários não é mais o princípio oposto de uma maneira irremediável à ordem natural que ele é nos limites da razão. A morte sendo a condição da vida, o Mal, que está ligado em sua essência à morte, é também, de uma maneira ambígua, um fundamento do ser. O ser não está destinado ao Mal, mas deve, se assim pode, não se deixar encerrar nos limites da razão. (BATAILLE, 2015, p. 26)

Sob essa perspectiva, é como se tais manifestações expressassem não somente a condição humana em face da finitude terrena, mas, sobretudo, as tribulações pelas quais o sujeito vivencia em seu processo de reconciliação com Deus desde a queda adâmica. É como se essa tensão entre a negatividade e o desejo de elevação transubstanciassem sua expiação, apenas compreendida na ordem íntima em que se passa a relação de intensidade vivencial com o sagrado.

Ao mesmo tempo, ainda sob a ótica de Bataille, é preciso que o sujeito vá ao encontro dessa paixão que o move - e que é também sua expiação -, aceitando-a como a ‘parte maldita’ que proporcionará retirá-lo do lugar comum, ou seja, desse vazio que o imobiliza e o definha. Segundo ele, “um ser altivo aceita lealmente as piores consequências de seu desafio. Por vezes até precisa ir ao encontro delas. A ‘parte maldita’ é a parte do jogo, da álea, do perigo. É ainda a parte da soberania, mas a soberania se expia”. (Ibidem, p. 27)

No âmbito poético, reitera-se que foi no plano de composição da poesia que Jorge de Lima e Murilo Mendes buscaram uma solução formal que permitisse a cada um expressar essa tensão, revelando o anseio pela reconciliação com a transcendência perdida na modernidade.

Tenho os movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
Posso enxugar com um simples aceno
o choro de todos os irmãos distantes.
Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo,
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.4

Afinal, se por um lado a crise foi desencadeada pelo vazio de um sujeito que perdeu sua ordem íntima com o sagrado, por outro, a poesia surgiu como lugar de uma experiência restauradora. Isto é, não se tratava de uma verdade que se refere ao humano como sua origem, mas sim à verdade da experiência humana como substância, visando libertar o desejo que ainda pulsava em um sujeito fadado à indigência social, de restaurar-se com o sagrado por meio da comunhão com o outro no plano da poesia.

Da crise à metanoia

Após a queda, quando a totalidade com o sagrado se rompeu e o homem se redescobriu separado da natureza e devolvido à imanência das coisas finitas. Em sua angústia e desespero, o sujeito se viu acuado frente à possibilidade de integração ao mundo das coisas por meio do trabalho. No plano da poesia, diante da evidência de uma existência em crise, a lírica moderna expôs a impotência do sujeito em meio às macroestruturas econômicas e sociais que propiciaram seu esvaziamento espiritual e sua degradação.

Com efeito, ao investigar o sentido da crise na poesia de Jorge e Murilo e a dimensão da negatividade, percebe-se que a expressão da irracionalidade das paixões, quando deslocadas para o nível da vida comum, visa libertar o imaginário do racionalismo materialista, lançando-o ao maravilhoso por meio da plasticidade mitológica.

No entanto, a negatividade presente no dualismo de suas concepções teopoéticas não se reporta apenas à tradição pagã. Sobretudo, é possível verificar que o seu significado se origina desde o homem adâmico da tradição cristã, isto é, desde a queda e expulsão do Éden. Todavia, essa negatividade se contrapõe à promessa da vida eterna, de modo que essa tensão se espessura no plano da poesia, sendo parte do processo beatífico de reconciliação com o sagrado.

Ao observar a poesia de Jorge e Murilo sob a perspectiva teológica, deve-se considerar, primordialmente, que o cristianismo se passa na individualidade do sujeito e sua prática cotidiana com o outro. Mais do que um substrato literário, o sentido do Evangelho requer sua experiência vivencial no convívio diário e social com o outro, em detrimento de qualquer institucionalização dogmática e restritiva de seu conteúdo. Assim ratifica o poeta Jorge de Lima:

Sim, creio numa única, imensa, geral e verdadeira revolução: que é a Revolução de Cristo, que apenas começa e em que as outras revoluções sociais sejam elas quais forem, francesa ou russa, serão unicamente minutos dentro dessa eterna revolução, que só terminará no dia do Juízo Final. [...] Trazendo à Humanidade, muitas vezes distante da verdade, atrações momentâneas da vida, a realidade da Dor, a realidade da Morte, que jamais será afastada da realidade de Cristo, que a todo o instante nos espera, no final de todos os momentos. (LIMA, 1997, p. 96)

Como disse o poeta, ao contrário de uma mobilização massiva, a revolução cristã se passa, primordialmente, ao nível da cons-ciência individual do sujeito, como uma transformação (metanoia) pela fé, e ao nível do próprio corpo. Isto é, ela se passa na própria experiência, ao ampliar sua ação da esfera existencial à esfera social e impessoal com o próximo, com o outro, sendo ao mesmo tempo transcendente e imanente.

Mais uma vez, é importante reiterar que, muito embora a religião cristã tenha sido determinante nas poéticas de Jorge e Murilo, suas poesias jamais adotaram uma expressão puramente panfletária, prosélita ou ascética. Ao contrário, ambas as poéticas se valeram essencialmente do caráter transcendente e da tonalidade metafísica e espiritual, sempre colocados sob permanente tensão com a imanência da desordem material da vida cotidiana dos afetos e paixões, vivenciando este acirramento através da experiência poética inscrita ao nível do corpo e da queda.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo que a degradação humana foi trazida à tona pela lírica moderna, cabe ressaltar que a criação de uma nova sintaxe poética operou como resistência a todo o processo de desumanização e barbárie, possibilitando que a experiência poética restaurasse a dimensão humana do sujeito.

Assim sendo, pode-se dizer que tal desordem desafiou a ambos a articularem suas poesias visando o cultivo de uma linguagem que proporcionasse a unidade formal dos contrários. Em Murilo Mendes, a solução formal encontrada pelo poeta mineiro para o problema foi tentar fundir, inexoravelmente, as múltiplas perspectivas fragmentárias no plano de sua poesia, como aponta Davi Arrigucci Jr.:

Para uma poesia assim, o problema que se coloca, desde logo e agudamente, é a questão da integridade da forma: como soldar os elementos díspares no todo aca-bado, que é o corpo de palavras do poema. Desde o princípio, Murilo enfrentou os riscos do informe, maiores sempre para os que se arriscam como ele a buscar a fusão do múltiplo, a concórdia do discorde, querendo juntar o mais disperso e refratário, mas tendo de espiar pela janela do caos: a face de fragmentos, fantástica e terrível, do mundo em que nos tocou viver. Desse ângulo, sua obra toda pode ser vista como a articulação arriscada e difícil entre a linguagem poética que busca a unidade e a experiência de um mundo desencontrado. (ARRIGUCCI JR., 2000, p. 97)

De modo implacável, tanto Jorge de Lima quanto Murilo Mendes voltaram-se para a criação de uma nova sintaxe, cada qual guardando suas particularidades estilísticas. Em face dessa transformação, se há um ponto em comum entre eles é que ambos foram movidos pela inquietude diante do processo da barbárie do mundo civilizado, articulando suas respectivas linguagens sob a tônica da dissonância, impregnados pela radicalidade experimental vanguardista.

Nesse sentido, incorporação das técnicas de colagens e fotomontagens originárias do dadaísmo e da pintura surrealista contribuiu decisivamente para que Jorge de Lima e Murilo Mendes desenvolvessem procedimentos poéticos capazes de expressar a tensão agônica vivenciada pelo sujeito moderno diante da inospitalidade do mundo, e do seu desejo de idealidade e transcendência, elevando-o à unidade e reconciliação com o sagrado.

As harpas da manhã vibram suaves e róseas.
O poeta abre seu arquivo - o mundo -
E vai retirando dele alegria e sofrimento
Para que todas as coisas passando pelo seu coração
Sejam reajustadas na unidade.
É preciso reunir o dia e a noite,
Sentar-se à mesa da terra com o homem divino e o criminoso,
É preciso desdobrar a poesia em planos múltiplos
E casar a branca flauta da ternura aos vermelhos clarins do sangue.
Esperemos na angústia e no tremor o fim dos tempos, quando os homens se fundirem numa única família,
Quando ao se separar de novo a luz das trevas
O Cristo Jesus vier sobre a nuvem,
Arrastando por um cordel a antiga Serpente vencida.5

Percebe-se, portanto, a predominância das imagens articuladas como significantes, além da produção de elementos desintegradores do real por meio da magia da linguagem, como se a lírica moderna deslocasse seu núcleo enunciativo do significado para o significante, sob uma ordem sensorial. Em outras palavras, a lírica moderna desarticulou a poesia da esfera compreensível para a sugestividade, por meio de uma linguagem alógica regida pelos sentidos e visando transformar a poesia em uma supra realidade - de substância fantasiosa, semelhante ao onírico -, em detrimento da reprodução objetiva do mundo e das coisas

Ao expressar os dramas do homem moderno em sua reconciliação com Deus, os poetas visavam alinhar a ordem de intimidade com o sagrado à ‘ordem das coisas’ cotidianas. Sob esse prisma, a modernidade da lírica de Jorge e Murilo foi capaz de fundir a imanência pagã à transcendência cristã, elevando a visão culturalista - predominante no modernismo - a uma perspectiva sobrenatural e supra real, adotando procedimentos formais absolutamente inovadores em suas respetivas linguagens.

  Não procureis qualquer nexo naquilo
que os poetas pronunciam acordados
pois eles vivem no âmbito intranquilo
em que se agitam seres ignorados.
No meio de desertos habitados
só eles é que entendem o sigilo
dos que no mundo vivem sem asilo
parecendo com eles renegados.
Eles possuem, porém, milhões de antenas
distribuídas por todos os seus poros
aonde aportam do mundo suas penas.
São os que gritam quando tudo cala,
são os que vibram de si estranhos coros
para a fala de Deus que é sua fala.6

Para o pensador e teólogo cristão Sören Kierkegaard, é justamente um estado de inquietação existencial e espiritual que distingue e move o ser. Para ele, somos motivados de tal modo por um intenso acirramento entre três esferas que se confrontam permanentemente e ao longo de nossa existência, como se fôssemos o devir de uma conflituosa dinâmica entre a esfera estética, a ética e a espiritual.

Segundo ele, seja a melancolia ou a angústia, a depressão ou o desespero que histórica e atavicamente atormentam o ser humano, todas esses males são apenas fluxos de um processo existencial do sujeito em sua relação com o mundo, de modo que este mal-estar deve ser visto como um processo de edificação da sua consciência ética, que só alcançará a libertação por meio da fé e da elevação espiritual.

Todo conhecimento cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, é inquietação e deve sê-lo; mas essa mesma inquietação edifica. A inquietação é o verdadeiro comportamento para com a vida, para com a nossa realidade pessoal e, consequentemente, ela representa, para o cristão, a seriedade por excelência; a elevação das ciências imparciais, muito longe de representar uma seriedade superior ainda, não é, para ele, senão farsa e vaidade. Mas sério é, eu vo-lo afirmo, aquilo que edifica. (KIERKEGAARD, 1979, p. 189)

Kierkegaard afirma que a origem do pecado se deve à perda de uma consciência espiritual, e da perda da relação original do homem com Deus, o que ocasionou o seu afastamento de Deus. Assim, visto sob a perspectiva adâmica, no momento em que o homem se defronta consigo, ele se depara com o seu vazio, e isso o angustia. Após errar em sua escolha e perder sua liberdade, ele carrega para sempre consigo essa angústia da ‘possibilidade da falha’ diante das escolhas que determinarão sua existência, afora o peso por ter perdido a glória e a dimensão da eternidade, vivendo-as apenas como uma abstração, sob a égide do tempo secular.

Embora o pecado original e hereditário tenha sido condicionado ao sujeito a partir de uma conjectura moral e secular, segundo Kierkegaard, ele deveria ser visto sob a dimensão existencial e espiritual, quando, no momento em que escolheu a si mesmo, o homem perdeu sua ligação com o sagrado e, consequentemente, a dimensão do infinito e da eternidade, quedando no abismo de sua condição terrena e finita, angustiando-se com o medo da morte.

No plano da poesia, acima da perspectiva da queda e da finitude, do autoflagelo, da autocomiseração ou de uma predestinação adâmica, a lírica de Jorge e Murilo convergem ao considerar que o sentido da existência humana seja, rigorosamente, reconciliar-se espiritualmente com Deus.

Minha história se desdobrará em poemas:
Assim outros homens compreenderão
Que sou apenas um elo da universal corrente
Começada em Adão e a terminar no último homem.7

Na obra O desespero Humano, Kierkegaard define o sujeito a partir de uma tensão agônica ou acirramento que produz, dialeticamente o desespero e a liberdade. Segundo ele, se por um lado o sujeito é a síntese entre finito e infinito, entre a possibilidade e a necessidade, desesperamo-nos ou por não querermos ser quem somos, ou por querermos desesperadamente descobrir quem somos, o que nos impossibilita de atingir repouso e equilíbrio. Logo, nos desesperamos pelo que nos tornamos e pelo eu que não deveio.

O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e se eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de vista, o eu não existe ainda. (KIERKEGAARD, 1979, p. 195)

Kierkegaard acredita que a crise é parte da natureza e da condição humana, conforme a herança adâmica após a queda do paraíso. Em face disso, para que o homem não se desespere é preciso aniquilar em si a cada instante essa possibilidade virtual e frequente da queda, evitando que essa sombra recaia sobre a realidade psíquica e física do sujeito.

Deste modo, não desesperar é evitar a queda ou, ainda, elevar-se, tomando consciência de nossa natureza agônica da qual deriva nossa essência. Pois, se fôssemos uma síntese e não uma contradição, não haveria razão para nos desesperarmos, ao passo que só nos desesperamos na medida em que relegamos nossa perspectiva temporal ao agora, sem projetarmos a existência sob a perspectiva da eternidade.

Conclusão: a poética do sagrado

Portanto, Kierkegaard afirma que, após o pecado original, o homem está condicionado à sua natureza animal, determinada pela queda do paraíso, e assim ele luta intensamente para reconciliar- -se com Deus. Para que isso aconteça, é necessário elevar-se espiritualmente e renunciar ao instinto, sendo que, dessa luta, resulta

o seu desespero. Para ele, o homem não tenta livrar-se da carne, mas deseja ser tocado espiritualmente pelo sagrado. Deste modo, ao ser tocado pelo eterno e imortal de Deus, o espírito prevalecerá sobre o instinto naturalmente devorador e vazio. Pois na medida em que o desejo é suprido, revela-se a ausência de sentido que o preencha, além do próprio desejar e devorar.

Evidentemente que, para ele, isto implica em um paradoxo, já que a consciência espiritual é movida pelo desejo de uma existência com Deus, sendo que o desejo de uma existência junto a Deus depende de uma consciência transformada que só pode ser alcançada por meio de um “salto qualitativo” (ético espiritual) em direção ao abismo e ao vazio, pela fé. Não obstante, esse salto exige a convicção e a consciência em desejar ser transformado pelo poder sobrenatural de Deus, de modo que aquele vazio angustiante acentuado por um desejo e desespero, só pode ser preenchido pela unidade com o sagrado.

Portanto, reitera-se que a poesia de tonalidade espiritual cristã de Jorge e Murilo forjou-se a partir desse prisma dramático e paradoxal entre a negatividade demoníaca e a transcendência divina. E, sob essa perspectiva, se a queda adâmica pode ser vista sob o signo de um mal-estar e esvaziamento, por outro lado, esse mal inoculado em nossa condição humana pode, ao mesmo tempo, servir como uma força propulsora ao sujeito, movendo-o da crise à metanoia. Todavia, trata-se da fé como uma decisão espiritual consciente, que cultiva sua transformação ética ao nível das práticas comuns e cotidianas com o outro, e não como um mero fideísmo.

O mundo atual, como sempre, é um grande campo de batalha, onde se digladiam constantemente as forças do Mal e do Bem. Muitas vezes pensamos, devido a circunstâncias fortuitas e à curta visão do homem, pensamos que o Mal está ganhando terreno, como atualmente é a impressão que nos dá a imensa tragédia universal dos tempos presentes. Mas não! O Bem está à frente, o Bem conquista, mesmo sem nós percebermos, terreno para o Reino de Deus, dia a dia, hora à hora, minuto a minuto. (LIMA, 1997, p. 96)

Ainda em face dessa perspectiva, pode-se dizer que, além de serem movidas pela crise e mal-estar do sujeito, as poéticas de Jorge e Murilo expressam a visão cristã que compreende a vida terrena como um dilaceramento entre as forças do bem e do mal, ao nível do corpo e da consciência. Guardadas as respectivas singularidades, ambas as poéticas assinalam, sob a ótica teológica e beatífica, que a compreensão dessa luta e acirramento corresponde à nossa própria transformação espiritual, isto é, à nossa metanoia, na medida em que vivemos para superar a consciência secular, purificando-nos através da crise8 e das tribulações.

Contudo, as poíesis de Jorge e Murilo são expressamente movidas por esse desejo metanoico do sujeito em ser livre, transcendendo tanto a negatividade que devora quanto a ansiedade que esvazia, por meio da crença no eterno que o liberta do tempo, por meio do cultivo de uma experiência mais íntima e substancial com Deus, que nos infinita pelo amor ao outro como a um irmão e semelhante, através da poesia.

Porque o sangue de Cristo
jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas,
que eu decomponho e absorvo com os sentidos,
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.99

Referências:

ANDRADE, Fábio de Souza. O engenheiro noturno. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.

ARRIGUCCI JR., Davi. O cacto e as ruínas: a poesia entre outras artes. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2000.

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

BATAILLE, Georges. Teoria da religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

BOFF, Leonardo. https://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Para-entender-ofenomeno-da-crise/34029.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

KIERKEGAARD, Sören Aabye. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

KIERKEGAARD, Sören Aabye. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2013.

LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa - volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

MOURA, Murilo Marcondes. Murilo Mendes: a poesia como totalidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Giordano, 1995.

Notas

[1]Texto apresentado na Alalite 2018

[2]LIMA. Poesia completa, p. 391.

[3]MENDES. Poesia completa e prosa, p. 557.

[4]LIMA. Poesia completa, p. 425

[5]MENDES. Poesia completa e prosa, p. 401.

[6]LIMA. Poesia completa, p. 575

[7]MENDES. Poesia completa e prosa, p. 255.

[8]Segundo Leonardo Boff, “Em sânscrito, crise vem de kir ou kri que significa purificar e limpar. De kri vem crisol, elemento com o qual limpamos ouro das gangas e acrisolar que quer dizer depurar e decantar. Então, a crise representa um processo crítico, de depuração do cerne: só o verdadeiro e substancial fica, o acidental e agregado desaparece.” https://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Para-entender-o-fenomeno-da-crise/34029.

[9]LIMA. Poesia completa, p. 425