O elemento religioso no
Surfista Prateado
The religious element in Silver Surfer
Romero Bittencourt e Carvalho*
*Mestrando em Ciências
da Religião pela PUC-MG.
Graduado em Comunicação
Social pelo UNI-BH - Centro
Universitário de Belo
Horizonte, com PósGraduação em Jornalismo
Cultural pela mesma
instituição. Contato:
srikrsnamurti@gmail.com
Voltar ao Sumário
Resumo
Muitas histórias em quadrinhos estadunidenses são ricas em elementos religiosos,
e a maior editora deste segmento, Marvel
Comics, possui diversos personagens que
flertam ou mesmo imergem neste campo.
Destes, destaca-se o Surfista Prateado, personagem da dupla Stan Lee e Jack Kirby, que,
desde 1966, discorre sobre a crueldade humana e sua incapacidade de viver em paz e
harmonia. Neste artigo, apresento um resumo
da trajetória deste icônico personagem nos
quadrinhos, sobretudo de sua série original,
de Stan Lee e John Buscema, suas indagações filosóficas e elementos religiosos, sobretudo do cristianismo e hinduísmo, presentes
nas páginas.
Palavras chave:Histórias em Quadrinhos. Stan Lee. Surfista Prateado. Cristianismo. Hinduísmo.
Abstract
Many American comic books are rich in
religious elements, and the biggest publisher
in this segment, Marvel Comics, has many
characters that flirt or even immerse themselves in this field. Among these, the Silver Surfer
stands out, character created by Stan Lee
and Jack Kirby, that, since 1966, talks about human cruelty and its inability to live in peace and harmony. In this article, I present a summary of the trajectory of this iconic character in the comics, especially
his original series, by Stan Lee and John Buscema, his philosophical inquiries
and religious elements, mainly Christianity and Hinduism.
Keywords:Comic Books. Stan Lee. Silver Surfer. Christianity. Hinduism.
O elemento religioso no Surfista Prateado
Análise sobre a trajetória do personagem nos quadrinhos e sua relação com a religião
Nas histórias em quadrinhos de super-heróis estadunidenses, o Surfista Prateado, personagem criado pela principal dupla criativa da editora Marvel Comics, Stan Lee e Jack Kirby, possui um destaque especial por ser o preferido de Lee entre suas muitas invenções. Se com os mutantes nos “X-Men” o roteirista explorou questões envolvendo segregação racial e conseguiu ainda se expressar em outros títulos sobre a Guerra Fria, o bullying e problemas domésticos nos anos 1960, foi com o Surfista Prateado que Stan Lee discorreu sobre suas concepções filosóficas e defendeu seus ideais para a humanidade. Como afirmou:
O Surfista Prateado talvez seja o mais próximo do super-herói definitivo, quintessencial. A virtude de seu caráter, a pureza de sua alma e a nobreza de suas ações, combinados ao altruísmo de suas motivações, são virtualmente sem paralelo – a menos que retornemos à raiz de toda bondade, pois é possível que somente na Bíblia tal moralidade exista. [...] Eu acredito mesmo, profundamente, na filosofia e nas afirmações do nosso cruzado brilhante. Talvez porque ele seja o que mais se aproxima de articular minhas próprias crenças e convicções. Acima de tudo, talvez seja porque, com cada palavra que escrevo, quero sentir que algo da bondade inata desse carismático personagem surtirá efeito num leitor em algum lugar – e talvez o poder de sua própria moralidade profundamente arraigada e preocupada com o próximo ajude, de um modo sutil, a tornar nosso atribulado mundo um pouco melhor graças às suas histórias. (LEE, 2008, p. 06).
Tal declaração de Lee, publicada no seu prefácio a uma coletânea da série original do personagem, evidencia o sentimento do roteirista em fornecer à sua criação uma posição de arquétipo da bondade, que marca suas primeiras histórias solo. Contudo, o Surfista Prateado surgiu pela primeira vez como um coadjuvante nas páginas de Fantastic Four n° 48, publicada em março de 1966, que trazia o primeiro capítulo da saga que ficou posteriormente conhecida como “Trilogia Galactus”. Stan Lee queria que o próximo antagonista de sua primeira criação na Marvel Comics, o Quarteto Fantástico, fosse praticamente um deus, uma força cósmica que sobrevivia no universo se alimentando da “energia vital” de planetas inteiros. Este ser poderoso, chamado de Galactus, veria os seres humanos como estes veem as formigas. O desenhista Jack Kirby apresentou os primeiros esboços da história e deixou seu parceiro intrigado com uma figura careca que surfava pelos céus numa prancha prateada como ele. Kirby explicou que uma figura de proporções divinas como Galactus precisava de um batedor, um mensageiro, um arauto. Lee declarou muitos anos depois que aquela figura prateada sem cabelos exalava para ele uma aura de bondade. (GUEDES, 2004, p. 86-87). Em suas próprias palavras:
Eu notei certa nobreza de conduta e uma qualidade quase espiritual em seu aspecto visual. Quando chegou o momento de estabelecer o seu padrão de discurso, comecei a imaginar de que forma um apóstolo das estrelas se expressaria. Parecia haver uma aura biblicamente pura no nosso Surfista Prateado, algo totalmente altruísta e magnificamente inocente. Como você pode perceber, eu estava tentado a imbuí-lo de um espírito de pureza quase religioso. Em suma, quanto mais o estudava, quanto mais me envolvia com seus pensamentos e diálogos, mais eu o via como uma representação gráfica de todas as melhores qualidades de uma forma de vida sapiente. Era um conceito exagerado, admito, mas esse é o tipo de coisa que torna tão emocionante o mundo dos quadrinhos. (LEE, 2003, p. 3).
Nesta primeira história com o Quarteto Fantástico, vemos, numa clara referência ao livro do Apocalipse, o céu ficar coberto por fogo e depois por pedras. Os membros do Quarteto Fantástico, impotentes diante da situação, são avisados pela entidade conhecida nos quadrinhos da Marvel como Vigia1 de que aquela era apenas uma tentativa dele de esconder o planeta do Surfista Prateado. Porém, o arauto chega à Terra, envia o seu sinal ao seu mestre e é acertado pelo Coisa, o forte e pedregoso membro do Quarteto. Em pouco tempo, Galactus desembarca e simplesmente anuncia que o planeta o servirá em sua busca por sustento. O Vigia tenta argumentar que a Terra possui vida inteligente em abundância e que o genocídio seria um desastre. Galactus deixa claro que vidas pouco importam para ele, que não faz o que faz por maldade ou qualquer questão pessoal ou emotiva. Ele simplesmente é assim: um devorador de mundos, que necessita disso para sobreviver.
Enquanto isso, o Surfista Prateado se recuperava coincidentemente na casa de Alícia Masters, a escultora cega que namorava o Coisa. Em sua conversa com a artista, o Surfista é tocado pelas palavras dela de que a humanidade possuía coração e alma, é capaz de respirar, sentir e amar. Naquele momento, ele redescobre o amor e o sentido pelo qual voava pelo seu mestre, decidindo implorar para que Galactus poupasse a Terra. Diante da recusa do seu criador, ele resolve enfrenta-lo, pois não podia permitir que o planeta onde ele recobrou sua consciência fosse aniquilado. Durante a batalha, Galactus ainda argumenta: “você fala de mim como se eu fosse um monstro, mas esquece de que os humanos não hesitam em destruir os animais para usar como sustento” (LEE, 1995, p. 36), numa questão ética recorrente, por exemplo, na literatura védica2 da Índia. O vegetarianismo é bastante enfatizado no antigo Manu-saṁhitā (5.48-49), que diz: “A carne jamais poderá ser conseguida sem que se cause lesão a criaturas vivas, e lesar os seres sencientes é prejudicial ao alcance da bem-aventurança celestial. Tendo muito bem considerado a origem desagradável da carne, a crueldade da prisão e matança de animais, que haja abstenção completa do consumo de carne”. O livro reitera isso em outros versos: “Aquele que fere animais inofensivos com o desejo de conferir prazer a si mesmo jamais encontra felicidade nesta vida ou na próxima” (Manu-saṁhitā 5.45).
O Manu-saṁhitā também menciona benefícios obteníveis pela simples conduta de não comer desnecessariamente os corpos de outras criaturas: “Aquele que não busca causar os sofrimentos da prisão e da morte de outras criaturas viventes, mas deseja, em vez disso, o bem de todos, obtém interminável bem-aventurança. Aquele que não faz mal a nenhuma criatura, obtém sem esforço aquilo em que ele pensa, aquilo com o que se compromete e aquilo em que fixa sua mente”. (Manusaṁhitā 5.46-47). E, ainda mais enfático, diz (6.60): “Por não matar nenhum ser vivo, a pessoa se torna apta para a salvação”. Na tradição cristã, seu livro sagrado, a Bíblia, também apresenta essa questão já no livro de Gênesis (1:29): “Eu vos dou toda a erva que produz a sua semente sobre toda a superfície da terra e toda árvore cujo fruto produz a sua semente; tal será o vosso alimento”. E mais: “Todavia, não comereis a carne com vida, isto é, o seu sangue. E da mesma forma, do vosso sangue, que é a vossa própria vida, pedirei contas a todo animal e pedirei contas ao homem: a cada um pedirei contas pela vida do seu irmão”. (Gênesis 9:4-5). Galactus, assim, argumenta que a sua atividade não era diferente da ação humana de se alimentar de “seres inferiores”, mesmo estes sendo sencientes.
Eventualmente, Galactus é derrotado quando o Quarteto Fantástico, com a ajuda do Vigia, apresenta-lhe uma arma que nem ele é capaz de combater. O Surfista Prateado fica confinado à Terra por uma barreira imposta por seu criador como uma punição pela sua rebeldia. Despedindo-se do planeta, Galactus, como um deus que desiste do Juízo Final, diz: “por fim, eu percebo um tênue brilho de glória em sua raça e me vejo obrigado a lhes dizer: considerem seus ideais e façam jus ao enorme potencial em suas almas, pois essa força será capaz de levá-los às estrelas ou afundá-los sob as ruínas da guerra!” (LEE, 1995, p. 41).
Dois anos depois dessa primeira aparição, o Surfista Prateado ganhou sua primeira série solo, publicada entre 1968 e 1969, em 18 edições que entraram para a história. Com arte de John Buscema e roteiros de Stan Lee, a publicação foi aclamada pela crítica especializada da época como a melhor de seu tempo, sendo escolhida pelos fãs para ganhar o prêmio Alley3 . O personagem foi eleito o mais popular dos EUA em 1968, mas o conteúdo substancialmente mais adulto de suas histórias e um custo mais elevado das publicações4 acabou por cancelar o título. Mas nos 18 meses da publicação, Stan Lee pôde trabalhar a partir de uma perspectiva instigante: um alienígena altruísta e sem qualquer desejo conquistador, vindo de um planeta extremamente avançado, tanto do ponto de vista tecnológico quanto humanista, tendo a oportunidade de passear livremente pela Terra e analisar quão atrasados e violentos são os seres humanos. Um sábio discorrendo sobre os erros infantis da civilização terrestre.
Na primeira edição, somos apresentados ao angustiado Norrin Rad e seu planeta natal Zenn-La, nome que faz alusão ao Zen Budismo japonês. Zenn-La há cem séculos abandonara as armas e as guerras e adentrara a “era de ouro da razão”, obtendo sabedoria e paz. Rad, mesmo casado com a bela Shalla Bal e vivendo neste local tecnologicamente avançado, questionava-se sobre o objetivo real da vida, já que os prazeres que seu mundo proporcionava seriam “infinitos e vazios”. Computadores governavam tudo perfeitamente, conhecimento era adquirido em segundos por “hipnocubos letivos” e qualquer desejo era criado instantaneamente por “cibermaterializadores”. Porém, a chegada de Galactus muda o rumo de sua vida, dando-lhe um ideal pelo qual viver (ou morrer).
Quando os computadores diagnosticaram que não havia mais o que fazer para evitar a devastação, os membros do conselho científico declararam que não restava nenhuma esperança. “Só para aqueles que abandonaram a fé”, rebateu Norrin Rad, partindo em direção à nave de Galactus. Lá, ele se oferece ao Devorador de Mundos para ser seu arauto e, assim, vasculhar o cosmos em busca de planetas sem vida inteligente para saciar a sua fome eterna. Para salvar seu mundo, ele renasce nas mãos de um novo criador, dotado agora de um “poder cósmico” incomensurável, uma fagulha do poder de Galactus, que diz: “Meu arauto, prepara-se para renascer! A um comando de Galactus, você tombou. E agora, novamente pelo meu comando, eu lhe ordeno que se reerga!” (LEE, 2008, p. 40-41). Por muito tempo, Norrin Rad, renascido – não da “água e do espírito”, como diz Jesus para Nicodemos (João 3:5), mas pelo poder cósmico emanado de Galactus – como o Surfista Prateado, vasculhou os confins do Universo em busca de mundos desabitados para seu senhor, mas este trabalho constante lhe conferiu um encobrimento de sua consciência e o verdadeiro sentido de sua existência5 , o que fez com que ele não hesitasse em chamar Galactus para a Terra. Como vimos, o Surfista só recobrou a sua consciência quando se lembrou do amor ao conversar com Alícia Masters.
Confinado a Terra, nosso personagem não tinha nem a imensidão do espaço como companhia nem os seres humanos, que lhe viam, por ele ser diferente e poderoso, sempre com medo, repulsa e ódio. Em sua angústia e lamentação constante, ele se questiona se o homem só conseguiria encontrar a paz na desolação. O nosso planeta é, em sua visão, um local abençoado pela natureza, e a raça humana é “divinamente favorecida”, mais que qualquer outra. Porém, o ser humano é entregue à loucura da ganância e da cobiça, que rejeita tudo o que não compreende com violência. Ele diz:
Entre os incontáveis mundos que conheci, entre as miríades de planetas cuja superfície pisei, jamais conheci uma raça tão infestada de medo, tão tomada pela desconfiança, com tantas sementes de violência em seu coração. E eles se denominam humanidade. Em toda a natureza, os animais se abatem, mas apenas por alimento, para poderem sobreviver. Só o homem mata o seu semelhante em nome de inúmeras causas. Apenas o homem é instigado pela emoção e direcionado pelo orgulho selvagem. (LEE, 2008, p. 52-53).
Mesmo com poder suficiente para acabar com flagelos do planeta, como ele mesmo elenca, “a fome e miséria, o câncer do crime e o brutal açoite da tirania”, a repulsa violenta dos humanos a qualquer tentativa de ajuda dele o faz hesitar, o que não o impediu, porém, de, por diversas vezes, salvar o planeta de aniquilações que nem sequer foram notadas pelas pessoas. Curiosamente, sempre há mal entendidos nas histórias, como no caso da “Invasão dos Monstros Invisíveis”, publicada já na segunda edição de sua série original, quando a população não podia ver os alienígenas invasores e, assim, não compreendiam a atitude do Surfista Prateado, que seguia como um inimigo do planeta, sentimento que percorreu toda a série, com honrosas exceções entre os humanos. “Será que minha sina é sempre protegê-los apesar do seu ódio? Será que vocês são incapazes de enxergar qualquer coisa além do ódio” (LEE, 2008, p. 90), questiona o personagem, que diz ainda na mesma história: “Novamente os humanos substituem o entendimento pela força. Uma vez mais, tentam destruir o que não são capazes de compreender. Do berço à sepultura, suas vidas estão enraizadas na violência insensata. Se o poder é seu deus, eu vou lhes mostrar poder como vocês jamais conheceram” (LEE, 2008, p. 91). Esta história, publicada originalmente em Silver Surfer n° 3, é importante, pois marca o início da inimizade entre o Surfista Prateado e o senhor das trevas dos quadrinhos da Marvel, chamado Mefisto6
Irado, o Surfista chega a pedir forças para perdoar aqueles que o agridem, mas promete castigar a humanidade para lhe transmitir amadurecimento e razão. Quando começa a descarregar seu poder cósmico na Terra, o que causa blecaute e paralização das máquinas, Mefisto sente uma perturbação em sua dimensão infernal e decide agir, já que a Terra é para ele um solo fértil para o cultivo do mal. “Afinal, enquanto ela permanecer hostil e tão consumida pela ambição e pelo ódio, como tem sido até hoje, a mim pertencerá o triunfo final, quando chegar o inevitável dia do Armagedom” (LEE, 2008, p. 96). Ao contemplar que o causador do caos era o Surfista, Mefisto se sente bastante ameaçado pela sua “avassaladora aura de bondade”, comparando-a com a de santos e mártires (mas possuidor do poder cósmico). Ele conclui que em breve a fúria pedagógica do Surfista passaria e sua misericórdia prevaleceria, o que era muito perigoso para seus intentos malignos, já que se tratava de um ser dotado de muito poder e nobreza. Assim, Mefisto decide levar Shalla Bal para o encontro de seu antagonista, prometendo reuni-los outra vez e, usando-a como isca, consegue arrastar o Surfista Prateado até as profundezas do seu inferno.
Mefisto decide, e esta seria uma obsessão em todas as suas demais aparições nas histórias do Surfista, que muito mais inteligente do que matar Norrin Rad era se apossar de sua alma e tê-lo como escravo para toda a eternidade. Buscando seduzir o Surfista, assim como com Jesus no deserto, Mefisto lhe oferece riquezas incomensuráveis, mulheres mais lindas do que a concepção humana poderia chegar e, por fim, poder imperial. Tudo é rejeitado com extrema facilidade pelo Surfista, que permanece impassível desejando salvar sua amada. O amor dos dois torna-se a última cartada de Mefisto, que acaba decidindo enviar Shalla Bal de volta a Zenn-La para torturar o Surfista, o que era, na verdade, o objetivo do próprio herói para libertar sua antiga esposa.
Mefisto é o antagonista mais recorrente do Surfista Prateado, sempre desejando a sua alma pura e nobre. Em Silver Surfer n° 7 e 8, o senhor das trevas – que até zomba de um satanista que tentava evocá-lo – resgata o fantasma do Holandês Voador para tentar obter a alma do Surfista. No embate, o herói declara: “se a morte for o meu destino, que seja! Toda a vida é efêmera! Mas uma alma é mais que uma simples vida! A alma é eterna! [...] O homem é de carne e osso. Ele vive e morre! Apenas sua alma perdura!” (LEE, 2018, p. 89). Este conceito aparece claramente no mais famoso livro da literatura védica, a Bhagavad-gītā7 , que afirma (2.16): “Aqueles que são videntes da verdade concluíram que não há continuidade para o inexistente [o corpo material] e que não há interrupção para o existente [a alma]”. O mesmo livro reitera que “ninguém é capaz de destruir a alma imperecível” (2.17), “para a alma, em tempo algum existe nascimento ou morte. Ela não passou a existir, não passa a existir e nem passará a existir. Ela é não nascida, eterna, sempre-existente e primordial. Ela não morre quando o corpo morre” (2.20). Ao final do violento embate, o Surfista, vencedor, perdoa o Holandês Voador, colocando fim à maldição dele, e diz: “Mefisto pode tirar a minha vida apenas uma vez! Ainda assim, minha alma será minha para todo o sempre”. (LEE, 2018, p. 93).
Em diversas histórias dessa série original do personagem, Stan Lee discorre sobre racismo, intolerância, egoísmo, incompreensão, preconceito e ódio. O Surfista Prateado chega a encarar como propensões humanas a tendência a enganar e dominar o outro8 . Por vezes, aproxima-se da filosofia Vedānta Advaita9 , do filósofo hindu Śaṅkara, como quando questiona: “seria o próprio cosmo uma centelha da imaginação acesa por um pensamento aleatório e capaz de ser extinta pela vontade? Será que a realidade não passa de um sonho? E se for, quem será o sonhador?” (LEE, 2008, p. 248). Em outros momentos, parece se irritar com a prisão da dualidade: “vocês são todos assassinos, mas não tomarei parte em sua insanidade. Só enxergam o bem e o mal, o certo e o errado. Nunca enxergam a misericórdia? Estão cegos para o perdão10?” (LEE, 2018, p. 128). Curiosamente, nesta história o Surfista Prateado se vê em meio a um conflito na América do Sul, com um grupo popular tentando derrubar uma sangrenta e autoritária ditadura. Mesmo tendo sido acolhido pelos rebeldes, ele se espanta ao ver que eles desejavam um massacre dos militares e se afasta do conflito dizendo que andar entre os humanos era como observar crianças brincando. Em outra ocasião, ele se pergunta:
Não importa para qual divindade apelem nem qual bandeira sigam, em todos os países e regiões seu objetivo é o poder terrestre11. Poder que um dia sucumbirá entre as ruínas decadentes e nuvens de poeira! Quando, se é que ocorrerá, eles aprenderão a viver em paz como irmãos? Quando aprenderão que o amor é o poder supremo? (LEE, 2018, p. 222)
Paradoxalmente, a possível fraqueza encontrada por Mefisto no herói, o seu amor inabalável por Shalla Bal, sempre se converte em sua força maior, já que por ela vale todo o sofrimento de viver exilado em um mundo hostil e resistir a todo o custo às investidas de Mefisto e da própria mente atormentada pela convivência com os humanos.
O personagem rendeu ainda antológicas Graphic Novels12, como a escrita por Stan Lee e ilustrada pelo francês Moebius, intitulada “Parábola” e publicada no Brasil em maio de 1989. Na história, em um futuro não identificado, Galactus retorna a Terra anunciando a chegada de uma “nova era” e gerando, assim, um novo culto em torno dele, um temido objeto de adoração. Assim, o líder religioso Colton Candell, celebridade televisiva, decide ser um evangelizador da nova religião de Galactus, colocando-se como o profeta escolhido para cantar sua glória. Galactus anuncia: “vim para libertá-los das inúteis leis dos homens! Se quiserem ser salvos, façam o que desejarem! Nada é errado! Nada é pecado! O prazer é tudo”. (LEE, 1989, p. 19). O Surfista Prateado se encontrava preso à Terra, mas completamente alheio aos destinos do planeta, desencantado com as escolhas humanas. Ao conversar, porém, com Elyna, irmã de Colton, o “falso profeta”, ele sentencia e a questiona por ter aceitado cegamente a fé: “seu irmão é guiado pela cobiça. Em nome dessa religião, ele corromperá a humanidade. [...] Fé sem julgamento apenas degrada o espírito”13. (LEE, 1989, p. 22). Assim como aconteceu em sua primeira visita à Terra, o Surfista é tocado pela ternura de Elyna e garante que a pureza que ela via nele não era por conta dele ser alienígena, já que a “pureza reside na alma, não em nossos berços”.
Ao se encontrar com Galactus, o Surfista questiona porque ele quebrou sua promessa, já que a palavra dele jamais é mentirosa. Afinal, o devorador de mundos havia jurado nunca mais voltar para destruir a Terra. A entidade cósmica responde que ele não veio destruir a Terra, mas permitir que os humanos se destruíssem em seu nome. Em uma clara referência à crucificação de Jesus, inclusive no desenho, quando o Surfista é retratado de braços abertos como um crucifixo, ele diz: “mas como protegê-los da sua própria insanidade? Esse fanatismo louco nunca terá fim? Por que abraçam a violência em nome daqueles que veneram? Terão se esquecido que o maior poder é o amor? Acham que sou indefeso porque não revido. Mas eu não ouso liberar meu poder cósmico contra eles. Os homens não são maus. Apenas não sabem o que fazem”14. (LEE, 1989, p. 29).
As tentativas do Surfista de chamar a atenção da população para a verdade por trás de Galactus só resultam em mais ódio do povo contra ele. O reverendo Colton, convicto de que “poder é tudo” e em meditação para se tornar uno com Galactus, rejeita os apelos de sua irmã, e seus seguidores decretam “morte aos hereges”. No diálogo seguinte entre o Galactus e seu ex-arauto, o devorador diz: “Deus não é poder? Deus não é força? Eu nunca vi uma divindade. Quem pode me garantir que eu não seja um deus?” O Surfista responde: “uma verdadeira divindade é amor, graça e conhecimento supremo. Ainda assim, com todo o seu poder, você desconhece o sentido da vida”. (LEE, 1989, p. 41). A sequência é o auge do caos, com a morte de Elyna tentando deter Galactus, seu irmão arrependido de ter idolatrado o falso deus e seus seguidores espalhando o ódio e a violência. As pessoas se dão conta de que a vingança e o assassinato não fazem parte de uma religião verdadeira e deixam de adorar Galactus, que se vê derrotado. Seu plano de “libertar” os humanos de sua “repressão moral e suas inibições”, que geraria a autodestruição, falhara.
Em seu discurso final na ONU, o Surfista, agora reconhecido como aliado e salvador, não aceita o papel de messias, dizendo que nenhum homem poderia ser colocado acima dos demais e que a chama divina está em todos1515. Sua humildade é reconhecida pela assembleia, que pede para que ele seja um mestre. Na sequencia, ao ouvir seus primeiros pedidos, os homens o rejeitam de novo, com exceção de Colton Candell, que tenta chamar atenção de todos para a esperança que reside no ser prateado. Diante do fracasso em fazer o Surfista Prateado ficar, o reverendo diz: “Por que fez isso? Você poderia ter tido isso tudo. Poderia ser um deus! Um Deus! Você abandonou tudo isso por nós e a grande ironia é que nós não merecemos”. (LEE, 1989, p. 56).
O personagem consegue finalmente sair da Terra em sua série recomeçada em 1987 16, em história publicada no Brasil apenas em 1991, em Grandes Heróis Marvel n° 33. Aproveitando do fim do exílio, Stan Lee e John Buscema voltam a trabalhar com o ex- -arauto de Galactus na Graphic Novel chamada de “Juízo Final”, quando Mefisto mais uma vez busca se apossar da alma do herói cósmico. Prendendo o Surfista em seus domínios, ele corrompe a mente de Nova, a arauto de Galactus naquele momento, fazendo- -a chamar o devorador para mundos pulsantes de vida inteligente. Se o Surfista se entregasse, Mefisto retiraria o encanto dela. Tendo jurado na história que jamais causaria mal a outro ser, que agiria sempre nos ditames de sua consciência, ainda que isso lhe causasse dor pessoal, fardo que suportaria com orgulho, o Surfista Prateado decide entregar sua alma para poupar a vida de bilhões. Mas Nova recupera a sua consciência e convoca Galactus para o reino infernal de Mefisto. Após um longo embate, Galactus passa a devorar o planeta das trevas, e Mefisto então lhe entrega suas duas criaturas, dizendo, contudo, que não foi vencido, já que Galactus não é bom nem mau, não podendo, assim, haver para ele uma derrota diante de tal ser.
Livre para singrar o cosmos, o Surfista Prateado, em elogiado e histórico arco redigido por Jim Starlin, criador de importantes personagens dos quadrinhos da Marvel Comics, como o vilão Thanos, vê-se justamente como o antagonista na saga de Thanos para reunir as Joias do Infinito17 e ofertar para a Morte personificada a aniquilação de metade do universo. Em Silver Surfer n° 48, publicada no Brasil em Superaventuras Marvel n° 151, o Surfista Prateado reencontra com Galactus e questiona o seu criador do porquê dele não se sentir culpado pelos mundos que destruiu enquanto servia seu antigo mestre. Galactus assume a autoria desse bloqueio e, quando o desfaz, vê seu antigo arauto afogado num oceano de culpa pela morte de milhões, questionando-se sobre sua nobreza e virtude, se ele realmente era melhor que aqueles que combatia. Galactus garantiu que podia reverter novamente a consciência dele, mas Norrin Rad afirmou que precisava aprender a viver com seus pecados e chegar a um acordo com o fardo de sua alma.
Em um encontro com Thanos, quando o Surfista Prateado é levado em uma viagem mental ao seu passado, é desvelada a sua relação com o pai, Jartran Rad, que também se encontrava frustrado com as facilidades de seu mundo. Seu pai havia vencido um importante prêmio científico, mas foi posteriormente acusado de plágio. Norrin Rad fica extremamente frustrado com seu pai e o deixa sozinho. Posteriormente, Jartran Rad se suicida. Thanos, ao contemplar tal memória, ironiza, dizendo que aquele que se sacrificou para salvar o seu mundo da destruição não foi capaz de oferecer sequer uma palavra de conforto para o seu pai deprimido. Assim, destituindo o Surfista Prateado de seu status de “santo cósmico”, Jim Starlin encerra esta história fazendo o herói se indagar:
A verdade às vezes ostenta uma face grotesca. Uma face que todos os espelhos julgam horrenda demais para refletir. Negra demais para ser percebida. [...] Herói ou canalha? Santo ou pecador? Autêntico ou Impostor? Bom ou mau? [...] Tantas indagações, tão poucas respostas. Um fardo demasiadamente pesado para um só homem suportar; digerir. E no fim, isso é o que realmente sou. Defeituoso. Imperfeito. Apenas um homem. (STARLIN, 1995, p. 80-82)
Seja como um arquétipo do herói nobre e altruísta seja nesta visão mais humana e falha sugerida por Jim Starlin, poucos personagens da maior editora de quadrinhos dos Estados Unidos possuem tantos elementos evidentemente religiosos em suas trajetórias nas páginas. Em sua reluzente forma prateada, Norrin Rad não apenas combate o vilão do mês e soluciona problemas circunstanciais, mas filosofa sobre o real sentido da vida, sobre dilemas morais e verdades eternas, seja na Terra ou em Zenn-La. Como disse Stan Lee, “o Surfista não fala por falar, ele tem algo a dizer! Não apenas luta, guerreia. Não apenas vence, triunfa” (LEE, 2018, p. 9). E assim, ele sai de personagem fictício da chamada “cultura pop” para voos bem maiores e profundos em sua prancha.
Referências
BHAGAVAD-GITA – Texto em sânscrito e tradução em inglês de PRABHUPADA, 2008.
BÍBLIA. Bíblia Sagrada: TEB – Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola.
EISNER, Will. Graphic Storytelling & Visual Narrative. Tamarac: Poorhouse Press, 1996
Englehart, Steve (argumento). Rogers, Marshall (arte). Grandes Heróis Marvel 33 – Surfista Prateado. São Paulo: Abril Jovem, 1991.
FLOOD, Gavin. Uma introdução ao Hinduísmo. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2014.
GUEDES, Roberto. Quando surgem os super-heróis. Vinhedo: Opera Graphica Editora, 2004.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto I: uma tragédia - Primeira parte. São Paulo: Editora 34, 2016.
LEE, Stan (argumento). MOEBIUS (arte). Graphic Novel 11 – Surfista Prateado: Parábola. Marvel Comics. São Paulo: Abril Jovem, 1989.
LEE, Stan (argumento). BUSCEMA, John (arte). Graphic Novel 9 – Surfista Prateado: O Juízo Final. Marvel Comics. São Paulo: Abril Jovem, 2003.
LEE, Stan (argumento). Kirby, Jack (arte). Origem dos Super-heróis Marvel 4. Marvel Comics. São Paulo: Abril Jovem, 1995.
LEE, Stan (argumento). BUSCEMA, John (arte). Edição Histórica – Surfista Prateado Volume 1. Marvel Comics. São Paulo: Mythos Editora, 2003.
LEE, Stan (argumento). BUSCEMA, John (arte). Biblioteca Histórica Marvel – O Surfista Prateado Volume 1. Marvel Comics. Barueri: Panini Comics, 2008.
LEE, Stan (argumento). BUSCEMA, John (arte). Biblioteca Histórica Marvel – O Surfista Prateado Volume 2. Marvel Comics. Barueri: Panini Comics, 2018.
PRABHUPADA, A.C. Bhaktivedanta Swami. O Bhagavad-gītā como Ele é. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust, 2008.
RESNICK, Howard. Guia completo da Bhagavad-gita com tradução literal. Pindamonhangaba: Coletivo Editorial, 2016.
SATSVARUPA, Gosvami. Introdução à Filosofia Védica: A tradição fala por si mesma. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust, 1986.
STARLIN, Jim (argumento). LIM, Ron (arte). Superaventuras Marvel 151 – Face a face com o criador. Marvel Comics. São Paulo: Abril Jovem, 1995.
STARLIN, Jim (argumento). LIM, Ron (arte). Superaventuras Marvel 153 – Segredos ocultos profundamente. Marvel Comics. São Paulo: Abril Jovem, 1995.
VALERA, Lucio. Mística devocional (Bhakti) como experiência estética (Rasa): Um estudo do Bhakti-rasamrta-sindhu de Rupa Goswami. Tese de doutorado apresentada na UFJF sob a orientação do prof. Dr. Dilip Loundo. Juiz de Fora, 2015.
—
Notas
[1] RICOEUR, P. Temps et récit III, Le temps raconté, Paris: Seuil, 1985.
[2] Em 03 de novembro de 1986 Ricoeur pronunciou na Faculdade de Teologia da Universidade de Neuchâtel uma conferência que está na base de dois artigos que ele pubicou em seguida, ambos com o título de “Identidade Narrativa”, e ambos publicados em 1988. Um foi publicado na revista Esprit, 7/8 (1988) 295-304 e o outro foi publicado na obra coletiva La narration. Quand le récit devient communication, Genebra: Labor et Fides, 1988, 287-300.
[3] RICOEUR, P. “L’identité narrative”, Esprit 7/8 (1988), 295-304. A tradução aqui apresentada é de CORREIA, J. C. “A Identidade Narrativa e o Problema da Identidade Pessoal”, tradução comentada de “L’identité narrative” de Paul Ricoeur”, publicado em Arquipélago 7 (2000) 177-194.
[4] RICOEUR, P. “L’identité narrative”, Esprit 7/8 (1988), 295-304. A tradução aqui apresentada é de CARLOS, J. C. “A Identidade Narrativa e o Problema da Identidade Pessoal”, tradução comentada de “L’identité narrative” de Paul Ricoeur”, publicado em Arquipélago 7 (2000) 177-194.
[5] Segundo o próprio Ricoeur, este termo “tecer intriga” é mais amplo que a simples “intriga” pois a engloba e ainda ajunta outros elementos presentes na narrativa como os personagens, os temas, a temporalidade, etc.
[6] RICOEUR, P. “O texto como identidade dinâmica”, in RICOEUR, P. A hermenêutica bíblica, São Paulo: Loyola, 2006, p. 117-129.
[7] Veja-se, por exemplo, LISBOA, J. M. A. O conceito de identidade narrativa e a alteridade na obra de Paul Ricoeur: aproximações In Impulso, 23(56), 2013, 99-112.
[8] RICOEUR, P. Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II, Paris: Seuil, 1986.
[9] RICOEUR, P. A hermenêutica bíblica, São Paulo: Loyola, 2006, p. 267-278.
[10] Há uma proximidade aqui com a proposta do método exegético histórico-crítico, como aparece em LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. Também BAENA, Gustavo. El Método Histórico Crítico In Theologica Javeriana, 122, p. 155-179.
[11] Adolphe Gesché, « Pour une identité narrative de Jésus », RTL 30/2 (1999) 153-179 – completado pela publicação da segunda parte do artigo no número seguinte da mesma revista: RTL 30/3 (1999) 336-356. Tais artigos foram por ele retomados em 2001, quando da publicação do sexto volume da coleção “Dieu por penser” (Le Christ. Paris: Cerf, 2001 – sua publicação no Brasil é de 2004.)
[12] Veja-se com proveito a compreensão de exegese literária apresentada por Adolphe Gesché, O Cristo São Paulo: Paulinas, 2004, especialmente p. 112-113.
[13] BULTMANN, Rudolf. Jesus Christ and Mythology. New Jersey: Prentice Hall, 1997.
[14] Positivismo histórico é aquele procedimento de estudo da história que quer manter-se adstrito aos dados das fontes, sem nenhum envolvimento do cientista que possa ser visto como interpretação. Efetivamente, no século XIX, com a afirmação dos nacionalismos europeus e a necessidade de criar bases sólidas para a união nacional, surge a preocupação de fazer da história uma ciência a mais exata possível, o que acabou por exigir a comprovação documental de tudo o que se afirmava em seu âmbito. A eventual carência de documentação ou seu comprometimento pelo envolvimento das fontes, significaria a impossibilidade de afirmação do evento histórico e mesmo de sua existência histórica. Veja-se BORGES, Pacheco Vavy. O que é história, São Paulo: Brasiliense, 2006.
[15] Veja-se BULTMANN, Rudolf. Existence and Faith. Shorter Writings of Rudolf Bultmann, edited and translated by S. M. Ogden, London, 1961.
[16] BULTMANN, Rudolf. Jesus Christ and Mythology. New Jersey: Prentice Hall, 1997.
[17] Idem.