Quando Javé encarnou nos quadrinhos: a imagem de Deus no “Gênesis” de Robert Crumb.
When Yahweh incarnated in comics: the image of God in “The Book of Genesis” by Robert Crumb.

Alexandre Sugamosto
Graduação em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2013). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Hermenêutica (H.G Gadamer). Mestrando Ciências da Religião (PUC-MG)- Áreas: Ciências da Linguagem Religiosa (Mircea Eliade, Gilbert Durand), Teopoética, Religião e Literatura. Membro do REPLUDI, grupo de pesquisa em Religião, Diálogo Inter-religioso e Pluralismo do PPG em Ciências da religião da PUC Minas. Professor de Ética Corporativa e Filosofia Organizacional
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Resumo:
Robert Crumb (1943-), cartunista e roteirista estadunidense, é reconhecido mundialmente como um dos artistas mais importantes do século XX. Embora seu nome esteja associado aos movimentos contraculturais do pós- Segunda Guerra, Crumb lançou, em 2009, uma versão em quadrinhos do Livro do Gênesis. O lançamento gerou grande impacto editorial e o volume chegou, em algumas livrarias, ao topo de vendas na categoria “livros cristãos”. O presente artigo discute a imagem que Robert Crumb faz de Javé, o Deus de Israel, na sua versão do Gênesis. O artigo aborda, ainda, o seguinte problema: de que forma essa representação dialoga com os conteúdos literários e teológicos da Bíblia? Por meio de uma análise histórica e cultural da obra de Robert Crumb, e do exame de alguns quadrinhos representativos extraídos da HQ, o artigo compara as soluções crumbianas com as diversas respostas teológicas e visuais aos enigmas do primeiro livro bíblico. Finaliza-se o texto com a conclusão de que o Javé de Robert Crumb não é esteticamente transgressor e guarda poucas semelhanças com o princípio anárquico apresentado em sua obra pregressa.

Palavras chave:Robert Crumb; Gênesis; Teologia Visual; Quadrinhos; Javé.

 

Abstract
American cartoonist and screenwriter, Robert Crumb (1943-) is known worldwide as one of the most important artists of the twentieth century. Although his name is associated with post-Second World War countercultural movements, in 2009 Crumb released a comic book version of the Book of Genesis. The release had great editorial impact and the edition reached the top of sales in some bookstores, under the category “Christian books”. This article discusses the image that Robert Crumb made of Yahweh, the God of Israel, in his version of Genesis. The article also addresses the following question: how does this representation dialogue with literary and theological analyzes of the Bible? Through a historical and cultural analysis of Robert Crumb’s work, and the examination of some representative comics taken from the comic book, the article compares Crumbian solutions with the various theological and visual responses to the riddles of the first biblical book. The text comes to an end by concluding that Robert Crumb’s Yahweh of is not aesthetically transgressive and bears little resemblance to the anarchic principle presented in his earlier work.

Keywords:Robert Crumb, Genesis, Visual Theology, Comics, Yahweh.

Introdução

Em 2019, a revista em quadrinhos Second Coming (Segunda Vinda), do roteirista estadunidense Mark Russell, foi alvo de críticas e de um abaixo-assinado por conta de seu conteúdo teológico heterodoxo. O trabalho, anunciado pela DC Comics em julho de 2018, tratava da segunda vinda de Jesus à Terra para consertar alguns “erros da primeira vinda”. Agora, Jesus se aliaria ao herói Sun-Man na missão de construir um mundo melhor. Não tardou para que religiosos de diversas denominações execrassem a obra e pedissem a censura de uma obra que sequer havia sido lançada. Assim, a DC Comics desistiu do lançamento e Russell migrou Second Coming para uma editora menor (Ahoy Comics) (BRANDALISE, 2019). Tal polêmica, no entanto, não é um caso isolado. Em 1954, o psiquiatra Fredric Wertham publicou um livro chamado Seduction of the Innocent (Sedução do Inocente) que responsabilizava as revistas em quadrinhos pela corrupção total da juventude. Em meio a uma série de acusações, Wertham afirmava existir “uma atmosfera sutil de homoerotismo que permeia as aventuras do maduro Batman e seu jovem amigo Robin” (WERTHAM, 1954, p.123). Além disso, o psiquiatra usa uma coleção de exemplos para provar que os gibis, por meio de mensagens subliminares, incentivavam a delinquência, a violência e a corrupção moral (WERTHAM, 1954, p.107). Uma das consequências do livro de Wertham foi a criação do Comics Code Authority (CCA). A entidade funcionou como uma espécie de conselho censor dos comic books para evitar uma eventual perseguição governamental (JONES, 2006, p.202). Assim, os trabalhos produzidos precisavam passar por um processo de “avaliação prévia” para garantir que não feriam certos princípios morais. Uma vez liberados, recebiam este selo:

Conflitos sociais como esses demonstram o papel fundamental das HQs, também conhecidas como histórias em quadrinhos ou bandas desenhadas (termo usado em Portugal), na formação do imaginário moderno.

Essas massas de rapazes e moças e seus professores, contadas aos milhões ou pelo menos centenas de milhares em todos os Estados, a não ser nos muito pequenos e excepcionalmente atrasados, e concentradas em campi ou ‘cidades universitárias’ grandes e muitas vezes isolados, constituíam um novo fator na cultura e na política. Eram transnacionais, movimentando-se e comunicando ideias e experiências através de fronteiras com facilidade e rapidez, e provavelmente estavam mais à vontade com a tecnologia das comunicações que os governos. Como revelou a década de 1960, eram não apenas radicais e explosivas, mas singularmente eficazes na expressão nacional, e mesmo internacional, de descontentamento político e social (HOBSBAWN, 1995, p. 292)

Nesse espírito da contestação e da ruptura, muitos artistas começaram a explorar diversas possibilidades de uso da mídia para contrapor certa hegemonia de ideias. Contudo, a relação entre o produto quadrinho e a cultura de massas nunca foi uniforme: ao lado das grandes corporações de entretenimento, Marvel e DC Comics principalmente, pululavam pequenas gráficas ligadas aos movimentos contraculturais. Potencialmente “explosivas”, para usar a expressão de Hobsbawn, as publicações oriundas desses bunkers artísticos ganharam notoriedade por tratar abertamente de alguns tabus sociais: drogas, violência, sexualidade e religião.

Dentre tantas figuras carismáticas e subversivas ligadas a esses movimentos, uma, no entanto, se destaca: Robert Crumb.

ROBERT CRUMB

Robert Crumb nasceu em 1943 na Filadélfia, Pensilvânia, e é um dos mais importantes artistas vivos em atividade no mundo. Crumb cresceu em um ambiente conturbado: o pai sempre foi ausente e a mãe era viciada em pílulas para emagrecer (HOLM, 2005, p.32). Esses são dados importantes, porque duas das linhas mestras da arte crumbiana são justamente suas relações problemáticas com as autoridades e com as mulheres. O desenhista já foi acusado de misoginia e sexismo por retratar as personagens do sexo feminino de modo bastante voluptuoso e eroticamente caricato. Sua relação com o movimento feminista, contemporâneo das primeiras manifestações contraculturais das HQs é definida nos seguintes termos por Trina Robbins, uma de suas companheiras de criação artística:

Eu estava acostumado com o que ele estava fazendo, o que era realmente muito gentil. Então, ele fez isso que foi incrivelmente hostil às mulheres, muito sexualmente hostil, e eu não estava esperando por isso. Eu fiquei realmente chocada. É difícil para mim acreditar que ele não pode simplesmente canalizar a si mesmo para fazer um trabalho melhor. (HOLM, 2005, p. 10)

Tudo indica que o desenhista quis expurgar os seus complexos por meio da arte. Para tanto, Crumb escreveu uma série de revistas intituladas “Meus Problemas com as Mulheres” (My Troubles With Women) em que retrata seus desejos obscenos e secretos em relação ao sexo feminino. Em uma entrevista concedida em março de 2019, no entanto, Crumb afirmou que não quer mais desenhar mulheres, pois agora está bem resolvido com a sua “libido furiosa” (SAYEJ, 2019).

A figura pública de Robert Crumb está diretamente ligada com a criação dos Underground Comix, nome pelo qual ficaram conhecidas as revistas em quadrinhos que circularam na marginalidade do circuito comercial nos Estados Unidos. Nascidas sob o signo repressivo do CCA, as revistas underground, e especialmente a Zap Comix, produziram e divulgaram diversas ideias que contrariavam as restrições conservadoras e as proibições morais do código. Para citar só o exemplo mais conhecido, o movimento popularizou o crumbiano personagem Mr. Natural: um guru pervertido e doidivanas, cujas noções de ascese, mística e espiritualidade são declaradamente distorcidas e ofensivas. Em entrevista, o cartunista declarou que diversas histórias, narrativas e personagens, inclusive Mr. Natural, surgiram depois de “poderosas viagens com ácido” (HOLM, 2005, p.47). Em Mr. Natural e nas aventuras lisérgicas de Crumb (JONES, 2007, p.285) já se anunciam, portanto, dois temas que serão também perpassarão a obra do artista estadunidense: as espiritualidades “alternativas” e a religião.

As revistas marginais, produzidas por artistas como Robert Crumb, Gilbert Shelton e Trina Robbins, eram distribuídas em lojas de conveniência, bares hippies, tabacarias e até mesmo em banquinhas de rua (JONES, 2006, p.217). Desse modo, os Underground Comix criaram uma legítima contracultura de costumes que exerceria influência posterior na estética e no modo de conceber as HQs.

As revistas underground reuniam sátira política, drogas, pornografia, material psicodélico, experimentações gráficas e visões peculiares de vida numa forma de arte que penetrava direto na imaginação de milhões de jovens americanos. Embora estranho e perturbador aos olhos da geração que havia criado os primeiros comic books, esse novo estilo possuía as mesmas qualidades que haviam feito com que primeiros gibis fossem algo tão vivo: eram revistas rápidas de fazer, baratas, não ligavam para respeitabilidade ou aprovação social e permitiam ao quadrinista transmitir suas ideias aos leitores com um mínimo de interferência externa. (JONES, 2006, p. 217)

Mas o trabalho de Robert Crumb não se restringe aos corredores contraculturais. Em primeiro lugar, porque seu traço e seus temas guardam diversas semelhanças com pintores e desenhistas da estirpe de Pieter Bruegel (HOLM, 2005, p.16). Depois, porque Robert Crumb teve sua obra reunida publicada em vida, honraria rara mesmo entre escritores clássicos, desenhou uma capa de disco para a banda de Janis Joplin, trabalhou com o escritor Harvey Pekar na bem-sucedida série American Splendor, ilustrou obras de Franz Kafka e Charles Bukowski, lançou quadrinhos sobre ídolos do blues... a lista de seus feitos artísticos é o suficiente para que seu trabalho seja considerado digno de estudos teóricos.

A lista de interesses de Robert Crumb, diversa e multidisciplinar, desaguou em um trabalho de fôlego sobre um dos livros formadores da cultura ocidental: o Gênesis bíblico.

O GÊNESIS DE CRUMB

Depois de passar quatro anos pesquisando, analisando fotografia de povos semitas (CRUMB, 2009, p. 08) e desenhando, Robert Crumb lançou, em 2009, sua versão do Book of Genesis (Gênesis, na tradução da edição brasileira). A levar em conta seu histórico cultural, a picardia de seus protagonistas pregressos e o clamor subversivo de suas obras mais conhecidas, era de se esperar que o conteúdo teológico do Gênesis pudesse se transformar em chacota ou transgressão nas mãos do artista. Evidentemente, algumas figuras do conservadorismo cristão ficaram alarmadas com a audácia de Crumb. Mike Judge, membro do Christian Institute, disse que o cartunista estava “transformando a Bíblia em excitação” (HUDSON, 2009). Diferentemente do que aconteceu com Mike Russel, no entanto, o escândalo em torno da obra não vingou e a percepção geral da crítica sobre o Gênesis (BLOOM, 2009, HADJU, 2009, ALTER, 2009) foi medianamente positiva.

Entre outros fatores, a generalizada recepção favorável se deve ao fato de que Robert Crumb foi bastante fiel às fontes bíblicas. Para tanto, ele utilizou a tradução extraída de The Five Books of Moses do professor Robert Alter. Alter é conhecido não só por ser um especialista em hebraico bíblico e nos temas teológicos, mas também por seu tratamento acadêmico dado aos aspectos estritamente literários da Bíblia. Robert Crumb, portanto, não fez uma paródia textual do Gênesis e transferiu toda a sua visão interpretativa para os desenhos e representações pictóricas dos personagens. Sendo assim, o Gênesis de Crumb trouxe uma nova dimensão de leitura imagética para a narrativa bíblica.

O Gênesis, de Crumb, embora empregue uma linguagem artística contemporânea - a história em quadrinhos - força o leitor a se envolver em todo o texto bíblico. O leitor deve confrontar todas as cenas do Gênesis, não apenas aquelas consideradas importantes, seja para interpretação artística ou para estudo crítico. Além disso, Crumb fez o melhor que pôde para colocar o texto em seu contexto antigo, oferecendo um perfil vagamente semítico ao seu elenco de personagens e introduzindo o que ele considera ser o cenário do antigo Oriente Próximo ... (PETERSEN, 2010, p. 126)

Considerando a teoria de que as mídias alteram nossa percepção do mundo (MCLUHAN, 1967, p.8), então podemos afirmar que a transposição do Gênesis para os quadrinhos implica em uma modificação basal, ainda que o texto permaneça inalterado; a linearidade da HQ empurra o leitor para uma leitura absorvente e completa do Gênesis. Já o formato tradicional da Bíblia, termo que, aliás, é etimologicamente equivalente à palavra “livro”, permite ao leitor uma série de operações distintas: ler apenas alguns trechos, conectar passagens de capítulos distintos, analisar versículos como antecipações narrativas, iniciar a leitura pelos livros finais… são muitas as possibilidades postas pelo formato livro.

Para diversificar ainda mais a exemplificação dos meios, é possível mencionar as performances orais de sermões e homilias. Paul Zumthor teoriza que a forma de artesanal da narrativa oral envolve corpo, voz e movimento em um conjunto complexo bastante distinto daquele experimentado pelo leitor solitário. Sendo assim, alguém ouvindo uma passagem do Gênesis no sermão da igreja terá, necessariamente, uma experiência substancialmente distinta daquele que se dispuser a ler o Gênesis contado em quadrinhos (ZUMTHOR, 2002, p.17).

Segundo JeetHeer (2010), a questão de compreensão da mídia é fundamental para uma crítica bem abalizada da versão crumbiana do Gênesis. Heer, um crítico canadense de quadrinhos, vê dois tipos de recepção para o trabalho de Crumb: a daqueles que conhecem as HQs, mas não são versados nos estudos bíblicos e a daqueles que conhecem a teologia bíblica, mas não entendem o modelo de storytelling das revistas em quadrinhos (para ele, Harold Bloom seria um representante do segundo tipo). De fato, há uma espécie de consenso intelectual sobre o fato de que uma adaptação de livros bíblicos implica numa exegese. Contribui para essa ideia, ainda, a noção teológica de “livro inspirado” que torna a adaptação da matéria bastante delicada, dado que não se trata simplesmente de um objeto da cultura. Ora, para ler um projeto como o de Crumb, seria preciso, portanto, uma hermenêutica de recepção que também levasse três fatores em conta: as especificidades do meio HQ, o projeto estético dos artistas envolvidos no trabalho e as filigranas da concepção teológica do primeiro tomo bíblico. Os dois primeiros elementos são passíveis de resolução simples, mas o Gênesis é um livro especialmente enigmático e controverso. Robert Michaud sustenta que o Gênesis é um livro contemplativo em que se entretecem narrativas históricas, míticas e relatos cosmogônicos. Segundo ele, o caos primordial que deu origem ao cosmos só pode ser explicado por uma “linguagem mitopoética” que seja orientadora de sentidos cada vez mais profundos e implícitos ao texto (MICHAUD, 1985, p.25). No caso do Gênesis, essa linguagem mitopoética, semanticamente densa por natureza, ainda padece de outros fatores complicador: a justaposição de autores, a multiplicidade de fontes e a milenar tradição exegética a qual o texto foi submetido. Como, então, encontrar um fio narrativo condutor para examinar o livro? Segundo um biblista:

A fragmentação da obra parece inegável. Entretanto, o texto resiste a esse tratamento da crítica. Não deixa de impor-se a nós uma poderosa unidade, tanto por seu conteúdo como por seu estilo e sua composição. O vasto afresco do Gênesis adquire um relevo impressionante para o leitor contemporâneo no contexto, hoje conhecido melhor, das civilizações do Oriente antigo. A terra de Israel mostra ser, como a Síria, uma terra de encontro. (CHOURAQUI, 1995, p. 16)

Essa “poderosa unidade” se deve, em grande parte, aos atos de uma figura aglutinadora: IHVH. Esse nome, intraduzível e impronunciável, carrega em si outra série de controvérsias etimológicas, mas ele representa, sinteticamente, o nome pessoal de Elohim de Israel (ibidem. p. 32). O tetragrama, que carrega em si o mistério inefável do ser, pode significar, entre outras coisas, “Aquele que faz ser e cria o mundo”, “o criador”, “aquele que fará ser o que ele fará ser” (ibidem p. 33). Chouraqui sustenta, ainda, que outros modos de grafia do nome divino seriam também historicamente insustentáveis e o que melhor seria manter o tetragrama IHVH nas transliterações (ibidem. p. 32). Outros críticos, no entanto (cf. BLOOM, 2006, p.128), sustentam que o nome próprio Javé, popularizado em leituras críticas e acadêmicas, tem um poderoso efeito semântico no imaginário.

Analisaremos, então, a imagem que Robert Crumb atribui ao personagem Javé.

A IMAGEM DE JAVÉ

A cultura popular cristalizou uma imagem de Deus: um homem velho, com barbas brancas, cabelos longos, poderoso, sábio, forte, mas também benevolente. Embora o Gênesis, em si mesmo, não apresente essa figura, ela nos remete ao “Ancião dos Dias”. O misterioso personagem aparece nas visões proféticas de Daniel (Daniel, 7:9) e na escatológica passagem de Ezequiel (Ezequiel 1:15-28). A levar em conta essas duas aparições, El, o “Ancião dos Dias”, é uma entidade cósmica, posteriormente identificada com o próprio criador, que julgará os homens no final dos tempos. Jack Miles analisa a figura de Deus como um personagem literário que protagoniza uma saga cosmogônica. Esse personagem, no entanto, vai desaparecendo ao longo dos livros bíblicos até que se cansa e mergulha no silêncio total (MILES, 1997, p.26).

O Ancião dos Dias, como Daniel agora o chama, não está morto, mas velho e, por implicação, cansado. Não derrotado, não destruído, ele, de certa forma, retira-se de cena. A multiplicidade que o caracterizou em seus momentos mais vigorosos não se rende, em seu gradual desaparecimento, à unidade e depois à nulidade, mas ele parece mais pungentemente real exatamente por não se render simples e definitivamente (MILES, 1997, p. 415)

Nas artes visuais, a representação do “Ancião dos Dias” ficou conhecida por meio de uma pintura de William Blake (1794).

Robert Crumb parece ter se inspirado, ao menos parcialmente, na imagem blakeana para representar Javé, Deus de Israel. Essa representação, no entanto, não se coaduna ao personagem bíblico do Gênesis, pois Deus é “frequentemente apresentado antropomorficamente, mas não se restringe a uma imagem definida” (ALTER, 2009).

Em uma entrevista, Crumb foi questionado sobre as semelhanças entre a sua representação de Deus e o personagem Mr. Natural. Ele admitiu que não havia traçado um conceito sólido para o desenho e que Javé “na verdade acabou parecendo mais com meu pai. Ele tem um rosto muito masculino” (HADJU, 2009). Desse modo, o desenhista retoma, artisticamente, os problemas familiares que sempre permearam sua obra, ainda que o “seu Deus” ecoe alguns motivos bíblicos.

Logo na apresentação do primeiro versículo bíblico, Robert Crumb apresenta a face de Javé: cabelos longos, expressão crua, ressaltada pela conhecida técnica crumbiana de reforço das linhas faciais, nariz longo, e mãos fortes que moldam uma espécie de vórtice caótico. O quadrinho é cinemático, mas também sólido em sua composição geométrica. Cabe notar que o sopro, ruach, elemento fulcral para o debate teológico e pneumatológico sobre o Gênesis, sendo a “fonte de toda criação, de toda vida” (CHOURAQUI, 1995, p.36), não é representado na imagem: Deus está com os lábios fechados e toda atmosfera remete a um aspecto radiante e luminoso e não fluido ou espectral.

Ao apresentar Deus logo na primeira página, Crumb elimina, de certa forma, as múltiplas possibilidades figurativas do personagem. A escolha do artista para o quadrinho inicial também não explora o capítulo mais críptico de toda a Bíblia: - trata-se da descrição de um evento que está antes do tempo? Por que o personagem principal fala consigo mesmo? Dentre tantas possibilidades, Robert Crumb opta por uma solução conservadora.

Na controversa passagem de Gênesis 6:3, o capítulo dos gigantes que precede o Dilúvio, o Javé de Crumb aparece pensativo, com a mão acariciando a barba e uma expressão compenetrada. Novamente, Deus é apenas um homem idoso observando as traquinagens da raça que decidiu criar. O próprio Robert Crumb assume a sua decisão artística em uma entrevista:

Eu tive várias abordagens diferentes para fazer Deus. Um era um homem alto e magro, sem barba, e outro era um homem de aparência jovem, com longos cabelos lisos que mais parecia um anjo do que um deus. Ele tinha olhos sem pupilas que irradiavam luz. Mas eu decidi ir com o padrão patriarcal severo de Deus. Apenas pareceu a escolha certa. Isso parece ser o que é o Deus do Gênesis. Ele é mais velho que o patriarca mais velho. (SPITZNAGEL, 2009)

Ao afirmar que um Deus de aparência jovem “mais parecia um anjo”, Crumb cede a uma tradição das representações angelicais: por que, afinal, um anjo é um homem magro e sem barba? Curiosamente, o artista estadunidense aceita o veredito renascentista sobre os anjos, pois basta verificar as “Anunciações” de Fra Angélico e Leonardo da Vinci para confirmar a afirmação crumbiana. Por outro lado, quando diz que “isso parece ser o que é o Deus do Gênesis”, Robert Crumb descarta a dimensão caótica e cósmica simbolizada pelo ente fundador e atuante do Gênesis. Segundo Erich Auerbach (AUERBACH, 1976, p. 9), o relato bíblico, ao contrário dos épicos gregos, é voltado para ação, para os fins e para o destino. Sendo assim, os pensamentos e sentimentos não são exprimidos e isso acaba tornando o texto muito enigmático e, consequentemente, afeito à elaboração artística. No caso específico do episódio dos Gigantes, alguns silêncios do texto são suprimidos pela figuração exposta no Gênesis de Crumb. Por exemplo: as transgressões individuais de Adão, Eva e Caim agora estão justapostas aos erros coletivos da raça humana. E como Javé se comporta diante dessas violações de limites (WESTERMANN, 2013, p.64) que colocam em xeque a própria criação? A julgar pela imagem 5, não há complexidade ou hesitação divina diante desses problemas.

Na aparição para Abraão (Gênesis 12:2), o Javé de Crumb adquire um aspecto radiante e solar. Sua barba e seu cabelo são leoninos e a sua autoridade se impõe diante de um homem que leva a mão à frente do rosto por estar ofuscado pela luz divina. No quadrinho, é possível notar certa semelhança física entre Javé e o futuro patriarca: as linhas da testa, o contorno do nariz e a expressão do olhar. Novamente, o Deus de Israel e de Crumb surge como El, o “Ancião dos Dias” que representa o aspecto sábio e experiente da divindade (CHOURAQUI, 1995, p. 30). O capítulo 12 do Gênesis é particularmente importante porque é nele que Javé, de certa forma, transmite seu poder para Abraão, o patriarca bíblico originador dos três grandes ramos do monoteísmo no mundo. Utilizando a técnica literária da retrojeção, que consiste em apresentar como anúncio um acontecimento já conhecido aos contemporâneos do autor, o narrador, chamado de Javista (J) pelos exegetas bíblicos, inicia a saga dos patriarcas com a benção de Javé (MICHAUD, 1985, p. 90).

Há, ainda, uma importância artística ligada aos capítulos sobre Abraão: Caravaggio e Rembrandt se debruçaram sobre a cena do sacrifício de Isaac para compor duas das pinturas mais conhecidas da história da arte ocidental. Robert Crumb, no entanto, não dá atenção para a grandiosidade mítica do tema, pois mesmo a sua representação do sacrifício, que ao final não se concretiza, tem um aspecto de barbárie tribal. Seguindo o esquema da composição clássica hebraica, o Gênesis encaminha a narrativa do geral ao particular (CHOURAQUI, 1995, p.14). Sendo assim, depois de algumas aparições fundamentais, Javé vai sumindo da trama e dando espaço ao mundo dos homens semitas e suas querelas.

CONCLUSÃO

Para qualquer artista, ilustrar um livro considerado sagrado e criar representações de entidades divinas sempre será matéria delicada. Além dos próprios preceitos teológicos relacionados à imagem, que no extremo podem desaguar em iconoclastia, o ilustrador também precisa considerar a tradição artística relacionada ao tema e o filtro da crítica especializada. Nessa perspectiva, é admirável o empreendimento de Robert Crumb para produzir uma revista em quadrinhos ilustrando todo o livro do Gênesis.

O assunto também é relevante, pois “Deus faz o mundo porque quer a humanidade, e quer a humanidade porque quer uma imagem” (MILES, 1997, p.41). Crumb no entanto, optou por um retrato bastante conservador de Javé. A imagem que ele faz do Deus de Israel é a de um ancião, um patriarca primevo que dirige, aconselha e pune tribos semitas. Ainda que essa seja, de fato, uma das dimensões possíveis expostas em Gênesis, trata-se de uma perspectiva que achata os temas míticos e cosmológicos que se acotovelam no primeiro livro da Bíblia. Embora o Javé de Robert Crumb também tenha semelhanças com alguns temas da tradição artística e ecoe motivos proféticos, sua representação é uma espécie de ilustração infantilizada, com pouca perspicácia intelectual. Ela não adiciona nenhum aspecto novo, além daqueles intrínsecos ao próprio meio de exposição, às figurações exaustivamente exploradas pela cultura popular.

Pelo histórico anárquico e contracultural de Robert Crumb, muitos leitores esperavam ao menos uma nota de originalidade na sua concepção do Gênesis e de Javé. Como essa nota não apareceu, a crítica também foi morna em sua recepção, o livro atendeu ao gosto médio e figurou no topo dos “livros cristãos” mais vendidos em determinado período.

REFERÊNCIAS

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