“Olhem, lá no céu!” Superman e Profetismo Judaico
Look, up in the Sky! Superman and Jewish Prophetism
Francisca Jaquelini de Souza Viração*
* Historiadora (URCA),
mestre em Ciências da
Religião (MACKENZIE).
Atualmente é professora
da Universidade Regional
do Cariri (URCA) em Iguatu,
Ceará, doutoranda em
História Social pela UFF e
aluna de especialização
em Histórias em
Quadrinhos pela EST de
São Leopoldo. E-mail:
jackhistory@gmail.com.
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Resumo
O presente artigo tem por objetivo fazer
uma análise teológica e histórica do personagem Superman. A criação de Jerry Siegel e
Joe Shuster apresenta paralelos claros com
a história de Moisés e padrões que o aproximam dos antigos profetas judeus do Antigo
Testamento. No entanto, Superman é um produto cultural que ao mesmo tempo é produtor e construtor de uma determinada época.
Assim, o que será investigado é o Superman
da Era de Ouro, caracterizada por histórias
escritas pelos próprios criadores, para se perceber o quanto a Grande Depressão americana marcou a origem do personagem e como
ele marcou as pessoas que vivenciaram esse
período histórico. Desta feita, o artigo aborda as narrativas do Superman como fontes
históricas ricas sobre a cultura do século XX
propondo, inclusive, uma metodologia do trabalho que tem a história em quadrinhos como
fonte para o estudo da história, então, perceber a teologia contida nessas histórias e a
consequente razão do seu sucesso.
Palavras chave: Superman, Fonte Histórica, Teologia, Profetismo Judeu.
Abstract
This article aims to make a theological and historical analysis of the
Superman character. The creation of Jerry Siegel and Joe Shuster presents clear parallels with the story of Moses and patterns that draw him closer to the old
Jewish prophets of the Old Testament. However, Superman is a cultural product
that at the same time is a producer and builder of a certain era. Thus, what will
be investigated is the Superman in the golden age, characterized by stories
written by the creators themselves, to realize how much the Great Depression
American marked the origin of the character and how it marked the people who
experienced this historical period. This article deals with Superman’s narratives
as rich historical sources about twentieth-century culture, including proposing a
methodology of work that has comic books as a source for the study of history,
and then to perceive the theology contained in those histories and the consequent reason for its success.
Keywords:Superman; Historical Source; Theology; Jewish Prophetism
Introdução
“Olhem lá no céu! É um pássaro? É um avião? Não, é o Superman!” O velho jargão da abertura do programa de rádio dos anos 40, apesar de não ser dito há mais de 30 anos, ainda se encontra bem vivo na memória das pessoas. Aos 81 anos, o Superman consegue fascinar – o que me leva a levantar a hipótese de que essa fascinação parte do pressuposto de que o personagem responde aos anseios e às expectativas humanas.
O Superman não é apenas um herói, um produto da cultura, mas se tornou um mito, talvez, o mais bem-sucedido do século XX. Essa mitologia, construída em torno do herói, está fortemente associada à teologia veterotestementária. Seria Kal-El um profeta? E se ele é um profeta, que tipo seria? Quais relações podem ser construídas entre quadrinhos – teologia – e o Homem de Aço?
O primeiro aspecto a ser compreendido no Superman é o seu “lugar de produção”, um conceito emprestado da historiografia de Michel De Certau1 . Superman nasceu fora dos principais centros de produção; foi escrito por autores desconhecidos (os adolescentes Jerry Siegel e Joe Shuster) em um tipo de mídia considerada de baixa qualidade (a comic book) e em uma cidade sem tradição em produção de quadrinhos – Cleveland, Ohio.
Quando o Superman foi publicado em 1938, os quadrinhos não eram considerados uma produção de grande qualidade intelectual e artística, porém, já possuíam seus grandes nomes – Alex Raymond e Hal Foster22 eram os principais. Havia, sim, quadrinhos considerados de qualidade, contudo não eram publicados em revistas, a comic book, mas em tiras de jornais. Vale salientar que o centro de produção onde se concentravam os maiores artistas era a cidade de Nova Iorque.
Superman, também, não é o primeiro personagem de quadrinhos com super-poderes, O Sombra e Popeye3 vieram primeiro. É possível, no entanto, afirmar que ele foi, de fato, o primeiro super-herói. A criação dos adolescentes Jerry Siegel e Joe Shuster, mudou para sempre a história dos quadrinhos e da cultura pop em si.
A despeito de sua “marginalidade”, Superman foi um fenômeno de vendas, tornando-se o primeiro em muitos quesitos: o primeiro super- -herói; o primeiro a ter sua revista solo, (Superman # 1, maio de 39); o primeiro super-herói a ir para o rádio (1940); o primeiro a ter animação (1941); a ter um longa-metragem (1948); a ter série de TV (1951). A Era de Ouro4 , que é inaugurada com seu surgimento, também é a sua Era de Ouro em particular.
O porquê de Superman haver agradado tanto ao público nos anos da Grande Depressão5 é algo, de certa forma, bem conhecido entre os pesquisadores de quadrinhos. Mas será que a criação de Siegel & Shuster tem algo mais a revelar? Será que a Ciência Histórica e a Teologia, juntas, poderiam ajudar a compreender melhor esse, que talvez seja, o maior mito criado no século XX?
O Superman como fonte histórica
A verdadeira “Revolução Francesa” da História6 , a Escola dos Annales, alterou a concepção de fonte. Tudo agora passava a ser fonte – não apenas documentos oficiais do Estado. Mas, se as histórias em quadrinhos do Superman são fontes, que tipos de fontes elas são e qual metodologia deve ser empregada para analisá-las? Minha sugestão é que a classificação deve abarcar a qual Era ela pertence (ouro, prata, moderna...), ano, mês e autoria.
Assim, é possível perceber o período histórico de sua produção, compreender os objetivos da editora na época em questão, no caso a DC Comics, e a “veia artística” a qual o personagem está submetido naquela história em específico. Por hora, o presente artigo apresentará análises de algumas histórias da Era de Ouro, feitas até que o mito de origem do Superman fosse acabado, com Superboy #2 de 1949, nas revistas e tiras em que ele era publicado.
O Superman é um produto cultural e, como todo produto cultural, é reflexo de sua cultura e também “construtor” dela. Encarar as histórias em quadrinhos do Superman como fonte histórica é, não apenas perceber os Estados Unidos da América que o criou, mas mergulhar nos anseios e desejos de seus criadores e do público leitor. O que o “Último Filho de Krypton” nos transmite? Por que gostamos tanto dele?
Cleveland, Ohio, 1934, ano de criação do personagem. Uma cidade, cuja população era cerca de 900 mil habitantes7 . Muitos deles imigrantes, atraídos para trabalhar nas metalúrgicas. Encravada na região dos Grandes Lagos, a cidade atraiu muitos imigrantes vindos também do Canadá8 – foi o caso dos pais de Joe Shuster, judeus askhenazi99 , assim como os pais de Jerry Siegel.
As famílias moravam na mesma rua, logo fazer amizade foi fácil. Cleveland também era o lar de Frank Milano, o rei da máfia na cidade dos nos 20 e 30. Violência urbana, crescimento desordenado, fome, desemprego, exclusão social, foi isso o que Jerry e Joe viveram, viram e transmitiram nas histórias de sua maior criação. A Metrópolis10 da Era de Ouro, não é Nova Iorque, é Cleveland.
No meio desse caos, aparece Clark Kent/Superman/Kal-El para protagonizar uma história típica de imigrantes: um imigrante de outro planeta, que chega na cidade grande e pretende “vencer na vida”. Clark se torna um repórter. Na década de 30, não era preciso ter um curso de jornalismo para trabalhar em um jornal. A indústria da mídia americana era, então, o cenário de guerra entre os jornais de William Randolph Hearst e Joseph Pulitzer.1111 Em tempos de crise, a indústria da mídia e do entretenimento ofereciam raras oportunidades de emprego.
O mito de origem do Superman apenas é apresentado de forma detalhada na tira diária, já em janeiro de 1939, quando chega aos jornais o herói kryptoniano. O primeiro episódio, intitulado “Superman vem à Terra”, foi publicado entre 16 de janeiro e 28 de janeiro de 1939.
A Teologia do Superman
Na primeira tira, Siegel descreve Krypton como um planeta avançado, habitado por uma civilização de super-homens cujos habitantes tinham super-poderes. Jor-El, grafado como Jor-L, apresenta supervelocidade e supersalto. Ele é um cientista, cuja esposa Lara, grafado como Lora, acabara de dar à luz ao recém-nascido Kal-El, escrito Kal-L. Quando Jor-El descobre a razão dos terremotos em Krypton, logo eles decidem enviar seu único filho para a Terra.
O garoto é encontrado por um motorista e levado a um orfanato. Até então, nada ainda é citado sobre os Kent, o Kansas e a fazenda. Apenas se diz que, quando adulto, Clark Kent, irá usar seus poderes para o bem. Os Kent aparecem pela primeira vez em Superman # 1, publicado meses depois da tira, em maio. O casal – cujo apenas o nome da esposa é escrito, Mary – encontra o garoto e o leva a um orfanato, adotando- -o depois. Na história, Siegel é claro ao dizer que foi a criação deles que moldou o caráter do herói. A fazenda, por sua vez, irá aparecer nos quadrinhos na primeira história do Superboy, em More fun comics #101 de janeiro de 1945. Já Smallville aparece em Superboy # 2, de maio de 1949. Portanto, foram necessários 11 anos para que o mito de origem do Superman fosse concluído.
Os elementos consolidados ficam claros: último filho de uma civilização avançada, enviado ao planeta Terra em um foguete por seu pai, que era um cientista. O garoto é encontrado e adotado por um casal adorável, sua base moral. Ele cresce em uma fazenda, e quando adulto migra para uma cidade grande, onde se torna repórter de um grande jornal. Jura usar seus poderes para o bem e nutre um grande amor por sua colega de trabalho Lois Lane – a qual apenas tem olhos para o alter-ego do Clark, o Superman.
Paralelos com a história de Moisés são inevitáveis se levarmos em consideração a origem judaica de seus criadores. Um menino recém- -nascido colocado em um foguete pequeno, o último sobrevivente, viajando perigosamente pelo espaço, até chegar em seu destino – a Terra. Moisés é também um menino que escapa da morte quando pequeno, e fez uma perigosa viagem dentro de um cesto, pelo rio Nilo, cheio de crocodilos, até ser encontrado pela filha de Faraó. A tira de 1939 enfatiza bastante a viagem do menino.
Outro fator importante sobre o mito de origem é que Superman é humano, porém um humano que não é da Terra. Jerry Siegel é claro ao descrever os kryptonianos como: “uma civilização de super-homens, os quais representam a raça humana no último estágio de desenvolvimento.” É considerável a percepção de que o Superman não é um alien, mas um humano de outro planeta.
Assim, ele é um humano de uma “raça superior”. O racismo e a superioridade da raça branca é algo que foi se construindo desde o século XIX. Em 1933, Hitler ascende ao poder na Alemanha com um discurso de raça superior e antissemitismo. Seria Kal-El um super-judeu? Em caso afirmativo, qual seria sua causa? Suas histórias não se passam no espaço, mas no dia a dia da conturbada vida urbana dos anos 30. A seguir, observe-se o mote das dez primeiras histórias na revista:
Action Comics # 1 – Defende mulheres;
Action Comics # 2 – Combate um senador corrupto que quer promover uma guerra na América do Sul só pra vender armas;
Action Comics #3 – Defende trabalhadores explorados em uma
mina, aqui aparece a figura do imigrante da Europa Oriental;
Action Comic #4 – Troca de lugar com um jogador de futebol universitário americano, em um racha de carro;
Action Comics #5 – Desvia as águas de uma barragem rompida,
salva Lois e ocorre, supostamente, o primeiro beijo;
Action Comics #6 – Combate alguém que se passa por ele, sai com
Lois;
Action Comics #7 – Ajuda um dono de circo falido, aparece pela segunda vez na capa;
Action Comic #8 – Superman salva quatro garotos da delinquência
juvenil e os ensina a mudar de vida;
Action Comics #9 – Combate homens que dão uma recompensa
para quem pegar o Superman;
Action Comics #10 – Defende prisioneiros de maus tratos.
No mote dessas histórias, nada lembra discursos políticos ou defesa ideológica. Seu heroísmo aparece em eventos corriqueiros, do dia a dia. Apesar de ter vindo do espaço, o personagem é apresentado como bem presente nas preocupações hodiernas da população. Nas três primeiras versões de sua origem, Action Comics #1, Superman #1 e na tira de janeiro de 1939, sua motivação para ser herói é a mesma: usar seus poderes para o bem da humanidade.
O texto, que aparece nas três versões, é o mesmo e é claro em dizer que: “Clark decidiu que deve transformar sua força titânica em instrumento em benefício da humanidade. Então ele criou o Superman! Campeão dos oprimidos, a maravilha física que jurou devotar a sua existência para ajudar àqueles que precisam.” Ao que se vê, sua motivação é extremamente altruísta.
Se há paralelos claros entre seu mito de origem e a história de Moisés, é possível afirmar que a narrativa das histórias do Superman foi inspirada nos profetas judeus do Antigo Testamento? Ou pelo menos traçar paralelos possíveis?
Superman como um moderno profeta judeu
Negro (2009) apresenta algumas características que tornam alguém considerado um profeta. A principal é ser “voz de Deus”, como verdadeiros oráculos. Sua escolha, por vezes, é inesperada – o profeta não é um profissional, mas um vocacionado, alguém que muitas vezes é chamado, até mesmo sem a mínima preparação. Profetas também tem autoridade sobre reis e o Estado, e ele mesmo não está preso a amarras institucionais, o profeta representa unicamente a Deus.
O Profeta é sempre um eleito do Senhor, alguém especial para este Senhor que o chama. Não está claro porque este ou aquele indivíduo é chamado para a missão profética, senão que ele é escolhido. Ele exerce uma missão quase nunca “oficial”, no sentido de ser em nome dos poderes e instituições estabelecidas. Diversamente a isto parece que ele está quase sempre à margem das instituições, não em função delas, mas sim do Deus de Israel. (NEGRO, 2009, p.156)
Uma criança que chega do céu e apresenta super-poderes à medida que cresce, no mínimo é especial. Apesar de que, nas histórias do Superman, não há nada que se remeta a ele como função de oráculo, muitos interpretam o nome Kal-El como significando “voz de Deus”12. Mesmo com a grafia Kal-L, a sonoridade da letra L em inglês é muito próxima da palavra El que, em hebraico, significa Deus. Glen Weldon, também acredita que a Bíblia foi uma fonte de inspiração para a narrativa do mito fundador do Superman.
Mas nessa primeira versão de Krypton, cada cidadão é capaz de fazer façanhas incríveis – de fato, vemos primeiro Jor-L (O nome mudaria para Jor-El na romantização de 1942), ‘o principal cientista’, correndo e saltando centenas de metros até a sacada de seu quarto, onde a esposa Lora (depois Lara) espera com o filho recém- -nascido Kal-L. [...] Jor-L decide investigar a causa dos recentes terremotos que castigam o planeta e desaparece em seu laboratório. Como cabe a um homem que reconta um mito de criação, Siegel se entrega ao gosto por parafrasear a Bíblia. “E então, no quinto dia, Jor-L descobre a verdade...”. (WELDON, 2016, p. 53)
Ao crescer, Kal-El jura devotar sua vida a ajudar quem precisa; o “campeão dos oprimidos” se torna um instrumento em benefício da humanidade. Ao lutar contra decisões equivocadas da justiça, valentões que batem nas esposas, patrões que exploram seus empregados, políticos corruptos, Superman cumpre sua função de herói, mas também apresenta uma característica presente no profetismo judaico: sua forte integração com a realidade social
Denúncias de injustiças do Estado e erros do povo pertencem também à função dos profetas judeus. Jose Luís Cicre acredita que, a fim de que o profeta cumpra sua função eu-tu-eles, sua eleição por Deus deve ser para cumprir uma missão para com o povo. Ele está do lado da lei de Deus e dos valores e tradições do povo de Israel.
Com efeito, é impossível compreender os profetas sem levar em conta as tradições de Israel, que se transmitiam através dos diversos canais do culto, da sabedoria popular, das leis. (...) Mas a sociedade não traz para os profetas somente uma série de verdades e valores. Também oferece-lhes o seu apoio, embora muitas vezes se trate da homenagem póstuma de colocar flores no túmulo deles. Para que existam profetas, é preciso que pelo menos uma parte da sociedade os aceite. (CICRE, 1996, p. 128-129)
Em Superman #1 de maio de 1939, Jerry Siegel estabelece que são os pais adotivos a base moral do herói. Na cultura judaica, as “tradições de Israel” seriam os valores morais aprendidos com os pais, que se tornam não apenas a base ética, mas também ideais pelos quais se luta e tenta preservar. Princípios como esses, formadores da visão de mundo de Jerry Siegel, permeiam a construção de seu personagem, conforme escreveu: “O amor e o cuidado de seus gentis pais adotivos foi um importante fator na formação do futuro do garoto.”
Nos diálogos dos quadrinhos, o pai diz: “Agora ouça-me Clark, esta sua grande força, você deve esconder das pessoas ou elas terão medo de você.” A mãe, por sua vez, complementa afirmando: “Mas quando o momento apropriado chegar, você deve usar para assistir a humanidade.” O texto é claro ao afirmar que seus poderes devem ser usados somente para o bem da humanidade. Clark não deveria tirar vantagens de seus poderes para proveito próprio – os poderes servem a um propósito altruísta.
O desenho de Joe Shuster tem traços de expressividade muito marcantes. Ao desenhar o requadro, Shuster quer deixar claro que este é um momento chave e importante para a história do herói. O pai, sem o nome ainda revelado, está sentado, com a mão esquerda no ombro do filho, como se lhe aconselhasse e abençoasse o mesmo tempo. O jovem Clark está com os olhos fitos no pai. O olhar é de seriedade, um pouco de assombro, mas o desenho de Shuster transparece um Clark confiante, que não tem medo de seu destino – ele está de peito estufado com as mãos no bolso da calça, em posição resoluta.
A partir daí, Clark será um rigoroso devoto das lições morais que aprendeu com seus pais. Tanto Clark, o repórter, quanto Superman, o herói, são exemplos de moralidade. Aqui, ele diverge do Zorro, por exemplo, uma das inspirações para a criação de Shuster. Dom Diego é descrito como um jovem boêmio. Pode-se pensar em Clark/Superman como um judeu devoto, que tenta seguir à risca a lei mosaica ou no mínimo, algo que C. S. Lewis chamou de moralidade universal ou tao universal13.
Sendo Clark um kryptoniano, ele não estaria preso a esta moralidade universal. No entanto, no reboot de 86 14, John Byrne cria o conceito de “âncora de humanidade”15, representado pelos pais, que permanecem vivos até à fase adulta do personagem; e Lois Lane, com a qual, finalmente, estreita seu relacionamento. Ela se apaixona por Clark, um claro sinal que aponta para o fato de que o repórter é o verdadeiro herói, enquanto o Superman é o que ele pode fazer16.
A devoção absoluta do Super-Homem à lei moral universal e à moralidade judaico-cristã está em completo contraste em relação à moralidade do poder de Nietzche. Onde Nietzche enxerga amor sacrificial como fraqueza porque está em conformidade com os padrões sociais, o Super-Homem o enxerga como força, pois respeita a Lei Mais Superior. (BARKMAN In IRWIN & WHITE, 2013, p. 31)
Esse Superman é, portanto, o extremo oposto do Superman Nazista ou do Nietzchiano. Kal-El é alguém que, literalmente, não precisa de ninguém e que não precisa viver sob nenhuma regra humana ou divina, sendo ele um kryptoniano e aparentando um quase deus na Terra. Isso torna seu compromisso moral, sua integridade, muito maior, já que ele decide viver sob essas regras, das quais não precisa.
Considerações finais
Superman, é também produto direto do universo mental de dois adolescentes judeus askhenazi, que viviam no Nordeste dos EUA nos anos 30. É também produto da Grande Depressão – evento histórico que, talvez, tenha sido o grande responsável pelo seu imediato e estrondoso sucesso ao se considerar a necessidade de justiça, de esperança, de um farol que iluminasse o caminho que se deveria seguir.
Como um profeta judeu do Antigo Testamento, a história do Superman quer falar. Contra a injustiça, a opressão, sendo um meio de esperança e moralidade. Sua história não apenas lembra a de Moisés, mas aponta para um povo e um estilo de vida. Os judeus, que já sofriam com o histórico antissemitismo, agora tinham de sobreviver e conviver com o nazismo. Kal-El pertence a uma raça superior, a kryptoniana, mas só é um herói porque vive a moralidade aprendida com seus pais humanos.
Os valores judaicos, e judaico-cristãos, eram questionados pelos regimes totalitários, como algo que representasse fraqueza e não força. Clark Kent não é nem o Übermensch de Nietzsche, nem o SuperHomem Nazista; ele não precisa e nem quer superar as amarras morais, aliás, ele as considera sua maior força, usando, inclusive, seus superpoderes para ajudar aqueles que mais precisam ao invés de escravizá-los a exemplo dos nazistas. Jerry & Joe criaram um super-herói que é um profeta, o qual fala através de sua história. Clark não se exibe – ele criou esse personagem Superman para que pudesse continuar ajudando as pessoas, e ao mesmo tempo, ter a vida normal de um homem comum.
Referências bibliográficas
BARKMAN, Adam. Super-Homem: de anticristo à arquétipo de Cristo. In: IRWIN, William & WHITE, Mark D. Superman e a Filosofia. São Paulo: Madras, 2014. p.125-135.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales, a inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
CICRE, José Luís. Profetismo em Israel, o profeta, os profetas, a mensagem. Petrópolis: Vozes, 1996.
DE CERTAR, Michel. A escrita da história. São Paulo: Forense Universitária, 2011.
LEWIS, C. S. A abolição do Homem. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2017.
NEGRO, Mauro. Profetas e profetismo: identidade e missão. Revista de Cultura Teológica, vol. 17, n. 67, abr/jun, 2009: 153 – 177.
WELDON, Glen. Superman, uma biografia não autorizada. São Paulo: Leya, 2016.
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Notas
[1] RICOEUR, P. Temps et récit III, Le temps raconté, Paris: Seuil, 1985.
[2] Em 03 de novembro de 1986 Ricoeur pronunciou na Faculdade de Teologia da Universidade de Neuchâtel uma conferência que está na base de dois artigos que ele pubicou em seguida, ambos com o título de “Identidade Narrativa”, e ambos publicados em 1988. Um foi publicado na revista Esprit, 7/8 (1988) 295-304 e o outro foi publicado na obra coletiva La narration. Quand le récit devient communication, Genebra: Labor et Fides, 1988, 287-300.
[3] RICOEUR, P. “L’identité narrative”, Esprit 7/8 (1988), 295-304. A tradução aqui apresentada é de CORREIA, J. C. “A Identidade Narrativa e o Problema da Identidade Pessoal”, tradução comentada de “L’identité narrative” de Paul Ricoeur”, publicado em Arquipélago 7 (2000) 177-194.
[4] RICOEUR, P. “L’identité narrative”, Esprit 7/8 (1988), 295-304. A tradução aqui apresentada é de CARLOS, J. C. “A Identidade Narrativa e o Problema da Identidade Pessoal”, tradução comentada de “L’identité narrative” de Paul Ricoeur”, publicado em Arquipélago 7 (2000) 177-194.
[5] Segundo o próprio Ricoeur, este termo “tecer intriga” é mais amplo que a simples “intriga” pois a engloba e ainda ajunta outros elementos presentes na narrativa como os personagens, os temas, a temporalidade, etc.
[6] RICOEUR, P. “O texto como identidade dinâmica”, in RICOEUR, P. A hermenêutica bíblica, São Paulo: Loyola, 2006, p. 117-129.
[7] Veja-se, por exemplo, LISBOA, J. M. A. O conceito de identidade narrativa e a alteridade na obra de Paul Ricoeur: aproximações In Impulso, 23(56), 2013, 99-112.
[8] RICOEUR, P. Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II, Paris: Seuil, 1986.
[9] RICOEUR, P. A hermenêutica bíblica, São Paulo: Loyola, 2006, p. 267-278.
[10] Há uma proximidade aqui com a proposta do método exegético histórico-crítico, como aparece em LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. Também BAENA, Gustavo. El Método Histórico Crítico In Theologica Javeriana, 122, p. 155-179.
[11] Adolphe Gesché, « Pour une identité narrative de Jésus », RTL 30/2 (1999) 153-179 – completado pela publicação da segunda parte do artigo no número seguinte da mesma revista: RTL 30/3 (1999) 336-356. Tais artigos foram por ele retomados em 2001, quando da publicação do sexto volume da coleção “Dieu por penser” (Le Christ. Paris: Cerf, 2001 – sua publicação no Brasil é de 2004.)
[12] Veja-se com proveito a compreensão de exegese literária apresentada por Adolphe Gesché, O Cristo São Paulo: Paulinas, 2004, especialmente p. 112-113.
[13] BULTMANN, Rudolf. Jesus Christ and Mythology. New Jersey: Prentice Hall, 1997.
[14] Positivismo histórico é aquele procedimento de estudo da história que quer manter-se adstrito aos dados das fontes, sem nenhum envolvimento do cientista que possa ser visto como interpretação. Efetivamente, no século XIX, com a afirmação dos nacionalismos europeus e a necessidade de criar bases sólidas para a união nacional, surge a preocupação de fazer da história uma ciência a mais exata possível, o que acabou por exigir a comprovação documental de tudo o que se afirmava em seu âmbito. A eventual carência de documentação ou seu comprometimento pelo envolvimento das fontes, significaria a impossibilidade de afirmação do evento histórico e mesmo de sua existência histórica. Veja-se BORGES, Pacheco Vavy. O que é história, São Paulo: Brasiliense, 2006.
[15] Veja-se BULTMANN, Rudolf. Existence and Faith. Shorter Writings of Rudolf Bultmann, edited and translated by S. M. Ogden, London, 1961.
[16] BULTMANN, Rudolf. Jesus Christ and Mythology. New Jersey: Prentice Hall, 1997.
[17] Idem.
[18] Por exemplo, BORNKAMM, Gunther. Jesus de Nazaré, Petrópolis: Vozes, 1976.
[19] A terceira busca do Jesus histórico, evidentemente, supõe duas buscas anteriores. A primeira, conhecida como busca liberal, data do final do séc. XVIII e tratou-se de diferentes tentativas de reconstituir uma vida de Jesus que não se iniciasse com as afirmações dogmáticas e que fosse encaminhada a partir da harmonização dos diferentes textos evangélicos; tais textos são confessionais, no sentido de terem o compromisso de testemunhar a fé das primeiras comunidades crentes, o que impossibilitou o avanço de tal busca. Uma segunda busca nasce na metade do século passado e liga-se ao método histórico-crítico e à situação vivida por Bultmann, por exemplo, como foi dito; distingue, pelo próprio método exegético empregado, o que poderia ser atribuído a Jesus e o que seria produção da comunidade redatora do texto evangélico; em última análise, tudo será produto da comunidade redatora, já que se trata de texto redigido, e ela conhece seu limite prático que é o mesmo limite do método histórico-crítico. A terceira busca à qual se alude, começa por volta dos anos 1980 e visa recolocar Jesus no contexto religioso, social e político de seu tempo; várias disciplinas, como as citadas, fornecem informações sobre Jesus e seu ambiente de vida, de tal forma que se pode conhecer melhor o personagem em relação ao ambiente onde viveu.
[20] Para os estudos da terceira busca do Jesus Histórico veja-se CROSSAN, John D. O Jesus histórico, Rio de Janeiro: Imago, 1994; MEIER, John. Um judeu marginal, 5 vols., Rio de Janeiro: Imago, 1993-2003; PAGOLA, Jose Antonio. Jesus, aproximação histórica, Petrópolis: Vozes, 2010.
[21] Por exemplo, Reza Aslam, Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré, Rio de Janeiro: Zahar, 2013; André Leonardo Chevitareze e Gabriele Cornelli, A descoberta do Jesus histórico, São Paulo: Paulinas, 2009.
[22] Bento XVI, Jesus de Nazaré, 3 vols., São Paulo: Planeta, 2007; Principia, 2011, 2012.
[23] Por exemplo Antonio Manzatto, Teologia e Literatura, São Paulo: Loyola, 1994; também Alberto Toutin, Teologia y literatura, hitos para um diálogo; Anales de la Facultad de Teologia 3; Suplementos a Teología y Vida; Santiago: Pontifícia Universidad Católica de Chile, 2011.
[24] CROSSAN, John D. O Jesus histórico, Rio de Janeiro: Imago, 1994; PAGOLA, Jose Antonio. Jesus, aproximação histórica, Petrópolis: Vozes, 2010.
[25] Adolphe Gesché, O Cristo São Paulo: Paulinas, 2004.
[26] Veja-se Pierre Grelot, A esperança judaica no tempo de Jesus, São Paulo: Loyola, 1996; Vários, Apocalipsismo, Porto Alegre: Sinodal, 1983; e os clássicos Harold Henry Rowley, A importância da literatura apocalíptica, São Paulo: Paulinas, 1980; Leonard Rost, Introdução aos livros apócrifos e pseudepígrafos do Antigo Testamento e aos manuscritos de Qumran, São Paulo: Paulus, 1980.
[27] Cf. Gottfried Brakemeier, Reino de Deus e esperança apocalíptica, São Leopoldo: Sinodal, 1984; também Pierre Grelot, A esperança judaica no tempo de Jesus, São Paulo: Loyola, 1996.
[28] Cf. Antonio Manzatto, “O Messias do texto”, Ciberteologia, v. 36, 2011, p. 5-22.