Teresa de Ávila e a parábola do bicho-da-seda. Encantamento em prosa para um renascer em Cristo
Teresa of Avila and the parable of the silkworm. Enchantment in prose for a rebirth in Christ

Lúcia Pedrosa-Pádua*
*Doutora em Teologia Sistemático-pastoral (PUCRio, Bolsa CAPES no Centro Internacional de Estudos Teresiano-Sanjuanistas de Ávila – CITeS), professora de teologia na PUC-Rio e pesquisadora nas áreas de Mística (especialmente de Santa Teresa de Ávila), Antropologia Teológica e Mariologia. Contato: lpedrosa@puc-rio.br
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Resumo
Estamos no interior de um dos símbolos mais importantes do livro Castelo Interior ou Moradas, de Santa Teresa de Ávila. Literariamente, pode ser lido como uma unidade com valor próprio. A autora encontra-se numa encruzilhada narrativa, precisa mostrar que o amor de Deus opera uma transformação interior em direção à liberdade, à beleza e ao amor concreto, aquele vivido nas relações humanas cotidianas. Mas esta metamorfose é também morte, alteração da rota, transformação radical em relação à anterior forma de vida, tão apegada a mil coisas. Não é possível seguir adiante sem abrir espaço, sem deixar algo. São João da Cruz havia expressado esta realidade poeticamente: “Matando, trocaste morte por vida”. Teresa o faz pela imagem da metamorfose do bicho-da-seda em uma “borboletinha branca”, passando pela construção do casulo. A narrativa teresiana é marcada por linguagem cheia de encantamento e poesia, em especial, pelo uso do recurso literário dos diminutivos. A narrativa revela uma mística cósmica e intenciona ser uma parábola da vida cristã que, confiada no próprio Cristo, “entra” em sua vida para com ele renascer.

Palavras chave:Santa Teresa de Ávila. Mística e literatura. Parábola do bicho-da-seda. Teologia. Teo-poética

 

Abstract
We find ourselves within one of the most important symbols of the Interior Castle or The Mansions, of Saint Teresa of Ávila. From the literary point of view, it can be read as a unit with self-value. The author is at a narrative crossroads, she needs to show that the love of God operates an inner transformation toward freedom, beauty and concrete love, lived in the day-to-day human relations. However, his metamorphosis is also death, a change of route, a radical transformation from the previous way of life characterized by several material. It is not possible to move forward without open space and without waivering. Saint John of the Cross expressed this reality poetically: “In killing you changed death to life”. Teresa demonstrates this through the analogy of the silkworm metamorphosis into a “little white butterfly”, with the construction of the cocoon. Teresa’s narrative is marked by a language full of enchantment and poetry, particularly making use of diminutives as a literary resource. The narrative reveals a cosmic mysticism and intends to be a parable of the Christian life that, entrusted in Christ, “enters” into his life to be reborn.

Keywords:St. Teresa of Avila. Mysticism and literature. Parable of the silkworm. Theology. Teo-Poetics

Introdução

O bicho-da-seda e sua metamorfose. Estamos no interior de um dos símbolos mais importantes do livro Castelo Interior ou Moradas, de Santa Teresa de Ávila.

A autora encontra-se numa encruzilhada narrativa. Precisa mostrar que a união com Deus é união com um amor que opera uma transformação interior em direção à liberdade, à beleza e ao amor concreto vivido nas relações humanas cotidianas. Mas, esta transformação é também morte, alteração da rota anterior, mudança da forma de vida apegada a mil coisas e em mil direções. Na vida espiritual, aprendera Teresa, não é possível avançar sem abrir espaço para a vida nova. E isto significa deixar algo. São João da Cruz, em seu poema Chama de amor viva, havia expressado esta realidade poeticamente: “Matando, trocaste morte por vida”. Santa Teresa de Jesus o faz em prosa.

Como expressar esta realidade de morte e vida que ela mesma, Teresa, experimentara em si, sem desanimar o leitor e a leitora que anelam o caminho espiritual profundo? É neste momento da narrativa que Teresa entra em contato com um conhecimento inesperado, vindo do mundo da natureza: ela vem a saber sobre a metamorfose do bicho-da- -seda, o que a deixa maravilhada com o cosmos e com o milagre da vida. Ali encontra, então, a inspiração para seguir narrando as etapas da vida espiritual em seu castelo interior. Embora sem ainda ter visto os casulos, descreve a transformação da borboleta, com detalhes, mostrando a passagem de uma situação em que parece que não existe vida a uma nova situação em que, crescida, a lagarta começa a fiar, com sua boca, o seu casulo. E, nele fechada, em seguida o abandona, na forma de graciosa “borboletinha branca”.

A descrição da natureza dá espaço à descrição da transformação interior que vem da união com Cristo – “casulo” que traz liberdade. A narrativa possui muitos elementos alegóricos que evidenciam o fluxo dinâmico da vida pascal, sempre chamada a se renovar no amor divino. Em seu conjunto, é uma verdadeira parábola pascal.

Narrada em prosa, a parábola envolvente insere o leitor numa imagem em movimento e suscita o desejo de conversão e vida nova. Teologicamente, é um pequeno tratado sobre a graça do Deus que se autocomunica pelo espírito de Cristo, provoca transformação, suscita acolhida, doa uma vida nova em liberdade e criatividade para amar. Nas moradas posteriores, esta borboleta será consumida pelo fogo interior, transmutada em ave fênix. Mas, aqui, nos interessará apenas esta transformação do que parece não ter vida em vida.

Este estudo se estrutura em quatro pontos. Comentaremos a imagem da metamorfose tal como Teresa a descreve; ressaltaremos o encantamento da linguagem, em especial, pelo uso do recurso literário dos diminutivos; ressaltaremos a consciência cósmica do mistério das criaturas na mística teresiana e finalizaremos com a aplicação doutrinal que faz, da alegoria do bicho-da-seda, uma parábola da dinâmica de vida e morte.

1. A imagem da metamorfose

Aos sessenta e dois anos, ao escrever seu livro-síntese, Castelo Interior ou Moradas, Teresa de Ávila tenta descrever a oração de união com Deus da melhor forma que consegue, nas Moradas Quintas. Várias comparações passam por sua pluma, adestrada no saber comunicar. A experiência da união com Deus, enquanto realidade radicalmente transformadora, é simbolizada na adega do vinho, na cera maleável, no encontro de namorados. Mas há uma advertência final: a união verdadeira com Deus se dá no amor concreto.

Ora, dentre os símbolos da transformação, talvez Teresa não tivesse a consciência de que deixaria uma pequena joia literária para a história da espiritualidade cristã: a alegoria da metamorfose do bicho-da-seda. Mais do que comparações com a oração de união, trata-se de uma verdadeira parábola do desenvolvimento da vida espiritual, na qual o leitor se insere com a sua vida, para sair transformado. A intenção principal é mostrar a necessária transformação, profunda e radicalmente nova, da vida daqueles que se unem ao Deus de Jesus Cristo.

Para iniciar, nossa autora faz uma descrição do fenômeno da natureza, base de sua alegoria. Inicia com o tom coloquial que a caracteriza e envolve o leitor num ambiente de louvor pelas maravilhas de Deus: “Já tereis ouvido das maravilhas de Deus no modo como se cria a seda, invenção que só Ele poderia conceber” (SANTA TERESA, 1995, p. 493).

Rapidamente, Teresa passa à descrição do início do processo da metamorfose, que acontece com o ovo do bicho-da-seda. Porém, em sua redação, Teresa, que não conhecia o fenômeno senão de ouvir falar, não menciona o ovo, mas uma semente: “É como se fosse uma semente, grãos pequeninos como os da pimenta” (SANTA TERESA,1995, p. 493). Ora, por que uma “semente”? E por que de “pimenta”? Teria Santa Teresa em mente a ideia da pequena semente do Reino (Mc 4,31-32)? Parece ter sido assim que um dos seus primeiros leitores, o Pe. Gracián, interpretou, pois anotou à margem do manuscrito teresiano, como correção ao “grão de pimenta” descrito por Teresa: “mostarda” (SANTA TERESA, 1990, p. 80). Mal poderia este clérigo imaginar que a criatividade de Santa Teresa apenas testemunharia sua genialidade literária e sua capacidade de se apropriar de maneira personalizada dos textos bíblicos.

Seguimos com a descrição teresiana, rápida porém detalhada:

com o calor, quando começa a haver folhas nas amoreiras, essa semente – que até então estivera como morta – começa a viver. E esses grãos pequeninos se criam com folhas de amoreira; quando crescem, com aquelas raminhas, cada verme, com a boquinha, vai fiando a seda, que tira de si mesmo. Tece um casulinho muito apertado, onde se encerra; então desaparece o verme, que é muito feio, e sai do mesmo casulo uma borboletinha branca, muito graciosa (SANTA TERESA, 1995, p. 493).1

Nesta descrição, o bicho-da-seda cresce, passando de uma situação em que parece não ter vida, como o pequeno grão de pimenta, a outra em que, crescido, começa a se alimentar das folhas da amoreira para, já adulto, fiar, com sua boca, o seu casulo. O que provoca este desenvolvimento? O calor e os alimentos das folhas das amoreiras. Crescida, a lagarta fia e se fecha em seu casulo para, em seguida, abandoná-lo na forma de graciosa “borboletinha branca”.

Conhecer este fenômeno já bastaria, segundo Teresa, para alimentar a vida espiritual e levar a pessoa a louvar a Deus. Mas nossa autora vai além, primeiramente pelo encantamento da linguagem utilizada na narrativa, como veremos a seguir.

2. Uma particularidade literária: o encantamento dos diminutivos

Literariamente, a descrição da transformação do bicho-da-seda em borboleta e sua aplicação doutrinal podem ser lidas como uma unidade com valor próprio. Dentre os detalhes de linguagem, há um que merece destaque: a utilização dos diminutivos.

Com relação ao uso dos diminutivos, torna-se obrigatório o estudo de Tomás Álvarez (1996), grande teresianista que deixou vasta obra em que adentra a alma teresiana em perspectivas distintas. Em seu estudo, Álvarez observa como Santa Teresa, em seus escritos, maneja os diminutivos com maestria, liberdade e espontaneidade, com variados sufixos e com cargas afetivas distintas. Para ele, os diminutivos refletem o pano de fundo lexical e cultural de Ávila, mas também, a interrelação entre a Teresa escritora e a Teresa conversadora, de palavra livre e direta. Teresa fala a língua das ruas, das conversas familiares noturnas e dos conventos e, em sua linguagem escrita, busca manter este matiz popular em função de sua comunicação. Há um certo estilo ermitão, direto, despojado de purismos gramaticais e artifícios decorativos, com preferência pelas formas populares. Com relação aos diminutivos, Teresa os modula com intencionalidades que dependem dos contextos em que são utilizados. Alguns expressam ironia e humorismo; outros afeto e ternura feminina; outros ainda conotam valoração de apreço ou desapreço (ALVAREZ, 1996, p. 595).

O livro Moradas, dentre suas obras, apresenta em menor grau a espontaneidade e coloquialidade típicas de nossa autora. No cômpito geral, conta com menos palavras em diminutivo que seus outros livros doutrinais, Vida e Caminho de Perfeição. Em seus poemas místicos, a Santa de Ávila nunca utiliza diminutivos (ALVAREZ, 1996, p. 590).

Porém, no texto que nos compete estudar aqui, vemos quatro diminutivos em duas frases seguidas. Os pequenos grãos se alimentam de raminhas; com a boquinha cada verme tece o seu casulinho apertado, para dele sair como borboletinha branca. A tradução brasileira, por nós utilizada, suprimiu dois destes diminutivos, “raminhas” e “casulinho”, tendo o primeiro literalmente desaparecido e o segundo substituído pela expressão “casulo pequeno”. Parece que o excesso teresiano confundiu o tradutor.

Alvarez qualifica estas formas, nas Quintas Moradas, como exemplos de “diminutivos de afeto e ternura”, que “impregnam certas páginas de Teresa de um eflúvio de efusividade feminina” (ALVAREZ, 1996, p. 596)

Podemos concordar com este grande teresianista. Os diminutivos conotam o transbordar do maravilhamento crescente de nossa autora ao descrever o inacreditável fenômeno. Mas podemos acrescentar também que a alma feminina de Santa Teresa, nestes diminutivos excessivos, une uma consciência cósmica, uma passividade diante da beleza, uma curiosidade científica e uma experiência mística. Na narrativa de nossa autora, encontramos um excesso integrador, ao mesmo tempo afetivo e reflexivo, de experiência espiritual e de desejo de comunicação que faz com que o/a leitor/a, junto com ela, louve as maravilhas de Deus. Passemos a este aspecto interessante de nossa Teresa: a consciência da misteriosidade das criaturas.

3. Mística cósmica, ciência e estética unidas

A natureza sempre maravilhou Teresa de Jesus. Para ela, que ouvira havia pouco tempo sobre o processo da metamorfose do bicho-da-seda em borboleta, através talvez de algum missionário vindo do Oriente no tempo em que esteve na cidade de Sevilha (GUERRA, 2013, p. 542), esta descrição da natureza seria suficiente para o leitor se desfazer em louvores a Deus. De fato, a Santa abulense sempre desejou ter maiores conhecimentos do mundo natural, pois via nele grandes segredos. Um dia afirmou, também no livro Moradas e igualmente utilizando um diminutivo, que

Em tudo o que Deus criou, até as coisas mais pequenas, há mais do que se pode entender, ainda que seja uma formiguinha (TERESA DE JESUS, 1995, p. 477).

Quando uma “formiguinha” fora utilizada, na literatura, para expressar o poder da ação de Deus? Trata-se de uma eloquente e original figura da presença de Deus em todas as criaturas e em tudo, que Teresa misticamente percebera. Em Moradas ela afirma textualmente que “Deus está em todas as coisas, fazendo-o por presença, potência e essência” (TERESA DE JESUS, 1995, p. 491) e, no livro das Relações, afirma que, do interior humano, Deus se “comunica a todas as coisas criadas” (TERESA DE JESUS, 1995, p. 813). Assim sendo, o diminutivo teresiano ilustra e reforça literariamente a consciência de que todo o cosmos é morada do próprio Deus.

Para ela, a natureza era semelhante a um livro de oração, como ela mesma nos conta em seu Livro da Vida:

A mim aproveitava também ver campos, águas, flores. Nessas coisas me lembrava do Criador, porque despertavam o fervor, recolhiam-me e serviam-me de livro (SANTA TERESA, 1995, p. 67).

A natureza é, para nossa autora, um “livro”, Deus mesmo pode ser “lido” em sua criação, o visível torna-se a letra do invisível. Pela criação, Deus deixa a sua mensagem.

Em nossos tempos, o Papa Francisco valorizou a dimensão simbólica, espiritual e teológica de todas as espécies, que têm valor em si mesmas, não por sua utilidade para o humano. Todas as criaturas “comunicam a sua própria mensagem” (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 27). No mesmo sentido, o teólogo belga A. Gesché (2004, p. 157) afirmara que a natureza não é “um espelho dos nossos desejos e do que esperamos”, mas tem em si um segredo diante do qual o melhor a fazer é escutar. A sensibilização e admiração diante das criaturas levam a entender a sua mensagem e conduzem ao cuidado, para que sua voz não se extinga.

Interessante é percebermos que hoje, com toda a nossa tecnologia, o coração místico – que experimenta o mistério – continua a se maravilhar com as imagens outrora escondidas da natureza, como as da vastidão do cosmos, do infinitamente pequeno do DNA, do infinitamente rápido ou lento, do mais profundo na terra, dos espaços altos que nos escapavam da visão. Podemos dizer que as ciências da natureza trazem em si uma dimensão estética e nos colocam diante de algo que nos maravilha e nos convida à atitude mística de louvor, gratidão e fé.

Teresa soube captar esta dimensão cósmica da ação divina. Ao mesmo tempo, uniu esta mística com um olhar científico, de desejo de conhecimento. Assim, nela, a mística cósmica, a ciência e a estética se unem e se traduzem literariamente com encantamento. Seus escritos são convite ao louvor a Deus, ao conhecimento da natureza e à experiência de um amor tão grande que se revela no tão pequeno!

Mas Santa Teresa não para por aí. Desta realidade maravilhosa da natureza surge uma teologia mística de salvação, que apontamos no próximo tópico.

4. A teologia mística: morrer e renascer em Cristo

A narrativa teresiana passa da descrição da natureza à sua aplicação teológico-doutrinal. Este é o verdadeiro interesse da Doutora da Igreja. Sua preocupação é que a pessoa comece a “ter vida”. A alma, comparada à lagarta, deixa a situação amorfa e frustrada da “semente” para iniciar um processo de transformação. A ação do Espírito divino – na parábola é o calor do sol – estimula uma decisão livre e consciente de acolher uma novidade de vida no seio da comunidade, a Igreja.2

Assim, na familiaridade com as narrativas dos Evangelhos, na participação nos sacramentos, nas leituras de qualidade, na escuta de boas homilias e nas meditações pessoais, em tudo isso vai acontecendo uma passagem de uma situação de morte para um movimento processual de mudança

Observemos, no texto teresiano transcrito abaixo, a importância dos sacramentos e da Palavra de Deus proclamada e ensinada, lida e comentada nos sermões e homilias.3 Num contexto em que a tradução da Bíblia nas línguas vernáculas estava oficialmente proibida pelos Índices de livros proibidos, a santa de Ávila posiciona-se firmemente por uma mística ancorada na Palavra viva. Nela, a profundidade e incidência espiritual da Palavra de Deus ganham prioridade à vastidão do conhecimento, impossível, naquele momento, às mulheres e aos cristãos leigos, em geral. Os caminhos pelos quais a Palavra nos chega são comparados às folhas de amora descritos na parábola.

A alma – representada por essa lagarta – começa a ter vida quando, com o calor do Espírito Santo, começa a beneficiar-se do auxílio geral que Deus dá a todos, fazendo uso dos meios confiados pelo Senhor à Sua Igreja: confissões frequentes, boas leituras e sermões. São esses os remédios para uma alma que está morta em seu descuido, pecados e ocasiões de cometê-los. Então ela começa a viver e encontra sustento nisso, bem como em boas meditações, até estar crescida. É aqui que se concentra o meu propósito, pois o resto pouco importa (SANTA TERESA, 1995, p. 494).

O processo de crescimento, no entanto, exige mais. Há um momento crucial que só pode ser realizado pela própria pessoa, e este consiste em construir o próprio casulo. Aqui vem um salto teológico-antropológico fundamental: não apenas conhecer externamente a Cristo, mas entrar em Cristo, simbolizado no casulo, e deixar-se cristificar pela condução do Espírito. A explicação da parábola nos revela o seu sentido explicitamente pascal, batismal e cristológico (CASTELLANO, 1982, p. 544).

Neste processo, a ação pessoal de construir o próprio casulo é central. A união transformadora com Deus ganha, através do simbolismo do bicho-da-seda, um sentido de morte e renascimento propiciados por Deus, que passam pela acolhida humana. Torna-se necessária uma abertura pessoal à transformação. Vejamos:

Tendo, pois, se desenvolvido – que é o que disse no princípio disto que escrevi – a lagarta começa a fabricar a seda e a edificar a casa onde há de morrer. Eu gostaria de explicar que essa casa é, para nós, Cristo (SANTA TERESA, 1995, p. 494).

Cristo é uma casa de vida nova e morte da não vida. De onde terá Teresa tirado esta imagem de Cristo como casa e casulo? Ela mesma externa, no texto, a sua inspiração paulina, que lhe parecia haver “lido ou ouvido” em algum lugar:

Creio ter lido ou ouvido em algum lugar que a nossa vida está escondida em Cristo ou em Deus – o que é a mesma coisa – ou que nossa vida é Cristo. Para o meu propósito, qualquer uma dessas expressões serve (SANTA TERESA, 1995, p. 494).

Observemos uma vez mais, no texto acima, a liberdade hermenêutica de Teresa diante dos textos bíblicos de Colossenses 3,3, Filipenses 1,21 e outros. Ora, lavrar a seda e edificar a casa, explica a santa, não quer dizer que a pessoa vá se transformar sozinha, prescindindo de Deus, mas sim que é possível e necessário acolher em si o dom de Deus e trabalhar-se a si mesmo. Parte importante do processo de transformação é a pessoa quem faz, em liberdade, quando acolhe honestamente a vida nova de Cristo em sua vida. Dom e tarefa não entram em contradição. Os exemplos de transformação que Teresa dá, na narrativa, dizem respeito à vida conventual:

...despojando-nos do nosso amor-próprio e da nossa vontade, do apego a coisinhas da terra, fazendo obras de penitência, oração, mortificação, obediência e tudo o mais que sabeis (SANTA TERESA, 1995, p. 494)

A estes “trabalhinhos” da pessoa, unem-se a gratuidade e genero-sidade do amor de Deus, manifestado em Cristo, mais forte e maior do que o nosso coração. É Ele quem, por sua vida, morte e ressurreição, demonstrou o desejo de se unir a nós e de nos introduzir em si para nos transformar, e de fato o faz. Cristo fundamenta a confiança com que a pessoa se entrega, em sua fragilidade de vermezinho, neste processo de transformação. Por isso Teresa convida, enfaticamente, a trabalhar pela morte do verme, ou do “homem velho”, que vive em nós. A santidade, lembrou Francisco (2018, p. 19), consiste “em morrer e ressuscitar continuamente com Cristo”, na vida cotidiana.

É o amor concreto a finalidade desta transformação libertadora. Ela gera aumento da liberdade para amar, fortaleza para uma vida operante e amor corajoso, mesmo no contexto de perseguição e preconceitos para com as mulheres, como foi o contexto de Teresa de Jesus. Nas mesmas moradas em que a parábola do bicho da seda é descrita, Teresa deixa clara qual é a verdadeira união com Deus: o amor de Deus e dos irmãos, manifestado em ações concretas, cotidianas e corajosas.

Conclusão

Enfim, a união com Deus é, para Santa Teresa, tanto o momento da oração em que se dá um encontro, em que as potências e faculdades ficam unidas e absortas pela presença de Deus, quanto um processo vital de comprometimento e entrega a Cristo. Inicia-se, então, uma vida nova, renascida, em que toda a pessoa busca a vontade de Deus. Nesta união, a mediação é Cristo, através do seu Espírito. Ele é a “casa em que morremos”, usando a comparação do casulo, no qual morre o bicho-da-seda para transformar-se numa linda borboleta branca. Esta dinâmica pascal se dá ao longo da vida, por isso esta narrativa pode ser vista como uma parábola batismal.

Literariamente, a narrativa atrai por sua forma afetiva e terna de escrever, ao mesmo tempo em que a descoberta cósmica e a reflexão sobre a natureza impõem um maravilhamento e uma necessidade de expressão. Enraizada na natureza, Teresa de Ávila tece uma página magistral da mística cristã, cujo conteúdo seduz à morte do “verme” e anima à vida nova de Cristo, pautada na beleza, na liberdade e na união transformadora do amor.

Bibliografia

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Notas

[1]Tradução baseada na edição brasileira, adaptada pela autora .

[2]Em meu livro Santa Teresa de Jesus. Mística e humanização, 2015, aprofundei sobre a experiência do Espírito Santo em Santa Teresa.

[3]Dos melhores estudos sob esta perspectiva está “Lectura de un símbolo teresiano”, de J. Castellano Cervera.