O herói místico nas HQs e a assimilação do tempo e das trevas
The mystic hero in Comic Books and the assimilation of time and darkness

Rogério Gonçalves de Carvalho*
Doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP, Doutor em Educação pela FEUSP, Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). É professor titular da Faculdade de Teologia Metodista Livre. Contato: rogeriogcarvalho@ gmail.com
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Resumo
As pesquisas e as obras que abordam a interface entre teologia e literatura, depois de tantos anos e após um número grande de contribuições, se encontram bem constituídas e ganharam um lugar respeitado entre os estudos teológicos no mundo todo. Não é surpresa, portanto, que, uma vez que a teologia estabeleceu diálogo com a literatura suscitando justamente seu poder narrativo, também em algum momento estabelecesse diálogo e pesquisa com um tipo de narrativa peculiar como as Histórias em Quadrinhos (HQs). Na verdade, muito do que se descobriu metodologicamente na relação da teologia com a literatura é aplicável nessa relação entre teologia e HQs. Nesse sentido, nossa contribuição leva em conta o que se conhece comumente como uma “mythohermenêutica” ou, mais precisamente, uma análise dos elementos arquetípicos, simbólicos e principalmente míticos, porque narrativos por excelência, das HQs de “heróis místicos” (Spawn, Hellboy e Constantine: Hellblazer). Compreendendo que o mito tem uma relação íntima com a origem da teologia, nos debruçaremos sobre personagens que trazem em seu arcabouço narrativo as características míticas que se antepõe aos clássicos “heróis puros” dos quais estamos acostumados a conhecer e se deslumbrar na cultura pop.

Palavras chave:Teologia e HQs de heróis; mythohermenêutica; heróis místicos; Gilbert Durand

 

Abstract
Researches and works that deal with the interface between theology and literature, after so many years and after a number of contributions, are well established and have gained a respected place among theological studies worldwide. It is not surprising, then, that once theology established a dialogue with literature by raising its narrative power precisely, it would also at some point establish dialogue and research with a peculiar kind of narrative such as Comic Books. In fact, much of what was methodologically discovered in the relationship between theology and literature is applicable in this relationship between theology and comics. In this sense, our contribution takes into account what is commonly known as a “myth-hermeneutic” or, more precisely, an analysis of the archetypal, symbolic and mainly mythical elements, because narratives par excellence of the comic book heroes (Spawn, Hellboy and Constantine: Hellblazer). Understanding that the myth has an intimate relationship with the origin of theology, we will focus on characters that bring in their narrative framework the mythical characteristics that precedes the classic “pure heroes” of which we are accustomed to know and dazzle in pop culture.

Keywords:Theology and heroics comics; myth-hermeneutic; mystical heroes; Gilbert Durand

Introdução

Não poucas vezes as Histórias em Quadrinhos (HQs) de heróis foram consideradas uma “arte menor” e seus leitores gente imatura, sem habilidade para lidar com a realidade ou com temas mais adultos. De fato, em sua origem as HQs de heróis nos Estados Unidos, principal mercado desse gênero, tinham como alvo o público infanto-juvenil. Ainda era um mercado insípido e tímido. Mas, com o tempo, cresceu ao ponto de atualmente gerar bilhões em entretenimento que vai do cinema à literatura, passando pela indústria de roupas, Action Figures, brinquedos e eventos grandiosos.

Seria então temerário permanecer com uma postura de negação diante desse fenômeno da cultura pop e acreditar que o critério juvenil versus adulto ainda serviria para avaliar as HQS de heróis, seja como gênero de mercado e consumo, seja como um vetor de temas antropológicos prementes como a questão da existência humana, o seu destino, ou de seus atos heroicos, lembrando aqui que as HQs de heróis são, em grande medida, simulacros modernos de antigos mitos e suas origens arquetípicas. Aliás, das muitas vertentes que poderíamos citar aqui sobre o valor das narrativas desenhadas como as HQs, o poder do mito possivelmente seja um dos mais importantes.

Sabendo disso, também não podemos nos furtar de compreender que o mito é um elemento fundamental na construção da linguagem teológica. Aliás, desde suas origens, mito e teologia são irmãs na experiência humana de transcender. Portanto, encarar a teologia apenas como organização sistemática e dogmática da fé em uma normatividade inflexível responde hoje por uma compreensão falsa da teologia. Aliás, Clodovis Boff (1975) compreende que o método teológico permite conceber a teologia como processo em constante dinâmica e construção no que ele denomina de “transformar o não teológico em teológico”. Dizendo de outro modo, sair da ingenuidade pré-moderna de uma teologia “de cima para baixo”, de conceitos já dados e definidos, e adentrar o universo antropológico de uma teologia de conceitos a serem constantemente reconstruídos e definições a serem redefinidas. Esse universo humano exige um esforço de aproximação do método teológico à dimensão simbólica, onde habita a unidade da transcendência com a imanência.

[...] Boff sugere que experiência do mundo como transparência pode articular as duas outras realidades: a imanência e a transcendência em uma única experiência, em um único olhar que capta a dupla dimensão da realidade, sem afirmar uma delas como exclusiva, donde ocorrerá a possibilidade de articulação da filosofia a da ciência no âmbito da teologia. Os símbolos são, por natureza, fragmentos transparentes da realidade, fragmentos que apontam para totalidade de sentido que transcende e fundamenta a realidade imediatamente experimentada. Na linguagem dos símbolos, as realidades imanente e transcendente encontram-se sem dualismo, paralelismo ou oposição. A experiência simbólica unifica as dimensões num único olhar, num único ato. (PASSOS, 2010, p. 123).

Não por acaso a teologia se aproxima tanto de um universo de transparência simbólica. Podemos até ousar dizer que muito da legibilidade da teologia depende justamente dessa transparência em meio a opacidade do mundo, que ponha a experiência em uma linguagem ao mesmo tempo imanente e transcendente.

Por conseguinte, todo e qualquer tema que interesse ao espírito humano é teologal, ou seja, pode ser enfocado a partir do postulado ou da presumida experiência de tal Realidade fundante – em si teológica. Mas sempre será prudente que o teólogo considere o que já dizia R. Alves: a Teologia não é um falar sobre o mistério, mas um falar diante dele. Ou seja, ele pronuncia-se a partir da experiência, de resto, irredutível à observação científica. (SOARES, 2013, p. 655).

Ora, se HQs são produtos do espírito humano, portanto um tema que interessa à teologia, não só porque possa conter elementos ou conceitos típicos do cristianismo ou da religião, então devemos nos debruçar sobre esse tipo de narrativa que, em um quadro mais amplo e quase universal, pode ser observado sob a luz dos símbolos e de suas expressões míticas.

O poder do mito

Richard Dawkins, biólogo evolucionista e etnólogo, nunca se contentou com as verborragias conceituais de seu campo de pesquisa. Pelo contrário, engendrou um conceito metafórico e “elegante” que serve bem para pensar a questão do mito, seja na teologia ou nos diversos tipos de narrativas como as HQs. Segundo Dawkins, com o objetivo de perpetuação, o gene humano usa o organismo apenas como uma estratégia de sobrevivência. Isso significa que o gene humano é “egoísta”, só está interessado em sobreviver, independente do comportamento altruísta da espécie humana. Aliás, o comportamento altruísta seria justamente uma das estratégias usadas pelo gene para se perpetuar. Um equivalente cultural do gene Dawkins denominou de “meme”, ou unidade básica de memória ou conhecimento que a espécie humana transfere para seus descendentes.1

Se aplicarmos esse conceito ao mito, poderíamos comparar o mito ao gene e ao meme; na intenção de se perpetuar, pois está na origem da linguagem humana, faz uso de estratégias diversas no campo do discurso. Nesse caso, as várias narrativas participantes desse campo discursivo seriam estratégias do mito com o objetivo de se perpetuar, com modulações diferentes de eufemização.

A eufemização do mito na linguagem teológica é maior porque a teologia tem geralmente uma linguagem eminentemente explicativa, racionalizando e sistematizando os dados da experiência religiosa; em contraposição, narrativas como a literatura ou as HQs utilizam uma linguagem indicativa (GRASSI, 1978), ou seja, fundada na experiência da criação e recriação, de escritura e leitura, sendo que só posteriormente ela passa por um corpo teórico. Enquanto em geral a teologia privilegia o seu estatuto teórico, as narrativas privilegiam o seu estatuto experiencial.

Durand (2002) entende que a eufemização é justamente a estratégia do mito em relação ao discurso; quanto mais racional e formal, mais eufemizado. Isso significa que o mito está menos eufemizado nas linguagens da poesia, das fábulas e das lendas, típicas do campo religioso e literário, embora mais eufemizado nas linguagens científicassistemáticas e estéticas, típicas do campo teológico e teórico literário. Isso significa que o mito “desliza” para o discurso eufemizador quanto mais o pensamento se formaliza. “Por outras palavras, é a retórica que assegura a passagem entre o semantismo dos símbolos e o formalismo da lógica [...]” (DURAND, 2002, p. 415). A retórica e o discurso são intermediários entre a imaginação e a razão.

Desse modo, a retórica, o discurso e toda forma de narrativa possuem um parentesco com o mito, pois o mito é a emanação narrativa do símbolo. O sentido supremo da fantástica, ou poder da imaginação, que é transcendental por natureza e baluarte contra o destino mortal, é o eufemismo que, por sua vez, mantém o mito como narrativa por excelência. Nesse sentido, a teologia e as diversas narrativas compartilham de uma natureza mítica numa tentativa de eufemizar a morte, ou seja, dar uma “face” mais aceitável e domesticável para o destino mortal, criando um discurso onde o mito domestica o tempo e marca um espaço de revalorização da esperança. O mito teria então uma função “terapêutica”.

A terapia mítica exige, muitas vezes, uma verbalização sem limite, um dizer que busca a cura. Por isso, para Wood (2012, p. 119):

Cervantes precisa que Dom Quixote tenha a companhia de Sancho Pança em suas viagens porque o cavaleiro precisa de alguém para conversar. Quando Dom Quixote manda Sancho procurar Dulcineia e fica sozinho pela primeira vez no romance por um período mais ou menos prolongado, ele não pensa, no sentido que hoje se entende pelo termo. Ele fala alto, fala sozinho.

As muitas narrativas, exatamente por terem nascido do ambiente do mito, tem esse dom para dizer alto, para verbalizar sem freio. No controle da narração, tendem a eufemizar a realidade a um discurso ficcional aparentemente sem medida. Aparentemente, pois tem regras bem claras e definidas.

Aliás, para Durand (2002), a realidade “ficcionalizada”, ou tornada uma metafísica, ou mesmo uma ontologia, que são práticas do discurso eufemizante, tem como base a imaginação. Imaginação que só aparentemente é solta, sem freio ou permissível ao voo. A imaginação, para o filósofo Bachelard como para o antropólogo Durand, não voam, não são livres como pensamos. Na verdade, se por um lado a imaginação se expressa no jogo mutável de peças no tabuleiro da linguagem, numa infindável troca de posições e situações, por outro lado a imaginação segue regras bem delimitadas. A imaginação tem expressão na linguagem humana em uma diversidade de possibilidades de dizer, tal qual um Dom Quixote sem a presença do Sancho Pança. Mas, como a imaginação não é solta, antes é escoltada pelo seu “Sancho Pança”, ou por sua consciência fenomenológica, trilha um caminho bem específico.

Nas intuições de Durand, a regra de ouro da imaginação é que ela é a expressão máxima da linguagem contra o destino mortal. A narração é impulsionada pelo tempo que escoa, posto que talvez seja a noção mais evidente da morte. Numa tentativa de eufemizar a face ameaçadora da morte, a narração procura domesticar o tempo pelos discursos, que servem de “fala” que se ergue como antidestino, contra o tempo.

Todos aqueles que se debruçaram de maneira antropológica, quer dizer, simultaneamente com humildade científica e largueza de horizonte poético, sobre o domínio do imaginário, estão de acordo em reconhecer à imaginação, em todas as suas manifestações (religiosas e míticas, literárias e estéticas), esse poder realmente metafísico de erguer as suas obras contra a “podridão” da Morte e do Destino. É Malraux quem, num livro, define a arte plástica como um “Antidestino” e, noutro livro, mostra como o imaginário emigra pouco a pouco das profundezas do sagrado para a irradiação do divino, depois metamorfoseia-se cada vez mais até a transposição profana da arte pela arte e, por fim, instala o grande museu imaginário da arte em honra do homem. (DURAND, 2002, p. 405).

Não são poucas as obras que se levantam contra a “podridão”, contra o destino ameaçador do tempo e da morte. Muitas dessas obras, sem dúvida, pertencem ao arcabouço da inventividade humana que se expressa nas diversas artes. Pela força da narrativa, pela habilidade de criar mitos, posto que nasceu deles, ergueram labirintos imaginários que só podem ser trilhados pela “fé do sapateiro”.

Há sempre uma certa humildade no sapateiro remendão, em contraste com a soberba de banqueiros da teologia dogmática. Ao trabalhar num calçado, por maior que seja a delicadeza da pala ele vai precisar, para nos calçar o pé, da sola firme e terrestre de que falava Heidegger. (DURAND, 1995, p. 17).

Desse modo, a narrativa é um ato de fé, de experiência humana, que se entrelaça no mito pelas mãos habilidosas do artífice, sem máquinas, sem tecnologias hipermodernas, sem sistematizações exageradas. Contar uma história, para além de tudo, para além dos modos e gêneros, em uma experiência de transcendência, ainda é contar uma história.

O “herói puro” e a negação do tempo e das trevas

Superman, Mulher-Maravilha, Capitão América, Hulk, HomemAranha e uma diversidade enorme de HQs de heróis entram nessa categoria que estamos chamando aqui de “herói puro”. São heróis que se aproximam muito ao ideal religioso de “vitória sobre a morte”. De heróis que cumprem expectativas e clichês das narrativas quase maniqueístas, do bem que venceu o mal, do ser luminoso que evitou as trevas, do uso das armas celestiais contra as armas infernais.

Durand (2002), quase criando um manual antropológico do imaginário presente nas narrativas em suas muitas vertentes, nos dá uma boa base para entender porque esses heróis possuem uma atitude diairética (em direção à luz do dia), se projetando para cima e para além, no atemporal. A instância negativa, ou seja, a angústia da morte, e que obviamente deve ser rechaçada, é representada por símbolos teriomórficos (animais), nictomórficos (trevas) e catamorfos (queda e abismo). Não por acaso os “heróis puros” combatem vilões que invariavelmente possuem essas características simbólicas.

Assim, a partir de imaginação diurna, tais heróis adotam uma atitude que reforça o aspecto tenebroso e maléfico de “Cronos”. Numa antítese da morte, antepõe a figura do herói com suas armas, que geralmente termina com uma teleologia ascensional e luminosa (o herói vence a morte, ressurge e sobe para o céu luminoso).

Visto que o regime diurno do imaginário está atrelado à figura do herói e à tecnologia das armas, os símbolos ascensionais serão de suma importância na representação do efeito pós-combate. A atitude heroica, que não conhece a fuga, apenas o combate perante a ameaça da morte, naturalmente persegue esquemas de discurso ancorados na ascensão e jamais na queda. Não cabe na linguagem heroica a derrota ou o fracasso final. É no combate vitorioso que a atitude heroica se desdobra nas representações do sucesso, conquista e triunfo.

Os símbolos ascensionais aparecem nas representações das escadas que sobem para o céu, nas montanhas como habitação dos deuses e nas asas que, segundo Bachelard, antecederam o sonho do voo e determinaram a invenção do avião. Por isomorfia da montanha e das escadas, surgem a pirâmide, o zigurate, o altar e, das asas, a flecha, a águia e, porque não dizer, as capas dos super-heróis.

Através dessas manifestações tecnológicas ou ornitológicas do simbolismo ascensional, verificamos uma vez mais que é o esquema do movimento que organiza os símbolos e mesmo os signos. É o dinamismo das imagens, o “sentido” figurado que importa, portanto, antes de tudo para a decifração não só dos símbolos, como também de certos signos sobrecarregados de semantismo e do sentido próprio dos conceitos. (DURAND, 2002, p. 135).

A simbologia do “altíssimo” necessariamente desencadeará o gigantismo das estátuas ou nas representações icônicas. O elevado, amarrado ao altíssimo, permitem a concepção dos deuses do Olimpo ou da monarquia que são de natureza tanto divina como patriarcal. A noção de pai e macho inevitavelmente está ligada à noção de “filho do céu” emtodas as suas aparições culturais2

Aliás, Durand não só elencou uma enorme lista de exemplos de símbolos que se relacionam entre si por isomorfia, mas descreveu suas aparições em várias situações e representações extraídas da cultura dos povos. Este último por exemplo, do “filho do céu”, Durand diz:

Dessa assimilação do céu ao monarca derivariam todas as filiações heroicas dos “filhos do céu” e do sol. Eliade mostra claramente nas culturas fino-úgricas a estreita ligação entre o Khan celeste, o Khan terrestre e os atributos paternos. O Khan terrestre é, com efeito, como o serão os imperadores da China, “filho do céu”. Esta ligação entre o céu e a paternidade manifesta-se universalmente quer entre os fino-úgricos, os chineses, as populações do lago Vitória, os índios Massachussetts, quer na tradição semítica, quer na egípcia. Esse simbolismo, ao dramatizar-se, metamorfosear-se-á no do Esopo celeste, companheiro fecundador da deusa mãe, e pouco a pouco os atributos da paternidade, da soberania e da virilidade confundir-se-ão. É o que acontece, no Ocidente, com o cetro que encima a sua autoritária verticalidade com uma “mão de justiça” ou uma “flor- -de-lis”, atributos nitidamente fálicos. Parece haver um deslizar da paternidade jurídica e social para a paternidade fisiológica e uma confusão entre elevação e ereção. (DURAND, 2002, p. 138).

Assim, Durand seguiu em um furor verbal e descritivo que fez ligar, por exemplo, a simbologia monárquica e paternal a uma constelação de imagens ligadas ao poder, como o político, o guerreiro e a casta sacerdotal.

A propósito, a noção de “constelação de imagens” ou “constelação de símbolos”, nos oferecem boas metáforas da estratégia utilizada por Durand para ligar um símbolo ao outro. Tendo uma fonte ou núcleo arquetípico, a constelação de símbolos que se organizam em redor desse núcleo vai sendo mapeada pouco a pouco, com isomorfias que, em primeira instância, não relacionaríamos.

Se ao núcleo constelacional da ascensão é contrário ao da queda, fica evidente que o núcleo constelacional contrário ao das trevas é o do “espetacular”. A luz, oposta à noite, é isomórfica com tudo o que é celeste e luminoso, mas também de tudo que deve ser visto, observado (latim spetaculum; Indo-Europeu spek). Aqui a cor branca se destaca nos cabelos e nas barbas da sabedoria3 , no azul celeste, no dourado e no Sol. É a luz que dá origem ao mundo de glória do paraíso depois da ressurreição, natural ascensão luminosa. A coroa, ligada homologamente ao cetro do rei e ao Sol, geometricamente se liga ao círculo e à mandala, ou à auréola cristã e budista. A luz ainda indica a onipresença do “olho que tudo vê”, à onisciência4 e, ligada a mostrar e demonstrar, faz da palavra sua eficácia, como na ciência e no mito. A palavra, por sua vez, se liga aos esquemas verbais do grito55 , do gemido, como na figura do cisne na heráldica, no mantra, na poesia, no trocadilho, nas palavras mágicas dos encantamentos e feitiços66.

Relação óbvia aos símbolos espetaculares, por causa da luz, temos os símbolos diairéticos, isto é, ligados ao dia. Razão pela qual a figura heroica tem sua ascensão contra as trevas ou contra o abismo. O herói solar usa suas armas brancas, como o gládio7 que, em sua ação fálica, reforçando óbvia alusão sexual, imprime sentimento de potência, de domínio. “É nesse sentido que se encontram, numa espécie de tecnologia sexual, as armas cortantes ou pontiagudas e os instrumentos aratórios.

A ação heroica do macho, sob a cultura do patriarcado domina as atitudes do príncipe encantado, libertador do reino e da virgem, das sociedades dos homens, como a militar ou das rodas dos sábios. Não são poucas as narrativas que perseguem esse regime diurno dos símbolos diairéticos, sejam as que estão presentes nos romances policiais, nos romances de capa e espada, nas HQs de heróis.

Quando estudamos a natureza das armas do herói é necessário abrir o dossiê admiravelmente constituído por Dumézil e Eliade relativo à dialética das armas divinas e ao problema mitológico do “ligar”. Dumézil, acumulando um grande número de observações documentais, tenta mostrar que as funções do ligador-mágico são irredutíveis às do guerreiro-cortador de nós. (DURAND, 2002, p. 165).

Por antífrase, característica do regime diurno, ao cortador, ação dominante do herói, se une a ação do ligador, daquele que, ao aprender a cortar e desligar, aprendeu a unir e religar. Atar, ação mais íntima do regime noturno, aqui, se torna ação de emendar. O regime diurno prenuncia o regime noturno por causa da natureza ambivalente da imaginação, tantas vezes ressaltada por Jung, Bachelard e pelo próprio Durand. Não por acaso heróis e reis, depois do combate vitorioso contra o monstro devorador, do abismo ou das trevas, prende, encerra, acorrenta a ameaça para sempre8 . As vezes os muros seguem uma vontade diairética de fechamento, de proteção, quando as armas de ataque são acompanhadas pelas armas de defesa: o escudo, a armadura, a couraça, o capacete, o círculo protetor.

No regime diurno da imagem, os seus isomorfismos, as suas dinâmicas de eufemização e a sua estratégia de “deslize” de um símbolo ao outro, seguem a lógica de quatro atitudes básicas derivadas da ideia de separação ou de “esquizomorfia”9 . São, portanto, quatro estruturas esquizomórficas.

A primeira estrutura é a esquizomorfa ou heroica por excelência e consiste num processo autístico típico do “herói”. Há perda de contato com a realidade, substituída pelo poder de autonomia e idealismo. As “alucinações” de combate e vitória, aniquilam a possibilidade, ainda que remota, de que a realidade também é feita de derrota e fracasso, ou, que o conflito pode ser resolvido de forma milagrosa, num deus ex machina, ou, ainda, pela dramatização do tempo cíclico ou linear, pelo processo que investe na evolução, no mito do progresso e na esperança.

A segunda estrutura é a Spaltung que, pelo poder da abstração e de uma atitude autística, se manifesta num furor analítico semelhante àquele encontrado no esquizofrênico. Aqui a marca da separação surge no limite máximo de seu poder analítico, sistemático e estruturante, como o das ciências modernas em geral, das religiões proselitistas de cunho ascético, ou em várias atitudes de separação e exclusão dos sistemas sociais e culturais etc.

A terceira estrutura é derivada da preocupação obsessiva de distinção e se expressa no geometrismo. Valoriza-se a simetria, a planificação e a lógica formal. Nessa estrutura se subordinam os pensamentos herdados da lógica aristotélica que exige os princípios de identidade e não-contradição, as concepções retilíneas e sincrônicas do positivismo empirista, a organização do conhecimento apenas pela via da construção de dados estatísticos e numéricos etc.

A quarta estrutura apresenta o pensamento tão somente por antíteses: imagens com simetrias invertidas. Estrutura que subverte a possibilidade de síntese, mestiçagem ou hibridismo ao falso dilema ou à falácia do isto ou aquilo. Mas, essa estrutura também evita a tentação de cair na explicação única, na armadilha das universalizações e absolutismos pela falta de ambivalência e divisão.

O “herói místico” e a assimilação do tempo e das trevas

Do lado oposto do “herói puro”, se localiza o “herói místico” e sua consequente assimilação dos símbolos da inversão. Ou seja, se o “herói puro” se encontra no lado luminoso, o “herói místico” assimila as trevas; se o “herói puro” luta com as armas da luz e dos céus, o “herói místico” luta ou se refugia utilizando as armas da escuridão e das intimidades ctônicas10 (o inferno é uma delas). Assim, o “herói místico” não nega a morte e as trevas, antes as assimilam, invertendo o perfil do heroico puro.

Desse modo, novamente recorrendo a Durand (2002), o regime noturno da imagem transmuta o aspecto negativo da morte capturando as forças vitais e benéficas do devir, do tempo que passa e escoa. Numa atitude de assimilação, converte a morte e as trevas em imagens e símbolos aceitáveis. Razão que permitiu o regime noturno ser observado sob uma estrutura mística.

Na estrutura mística, a subida e a luz se convertem em descida e trevas para penetrar nas profundezas. Em um gosto pela secreta intimidade, busca a cavidade, o retorno ao seio materno e se transforma em símbolo de repouso primordial. Se no regime diurno a ameaça da morte é negada e combatida, no regime noturno a ameaça da morte é assimilada e amenizada. A face horrenda de Cronos, o ataque do monstro devorador, o domínio das trevas e a queda no abismo são eufemizados. O tempo é dramatizado, como nos rituais de passagem e nos cultos de fertilidade, marcados pelos calendários astrobiológicos; o monstro é domesticado e ganha por vezes um perfil menos ameaçador ou é controlado, como nos seres das trevas em muitas narrativas; as trevas se tornam lugar de descanso da morte e espaço das ações místicas; o abismo se transforma no desejo pela secreta intimidade dos refúgios aconchegantes, como o túmulo ou as “casas” ctônicas, sejam elas subterrâneas ou nos meandros do inferno.

Assim como o “herói puro” precisava de suas armas protetoras, de seus escudos e capacetes, a descida também precisa de proteção, seja da couraça de um escafandro, do estômago de um peixe ou baleia, ou da entrada nas entranhas das trevas para lidar com o mal com estratégias advindas do próprio mal. Neste último exemplo, basta suscitar que a estratégia eufemizante do regime noturno permite um duplo que aproxima a ameaça ao ameaçado como solução do conflito: o ladrão é roubado, o enganador é enganado, o monstro devorador é devorado. É por isso que o duplo é isomórfico com a ideia de redobramento: o peixe engole outro peixe, que por sua vez é engolido por outro, assim sucessivamente e indefinidamente. O labirinto é feito de um corredor que se redobra em outros e este em outras bifurcações.

Se a noite no regime diurno era temida, pois são carregados de símbolos nictomórficos, no regime noturno a noite torna-se “tranquila” e convida aos segredos divinos. “Assistimos, antes de tudo, a uma reviravolta nos valores tenebrosos atribuídos à noite pelo Regime Diurno. Para os gregos, escandinavos, australianos, tupis, araucanianos da América do Sul, a noite é eufemizada pelo atributo ‘divina’” (DURAND, 2002, p. 218). A revalorização da noite, instância cronológica prevalente no “império da morte” e no “país dos mortos”, retoma a importância do luto e do destino final de todo ser vivente: a noite cai para todos.

A morte, antes terrível e símbolo último do tempo, é reduzida e eufemizada pelo retorno à própria casa. Razão que impulsiona os rituais fúnebres ligados à morada pós-morte. “É essa inversão do sentido natural da morte que permite o isomorfismo sepulcro-berço. A terra torna-se berço mágico e benfazejo porque é o lugar do último repouso” (DURAND, 2002, p. 237).

A interioridade protetora ou predileta anuncia a semântica do refúgio: castelo, cabana, casa, lugar de paz. Se o herói vai para o combate para dirimir as forças ameaçadoras do monstro devorador e rechaçar as trevas pela luz, o místico evita o combate e procura o refúgio, não por covardia, mas para conservar o ambiente de paz e harmonia. Ou, traz o conflito para o seu ambiente como território de trevas e magia, uma vez que certos poderes precisam ser adormecidos para depois serem transmutados.

Mas, o refúgio não precisa ser um lugar fechado por paredes e teto. Além do labirinto, observamos o modelo da mandala nos círculos fechados com fins protetores. Esse é o caso das imagens criadas pela ficção nos encantamentos e magias para manter demônios e entidades do lado de “fora”. Igualmente o jardim secreto ou o jardim “do centro” do reino seguem a simbologia do círculo sagrado11, às vezes contendo uma árvore sagrada ou da vida, um portal ou uma outra dimensão. Inclusive, a morada necessariamente não se prende a um lugar fixo. A morada sobre a água é retomada pelas imagens míticas em antigas religiões. A barca ou a arca de Noé, o navio fantasma, habitação de almas, ou a viagem mortuária do barqueiro Caronte, são exemplos.

Já um microcosmo pode representar o macrocosmo nas cascas de noz, como no universo de Stephen Hawking em O universo em uma casca de noz; na concha, como no nascimento de Vênus; no ovo, como o “ovo cósmico” da tradição alquímica. Tais imagens, da noz, da concha e do ovo, principalmente do “[...] ovo filosófico da alquimia ocidental e extremo-oriental encontra-se naturalmente ligado a este contexto da intimidade uterina. A alquimia é um regressum ad uterum” (DURAND, 2002, p. 253). Intimidade muito bem retratada por Durand no núcleo constelacional da taça. Taça que nos remete à vagina e ao útero feminino que, por isomorfia impregna o vaso, tantas vezes explorado pela literatura das lendas arturianas na busca pelo Graal, ou pelo imaginário do universo das bruxas e feiticeiras com seus cálices de poções e caldeirões de transmutação alquímica.

Mas, não só da matriz sexual a taça implica. A taça implica igualmente a matriz digestiva e a sua propriedade de ser continente, de conter. Isso significa que nessa matriz estão quase todas as simbólicas ligadas às técnicas alimentares e rituais de nutrição. “Toda alimentação é transubstanciação. É por essa razão que Bachelard pode muito profundamente afirmar que ‘o real é antes de tudo um alimento’. Entendemos com isso que o ato alimentar confirma a realidade das substâncias” (DURAND, 2002, p. 257).

Logo, morder, devorar e engolir não precisam ser, como no regime diurno, representações da ameaça devoradora. Aqui morder, devorar e engolir estão ancoradas no prazer, na libido que despertam. Não importa mais a casca, a couraça protetora, e sim o conteúdo, o corpo, o sangue, as substâncias interiores. São esses esquemas que acompanharão o elixir da vida e o leite materno, alimentos primordiais.

O elixir suscita todas os aspectos das bebidas sagradas, o soma ou beberagem sagrada. Na cultura védica a bebida sagrada era preparada pelos sacerdotes esmagando o caule do soma e misturado ao leite de vaca. Em outras culturas, como em algumas tribos indígenas da América do Sul, plantas alucinógenas são preparadas na forma de bebidas e chás. O vinho, “água da juventude”, pela cor vermelha, reabilita as simbólicas do sangue. Tanto que, beber e banhar-se no sangue-vinho é sinal de juventude eterna. Assim como o vinho, bebidas fermentadas e destiladas, como a cerveja e o whisky, permitem a quebra da rotina e do tempo mortal, substituídos pela festa, pela embriaguez orgiástica e mística.

A decantação, as filtragens e separações que muitas vezes são necessárias para o preparo das bebidas, por homologia, nos impulsionam a pensar nas simbólicas do ouro e do sal, elementos alquímicos por excelência. “O ouro, como sal, participa nestas fantasias de operações de mães de todo o substancialismo e que as noções de ‘concentrado’, ‘comprimido’, ‘extrato’, ‘suco’, etc., demarcam” (DURAND, 2002, p. 263). Ouro e sal são resultados de uma concentração, de técnicas de depuração e busca de uma pureza alquímica.

Toda essa comilança e beberagem que a taça insinua, em um devir da digestão, inevitavelmente desencadeará a valorização do excremento. Este, no regime noturno, está intimamente conexo com a psicanálise e dará a noção de “fezes criativas”, ou seja, o excremento como símbolo de criação, de primeira produção independente da criança, noção tão cara à psicanálise de Freud. Não por acaso a defecação imprime um imaginário psicossomático que, junto com o digestivo, permite desde a observação da saúde do indivíduo pela cor das fezes até a condição psicológica do indivíduo ansioso e nervoso expressa no intestino preso, gastrite ou úlcera.

Assim como no regime diurno, no noturno os isomorfismos, as dinâmicas de eufemização e a estratégia de “deslize” de um símbolo ao outro, também seguem a lógica de quatro atitudes básicas derivadas do núcleo constelacional místico, resultando em quatro estruturas.

A primeira estrutura é o redobramento dos símbolos que se apresentam na forma de continente e conteúdo, na persistência e repetição, o que conduz à “viscosidade do tema”. O que importa é a insistência temática, a repetição dos elementos e de seu verdadeiro leitmotiv.

A segunda estrutura, originada da primeira, ressalta a viscosidade estabelecendo conexões entre figuras logicamente separadas. Sua vocação verbal se fixa em palavras como reunir, prender, atar, soldar, aproximar, abraçar, etc. Isso permite unir elementos e símbolos aparentemente opostos ou muito diferentes como o cortador-atado, fezes com ouro, água com sangue, etc. Uma vez que a assimilação é técnica predileta pelo regime noturno da imagem, é compreensível que coisas diferentes sejam “rimadas” no mesmo espaço narrativo das imagens.

A terceira estrutura reside em um realismo sensorial das representações, como se as imagens fossem vivas, ou ainda mais, como se as imagens motivassem sentimentos concretos. Nisso Durand é devedor de Bachelard, para quem a matéria comanda a forma, a substância antecede a imaginação. Enquanto o regime diurno heroico quer manter distância das substâncias viscosas, pegajosas, sanguíneas e obscuras, pois relembram a tragédia, a derrota ou as dimensões escatológicas da vida, o regime noturno se aproxima, se apega a essas substâncias justamente porque representam a morte e a tragédia amenizada, tornada veste e fantasia para a dança da vida. As substâncias noturnas são “travestíveis”.

A quarta estrutura é a miniaturização das imagens em que há uma repetição dos detalhes que se tornam representativos do todo. Se por um lado o regime diurno prefere a limpeza, a pureza, a separação e a ordem, típicas da obsessão “esquizoide” de “uma coisa de cada vez”, o regime noturno não se importa com a profusão, a fusão, a duplicação infinita dos termos e partes. A operação matemática do regime diurno em geral é a subtração e divisão, a do regime noturno é a soma e a multiplicação.

Alguns “heróis místicos” de HQs

Elencamos três “heróis místicos”, assim mesmo, entre parênteses, pois Durand opõe o regime diurno das imagens, que está intimamente ligado à postura heroica, ao regime noturno das imagens, que está intimamente ligado à postura “anti-heroica”, que prefere o refúgio ao combate. Porém, nos apoiamos em Jung, Bachelard e no próprio Durand. Para estes, a imaginação tem natureza ambivalente, ou seja, um regime de imagens pode prenunciar e se “deslizar” para um outro regime de imagens. Um regime noturno, por exemplo, por causa de sua ambivalência, pode antever elementos, símbolos, imagens e mitos de um regime diurno e vice-versa.

Além disso, Yves Durand, seguidor das teorias de Gilbert Durand, ao criar um teste denominado AT9 (Teste Arquetípico dos 9 Elementos), que procura compreender como se dá a organização interna das constelações míticas e simbólicas nos indivíduos, em grupos de pessoas, ou mesmo em uma instituição (culturanálise de grupo), considerando os dois regimes, diurno e noturno, também precisou protocolos que delineiam tipos de heróis, tipos de místicos e tipos de sintéticos (que une o heroico com o místico). Por isso, ainda que os heróis elencados a seguir possuam elementos heroicos, muitas vezes aparentemente puros, na verdade, nunca são puros. Aliás, Yves Durand em seus protocolos indica no regime diurno um tipo de herói impuro, com tendências místicas, assim como um místico impuro, com tendências heroicas.

3.1.1. Spawn

Com suas múltiplas habilidades, o canadense Todd McFarlane (1961) sempre esteve envolvido com a cultura pop. Quadrinista, desenhista, editor, roteirista, artista plástico e até animador de clipes de bandas de rock (Pearl Jam, Disturbed e Korn), criou Spawn em 1992. A arte era feita pelo próprio McFarlane, mas o roteiro, além dele, passou pelas mãos de famosos como Frank Miller, Alan Moore e Neil Gaiman.

Antes de se tornar um “soldado do inferno”, Spawn era Al Simmon, agente da CIA, recrutado para missões de execução, chegando a se tornar um herói nacional ao salvar o presidente norte-americano de um atentado. Quando passou a questionar suas missões, foi morto em uma armadilha tramada por seu patrão Jason Wynn. Por ser um executor, Simmon foi enviado diretamente para o inferno e recrutado pelo demônio Malebolgia, que a cada 50 anos criava um soldado para liderar suas hostes no Armagedon. De Malebolgia ganhou poderes a partir de um traje simbionte que permite a Spawn imortalidade, fator de regeneração, assumir qualquer forma, superforça, poderes telepáticos e poderes mágicos.

Quando voltou para Terra depois de 5 anos, descobriu que sua esposa estava casada com seu melhor amigo, Terry Fitzgerald. Arrasado com a descoberta e confuso com sua aparência horrível, Spawn se revoltou contra sua missão infernal e passou a ser atormentado pelo demônio Violador, personagem com aparência de palhaço e que em determinadas situações se transforma em um monstro.

Spawn passou a viver nos becos de New York numa zona conhecida como Cidade dos Ratos. Nesse local o herói faz amizade com os mendigos, sendo um deles o Botas, amante de filmes de faroeste e por suas botas. Outro amigo foi Cagliostro, um idoso sempre envolto em mistérios e muitas vezes instrutor de Spawn para que aprendesse a controlar seus poderes. Posteriormente Botas se revela como o anjo Bellazikkal e Cagliostro era na verdade Caim, filho de Adão. Por ter sido o primeiro assassino da Terra, se tornou também o primeiro Spawn.

Talvez o maior antagonista de Spawn tenha sido Mammon, de uma tribo de anjos denominada de “os esquecidos”, pois, na rebelião de Lúcifer, não lutaram nem ao lado deste nem de Deus. Mammon se juntou ao inferno e passou a ganhar poder, ao ponto de planejar tomar o trono do Céu. Ao descobrir que Deus não estava lá, Mammon procurou acelerar o Armagedon.

É interessante notar que na mitologia de Spawn uma entidade chamada “Mãe” é a criadora do universo e mãe de Deus e Satanás, estes em constante guerra. A “Mãe” já se apresentou com diversos aspectos: Kali, a deusa da destruição; o Senhor dos Milagres, que ajudou Spawn em sua caminhada; o guardião do mundo verde, tendo sua forma mais conhecida como Jesus.

3.1.2. Hellboy

Contemporâneo de McFarlane, Mike Mignola (1960) criou Hellboy quase na mesma época que Spawn. A primeira aparição de Hellboy foi em 1991. Em 1993 foi publicado em preto e branco em uma revista e ganhou título próprio em 1994 (Sementes da destruição).

Hellboy é um ser nascido do inferno, cujo nome verdadeiro é Anung un Rama. Tem aspecto de um demônio com cauda, chifres cerrados e um punho com a forma de uma manopla com aparência de pedra na mão direita, que serviria como chave para libertar o Ogdru Jahad, os Sete Deuses do Caos, de uma prisão em outra dimensão. Filho de um demônio e uma feiticeira, foi invocado em 1944 pela Alemanha Nazista junto com o monge Rasputin, com a finalidade de trazer o apocalipse. Porém, antes que os nazistas pusessem as mãos no bebê Hellboy, foi descoberto pelo professor Trevor Bruttenholm e pelos soldados aliados em uma capela das Ilhas Britânicas. Bruttenholm criou Hellboy para evitar seu destino de trazer o apocalipse, valorizar o ser humano e combater as trevas.

Quando se tornou adulto, Hellboy passou a integrar a B.P.R.D. (Bureau of Paranormal Research and Defence), um tipo de Companhia que enfrenta e pesquisa ameaças sobrenaturais e paranormais como vampiros, monstros, lobisomens, golens e outras. Ao lado dele lutam Abe Sapien e Liz Sherman. Abe Sapien é uma espécie de anfíbio com habilidades telepáticas, manejo com armas e extremamente inteligente. Liz Sherman é uma paixão de Hellboy e tem habilidade pirocinética, ou seja, pode produzir e manipular fogo.

3.1.3. John Constantine (Hellblazer)

John Constantine surgiu em 1985 como um mero figurante na revista do Monstro do Pântano, criada por Alan Moore, e pelos desenhistas Stephen Bissette e John Totleben. No entanto, os desenhistas pediram para que Alan Moore desenvolvesse o personagem e, no ano seguinte (1986), John Constantine ganhou sua própria revista, Hellblazer. Daí para frente a revista passou por alguns célebres roteiristas como Jamie Delano, Neil Gaiman, Garth Ennis, dentre outros.

O ambiente das histórias de Constantine está repleto de fenômenos e eventos sobrenaturais. Razão pela qual o personagem e seus amigos se envolvem com mistérios que exigem enfrentar demônios, fantasmas, entidades, vampiros e outro seres sobrenaturais. Inclusive, tendo enganado o Diabo, Constantine, um fumante inveterado, se salvou de um câncer no pulmão.

Constantine age como um tipo de detetive e mago egocêntrico, cujas habilidades vão da magia à invocação de demônios. Utiliza objetos sagrados e profanos, rituais e espertezas quaisquer que possam conduzir ao seu objetivo de desvendar as relações conflituosas entre céu e inferno. Várias histórias revelam sua constante necessidade de fazer trapaças, barganhar com entidades e enganar. Constantine geralmente tem uma personalidade quase suicida e, muitas vezes, se entendia diante dos seres que enfrenta.

3.2. Os “heróis místicos” analisados a partir das quatro estruturas místicas

Retomando as quatro estruturas místicas e os consequentes impactos comportamentais, simbólicos e míticos sobre os “heróis místicos” que escolhemos podemos observar o seguinte.

3.2.1. Estrutura 1

Redobramento dos símbolos que se apresentam na persistência e repetição, o que conduz à “viscosidade do tema”. O que importa é a insistência temática, a repetição dos elementos e de seu verdadeiro leitmotiv.

Sendo assim, existem algumas repetições, coincidências, paralelos, persistências, ou seja, elementos simbólicos que marcam a “viscosidade do tema” nos três “heróis místicos” ou personagens. Dentre esses elementos podemos citar a origem infernal de forma literal em Spawn e Hellboy, e por escolha em Constantine.

Também podemos notar a rebelião que os três se propuseram diante da sedução das trevas e das forças do mal. Mas, justamente aliando-se a algumas forças do mal, combatem o próprio mal, numa eufemização e assimilação típica do regime místico.

Spawn, Hellboy e Constantine investigam, caçam e procuram atrair seus oponentes em seu território de conforto, como é o comportamento específico do regime místico que se centraliza na ideia de refúgio.

3.2.2. Estrutura 2

Originada da primeira, ressalta a viscosidade estabelecendo conexões entre figuras logicamente separadas. Sua vocação verbal se fixa em palavras como reunir, prender, atar, soldar, aproximar, abraçar, etc. Isso permite unir elementos e símbolos aparentemente opostos ou muito diferentes.

Desse modo, como já abordado acima, essa segunda estrutura reforça e explica porque os três personagens lutam com armas aparentemente contraditórias, isto é, o mal com o mal e as trevas com as trevas, em um processo de assimilação e integração (reunir, prender, atar, soldar, aproximar, abraçar), transformação e revalorização.

Elementos e símbolos aparentemente opostos também dão conta de entender porque os três personagens parecem destoar da expectativa que temos de um “herói puro”, seja na aparência, seja no comportamento. Aparências muitas vezes bizarras e comportamentos com uma tendência anti-heroica: mal-humorados, vingativos, contrários a seguir protocolos éticos e morais, insubmissos e sarcásticos.

3.2.3. Estrutura 3

Reside em um realismo sensorial das representações, como se as imagens fossem vivas. Integra em sua narração as substâncias viscosas, pegajosas, sanguíneas e obscuras, pois relembram a tragédia, a derrota ou as dimensões escatológicas da vida. As substâncias noturnas são “travestíveis”.

Nesse sentido, os três “heróis místicos” não se importam de assimilar e integrar substâncias e elementos que geralmente estão ligados à morte violenta e às marcas de derrota. Razão que nos faz compreender porque muitas vezes as revistas desses três personagens não economizam nas cenas trágicas e sangrentas e, na maioria das vezes, se entendiam diante delas.

Dos três personagens, Constantine, apesar de lidar com substâncias obscuras e noturnas, encontra-se mais eufemizado, se vestindo de forma até elegante, com camisa, gravata e um sobretudo. Já Spawn e Hellboy, além da aparência bizarra, literalmente se vestem e tem seus corpos formados por elementos que lembram a tragédia, o medo, o horrendo, com substâncias que vieram diretamente do inferno.

3.2.4 Estrutura 4

Miniaturização das imagens em que há uma repetição dos detalhes que se tornam representativos do todo. Se por um lado o regime diurno prefere a limpeza, a pureza, a separação e a ordem, o regime noturno não se importa com a profusão, a fusão, a duplicação infinita dos termos e partes.

Então, é compreensível que tanto as imagens quanto as narrativas presentes nas revistas dos três personagens tenham um cunho “pictórico”, do jogo de sombra e luz, de perfis enganosos e personagens oponentes que se escondem misticamente até que sejam revelados no embate com o “herói místico”. Aliás, seja por parte do oponente, seja por parte de Spawn, Hellboy e Constantine, a principal estratégia de conflito e luta seja a trapaça, os engodos, os simulacros que levam o oponente a se confundir. A confusão é típica da linguagem que não quer se manter pura, limpa e clara. Razão pela qual a profusão e a duplicação infinita de soluções improvisadas e misturadas. As armas dos “heróis místicos” mudam, se adaptam e são trocadas sem escrúpulos.

Conclusão

De pronto quem pesquisa e conhece o campo teológico já deve ter percebido que os personagens abordados não cumprem certas expectativas. Não encontramos neles as virtudes morais esperadas, aquelas que são construídas por uma subjetividade marcada pela bondade, pelo amor incondicional, pela misericórdia, pelo “fazer correto”, pelo modelo social “civilizado”. Na verdade, são personagens que caminham por uma trajetória obscura, cinzenta, onde bem e mal são irmãos do mesmo ventre. Mediadores entre o céu e o inferno, realizam um serviço que ninguém deseja e nem quer. Conclusão que nos conduz a encarar narrativas que merecem atenção por parte de uma teologia que se prontifique a um trabalho árduo de cultivo e colheita em um campo muitas vezes pouco explorado.

Não é difícil “achar” nesses personagens de HQs temas teológicos “clássicos” como o problema do mal, as simbólicas apocalípticas ou escatológicas, o papel dos traidores1212, o céu e o inferno, etc. Mas, para compreendermos a estrutura arquetípica, aquela que se manifestará de forma narrativa, independentemente do tipo de personagem, inclusive integrando temas normalmente não abordados, é necessário adentrar na dimensão dos mitos refundados em novas linguagens e universos. Dessa dimensão surge uma fonte inesgotável de onde a teologia pode encontrar muito o que dizer. Seguindo o conselho de Clodovis Boff, teologizar o que aparentemente não é teologizável, fazendo as engrenagens metodológicas girarem e retomando na teologia a sua constante capacidade de contar histórias.

Referências bibliográficas

BOFF, L. O pensar sacramental: sua estrutura e articulação. Revista eclesiástica brasileira, n. 35, Petrópolis, 1975.

DURAND, G. A fé do sapateiro. Brasília: UnB, 1995.

DURAND G. As estruturas antropológicas do imaginário: Introdução à arquetipologia geral. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GRASSI, E. Poder da imagem, impotência da palavra racional: Em defesa da retórica. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

PASSOS, J. D. Teologia e outros saberes: Uma introdução ao pensamento teológico. São Paulo: Paulinas, 2010.

SOARES, A. M. L. Ciência da Religião aplicada à Teologia In: PASSOS, J. D; USARSKI,F. (Orgs). Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas: Paulus, 2013.

WOOD, J. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Notas

[1]Equivalente foi encontrado pelas explicações de como a história humana pode ser percebida pela “história das mentalidades”, isto é, como certas mentalidades dominam uma época e é compartilhada por todos, até que, por uma estratégia do discurso, seja mudada por outra mentalidade. Nas pesquisas epistemológicas de Karl Popper, toda teoria científica deve ser passível de refutação ou falsificação para que seja substituída por outra melhor. Para Thomas Kuhn, um paradigma ou modelo, que comanda determinadas teorias de campos de estudo de uma época, é substituído por outro paradigma científico em um processo de longo prazo. Tais estratégias do discurso revelam um princípio universal do evolucionismo: a adaptação.

[2]Superman é um bom exemplo, tanto em sua perspectiva mosaica quanto em sua perspectiva crística, conforme nos lembra Carl Jung.

[3]Dos heróis que, por exemplo, no fim de sua jornada se tornam reis sábios, caracterizados com barbas e brancas cãs.

[4]Odin é um exemplo interessante

[5]Vários heróis e super-heróis se transformam a partir de um grito peculiar. Veja por exemplo o garoto Billy Batson que se transforma no Capitão Marvel ao dizer ou gritar a palavra SHAZAM.

[6]Apesar de muitos heróis místicos absorverem seus poderes do regime imaginário noturno e hermético, muitas vezes são ambientados em um universo diurno, de efeitos heroicos ascensionais e espetaculares. Exemplo na literatura e cinema é Harry Potter. Nos quadrinhos alguns magos e magas, dentre outros, utilizam palavras e rituais de encantamento como Ravena, Senhor Destino e Dr. Estranho.

[7] O gládio romano, espada curta usada pelos soldados, é o exemplo arquetípico predileto de Durand. Porém, ele pode se desdobrar em qualquer arma de combate, desde armas brancas como espadas e punhais, até armas de fogo.

[8]Invariavelmente o herói tem sua apocatástase, isto é, o seu triunfo final com a restauração de todas as coisas.

[9]Durand recebeu críticas sobre a sua comparação entre o regime diurno e as características presentes em doentes esquizofrênicos. Apesar disso, afirmou categoricamente que “[...] esse regime não se confunde com a modificação caracterial trazida pela doença, porque esse regime não tem em si mesmo nada de patológico [...]” (DURAND, 2002, p. 190).

[10]Relativo ao mundo subterrâneo.

[11]Jung dá explicações para os jardins e castelos construídos no formato de espiral tendo um centro “mandálico” ou um jardim circular com uma árvore plantada. A propósito, no filme O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, a cidadela denominada “Minas Tirith” tem esse formato e um jardim no centro contendo uma árvore da vida.

[12]Na literatura Judas se tornou um personagem bem explorado como um vetor obrigatório e fundamental para o sacrifício de Jesus na Cruz, ao ponto de fazer questionar se ele não teria sido o verdadeiro herói. Recomendamos o conto “Judas Iscariotes” de Leonid Andreiév e os contos “Tema do traidor e do herói” e “Três versões de Judas” de Jorge Luis Borges.