Agora sei falar: o judaísmo em O Gato do Rabino
Now I can speak: Judaism in The Rabbi’s Cat
Cristine Fortes Lia*
Daniel Clós Cesar**
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Resumo
A história de um gato que aprende a falar e dialoga com seu rabino, na Argélia, no
início do século XX, remete, em um primeiro
momento, a uma narrativa infantil da literatura
judaica. No entanto, não existe nenhuma ingenuidade no debate proposto pelo pequeno
felino. A obra de Joann Sfar revela a complexidade da fé e da existência de suas comunidades religiosas. Mais que isso, identifica a
relação entre a literatura e a religião como elementos identitários judaicos, bem como, o significado da palavra na identidade religiosa dos
judeus. Este estudo se ocupa da análise da
obra O Gato do Rabino como forma de transmissão dos valores judaicos, relacionando
a literatura contemporânea das histórias em
quadrinhos com a religiosidade. Analisa, também, a relevância dos quadrinhos nos espaços de aprendizagem, como mecanismo que
instrumentalize para o diálogo inter-religioso e
de tolerância.
Palavras chave: judaísmo; literatura; religião; histórias em quadrinhos
Abstract
The story of a cat who learns how to speak and talks to converses with his
rabbi in Algeria, at the beginning of the 20th century, firstly refers to a childish
childlike narrative of Jewish literature. However, there is no naivety in the debate
proposed by the little cat. The work of Joann Sfar reveals the complexity of the
faith and the existence of their religious communities. More than this, it identifies the relationship between literature and religion as Jewish identity elements,
as well as the meaning of the word in the religious identity of the Jews. This
study deals with the analysis of The Rabbi’s Cat as a form of transmission of
Jewish values, relating the contemporary literature of comics with religiosity. It
also analyzes the relevance of comics in the spaces of learning, as a mechanism
that instrumental for interreligious dialogue and tolerance.
Keywords:Judaism; literature; religion; comics
Considerações iniciais
Falar sobre a relação entre religiosidades e histórias em quadrinhos transparece a ideia de algo inusitado. Pensar essa relação em processos de aprendizagem é ainda mais raro. Os quadrinhos, em geral, são vistos como uma proposta de entretenimento, como flexibilização dos rigores do texto escrito. No entanto, a utilização da imagem na construção de conhecimento não pode ser analisada sob a luz da ausência da interpretação textual, a história visual é tão texto quanto qualquer outra parte da escrita para aprendizagem.
Histórias em quadrinhos fazem parte do cotidiano infanto-juvenil, sendo inclusive uma leitura que pode continuar na fase adulta, o que se constata no grande número de edições voltadas para o público adulto. “É o gênero mais lido entre os homens e o sétimo mais listado pelas mulheres. Especificamente entre estudantes até a quarta série, os quadrinhos são o terceiro item mais mencionado” (RAMOS, VERGUEIRO, 2014, s/p). Assim, a estratégia da utilização dos quadrinhos como mecanismo de aprendizagem possibilita ampliar a dimensão do texto, pois, em geral, as histórias em quadrinhos não sofrem rejeição ou preconceito dos seus leitores.
[...] em geral, as recebem de forma entusiasmada, sentindo-se, com sua utilização, propensos a uma participação mais ativa nas atividades de aula. As histórias em quadrinhos aumentam a motivação dos estudantes para o conteúdo das aulas, aguçando sua curiosidade e desafiando seu senso crítico.” (VERGUEIRO, 2012, p. 21)
Segundo Vergueiro (2012), já na década de 1940, nos Estados Unidos, foram publicados quadrinhos de caráter educacional, como a Real Fact Comics e a True Comics que abordavam histórias e biografias de personalidades estadunidenses e eventos históricos. Nestas primeiras publicações, consideradas pela indústria dos quadrinhos como educacionais, a editora Educational Comics lança a revista Picture Stories from the Bible, com abordagem religiosa em torno da cultura judaico- -cristã. As edições contavam histórias de passagens bíblicas, como a construção da arca de Noé e o dilúvio, a crucificação de Cristo, bem como a história dos patriarcas da cultura judaico-cristã. Outras publicações consideradas educativas também eram publicadas pela mesma editora, como Picture Stories from World History e Picture Stories from American History,
No Brasil, editoras como a Luz e Vida, Paulinas-COMEP e Paulus, todas elas ligadas a instituições religiosas cristãs, apresentam um grande número de publicações. Mesmo editoras não ligadas a igrejas ou instituições religiosas lançam um grande número de obras em quadrinhos com temática religiosa.
Pensar em fazer uso das histórias em quadrinhos para o ensino das religiões corresponde a um meio para o diálogo inter-religioso. Onde as histórias em quadrinhos podem contribuir para esse diálogo? A resposta pode estar na interdisciplinaridade oferecida por esta ferramenta. Religião aparece nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nos Temas Transversais, Ética e Pluralidade Cultural. Entre os objetivos dos PCNs, está a valorização da alteridade. Diferente de se fazer o uso de livros sagrados ou publicados por correntes teológicas específicas, os quadrinhos são um produto de acesso que sofre pouca ou quase nenhuma discriminação por parte dos estudantes.
Nesse sentido, trazer a temática das diferentes religiões por meio das histórias em quadrinhos para os espaços de aprendizagem corresponde a uma estratégia importante, por permitir um entendimento mais prazeroso da temática. Quanto mais distinta é uma manifestação religiosa para os educandos, mais significativo torna-se o recurso para abordá-la.
O judaísmo ainda é um tema pouco abordado no ensino brasileiro, tanto no que diz respeito às práticas religiosas, quanto à história e a literatura. Acredita-se que, pela comunidade judaica ser numericamente pequena no Brasil, os judeus ainda são pouco estudados enquanto grupo religioso. Sorj (1997) identifica que o judaísmo recebe um pequeno enfoque pelos estudos das Ciências Sociais,
Apesar de os judeus terem um papel importante na construção de movimentos políticos e ideológicos, na vida econômica e científica do Brasil, são pouquíssimos os trabalhos que procuraram compreender os processos socioculturais de formação e transformação da comunidade judaica no Brasil. (SORJ, 1997, p. 07)
Desta forma, o diálogo inter-religioso é frágil, pois o judeu corresponde ao desconhecido e, muitas vezes, mitificado. Bisker (2012) observa, na introdução de sua obra, que muitas das questões que explica sobre o judaísmo “eram derivadas de noções nada precisas, cujas fontes seriam talvez o folclore ou as lendas populares, ou boatos que foram perpetuados ao longo da história” (p.03).
A literatura, bastante representativa para os judeus corresponde a um privilegiado mecanismo de transmissão sobre o judaísmo. E, o gênero dos quadrinhos complementa o privilégio dessa forma de compreensão, pois, além de facilitar a leitura, propicia o recurso da imagem, ampliando o conhecimento sobre o tema. Nesse sentido, a obra O Gato do Rabino, de Joann Sfar, traz uma valiosa colaboração para o entendimento sobre o judaísmo. Com as ilustrações de seus quadrinhos, associadas aos textos dos balões, remetem o leitor a um universo lúdico e o aproxima de uma experiência cultural judaica.
Não tem função meramente explicativa, mas é capaz de construir uma sintonia entre as memórias da comunidade judaica argelina, apresentadas por Sfar, e o leitor. O judeu deixa de ser o desconhecido; passa a ser parte da experiência social narrada pelo gato que é apreendida pelos seus leitores. Dentro dessa perspectiva, será apresentada uma análise da obra de Sfar, relacionando a trajetória narrada nos quadrinhos com a religião e a cultura judaica; sempre pensando na construção de conhecimentos que os quadrinhos podem propiciar.
Histórias em quadrinhos e religiões
Antes da análise da obra O Gato do rabino, é importante conhecer o contexto da produção e circulação de histórias em quadrinhos no Brasil, em especial, das que se ocupam da temática religiosa. Desde o início do século XX, as histórias em quadrinhos ocupam espaço na mídia impressa. No Brasil, os primeiros personagens de narrativas gráficas foram publicados em meados da década de 1930 pelo ítalo-brasileiro Angelo Agostini. Pequenas histórias que eram ilustradas por desenhos, mas que não seguiam o padrão da história em quadrinhos criada anos mais tarde por Outcault.
No final da década de 1970, começam a aparecer no Brasil os primeiros trabalhos acadêmicos que sugerem o uso das histórias em quadrinhos como instrumento de ensino e aprendizagem. Em parte, pesquisadores incentivados por diversas publicações latinas que fizeram uso das histórias em quadrinhos no combate intelectual às ditaduras sul-americanas, como a personagem Mafalda1 do cartunista argentino Quino2 , e as tiras do Pasquim3 de Ziraldo, Jaguar e Henfil, com personagens como Sig4 e o Bode Orellana5.
É notável essa mudança que começa a ocorrer no final da década de 1970 e persiste pelos anos de 1980. Pois, como literatura ou arte, as histórias em quadrinhos foram nos anos anteriores, alvo de inclusive, políticas de Estado. Como na Itália fascista de Mussolini, onde foi proibida a publicação das histórias em quadrinhos não italianas. Nos Estados Unidos, em meados da década de 1950, uma publicação do psiquiatra Fredric Wertham6 intitulada Seduction of the Innocent, tornou-se popular no meio acadêmico estadunidense. Nela, Wertham acusava as publicações de histórias em quadrinhos como responsáveis pela delinquência infanto-juvenil e por promover ou fazer apologia ao homossexualismo, a uso de drogas e a violência. O seu trabalho foi relevante nas décadas seguintes nos Estados Unidos, o maior mercado editorial de histórias em quadrinhos, levando o Senado daquele país a proibir um grande número de títulos e criar uma lista de palavras e conceitos proibidos nas publicações seguintes.
Na década de 1990, Will Eisner7 , célebre quadrinista estadunidense com mais de 50 anos de atividade no meio e criador de uma dezena de personagens populares nos jornais dos Estados Unidos, publicou dois livros: Narrativas Gráficas em 1996 (no Brasil, publicado pela primeira vez em 2005) e Quadrinhos e Arte Seqüencial em 1985 (No Brasil, publicado pela primeira vez em 1989). Voltados inicialmente para cartunistas iniciantes, os seus livros acabaram por preencher uma lacuna nos estudos sobre histórias em quadrinhos, pois, apesar de Will Eisner não ser um acadêmico, nem tampouco buscar isso com a publicação de seus livros, como quadrinista e roteirista de histórias em quadrinhos produziu dois grandes manuais que conceituaram esse formato, e suas publicações tornando-se referência quando o assunto são a produção e a leitura de histórias em quadrinhos. A obra de Eisner também é importante, pois o seu trabalho aborda com bastante frequência o cotidiano da comunidade judaica nova-iorquina do início do século XX. A temática da religiosidade é bastante explorada em seus livros como Contrato com Deus e Fagin o Judeu, um de seus últimos trabalhos antes de falecer, em 2005.
Nas duas últimas décadas tem sido realizada com grandes investimentos a transposição dos personagens dos quadrinhos para as telas do cinema. Antes disso, apenas poucos filmes ousaram trazer para as salas de cinema heróis como Super-Homem ou o Incrível Hulk. Com o advento de novas tecnologias digitais, foi possível ampliar a gama de heróis e personagens dos quadrinhos que “ganharam vida” na grande tela.
Isto impactou de forma positiva o mercado editorial de quadrinhos, dando a oportunidade para o surgimento de novos escritores/cartunistas e ampliando a gama, inclusive geográfica, de novas histórias e temáticas, o que por sua vez gerou maior interesse em educadores de estudar e fazer o uso das histórias em quadrinhos em sala de aula. Segundo Iuri Reblin, “(…) somente na primeira década deste novo século, o número de pesquisas de pós-graduação relacionadas aos quadrinhos foi o dobro de toda a produção do século anterior (...)”8
Isto pode ser encarado como uma maior abertura da academia para trabalhos deste gênero. No Brasil, o Festival Internacional de Quadrinhos – FIQ, que acontece a cada dois anos na cidade de Belo Horizonte/MG, já é o maior evento de histórias em quadrinhos do continente americano, superando inclusive o Comic-Con de San Diego, nos Estados Unidos. O FIQ promove palestras, oficinas, seminários e mesas redondas, antes exclusivas para cartunistas, mas que agora contam com a presença constante de educadores e literários de outros mercados editoriais. Aliado a isso, diferentes universidades e centros de pesquisa têm investido em grupos de pesquisa sob essa temática, em uma clara mudança de pensamento em relação a essa literatura.
No Brasil alguns roteiristas e cartunistas têm-se destacado no cenário internacional dos quadrinhos, mas, obviamente, nenhum se iguala a Maurício de Sousa. Sua principal personagem é uma menina de sete anos de idade chamada Mônica. Criada em 1963 como personagem coadjuvante nas tiras do Cebolinha publicadas em jornais do interior de São Paulo. Maurício de Sousa criou todo um universo para seus personagens. Entre eles a Turma do Chico Bento. Ao analisar as histórias do personagem Chico Bento, é possível perceber uma forte conotação religiosa no texto. Interjeições como “vixi Maria!” ou “cruz credo” são comuns aos personagens ambientados ao interior paulista.
Outra série de Maurício de Sousa, a Turma do Penadinho, apresenta personagens não humanos, mas espíritos, almas, fantasmas e vampiros, mais uma vez, remetendo a um universo permeado de religiosidade. Por fim, seu personagem onde essa característica pode ser bastante explorada é Anjinho, ou Ângelo Ceolino, um menino que virou anjo e protege os outros personagens da Turma da Mônica. Este personagem é interessante, pois, a sua construção é cercada de significados do cristianismo, como o fato de ter como seu supervisor o anjo Gabriel e seu chefe São Pedro9 , personagens bastante conhecidos na cultura cristã ocidental. Mesmo na versão mais recente a Turma da Mônica Jovem, Anjinho continua sendo um personagem de destaque, agora com o nome Céuboy, na edição nº 46 da revista, Céuboy se apaixona por uma ninfa e precisa escolher entre continuar a ser um anjo ou tornar-se humano novamente.
Além disso, o número de traduções de obras é bastante amplo. Existem livros como Persépolis, da autora iraniana Marjane Satrapi, onde ela faz uma autobiografia em quadrinhos e relata sua experiência como menina na Revolução Iraniana10, e sua inserção no Islã como religião obrigatória ou ainda o clássico dos quadrinhos escrito por Art Spiegelman, Maus11, vencedor de um prêmio Pulitzer, que no formato de jornalismo em quadrinhos relata a prisão de seu pai em um campo de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial e a questão do antissemitismo.
Agrega-se a isso a presença dos quadrinhos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que aparecem pela primeira vez no PCN de Língua Portuguesa (2008, p. 72), onde os quadrinhos são classificados no quadro de Gêneros adequados para o trabalho com a linguagem escrita. E também no Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), que desde 2006, incluí histórias em quadrinhos em seu acervo
[...] a inclusão dos quadrinhos no PNBE significa um avanço na maneira como a área de ensino os enxerga. Deixaram de ser leitura subversiva ou superficial para serem oficializadas como política de governo.” (RAMOS, VERGUEIRO, 2009, p. 40)
No entanto, ainda que o governo incentive o uso de histórias em quadrinhos no ensino, Vergueiro e Ramos afirmam que “(...) o próprio governo federal tateia para identificar qual é o efetivo papel das obras em quadrinhos do PNBE (...) o MEC parece encarar como um estímulo à leitura”. (2009, p. 40).
Mesmo diante desse grande e amplo leque de publicações nacionais e internacionais traduzidas para a língua portuguesa, as histórias em quadrinhos são uma ferramenta pouco explorada se direcionado ao tema religião. As pesquisas sobre o assunto são escassas. Ganha destaque o trabalho do teólogo Iuri Andréas Reblin, professor da Escola Superior de Teologia (São Leopoldo/RS). Seu trabalho tem se desenvolvido desde 2005 e já possuí mais de uma dezena de publicações entre artigos, livros e capítulos de livros em torno do diálogo entre teologia, histórias em quadrinhos e a cultura pop, assim como o seu uso no Ensino Religioso. É atualmente um dos coordenadores da Aspas – Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial que é responsável pelo Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Arte Sequencial, Mídias e Cultura Pop (CNPq), criado em 2013 na Escola Superior de Teologia – EST, em São Leopoldo/RS.
Um gato ensina sobre o judaísmo
O Gato do Rabino12 é uma obra de Joann Sfar13, francês de origem judaica, que discute questões do judaísmo por meio de um gato que, após ter devorado um papagaio, começa a falar. O felino, agora portador do dom da fala, decide se inserir de forma mais profunda no mundo dos judeus e pede para fazer seu Bar-Mitzvah, o que norteia a trama da história.
A narrativa não é direcionada para crianças, mas para adolescentes e adultos, pois apresenta discussões filosóficas sobre o monoteísmo, o ateísmo e as questões coloniais. Bem como, a identidade judaica marcada por uma trajetória de perseguições. A obra foi transformada em animação em 2011, na França e lançada em 2012 no Brasil14. Algumas das questões polêmicas discutidas pelo gato foram suprimidas da animação
Sfar realiza, também, uma homenagem aos pintores argelinos do século XX, informação que menciona na apresentação da obra. A história do rabino e seu gato transcorre na Argélia, no início do século passado. A dominação e influência francesa na região são retratadas em diversos momentos da narrativa. Assim, o felino, que não tem nome, problematiza sua experiência nessa comunidade. No prefácio do primeiro volume, “O Bar-Mitzvah”, Eliette Abécassis comenta a riqueza do texto,
Em O Gato do Rabino, Joann Sfar realizou uma obra única no gênero. É ao mesmo tempo uma poesia, um conto para adultos e uma discussão inteligente, ponderada e engraçada do judaísmo. Joann Sfar tem seu talento singular para tocar o essencial com grande simplicidade e ironia. Pois o essencial do judaísmo está aqui, através da história de um gato que quer fazer seu bar-mitzvah, um gato muito judeu, já que não para de indagar seu rabino e questionar o texto sagrado. Fiquei seduzida pela beleza dos desenhos e por sua força expressiva. Ao mesmo tempo em que destacam uma realidade humana e social pouco conhecida, a de um círculo de estudantes judeus sefaraditas, ilustram grandes ideias da cabala e do pensamento judaico – sem deixar de contestá-las, segundo um procedimento bastante talmúdico. Brilhante! (2006, p. 02)
A obra é apresentada em um livro com uma estética atrativa, uma verdadeira obra de arte, tanto de imagem, como de texto. Cada página contém seis quadrinhos, com tamanho maior que a média das publicações do gênero. Nas imagens percebemos o estilo do judaísmo oriental da Argélia, que Sfar busca retratar. São muitas as cores e as personagens têm características marcantes, com muita expressividade nas suas ações. O gato tem aspecto de algumas raças orientais, sendo magro, cinza e de pelo curto, lembrando a deusa Bastet dos egípcios na antiguidade. Em todos os quadrinhos aparece o balão com os diálogos e, em alguns, também aparece uma tarja de contextualização, que corresponde às palavras do gato, que é o narrador de toda a história.
No primeiro quadrinho da obra, o gato argumenta que os judeus não apreciam os cães. No entendimento da personagem, os cachorros perseguem e latem, constrangendo os judeus que são “mordidos, perseguidos ou latidos” a muito tempo, de forma que preferem os gatos. A história de perseguição das comunidades judaicas abre a problematização da obra. Em diversos momentos, a experiência de um não pertencimento e a busca por um Israel são mencionadas. Em especial, em uma Argélia dominada pela França.
Essa dominação fica explícita quando o rabino tenta ocupar uma mesa no “Café Carbodel” e é advertido pelo garçom que aquele estabelecimento não atende nem a judeus nem a muçulmanos. Da mesma forma, o rabino, que orienta uma comunidade há mais de trinta anos, é obrigado a realizar uma prova que confirme os seus conhecimentos em língua francesa. Sua legitimidade precisa ser reconhecida pelo Consistório Israelita da França. O gato questiona a necessidade do teste: “Você é rabino aqui há trinta anos e quem nunca pôs os pés no nosso país vem agora dizer que é rabino e quem não é. E, para fazer uma prece em hebraico para judeus que falam árabe, querem que você escreva em francês. Então, para mim, são loucos” (SFAR, 2006, p. 14).
Mas, o rabino faz o teste e argumenta sobre as estratégias de sobrevivência da comunidade judaica. O animal doméstico, no entanto, revela indignação com as práticas de submissão. Aliás, desde que o gato aprendeu a falar, se utiliza de todo o tipo de questionamento a respeito do judaísmo. Ele quer estudar, ler a Torá, o Talmude, fazer o Bar-Mitzvah e ser um verdadeiro judeu. O rabino não tem certeza em como proceder, em especial com um bichano que argumenta duramente contra as ideias religiosas. Constitui-se, por meio desses diálogos de conversão do gato, um debate entre a fé e a ciência. Uma explicação profunda do judaísmo, de Deus, das crenças e da razão.
O gato quer entender e amar a Deus, mas seus sentimentos mais profundos são por Zlabya, a filha do rabino, sua verdadeira dona. Assim, o animal se convence, por meio das orientações rabínicas, que Deus é uma palavra. Já que ele fala, acredita ter domínio sobre a ideia do divino. O felino percebe que toda a compreensão da existência (inclusive da sua) vem por meio da fala. Uma espécie de consciência nasce com sua capacidade de comunicar-se. E somente os portadores dessa consciência são capazes de abstrair o conceito do sagrado.
Agora que fala deixa de se ocupar com coisas simples. Antes “pensava e sonhava” sem profundidade, apenas corria com outros animais e caçava. No entanto, depois de falar, passou a ter pesadelos; tem a consciência da morte. Teme perder a dona que tanto ama. Sonha com isso e sofre. Medo e saudade são incorporados a sua existência, complexificada pelo poder da palavra. Assim, o gato se insere na tradição judaica, na tradição da palavra. A cosmovisão judaica é pautada na memória e na sua identidade narrativa.
[...] os caminhos da Literatura e do Judaísmo se bifurcam, conduzindo ao mesmo lugar: aos labirintos da memória, à força de um povo milenar, à Sagrada Escritura como um poema incessante, ao nome impronunciável, à palavra iluminadora da desordem do mundo. É essa palavra que nos impede de cair nos braços do acaso, pois nos envolve no significado último das nossas vacilações de percurso: a necessidade e a coragem de sobreviver, apesar de tudo. (ROANI, 2008, s/p)
Torna-se evidente que para a compreensão do judaísmo existe a necessidade de conhecer essa identidade narrativa. Os judeus são o povo do livro. Sem a palavra não há identidade judaica. “A comunidade judaica sempre se articulou em palavras proferidas ou escritas, num sempre expansível labirinto de interpretações, debates e discordâncias, [...] A nossa não é uma linhagem de sangue mas uma linhagem de texto” (OZ, OZ-SALZBERGER, 2015, p. 15). O gato, em seus debates, revela a condição judaica. Ele, que apesar de ter dúvidas se é judeu, revela o caminho do conhecimento sobre a religião. Nas suas incertezas é capaz de propiciar uma interessante construção sobre o judaísmo e o monoteísmo. E, acima de tudo, é a fala que o faz judeu.
Nas suas conversas com o rabino, é possível identificar a natureza dialógica do debate; já que o gato e o seu mestre perguntam e dão respostas por meio de mais perguntas, em uma interlocução constante. O texto de Sfar apresenta a estrutura de “referência desdedobrada” (RICOEUR, 1997), vinculando sua obra à tradição literária judaica.
Dessa forma, o gato se transforma em um interessante transmissor da cultura, da identidade e da religião judaica. O felino nos ensina a ser e se tornar judeu. Nas imagens da obra, as cores mudam quando as experiências do animal se transformam, constituindo um registro sensível sobre a trajetória da personagem. A leitura das ilustrações também possibilita um entendimento privilegiado da história. Os judeus de O Gato do Rabino são sefaraditas (ou sefaradis), ou seja, do Oriente, constituindo um grupo com cultura específica dentro do Judaísmo.
As vestimentas, as formas de realizar as orações, as regras alimentares, as manifestações de luto e sepultamento, entre outros aspectos, contribuem para a compreensão do judaísmo sefaradita. Fica explícito no texto que o judaísmo não é uma religião homogênea, mas pautada por divergências e contradições; o que não impede as relações entre os grupos e a construção de uma memória comum. E é por meio dos textos que essa memória emerge.
Diz que a história e a condição de povo dos judeus formam um continuum único, que não é étnico nem político. Que fique claro, a nossa história inclui linhagens étnicas e políticas, mas não são estas suas principais artérias. Em vez disso, a genealogia natural e cultural dos judeus sempre dependeu da transmissão intergeracional de conteúdo verbal. Trata-se da fé, é claro, mas ainda mais efetivamente trata-se de textos. Significativamente, os textos estão há muito disponíveis por escrito. E, efetivamente, a controvérsia esteve neles embutida desde o instante inicial. Na sua melhor forma, a reverência judaica tem um lado irreverente. Na sua melhor forma, a autoimportância judaica é tingida pelo autoexame, às vezes mordaz, às vezes hilário. (OZ, OZ- SALZBERGER, 2015, p. 09-10)
Outra questão relevante que vincula a narrativa de O Gato do Rabino à literatura judaica é a presença do humor, como mencionam os autores acima, e do fantástico. Afinal, o gato aprende a falar e, uma vez falando, já sabe ler (saber adquirido pela observação da educação de Zlabya). Também tem capacidade de crítica e debate, sente remorso, compaixão, amor e é capaz de mentir e dissimilar. O animal interage com os humanos que, apesar de impressionados com a habilidade do felino, não demonstram grande impacto com a capacidade do mesmo. Nas ilustrações, o felino tem olhos expressivos, que comunicam tanto quanto as palavras.
A imagem do gato falante lembra outras personagens fantásticas da literatura judaica, como o Guedali, nascido meio homem, meio cavalo, da obra O centauro no jardim, do escritor gaúcho Moacyr Scliar15. Na história de Guedali é possível observar características da comunidade judaica, por meio do fantástico, como na história do gato do rabino. O centauro, nascido judeu, precisa assegurar seu lugar na comunidade, constituindo-se como criatura fantástica e hibrida, mascando a condição de judeu que mantém seu hibridismo: o judaísmo conciliado às culturas locais e nacionais.
Com efeito, se o centauro representava tanto a assimilação da cultura local pelos descendentes dos primeiros imigrantes, como, paradoxalmente, a permanência da condição ambígua do judeu em Guedali, a amputação deste estado ambivalente aponta à resolução da contradição. Ao mesmo tempo, porém, sintetiza a morte das culturas originais que viviam no dúplice herói – seu ‘gauchismo’ e seu ‘judaísmo’, que, por mais antagônicos que sejam, convergem num aspecto: a situação mútua de exílio e descentramento social (ZILBERMAN, 1998, p. 341).
Além do gato, outras personagens fantásticas povoam a narrativa, como um leão que acompanha um parente da família do rabino e um burro cantor de um sheik muçulmano amigo dos judeus. As situações que envolvem os animais são repletas de reflexões e de ironia. O leão, por exemplo, vai assegurar a entrada dos judeus no café no qual eram proibidos de frequentar
Em vista disso, o fantástico continua possibilitando o exercício da atividade crítica; e estabelece uma relação de contigüidade com o cotidiano, iluminando sua banalidade e acentuando a carga opressiva que exerce sobre o indivíduo, quando este vive num regime de relações de produção marcado pela desigualdade. Portanto, ocorre antes de tudo a denúncia da brutalidade da sociedade, incomum e inaceitável por atentar contra os princípios de humanidade que deveriam nortear a civilização. E, se é incomum, passa a ser mostrada como tal, esclarecendo o modo singular e pessoal com que o ficcionista se utiliza do gênero fantástico (ZILBERMAN In: SCLIAR, 1990, p. 10).
O fantástico aparece, em geral, na literatura judaica para marcar a condição de estranheza na qual os indivíduos se encontram. Marca a constante ambivalência judaica, de um lado mantendo a identidade religiosa e, de outro, adequando-se às culturas locais. Tanto Sfar quanto Scliar utilizam o recurso do fantástico (ou do realismo mágico) para caracterizar personagens ligadas à comunidade judaica, pois é nesse grupo que as condições de hibridismo cultural se apresentam. Assim, o gato fala e pensa em uma condição humana, mas mantém sua aparência de felino, constituindo-se como um indivíduo repartido, tal qual Guedali, “que não consegue consolidar-se intimamente sem renunciar aos valores que igualmente preza” (ZILBERMAN, 1998, p. 337). Evidenciando o comportamento das comunidades judaicas.
Por isso, suas personagens não conseguem conviver com o passado de que são fruto, nem integrar-se ao presente que contradiz suas raízes. O resultado é uma profunda instabilidade emocional, gerando a permanente insatisfação e o sentimento de inautenticidade, a ser combatido ao preço de uma mutação interior, traduzida às vezes numa alteração externa. (ZILBERMAN, 1998, p. 337)
Em muitos momentos, o pequeno felino lamenta o fato de ter começado a falar. Sua vida foi redimensionada, passou a ter sentimentos diferentes, que não gostaria de sentir. Algumas vezes, tenta fingir que não consegue mais falar. Mas, mantém o dilema de ser um judeu em um corpo de animal irracional. Dentro dessa perspectiva, o gato “peca” e não consegue mais falar. Seu pecado foi repetir irresponsavelmente um dos nomes de Deus, mesmo sabendo que isto não é permitido aos judeus. Nem mesmo sua boa intenção em ajudar o rabino, o redime da punição. Afinal, ele tem conhecimento das regras judaicas. O felino mesmo revela: “Os judeus só pronunciam o nome de Deus durante as preces. Quando aprendem as preces não dizem “adonai”, dizem “adochem” para não dizer o nome sagrado à toa” (SFAR, 2006, p. 17). Talvez, aqui, uma ideia da severidade do divino, bastante recorrente no judaísmo, seja suavemente apresentada.
Neste momento da trajetória do animal falante, o mesmo narra sobre a relação dos judeus com a palavra escrita e com o apego pelos livros. Rememora uma passagem de sua “infância”, na qual no rabino arriscou a própria vida para salvar seus livros de orações.
Para escrever o nome de Deus, é preciso ter certeza de que o papel em que foi escrito nunca será jogado fora. Todo o papel em que figure o nome de Deus é como um ser vivo. Quando os livros de orações ficam velhos e imprestáveis, são sepultados no cemitério como se fossem velhos sábios. Aquele que queima um livro ou a Torá é julgado como o pior dos assassinos. Nada pode desculpá-lo nem apagar seu erro, nem a paixão, nem a ignorância. (SFAR, 2006, p. 17).
Aliás, o sepultamento é significativo na tradição religiosa judaica, que não aceita a cremação dos corpos. Para os judeus a alma só pode partir em paz após a desintegração do corpo, de forma que a separação abrupta, por meio da cremação, causaria um sofrimento imensurável ao morto. E, também, todos os patriarcas foram enterrados para consolidar a tradição (BISKER, 2012). Assim como as expressões “do pó viestes ao pó retornará”, conotam a necessidade de contato com a terra. “O Talmud diz: ‘Tudo que exige um enterro (Rashi: inclui o corpo em si) não pode ser queimado’” (BISKER, 2012, p. 25)
Em função de sua punição pelo desrespeito aos preceitos em rela-ção ao nome de Deus, o gato passará um tempo em silêncio, podendo apenas se comunicar com os outros animais. Mas, em uma viagem ao deserto, o pequeno felino é picado por um escorpião. Entre a vida e a morte, é levado a um médico muçulmano que, inicialmente tem dúvidas se deve tratar um animal. O rabino insiste, confessa que tem amor pelo gato e não quer perde-lo. Reforça ainda que devemos cuidar das criaturas de Deus e abandoná-las é um desrespeito à obra divina
Nesse momento bastante didático da história, se explicita a relação de judeus e muçulmanos com os animais. No Islã e no judaísmo o homem não deve esquecer que é tão criação quantos os demais. Ter sido feito a imagem e semelhança não deve servir para ostentar superioridade com os outros seres vivos. É tarefa humana zelar pela criação. Regras rígidas de abate são cumpridas no halal (para muçulmanos) e no Kasher (para judeus), justamente para justificar a eliminação de uma vida criada por Deus.
Grandes sábios e líderes judeus da antiguidade foram escolhidos por Deus para desempenhar tais papéis na sociedade segundo seus tratos com os animais. Aquele que se preocupa em fazer bem a um animal também seguirá a mesma tendência no trato com os homens. Existe até mesmo uma proibição denominada tzar baalei chaim, que determina que é proibido causar sofrimento gratuito a qualquer animal. Quando nos sentamos para comer, devemos alimentar primeiro os animais domésticos, antes mesmo de começarmos a comer. (BISKER, 2012, p. 44-45)
O médico muçulmano, convencido pelas palavras do rabino salva o gato, que, nessa nova oportunidade de viver, retoma o dom da fala. Agora ele volta a se perceber novamente como um judeu e não apenas um gato. Ele possui a palavra. A fala é como uma representação de sua alma.
Da experiência de quase morte do animalzinho é possível observar as relações interreligiosas. É um médico muçulmano que o salva. O rabino recorre aos conhecimentos dos devotos ao Islã para salvar seu companheiro. Em outros momentos da narrativa, personagens de outras crenças são apresentados, como o sheik que viaja com o rabino e um padre que os ajuda em diversos momentos. A única expressão cultural de fé que assusta as personagens é o ateísmo, representado por russos comunistas que chegam à Argélia.
Os russos são intimidadores não apenas pelo comunismo, mas pela ideia de perseguição aos judeus, as referências aos progrons. Em vários quadrinhos são feitas reflexões como: “os judeus sempre de cabeça baixa na Rússia”, “na Rússia um judeu não é um russo”, “com um russo se duela, um judeu se queima” (SFAR, 2006). Essas ideias de temor aos russos são frequentes na literatura judaica. Na obra de Moacyr Scliar, por exemplo, as memórias sobre as aldeias russas e os massacres sofridos são recorrentes. Em O centauro no jardim, a mãe de Guedali sofre com pesadelos, nos quais os cossacos invadem a sua casa no sul do Brasil. Ela é capaz de ouvir o som dos cavalos, pressentir o movimento de seus algozes e reza para que eles não a encontrem. Nas memórias judaicas, antes da Segunda Guerra Mundial, as aldeias na Rússia representavam a maior expressão de medo e perseguição.
As relações entre judeus, cristãos e muçulmanos, na Argélia, no início do século XX, se constituem de forma tranquila. Isto revela os princípios de respeito religioso que norteiam as orientações para os monoteístas. Demant (2010) chama a atenção para a importância que os muçulmanos atribuem a tolerância religiosa. Sorj (1997) faz a mesma referência para os judeus. Nos quadrinhos de Sfar as relações de solidariedade entre os grupos são recorrentes. A comunidade judaica e muçulmana aparece como solidárias e com aspectos de aproximação de crenças, que, em alguns momentos, se confundem e se misturam. Nada considerado exótico para os fieis, em um período que antecede a Segunda Guerra Mundial e a fundação do Estado de Israel, em 1948.
Os franceses colonizadores nesta região do norte da África, aparecem como os estranhos ao ambiente que dominam, desconhecendo as características culturais de seus “dominados”. O gato os considera “loucos” por criarem leis e regras para um lugar no qual não estão e, na maior parte das vezes, não conhecem. O felino quer ser insolente, o rabino lembra que os judeus estão acostumados a sobreviver na adversidade. Essa relação com as práticas de sobrevivência, várias vezes mencionadas na obra, corresponde a um elemento da identidade. A literatura e a história judaica são fortemente marcadas por essa questão.
À pertença a uma mesma origem com uma história e tradições únicas, preservadas de geração em geração na memória escrita e oral, podemos acrescentar outros mecanismos coesivos, como a prescrição de não admitir casamentos fora da comunidade [...]. Acrescentese, também, que os judeus frequentemente viveram confinados nos guetos, como documentado [...]. Seja por pressões externas, seja por uma compulsão interior, mas sobretudo pela necessidade de sobreviver, os judeus desenvolveram tais mecanismos. (CABRAL, 1998, p. 195)
Os judeus estariam acostumados a viver em “tempos sombrios”, como disse Hannah Arendt (2008), nas suas reflexões no período de 1968. Obrigados a viver em locais com governos considerados não legítimos e invisíveis, criaram estratégias para manter sua identidade e sua coesão moral, mesmo sendo constantemente atacados em suas convicções. Arendt (2008) considera que os judeus constituem a mais longa trajetória de perseguição da história. Para compreender o judaísmo é imprescindível conhecer essa experiência histórica, que alguns quadrinhos de O Gato do Rabino ilustram de forma tão sensível. Identificando, também, a capacidade de não desistir, de acreditar em uma Israel e uma liberdade para os judeus. “Que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação [...] Olhos tão habituados às sombras, como os nossos, dificilmente conseguirão dizer se a luz era de uma vela ou de um sol resplandecente” (ARENDT, 2008, p.09).
O gato também identifica uma relação entre Ocidente e Oriente e se considera verdadeiramente judeu por sua natureza oriental. Segundo ele, “um cão é solar, unívoco, moralista, masculino, não vale nada”, já, quando se refere a si mesmo, afirma, “sou noturno, imprevisível e profundamente ético”. Suas deliberações se devem a uma discussão com outro rabino que considera os cães animais sofisticados, eleitos pelos gregos como animais filosóficos. Ao que o pequeno felino rebate afirmando, “que os gregos destruíram o Templo de Jerusalém e que se um rabino chega ao ponto de lhes pedir ajuda é porque não tem argumentos” (SFAR, 2006, p. 17).
Para o gato, quanto mais afastado da cultura ocidental ele se encontra, mais se caracteriza como um judeu sefaradita. Aliás, a obra também identifica as inúmeras tradições dentro do judaísmo universal. Destaca as diferenças entre os grupos sefaradis e achquenazins e as influências recebidas de diferentes regiões, propiciando ao leitor um entendimento das múltiplas práticas dentro do judaísmo. Os longos debates entre as personagens, marca da literatura judaica, são complexos, porém, instigantes e de fácil entendimento. Cabe ao felino às mediações explicativas
Assim, quando o gato afirma: “e agora sei falar”, convida o leitor a se inserir no universo do judaísmo e, junto a ele, a entender como um indivíduo se transforma em um judeu.
Considerações finais
Pensar sobre religiões no Brasil é de grande relevância, dada a pluralidade religiosa do país. No entanto, existe expressiva carência de estudos e estratégias que possam embasar esse debate. Fora isso, muito do que é discutido sobre religiosidades fica restrito ao espaço acadêmico, não atingindo a sociedade em geral e/ou a educação básica. Impossível falar de diálogo inter-religioso neste cenário.
O desconhecimento sobre algumas correntes religiosas amplia a dificuldade do debate, bem como, por ser um país de maioria católica, o mercado editorial lança títulos, majoritariamente, direcionados ao cristianismo. As demais vertentes ficam relegadas às dúvidas e mitificações.
A literatura assume um papel fundamental no âmbito do conhecimento religioso. Não apenas a de caráter confessional, mas, também, a destinada a uma espécie de entretenimento. O que a torna capaz de seduzir o leitor e leva-lo a compreensão da temática abordada. Scliar (2017) chama a atenção pelo fascínio que os indivíduos têm em ouvir e ler histórias
Contar e ouvir histórias é fundamental para os seres humanos; parte de nosso genoma, por assim dizer. Sob a forma de mitos, as história proporcionavam, e proporcionam, explicações para coisas que parecem, ou podem parecer misteriosas [...] Mitos ou histórias proporcionam explicações que, mesmo fantasiosas (ou exatamente por serem fantasiosas), acalmam nossa ansiedade diante da vida e do universo. (SCLIAR, 2017, p. 05)
A tradição judaica sempre teve na literatura um mecanismo de transmissão. Para ser conhecer o judaísmo é necessário conhecer suas obras literárias. Assim, O gato do rabino contribui para o enriquecimento da cultura religiosa. Por ser em quadrinhos permite ao leitor identificar as imagens desse desconhecido. É possível ver o rabino, os símbolos judaicos, as cerimônias e outros elementos culturais. Consegue capacitar o leitor para aprofundar seu debate religioso. Em espaços de aprendizagem, mediado pelo educador, pode assegurar uma compreensão significativa do judaísmo, propiciada com o prazer que os quadrinhos despertam.
Referências
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BISKER, Fernando Chaim. 49 mitos no Judaísmo. São Paulo: Sumago, 2012
CABRAL, Leonor Scliar. A memória sefaradita como exemplo de identidade judaica. In.: SLAVUTZKY, Abrão (org.). A paixão de ser: depoimentos e ensaios sobre a identidade judaica. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998.
DEMANT, Peter. O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2013.
OZ, Amós, OZ-SALZBERGER, Fania. Os judeus e as palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
RAMOS, Paulo, VERGUEIRO, Waldomiro. Os quadrinhos (oficialmente) na escola: dos PCN ao PNBE. In.: RAMOS, Paulo, VERGUEIRO, Waldomiro (org.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009.
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crianças. Folha de São Paulo On-line. Disponível em: RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1997.
ROANI, Gerson Luiz. Ficções da identidade judaica na literatura. In.: Anais
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Convergências. USP: São Paulo, 2008.
SCLIAR, Moacyr. O centauro no jardim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
SCLIAR, Moacyr. Uma autobiografia literária: o texto, ou: a vida. Porto Alegre:
L&PM, 2017.
SFAR, Joann. O Gato do Rabino v1: O Bar-Mitzvah. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006.
SFAR, Joann. O Gato do Rabino v2: O Malka dos Leões. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006.
SORJ, Bila. Identidades judaicas no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Imago,
1997.
VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In.: RAMA, Ângela (org.). Como
usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto,
2012.
ZILBERMAN, Regina. Apresentação. In.: SCLIAR, Moacyr. O carnaval dos animais.
Rio de Janeiro: EDIOURO, 1990.
ZILBERMAN, Regina. Moacyr Scliar e a história dos judeus no Brasil. In.:
SLAVUTZKY, Abrão (org.). A paixão de ser: depoimentos e ensaios sobre
a identidade judaica. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998.
WALDMAN, Berta. Linhas de força: escritos sobre literatura hebraica. São Paulo:
Associação Editorial Humanitas, 2004.
— [1]Personagem principal de uma série de tiras criadas pelo cartunista argentino Joaquín
Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino. Suas tiras foram publicadas em
periódicos argentinos entre 1964 e 1973. Em 1976, Mafalda foi a personagem de um
programa das Nações Unidas para divulgação da Declaração Universal dos Direitos da
Criança
[2]Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino. Nascido em Guaymallén,
Argentina em 17 de julho de 1932. Atualmente é cartunista e ilustrador de diferentes
periódicos e agências publicitárias.
[3]O Pasquim foi um periódico semanal criado pelo cartunista Jaguar e os jornalistas
Tarso de Castro e Sérgio Cabral e publicado entre os anos de 1969 e 1991.
[4]Personagem criado em 1964 pela cartunista Jaguar.
[5]Criado pelo cartunista Henfil, seu nome é uma referência ao explorador espanhol
Francisco de Orellana. O Bode Orellana era um personagem comedor de jornais velhos
que entreva em “estado de choque” ao ler notícias durante o período dos governos
militares.
[6]Psiquiatra, viveu entre 1895 e 1981, foi responsável por uma série de artigos
publicados em revistas científicas estadunidenses apontando os malefícios das
histórias em quadrinhos na formação moral dos adolescentes e jovens americanos.
Seus trabalhos foram responsáveis por uma investida do Congresso Americano em
regulamentar e censurar publicações de histórias em quadrinhos nos Estados Unidos
nas décadas de 1950 e 1960, após a publicação de seu mais célebre livro, Seduction
of the Innocent (Sedução dos Inocentes), onde considerava as histórias em quadrinhos,
como responsável pela degradação da moral nos Estados Unidos.
Fonte: [7]Will Eisner (1917-2005) é considerado pela crítica especializada como o maior
cartunista estadunidense. Entre seus trabalhos destacam-se dois livros teóricos, Comics
and Sequencial Art (1985) e Graphic Storytelling (1996). Eisner também é o criador de
alguns personagens de histórias em quadrinhos como Spirit, entre dezenas de novelas
gráficas retratando o cotidiano, principalmente da cidade de Nova Iorque.
[8]Fonte: [9] [10]Entende-se como Revolução Iraniana ou Revolução Islâmica o movimento ocorrido
no Irã no ano de 1979 que derrubou a monarquia autocrática do Xá Mohammad Reza
Pahlevi e instaurou a República Islâmica do Irã, com o primeiro governo do aiatolá
Ruhollah Musavi Khomeini.
[11]Apenas a edição publicada nos Estados Unidos já vendeu mais de 2 milhões de
cópias desde seu lançamento. Fonte: < http://livroseideias.wordpress.com/2012/03/26/
desespero-de-guerra-em-historia-em-quadrinhos/> Acesso em 29/03/2014.
[12] A obra foi lançada em 2001 na França e em 2006 no Brasil. Consiste numa série de
histórias sobre o gato e o rabino, divididas em cinco volumes. A série ganhou o prêmio do
júri do prestigioso Festival Internacional de HQ de Angoulême e já vendeu mais de 200
mil exemplares na França. No Brasil a receptividade da obra foi menor do que na Europa,
provavelmente pelo fato da comunidade judaica brasileira ser numericamente pequena,
em especial, a constituída por sefaradis.
[13]Joann Sfar , nascido em Nice, na França, é considerado um dos mais talentosos
artistas de quadrinhos contemporâneos. Tem Mestrado em Filosofia e cursos de pintura,
Escreveu diversos livros para adultos e crianças e diversos álbuns de quadrinhos (SFAR,
2006).
[14]A obra cinematográfica O Gato do Rabino foi um grande sucesso de bilheteria na
França e em outros países da Europa, bem como, nos Estados Unidos. No Brasil,
entretanto, não teve uma receptividade tão positiva, permanecendo por um período curto
em exibição. O que corrobora na crença de um desconhecimento e um desinteresse da
população brasileira sobre o judaísmo, aliado ao fato da presença de uma comunidade
judaica numericamente pequena. Soma-se a isso o fato da animação não reproduzir o
estilo das películas lançadas pelas produtoras norte-americanas. Em O Gato do Rabino
as personagens têm a aparência de judeus do Oriente, com imagens reproduzidas das
ilustrações dos quadrinhos, diferenciando-se, significativamente, do produto cultural que
os espectadores brasileiros estão acostumados a consumir. Além disso, acredita-se que
a histórica contada não tem o apelo das assistidas pelo grande público no Brasil. O
que reitera a importância de trazer conhecimentos sobre o judaísmo para os espaços
de aprendizagem, de forma a instrumentalizar a sociedade ao diálogo inter-religioso e,
também, ao consumo de produtos culturais mais variados.
[15]Moacyr Scliar, filho de imigrantes judeus russos, nasceu em Porto Alegre,
1937 e faleceu em 2011. Sua vida acadêmica começou na faculdade de medicina
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na qual em 1962 graduou-se,
especializando-se, mais tarde, em saúde pública. Sua “vocação literária” fez-se
sentir bem cedo e, ainda criança, Scliar já escrevia alguns pequenos contos que
narravam as histórias dos habitantes do bairro Bom Fim de Porto Alegre. Durante
o curso de Medicina, publicou diversos contos no jornalzinho da universidade. A
partir de 1962, ano de sua formatura no curso de medicina, Scliar iniciou suas
publicações na área literária, sendo, um dos escritores gaúchos com um dos
mais expressivos números de publicações e premiações.Notas