A profanação do ser da guerra e da guerra do ser: uma releitura da obra O prisioneiro, de Erico Verissimo, por um viés teológico-literário.
The profanity of the being of war and the War of being: a re-reading of the work The Prisoner, by Erico Verissimo, by a theological-literary bias

Rita de Cassia Scocca Luckner*
*Mestra em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em projetos educacionais. Contato: ritaluckner@uol.com.br
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Resumo
O escopo deste trabalho é apontar o texto literário como um dispositivo-lúdico-profanatório, por meio da análise teológico-literária da obra O Prisioneiro, de Erico Verissimo (1967), cujo intuito é destacar elementos relacionados ao comportamento do ser humano que se encontra capturado em diversos níveis pelo poder. A partir dos conceitos de dialogismo e polifonia, de Mikhail Bakhtin, de iluminação profana, de Walter Benjamin e de dispositivo, de Giorgio Agamben, busca-se discorrer sobre a queda da linguagem, que se apresenta monológica (sacralizada) pelos excessos, para então ascender e se revelar dialógica (profana), com o intuito de ressaltar a função transformadora da literatura pelo jogo que faz com as palavras, por meio dos ditos e não- -ditos que fazem da linguagem reveladora de realidades e como meio de renovação e crescimento humano. Em O Prisioneiro, o autor apresenta um personagem ambíguo, confuso entre o remorso e a impenitência, conflitos cunhados pelo sistema que faz do indivíduo um instrumento de interesses econômicos e políticos. Se o sistema dita e desdita as regras, a literatura quebra o silêncio imposto ao ser que foi afastado de verdades importantes para o restabelecimento do conhecimento e retomada de posição crítica e ativa. Por intermédio da simbologia da obra, percebe-se o jogo cujas peças são expostas pela linguagem literária como caminho para a profanação dos dispositivos.

Palavras chave:Dispositivos, sacralização, profanação, literatura, O Prisioneiro.

 

Abstract
The scope of this work is to indicate the literary text as a dispositive-playful- -profanatory by means of theological-literary analysis of the novel O Prisioneiro, written by Erico Verissimo, (1967), whose aim is to highlight the elements relating to the human behavior who is captured in several levels to the power. Onwards conceptions of dialogism and polyphony, by Mikhail Bakhtin, profane illumination, by Walter Benjamin, and dispositive, by Giorgio Agamben, the focus is to address about the fall of the language, which is monologic (sacralized) by excess, to then ascend and reveal itself dialogic (profane) with aim to emphasize the transforming function of the literature, through the play with the words, by means of the said and no-said which make de language as revealing of realities and means of renovation and human evolution. In the book O Prisioneiro, the author presents an ambiguous character, confusing between the regret and the impenitence conflicts coined by the system which makes the individual an instrument of the economic and political interests. If the system makes and breaks the rules, the literature breaks the forced silence to the individual who was moved away from important trues to the reestablishment of knowledge and the resumption of the critical and active position. Through the symbolism of the work studied, it’s possible to notice the play whose components and manoeuvers were explained by the literary language, as a way to the profanations of the devices.

Keywords: Devices, sacralization, profanation, literature, O Prisioneiro

Introdução

Apartir do momento que a literatura é linguagem do e para o ser humano, instrumento das interações humanas que atende a diversos fins, pode ser considerada um dispositivo. Porém, torna-se também profanatório, pois proporciona ao leitor a retomada da posição de ser crítico, ativo, cuja voz é dialógica e se manifesta pelas metáforas, simbologias, analogias, em que se percebe o jogo lúdico cujas peças e manobras são expostas pelo despertar do imaginário, pelo lado criativo do ser humano, como um caminho para a profanação da linguagem que foi sacralizada pelo poder e pelo esvaziamento das palavras e de seus significados e sentidos.

A literatura é constituída por obras que são pessoais e únicas, pois representa uma confidência, um pensamento, uma intuição, tornando-se uma “expressão” do criador, porém ela é também coletiva, na medida em que desperta no leitor emoções, envolvimentos tanto de proximidade como de distanciamento das expressões lidas – desencadeados, em parte, pela linguagem simbólica – que assomam sentimentos que congregam os seres humanos “de um lugar e de um momento, para chegar a uma comunicação”. (CANDIDO, 2008, p. 147). A visão simbólica do mundo é algo natural e necessário para a formação do caráter do ser humano1 . As expressões simbólicas podem resgatar aspectos da vida humana que muitas vezes foram reprimidos pela forma objetiva com que o mundo passou a ser interpretado.

A manifestação dos desejos humanos de decifrar o místico, o transcendental, entre outros elementos dos quais os signos, por sua objetividade, não dão conta de explicar, são restituídos pela linguagem simbólica. Sendo assim, a literatura pode moldar comportamentos e conduzir ações humanas e torna-se um dispositivo lúdico-profanatório, cujo paradoxo opera na linguagem como revelação. Para demonstrar essa característica do texto literário, busca-se, a partir dos conceitos de dialogismo e polifonia, de Mikhail Bakhtin; de iluminação profana, de Walter Benjamin; e de dispositivo, de Giorgio Agamben; apresentar uma análise teológico-literária da obra O Prisioneiro, de Erico Verissimo, publicada pela primeira vez em 1967.

A obra O Prisioneiro evidencia a inquietação do autor em relação às violências de várias naturezas – inclusive as institucionalizadas – ao narrar situações e personagens dentro de uma guerra avassaladora; tanto coletiva, em um hipotético país oriental; como também individual, no íntimo de cada um dos personagens, que prisioneiros de um sistema que manipula e desnorteia, tornam-se incapazes de reconhecerem o cerne da vida humana e a liberdade dos próprios corpos, o que, consequentemente, limita a apreensão da capacidade da própria fala e compreensão da intenção da fala do outro, o que torna o mecanismo de poder monológico.

As obras de Verissimo sempre estiveram vinculadas, de uma forma ou de outra, à história, seja do Rio Grande do Sul, do Brasil ou até para além das fronteiras nacionais. No entanto, mais do que se inspirar em fatos históricos, o autor refletiu, provocou e provoca reflexões nos leitores quanto às questões acerca das relações humanas, com todas as situações de injustiças, violências, preconceitos e jogos de poder que a vida humana está atrelada. Verissimo acreditava que o escritor, frente a um sistema cujas estruturas políticas decidem a direção da vida humana, deve reagir com uma escrita engajada diante do mundo conduzido. Segundo o autor, pode-se dizer que a missão de um romancista é “fazer luz sobre as injustiças sociais, mostrar a crueldade ou desonestidade dos governantes, denunciar as atrocidades e jamais desertar o seu posto” (VERISSIMO, 1973).2

O Prisioneiro é uma obra elaborada sem evidenciar os nomes dos personagens, que são identificados apenas pelas funções que eles desempenham: a Professora, o Tenente, o Coronel, etc. O recurso de perda de nome, segundo Chaves (2001), seria o referente simbólico da eliminação da individualidade, ou da identidade, uma vez que em diversos momentos da narrativa os personagens questionam suas ações e demonstram uma condição de “Desconhecido”, não somente ao leitor que não tem as informações de espaço e tempo – o autor não especifica tais categorias – como também os personagens se tornam desconhecidos, perdidos de si mesmos, que são descritos exteriormente e interiormente de forma a indicar certas reflexões e autocríticas, estranhamentos e indecisões. A realidade torna-se desconhecida a eles, pois a impossibilidade do autorreconhecimento acarreta a impossibilidade de ação, de agir contra a engrenagem que os fazem prisioneiros de um sistema da qual tentam se libertar, mas não alcançado êxito, põe em xeque a ética humana. Em O Prisioneiro os fatos narrados nas entranhas de uma guerra brutal são verossímeis e não alegóricos, e o personagem Tenente, designado para assumir o interrogatório do Prisioneiro, “representa o Horror Moderno, simultaneamente a violência e a impotência” dos seres humanos “transformados em número, que perderam a ‘linguagem’ e já não têm um passado” ou perderam a referência dele; eles não lutam mais pela “ideia da liberdade porque, fruto da civilização onde o humano se degradou”, na verdade nunca a possuíram. (CHAVES, 2001, p. 130).

Porém, o ser que vive esse “Horror Moderno” tem, em suas raízes, o desejo de liberdade, que Verissimo resgata e defende, trazendo de volta por intermédio da literatura – que não é apenas um manifesto sociopolítico – o que foi retirado do ser humano, ou de seu lugar natural. A forma como autoridades, governantes, poder econômico organizam e determinam as leis e/ou medidas administrativas – que articulam as práticas cotidianas das massas por intermédio de um conjunto de falsas ações ou discursos ligados ao progresso democrático, mas que na verdade é uma rede de recursos diversos que projeta a permanência do próprio poder – também é violento em diversos níveis. Ela – essa forma de governar – se manifesta nas omissões, nas ambiguidades de regramentos e das decisões jurídicas, nos ditos e não-ditos de um ordenamento que oculta ou revela de forma conveniente e que mantém o status quo da fragmentação da vida, em que governar importa mais do que a constituição da sociedade, onde os seres, iludidos e excluídos do poder de decisão e ação, perderam sua individualidade.

Os dispositivos anulam, castram o diálogo coletivo, para, por imposição ou dissimulação, reforçar o próprio diálogo. Se o ser humano é um ser dialógico, ao privá-lo do diálogo o dispositivo anula o sujeito. Esse sujeito anulado, destituído de voz e “desconhecido” de si mesmo, é o que a literatura de Erico Verissimo busca e representa.

Ideias cruzadas: as teorias de Bakhtin, Benjamin e Agamben correlacionadas à literatura de Érico Verissimo

Devido à importância da linguagem para o desenvolvimento tanto do ser humano quanto da sociedade a qual ele faz parte, acredita-se que a articulação das teorias aqui relacionadas seja relevante de ser estudada. Bakhtin investigou, em Problemas da poética de Dostoiévski, sobre o diálogo monológico no texto literário que acontece quando o autor torna-se mais importante do que os seus personagens, impondo o seu discurso ideológico e mostrando um único ponto de vista, aspecto que facilmente nos remete ao uso da linguagem nos dias atuais. O progresso tecnológico trouxe ao ser humano resultados tanto positivos como negativos como efeito dos tempos modernos, passou-se a valorizar mais as questões materiais, distanciando-se dos valores autenticamente humanos, em que algumas pessoas, visando alcançar bens, privilégios e poder, ignoram, ou até mesmo colaboram, com a miséria, dificuldades e desgraças do próximo. Benjamim, em sua filosofia da linguagem, colocou em evidência sua preocupação com a instrumentalização e redução da linguagem na modernidade, o que confere a ela um caráter político unilateral.

Agamben considera a linguagem como um dispositivo do poder, por dar condições ao sujeito tanto de criar, como de (se) iludir, (se) condicionar por intermédio dela. Para ele, dispositivo é “qualquer coisa que tenha de algum modo capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40).

Apesar dessas preocupações com o uso da linguagem que se tornou monológica, esses teóricos, em seus estudos, apresentam-se positivos em relação à potencialidade da linguagem na emancipação dos seres humanos dos entraves do capitalismo3 – em que tudo é coisificado, inclusive o humano e suas relações – e outras formas de dominação. Bakhtin observou na linguagem humana as relações dialógicas que as tornam dinâmicas, para tanto buscou na literatura o dialogismo e a polifonia, de onde emergem vários pontos de vista, e o passado e o presente se relacionam para discussões acerca da realidade e como discernimento para o futuro.

Benjamim investigou a essência espiritual que a linguagem comunica. Assim, o ser humano não se comunica apenas pelos signos, pois a linguagem é a própria essência espiritual do humano. É ele quem denomina, por conseguinte, toda a comunicação se dá a partir dele. Porém, a expressão linguística humana não se encerra na nomeação, na sua participação comunicativa, pois a linguagem não é a totalidade daquilo que ela expressa, caso contrário, seria algo estagnado, esgotado. Essa multiplicidade da linguagem, essa dinâmica de movimento, renovação e emersão de novos sentidos e significados, seria sua essência espiritual, transcendental, pois na criação tudo é linguagem, ela não é uma especificidade do ser humano, sendo que dentro dessa linguagem geral, encontra-se a linguagem humana. Compreendê-la suscitaria a esperança para a libertação da linguagem, que quando submetida apenas ao uso utilitário torna-se vazia, distante do caráter criativo do ser humano e de seus sentimentos mais puros, que teria sido relegado apenas às crianças e artistas.

Isso vai ao encontro de algumas ideias de Agamben ao retratar, em Infância e história (2008), que a infância estaria em um mundo simbólico, que não é a linguagem relacionada a nomear objetos, mas o não- -dito das palavras, em um “não-lugar” onde a experiência transcendental acontece, um experimentum linguae, que está relacionado à memória, às experiências vividas, mas também àquilo que está por vir. O filósofo também afirma, em Ideia da Prosa (2012b), que na vida existem coisas ainda não vividas, assim como nas palavras há coisas ainda não expressas, elementos que nos reporta ao pensamento de Bakhtin de incompletude da linguagem, que ele relaciona à literatura, pois nunca está fechada, ao contrário, está sempre aberta para releituras que suscitam reflexões ao ser humano sobre si mesmo, sobre o próximo e o mundo de forma dialógica, o que pode lhe trazer novos significados para a vida. Na visão bakhtiniana, o ser humano se constitui na e pela linguagem, na própria fala e na fala do próximo, para ele “Ser significa comunicar-se pelo diálogo. Quando termina o diálogo, tudo termina. Daí o diálogo, em essência, não pode nem deve terminar” (Bakhtin, 2008, p. 293).

Também Benjamin discorreu sobre a linguagem aberta que quando contemplada permite viabilizar o caráter mágico dela, tornando-a mais que simples instrumento para transmissão de conteúdos, mas também de experiências vividas para serem transformadas em novas, que, antigamente, eram evocadas pelo ato de narrar e que na atualidade podem ser ativadas também pela linguagem escrita, em especial, pela literatura. O teórico descreve sobre a momentaneidade de informações dentro da modernidade, em que acontece a decadência daquilo que é transmitido e da narração de experiências que aos poucos perderam seu valor. Para ele, narrar é comparável ao dom de dar conselhos a partir das experiências relacionadas à tradição em que a cultura teria a possibilidade de ser compartilhada por uma comunidade, rememorada e transformada de geração a geração.

Dessa forma, a narrativa teria um caráter de abertura – característica que se estende ao texto literário, cujas estruturas são narrativas – e não se encerra em si mesma, mas é enriquecida cada vez que se é novamente narrada/lida. Nessa nova ação de narrar, são incorporados elementos da comunidade de ouvintes/leitores, que trazem novas formas da arte e que acompanham novas composições de experiência das ações e relacionamentos humanos pela introdução do passado no presente. Benjamin tinha como alvo ressaltar a importância da narrativa oral para a construção do sujeito, porém reconhece que na modernidade, com a chegada da imprensa, a linguagem escrita, em especial a literária, adquire essa função, sendo um elemento tanto importante para o resgate da memória como para configurações do futuro.

Bakhtin, Agamben, assim como Benjamin recorreram à literatura para desenvolverem e consolidarem diversos de seus conceitos, que serão apontados no decorrer desta pesquisa. Percebe-se a concordância entre eles de que a literatura é uma possibilidade de relacionar conhecimentos por um prisma diferente da interpretação fechada de caráter científico. Dessa forma, as ideias captadas pelas narrativas vão para além da significação que as palavras descritivas apresentam; elas abrem-se e mostram-se como a dimensão de sofrimento, desejos, limites e valores do corpo e da mente humana, que ao invés de diminuídos pela linguagem literal e histórica, são ampliados pela linguagem literária e simbólica, que nos permite captar as ideias pelo sentido das palavras e pelo sentir as palavras, uma tensão entre poesis e práxis.

Para Bakhtin (2006), o discurso literário sendo polifônico, nele não há a “minha-palavra-original”, mas sim a “palavra-nossa” que, num modo contínuo de apropriação, se transforma em “palavra-nossa-minha”, e diante desse movimento dialógico, propicia espaço para recriação e reformulação da subjetividade do ser, de novas maneiras de ver e de refletir a realidade, de apropriar-se de conhecimentos não somente pela razão, mas também pela emoção e pela intuição.

Agamben busca na poesia a linguagem que “não finge”, no enjambement do verso poético, em que há um rompimento e uma recuperação em um fluxo ambíguo entre som e sentido, que o autor descreve como movimento “bustrofédico da poesia” que demonstra o “hibridismo do discurso humano”. Na fronteira desse movimento de romper e reatar surgem os ditos e os não-ditos da linguagem, revelando não apenas a condição e a razão, mas, sobretudo, os desejos humanos, o que demonstra que não há verdade completa ou absoluta. (AGAMBEN, 2012b, p.21-22).

Para Benjamin, a linguagem comunica-se por si mesma plenamente, além de descrever o ser humano, as coisas e os acontecimentos, também integra a essência espiritual do humano e da natureza, portanto, não pode ser entendida apenas como veículo de conteúdos sobre algo onde há apenas signos evidentemente correlacionados. O autor advoga que “a linguagem não é apenas comunicação do comunicável, mas, simultaneamente, símbolo do não-comunicável”. (BENJAMIN, 2013, p. 60). Dessa maneira, a linguagem literária, entre símbolos e metáforas, traz novas dimensões aos temas abordados e pode fazer surgir novos conceitos ou reflexões às ciências de um modo geral, por sua capacidade de transitar por diversos campos do conhecimento, por sua “iluminação profana”. Benjamin se utilizou da sua relação com a literatura para desenvolver seus estudos e ampliar sua visão sobre a História e temas relacionados às ciências sociais.

Em busca de libertação: Principais aspectos da obra O Prisioneiro

No romance O Prisioneiro, o “tenente negro” servia seu país, indicado na obra como uma potência econômica, política e bélica do mundo ocidental, em uma intervenção militar no sudeste asiático, que nos remete ao Vietnã. A última missão militar designada a ele foi conduzir o interrogatório do jovem que foi capturado e mantido como prisioneiro por ser o possível responsável pela explosão de uma bomba em um hotel, fato que acarretou a morte de dezenas de pessoas. Tal interrogatório tinha por alvo descobrir onde estaria uma segunda bomba que explodiria em menos de quatro horas em algum outro ponto da cidade, o que poderia ocasionar a morte de outros inocentes. O Tenente teria que decidir se recorria ou não à tortura para conseguir a resposta que salvaria vidas e, diante desse dilema, confronta-se com sentimentos de remorso, pois a ideia de torturar até mesmo dizimar a vida de um adolescente encarcerado, indefeso e ferido lhe parece imoral e antiético. Ao mesmo tempo, precisa lidar com o sentimento de impenitência, pois estava lidando com um revolucionário, que poderia estar envolvido com assassinatos, o que justificaria as escolhas dele na condução do interrogatório.

A voz do poder antiético falou mais alto aos ouvidos do Tenente, que permitiu que um Sargento sanguinário usasse a violência contra o jovem. Não aguentando as investidas, o Prisioneiro acaba por morrer, fato que desencadeou revolta e culpa ao Tenente, que saiu desnorteado pelas ruas, buscando em um e outro personagem algum alívio de consciência, perdão ou algo que legitimasse suas ações: uma vida por outras. O recebimento da notícia sobre um ataque equívoco de militares, em que outros inocentes são mortos, provocou uma crise de consciência e desespero, levando o Tenente a atacar o próprio grupo de soldados que, por reação, o fuzilaram.

A narrativa demonstra que “Desconhecido” de si mesmo, o Tenente encontrou na própria morte uma fuga. Porém, a morte na obra traz uma simbologia mais ampla que a simples ideia de temporalidade do ser humano. A linguagem simbólica é o fio condutor do romance, e a morte – introduzida pelo suicídio de uma estudante e que em diversos outros enxertos é representada pelas vítimas da guerra, pelas memórias dos personagens, e pelo fuzilamento do Tenente – não é a representação do fim, mas, traz uma ideia de ciclo, de renovação.

O homem preso às ordens do poder morreu, a ideia de ser livre surge forte, uma força que não vem da violência, mas da dignidade do ser humano que não deve ser esquecida, a força da própria vida. Por essas assertivas, indaga-se: Quem dá o poder de decisão? De intervenção? De matar? O romance de Verissimo, por meio de simbologias, suscita esses e outros questionamentos. Por intermédio da fala da personagem Professora, que conversa com o Tenente sobre a relação dos ocidentais com o povo da “nação dividida”, se expressa o elemento humanista do romance: “E para mim, o princípio básico é o de que não aceito nenhum sistema social, econômico e político que não tenha como centro a pessoa humana, seu bem-estar, sua liberdade e sua dignidade”. (VERISSIMO, 1978, p. 204)

Sem mencionar nomes, mas funções dos personagens, ou mesmo sem explicitar o local ou época, o autor não apenas incorpora uma temática global, e atual, como também confere uma importância maior ao “processo” do que ao “fato”. Dessa forma, a ideia de guerra vai além do que foi captado pela narrativa histórica, para além da significação que a palavra guerra apresenta, abre-se e mostra-se a dimensão de sofrimento do corpo aprisionado, que ao invés de diminuída pela linguagem literal e histórica, é ampliada pela linguagem literária e simbólica, que nos permite captar as ideias pelo sentido das palavras e pelo sentir as palavras, uma tensão entre poesis e práxis.

Dando as cartas do jogo: a virtude da Prudentia

O renomado filósofo italiano Giogio Agamben reconhece como dispositivo o termo que “nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem fundamento no Ser. Por isso, os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito” (AGAMBEN, 2009, p. 38). O sujeito produzido acredita na função do dispositivo como orientação, porém, sua ação é moldar o sujeito, o que resulta na perda da individualidade num processo de subjetivação, que na realidade é uma dessubjetivação. Assim, na “raiz de todo dispositivo está, deste modo, um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica do dispositivo” (AGAMBEN, 2009, p. 44).

Restituir aquilo que foi tirado do ser humano, que passivamente participa da engrenagem da máquina do poder pela subjetivação, seria possível pela profanação. Esta expressão é utilizada em oposição ao processo de sacralização, que seria restituir ao uso comum das pessoas algo que foi isolado ou sacralizado: “Se consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens” (AGAMBEN, 2007, p. 65). Para tanto, Agamben recorre ao lúdico como meio de profanação, pois quando o sujeito joga o jogo por suas regras e não pelas regras impostas (e arcaicas), ocorre uma ruptura do espaço capturado pelo poder e abre-se um novo espaço, o espaço da formação, da atuação do ser. “Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista” (AGAMBEN, 2007, p. 67).

Nesse contexto, a literatura encontra-se em potência com a profanação dos dispositivos, por quebrar as regras, abrir o jogo para qualquer um que se habilite adentrar no mundo imaginário e criativo das artes, em que a linguagem não é apenas utilitária ou fechada, mas sim aberta e livre, fonte do conhecimento que se faz renovado constantemente4

Sendo um dispositivo-lúdico-profanatório, a literatura molda comportamentos e conduz ações, assim, pode ser indicada como instrumento da virtude da Prudentia, que se fundamenta como “ato final da razão prática, convergência de inteligência e de vontade”, convocando o sentido do agir humano, cujo conjunto corresponde à “decisão”. Decidir a partir da sabedoria prudencial seria escolher, ou separar as coisas, o bom e o indesejável, o certo e o errado, cortar com a lâmina da razão, empunhado pela mão guiada pela responsabilidade. (Tomás de Aquino, TS, I-I, Q.17).

Certamente as linguagens nos auxiliam no conhecimento das realidades da vida, sem elas não seria possível apreender ou expressar sobre as coisas do mundo e da existência humana. O pensamento ético e linguagem estão intrinsicamente atrelados, sendo assim, quando há empobrecimento da linguagem, consequentemente, a ética se torna debilitada ou, até mesmo, ausente. A leitura de obras que abordam o ser humano em suas ações de forma dialógica, tanto amplia como resgata a linguagem capaz de assomar questões ligadas ao crescimento e às inter-relações humanas. Ela articula a linguagem profanatória, pois por sua abertura, revela o não-dito, o contraditório; promove um reconhecimento das diversas interpretações, da pluralidade. Interpretar é profanar, pois libertado das amarras do condicionamento de uma verdade única o ser humano busca explorar todas as possibilidades.

Seguindo essas assertivas, entende-se que a língua – a qual permite ao humano significar e ressignificar o mundo – pode interferir tanto positiva como também negativamente na formação social e individual do(s) sujeito(s) dependendo do uso ou da função que se atribui a ela. Porém, a linguagem literária trabalha a realidade como uma força reveladora que possibilita ao ser humano desfrutar da linguagem com liberdade, criatividade e criticidade, porém, com responsabilidade, o que restabelece a virtude da Prudentia. A concepção da linguagem como representação da realidade, do presente, mas também da memória, conecta-se diretamente com a inteligência nas tomadas de decisões para o bem agir, o que se relaciona à virtude da Prudentia (prudência), uma virtude cardeal5 com relação direta com a inteligência, e que permite ao ser humano ver a realidade, sem que esta seja retorcida por preconceitos, conveniência, egoísmo, interesses, fundamentalismo, entre outros.

Conhecedor da realidade, baseando-se naquilo que vê, ele pode decidir, entre as diversas possibilidades de escolha, a ação correta a ser tomada nas diferentes situações da vida. A imprudência, um problema que encontramos na atualidade, é a de delegar a outras instâncias a tarefa de tomar decisões que, para alcançar bons resultados, depende da visão da realidade. (LAUAND, 2002). A literatura se distancia do utilitarismo por não ser linguagem estereotipada, ela é potência de resistência aos discursos de ordem, de manutenção de poder, das formas artificiais, ou de passividade e de acomodação daquilo que se tornou capturado e diminuído por padrões.

Considerações finais

O romance de Erico Verissimo, gênero que por sua hibridez abarca também a poesia, contempla as questões subjetivas da vida humana por meio das simbologias, que são próprias do fazer literário. Em contrapartida, sendo uma denúncia, traz um significado e uma função voltada para o agir, provocações que a literatura faz com maestria.

O resultado da análise da obra O Prisioneiro, por intermédio das teorias acerca da linguagem de Bakhtin, Benjamin e Agamben, possibilita ressaltar a mensagem sugerida como consequência do dialogismo entre literatura e teologia, que colabora para a visão crítica do ser humano que, pela experiência lúdica e transformadora da literatura, reflete sua atuação não como ente alienado, mas como Ser pleno de sua capacidade. Considerando a ideia agambeniana de que a linguagem é um dispositivo; a concepção benjaminiana de que a linguagem comunica-se por si mesma, pois descrever o ser humano, as coisas e os acontecimentos, e integra a essência espiritual do humano e da natureza, trazendo novas significações das realidades principalmente por sua “iluminação profana”; e a ideia bakhtiniana de que o ser humano é dialógico, pois só compreende os enunciados quando reage e contrapõe as palavras do locutor com uma contrapalavra; é possível considerar a literatura como um dispositivo-lúdico-profanatório.

Ademais, o resultado dessa análise teológico-literária pode também incitar uma reflexão acerca da conduta ética humana, sua relação de profanação com os dispositivos do poder, em que o ser humano percebe-se como livre para pensar e escolher as ações, ou seja, sua jogabilidade e não como peça do jogo que é manipulada. A literatura, por sua característica de texto inacabado, permite certo mistério, aspecto que vai ao encontro da natureza do ser humano, que é ambígua, inconclusa e aberta para mudanças

REFERÊNCIAS

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VERISSIMO, Erico. Noite/O Prisioneiro. Porto Alegre: Editora Globo, 1978.

Notas

[1]A visão simbólica do mundo, da qual a literatura compartilha, é algo natural e necessário para a formação do caráter do ser humano. Para Antônio Candido, (2002), a literatura possui uma força humanizadora, que traduz o homem e a mulher e depois atua na própria formação deles. Ele apresenta três funções conferidas à literatura: a função psicológica, associada à necessidade do ser humano de simbolizar e fantasiar o mundo real, sendo tal aspecto inerente à natureza humana, que acompanha as outras necessidades elementares, e que são universais e independem de raça, cultura, classe social, ou outros aspectos diversificantes. A outra função relacionada à literatura é a formadora, pois o leitor de uma obra não está imune de sofrer influência por meio das diversas informações que o texto pode conter, e por tanto, tem um caráter formador sobre esse leitor. Dessa forma, as ideologias do autor – como críticas ao sistema capitalista, ou defesa das classes desfavoráveis, entre outras – mesmo que relacionadas a épocas diferentes, ainda provocará reações no leitor, tanto de proximidade, ou de recusa, mas que levantarão novos questionamentos e posicionamentos que antes da leitura não haviam se manifestado. A terceira função da literatura é a social e está ligada à relação estabelecida pelo leitor entre ficção e realidade, pois a obra demonstra o contexto do autor, mas que o leitor capta e relaciona com o seu próprio contexto.

[2]Erico Verissimo: um solo de clarineta. Manchete. Rio de Janeiro, 04.08.1973. Entrevista a Rosa Freire D’Aguiar.

[3]No sistema capitalista de produção a divisão do trabalho, a propriedade privada e a troca capitalista se interpõem entre o ser humano e sua atividade, entre ele e a natureza e entre ele e o próximo. “Nesse sentido, o trabalho deixa de ser manifestação da vida para se transformar em alienação da vida; trabalhar para viver, imposição de uma necessidade externa, que torna o homem desumanizado. Quando a atividade vital do homem é apenas um meio para um fim, não se pode falar de liberdade”. (SOUZA, 2015, p.37).

[4] Para Humberto Eco, o movimento poético de uma obra “é um momento intuitivo que joga não somente com a inteligência, mas também com a emoção e a sensibilidade... é emoção intencional que traz em si bem mais do que ela mesma”, e isso ocorre porque ela é resultado de uma profunda relação com a realidade, “identificação final do mistério das coisas com o espírito do artista”, que pode ser compreendida como “momento de conhecimento pré-lógico do real”, “instrumento de revelação metafísica” (ECO, 2016, p.107).

[5]Santo Tomás de Aquino analisou profundamente a virtude da Prudência (Prudentia) em sua Suma Teológica (II-II,48,1), cujo real sentido, na contemporaneidade, foi esvaído pela ideia de cautela, que remete à passividade ou letargia. Segundo JOSAPHAT (2012), o aquinate classifica a virtude da Prudência como sendo virtude intelectual e também moral, pois exige a retidão do apetite ao produzir a potência de agir bem e também é uma das causas do exercício da boa ação, sendo assim, ela está entre as virtudes cardeais. Tais características tornam a prudência uma virtude especial, distinta das demais virtudes em função de seus objetos, é recta ratio agibilium, a reta razão aplicada à ação. É a virtude que tanto se distingue das virtudes intelectuais e das morais, como também se mantém em diálogo com elas.