ASPECTOS RELIGIOSOS NA ADORAÇÃO DE SUPER-HERÓIS: OLHARES AO FÃ DO GÊNERO DA SUPERAVENTURA
RELIGIOUS ASPECTS IN SUPERHERO WORSHIP: APPROACHES ON SUPERHERO GENRE FANS

Larissa Tamborindenguy Becko*
Iuri Andréas Reblin**
*Doutoranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, com ingresso em 2019/1. Bolsista CAPES. Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Arte Sequencial, Mídias e Cultura Pop (CultdeCultura) e integrante do CULTPOP - Grupo de Pesquisa em Cultura Pop, Comunicação e Tecnologias. E-mail: larissabecko@gmail.com.
**Doutor em Teologia e docente dos Programas de Pós-Graduação em Teologia da Faculdades EST. Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Arte Sequencial, Mídias e Cultura Pop (CultdeCultura). E-mail: reblin_iar@yahoo.com.br.
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Resumo:
O texto apresenta um estudo sobre os aspectos religiosos presentes na cultura do fã de histórias em quadrinhos. Por meio de uma abordagem bibliográfica e de uma pesquisa de campo com fãs de super-heróis, a investigação problematiza a cultura dos fãs de super-heróis a partir de um diálogo com a teologia, buscando compreender de que forma os elementos simbólicos, míticos, religiosos implícitos e explícitos nas narrativas da superaventura podem reverberar em sua audiência. Para tanto, num primeiro momento, apresenta a centralidade que o super-herói ocupa na era contemporânea, para num segundo momento, destacar alguns elementos mítico-religioso presentes nas narrativas dos super-heróis. Em seguida, o estudo parte para uma análise por meio de três categorias: materialidades, comunidades e espaços. Ao final, o estudo conclui que as histórias dos super-heróis emergem como uma espécie de narrativa religiosa capaz de evocar práticas de devoção e adoração que se traduz no comportamento do fã, refletido, analogicamente, nas materialidades, nas comunidades e nos espaços.

Palavras chave:Super-heróis. Histórias em Quadrinhos. Cultura de fã.

 

Abstract
The text presents a study on the religious aspects present in the culture of the fan of comics. Through a bibliographical approach and a field research with fans of superheroes, the investigation problematizes the culture of superhero fans from a dialogue with theology, seeking to understand how the symbolic, mythical, implicit and explicit religious beliefs in the narratives of superhero genre may reverberate in their audience. For this, in a first moment, it presents the centrality that superheroes occupy in the contemporary era, in order to, in a second moment, emphasize some mythical-religious elements present in the narratives of the superheroes. Then, the study starts for an analysis through three categories: materialities, communities and spaces. In the end, the study concludes that the stories of superheroes emerge as a kind of religious narrative capable of evoking practices of devotion and worship that translates into the behavior of the fan, reflected, analogically, in materialities, communities and spaces.

Keywords:Superheroes. Comic books. Culture of superhero fans.

Introdução

Os personagens oriundos das histórias em quadrinhos, em especial, os super-heróis, se tornaram um imenso fenômeno cultural. Desde que surgiram no início do século passado, a partir da publicação de Action Comics, n. 1, de junho de 1938, que trazia em suas páginas a primeira história do Superman, os super-heróis conquistaram o público e logo migraram para outras mídias, protagonizando cinesséries, desenhos animados e se desdobrando em uma variedade de produtos comercializados mundo a fora. Após quase um século desde seu surgimento, os super-heróis se tornaram parte indelével da cultura pop, movimentando não apenas uma grande quantidade de dinheiro, como também um público consumidor cada vez mais sedento por ver seus personagens queridos na próxima revista, no próximo episódio, no próximo filme.

Nessa direção, a problemática deste texto parte de duas premissas: da afirmação da Tia May no segundo filme do Homem-Aranha, dirigido por Sam Raimi, e da percepção de Christopher Knowles sobre o movimento dos fãs em convenções de quadrinhos. O discurso da Tia May a Peter Parker aponta para o super-herói como uma referência para as pessoas. Ela afirma:

Ele conhece um herói quando ele vê um. Há poucos por aí, voando e salvando pessoas idosas como eu. E Deus sabe, crianças, como Henry, precisam de um herói. Pessoas corajosas, altruístas, servindo de exemplos para todos nós. Todos adoram heróis. Pessoas fazem fila para vê-los. Torcem por eles. Gritam seus nomes. E, anos mais tarde, eles contam como ficaram na chuva por horas só para ver de relance aquele que os ensinou a aguentar um segundo a mais. Eu acredito que existe um herói em todos nós, que nos mantêm honestos, nos dá força, nos enobrece e, finalmente, nos permite morrer com orgulho. Mesmo que às vezes tenhamos que estar preparados e desistir daquilo que mais queremos. Até mesmo de nossos sonhos.1

Já Christopher Knowles, em seu livro Nossos Deuses são Superheróis, ao tecer várias relações entre religião e o universo ficcional dos super-heróis, sugere um movimento reverencial expresso nas convenções de quadrinhos, no comportamento dos fãs. Segundo Knowles (2008, p. 36), “Mas, quando vê fãs vestidos como seus heróis prediletos em convenções de histórias em quadrinhos, você está testemunhando o mesmo tipo de adoração que havia no antigo mundo pagão, onde os celebrantes se vestiam como o objeto de sua adoração [...]”.

Nessa direção, este texto problematiza a cultura dos fãs de super-heróis a partir de um diálogo com a teologia, buscando reunir duas pesquisas em áreas distintas: o estudo da cultura do fã do super-herói, a partir das ciências da comunicação (BECKO, 2019), e o estudo do gênero da superaventura a partir da teologia (REBLIN, 2015). Especificamente, este estudo intenta compreender de que forma os elementos simbólicos, míticos, religiosos implícitos e explícitos nas narrativas da superaventura podem reverberar em sua audiência. Afinal, como sugeriu Rubem Alves, em O que é religião?, “O que ocorre com frequência é que as mesmas perguntas religiosas do passado se articulam agora, travestidas, por meio de símbolos secularizados. Metamorfoseiam-se os nomes. Persiste a mesma função religiosa” (ALVES, 2005, p. 12).

Assim, este estudo parte de algumas considerações fundamentais que provocam esse movimento dos fãs: a) A transmidiação, como identifica Henry Jenkins, do universo ficcional dos super-heróis, que, sem dúvida, amplia seu impacto cultural; b) o locus das narrativas de super-heróis dentro da cultura pop; c) o conceito do super-herói como figura salvadora que emerge de um contexto altamente religioso; e d) a utilização da linguagem mítica na composição das narrativas dos super-heróis. Para tanto, serão trazidos alguns depoimentos registrados durante a investigação da cultura do fã (BECKO, 2019) para endossar o argumento sobre as aproximações entre cultura do fã de super-heróis e práticas religiosas.

A centralidade dos super-heróis na contemporaneidade

Os heróis das histórias em quadrinhos conquistaram espaço para além das prateleiras de bancas de jornal e livrarias. Filmes, séries de TV e artigos de vestimenta e decoração são alguns exemplos que provam a expansão desses personagens. Nos cinemas, um dos precursores foi o “Superman, O Filme” (1978). O longa-metragem é considerado como um marco de um novo patamar de filmes, o de super-heróis, já que é considerado o primeiro blockbuster do gênero. Foi a partir dele que esses personagens começaram a ganhar cada vez mais adaptações cinematográficas (BECKO, 2019). Conquistando recordes de bilheteria, os estúdios passaram a investir cada vez mais nesse segmento. O maior exemplo, certamente, é “Vingadores: Ultimato” (2019), que está próximo de se tornar a maior bilheteria do mundo, tendo arrecadado 2,683 bilhões de dólares nos primeiros dois meses depois de sua estreia2.

As séries de TV também têm chamado a atenção dos fãs de super-heróis, já que tanto a Marvel quanto a DC Comics têm investido bastante na produção de séries e animações, a exemplo de “Supergirl” (DC Comics), “Justiceiro” (Marvel) e “The Flash” (DC Comics). A extensa lista de produções baseadas em histórias em quadrinhos ainda ganhou reforço em 2019 com os lançamentos de “Titãs” (DC Universe), “Deadly Class” (Image Comics/Syfy) e “Doom Patrol” (DC Universe), dentre outros3. Os serviços de streaming, como Netflix, Hulu e Amazon, por exemplo, são também fortes indicadores para o investimento nas produções seriadas4.

O crescimento de lojas voltadas para vendas de artigos “nerd” também deve ser analisado como uma possibilidade de estender a relação do fã com o super-herói. A compra de artigos como camisetas, bótons, pôsteres e brinquedos colecionáveis, por exemplo, já é considerada um hábito entre os fãs. E, nos últimos tempos, consagradas lojas de departamento passaram a vender produtos de personagens de HQ, como camisetas, roupas de cama, artigos de decoração etc. (Figura 1) (BECKO, 2019).

De forma geral, os fãs de super-heróis, atualmente, estão rodeados de novas formas de viver a experiência de fã. E os eventos voltados para os fãs são mais um exemplo desse fenômeno. A Comic Con Experience (CCXP), realizada há cinco anos em São Paulo, na sua quarta edição, atingiu um público de mais de 227 mil pessoas, consolidando-se então como a maior comic-con do mundo5. Para fins de comparação, a San Diego Comic-Con, uma das mais importantes, que começou em 1970, possui um público anual de mais de 135 mil pessoas6. Podemos inferir a partir desses dados que o grande crescimento de consumo conferiu ao universo dos super-heróis o status de mainstream, ou seja, aquilo que é destinado ao grande público, o que é dominante, popular (MARTEL, 2012). Mas como os super-heróis chegaram a esse patamar?

Fawaz (2016) conta que a morte do Super-Homem, em 1992, se transformou em um marco que ultrapassou os limites das páginas de um gibi. O autor aponta que, meses antes de a história ser roteirizada, a mídia impressa e televisiva norte-americana saudou a morte do herói “como um evento de extraordinário significado cultural, impulsionando o que inicialmente parecia uma decisão criativa isolada do campo do debate público” (Ibid., p. 1, tradução nossa).

A opinião pública variou amplamente, desde aqueles que interpretaram a queda de Super-Homem como uma crítica justa da falência moral dos Estados Unidos para aqueles que a reconheceram como um golpe de marketing para impulsionar as vendas de revistas em quadrinhos. [...] Segundo Rozanski, ao escolher matar Super-Homem para fins sensacionalistas, a DC estaria quebrando uma promessa implícita ao povo americano de preservar o legado do herói como um “curador de uma imagem nacional sagrada”. (FAWAZ, 2016, p. 1-2, tradução própria)7

Essas reflexões nos levam a pensar no papel que um personagem como o Super-Homem passa a cumprir. Fawaz (2016) olha para esse contexto sob a perspectiva estadunidense, apresentando-nos o herói como um representante dos valores daquele país. No entanto, o SuperHomem não tem uma importância somente para os Estados Unidos: trata-se de um personagem que atinge uma dimensão global (BECKO, 2019). E percebemos isso quando sabemos que a morte do herói foi noticiada por Cid Moreira no Jornal Nacional, na Rede Globo8. Se os norte-americanos se identificam com o personagem porque o veem como um símbolo dos princípios morais dos Estados Unidos, o que leva os brasileiros, por exemplo, a adorarem personagens como o Super-Homem?

A possibilidade de distribuição global é o primeiro passo para entender o que Chin & Morimoto (2013) denominam como “fandom9 transcultural”, ou seja, a compreensão de grupos de fãs de produtos midiáticos elaborados num determinado contexto nacional, regional ou local podem se estabelecer – de forma organizada ou orgânica – e serem capazes de, levando em conta a globalização e de elementos básicos de uma cultura global, fazer leituras e dar novos significados dentro de seus próprios contextos a partir de uma “memória internacional-popular” (ORTIZ, 2007). Segundo o autor, essa “memória internacional-popular funciona como um sistema de comunicação fora do meio de referências culturais comuns, ela estabelece a conivência entre as pessoas” (ORTIZ, 2007, p. 129). A produção cultural global acaba assumindo, portanto, um papel forte nas relações sociais e no cotidiano das pessoas, permeando diversas práticas sociais exatamente como é o caso dos fãs.

As HQs fazem-se importantes produtos culturais quando se percebe que existem fatos históricos, opiniões e tendências latentes capazes de traduzir o contexto de uma época. McCloud (2005, p. 4) afirma que “o mundo dos quadrinhos é imenso e variado” e que a definição de HQ deve ser abrangente o suficiente para incluir tudo o que for relativo a quadrinhos. As histórias em quadrinhos de super-heróis são, portanto, uma parcela desse conjunto.

“Os super-heróis e os quadrinhos foram feitos um para o outro”, sugere o acadêmico Robert Harvey, por isso não é surpreendente que outro elemento da literatura dos quadrinhos seja o conhecimento desse gênero de histórias. A aventura do super-herói deu ao formato de histórias de fórmula preenchidas vantagem da natureza em série de quadrinhos e ilustrações brilhantes, o formato deu ao gênero (virtualmente nascido em quadrinhos) um lugar onde as aventuras dos personagens poderiam ser “imbuídas de ilusão suficiente da realidade para tornar as histórias convincentes”. Por causa desse relacionamento íntimo, as histórias de super-heróis foram o gênero de quadrinhos mais comum (PUSTZ, 1999, p. 134, tradução própria).10

Fawaz (2016) defende que, em sua essência, estas contam histórias sobre indivíduos dotados de habilidades extraordinárias, que devem enfrentar a questão sobre o que fazer com essas aptidões. Essas histórias são fantasias no sentido que exploram capacidades físicas ou mentais a que os seres humanos não têm acesso. O autor considera que as histórias são consumidas a fim de se obter prazer a partir dessa capacidade expandida e também para refletir sobre que tipos de escolhas que as pessoas fazem com os poderes dos quais dispõem.

Nesse contexto, Viana (2011) aponta que os super-heróis são produtos históricos e sociais, de forma que a criação e a renovação desses personagens – bem como as temáticas, valores, concepções, presentes nas suas histórias – são atravessadas pela realidade. Os personagens de quadrinhos podem ser definidos, segundo Fawaz (2016), como um arquivo vivo de nossas fantasias coletivas sobre uma série de preocupações, incluindo a natureza do poder (os seus prazeres e perigos), o significado de ação ética e bondade coletiva, prazer visual no testemunho de habilidades impossíveis e a capacidade de mudar o mundo.

Em última análise, construímos a hipótese de que os super-heróis – impulsionados por todo o processo de transmidiação pelo qual vêm passando – transcenderam às próprias mídias: eles se tornaram “entidades” maiores que os gibis, os filmes ou qualquer outro texto midiático. Esse caráter é o que permite, acreditamos, que os produtos – mesmo quando são considerados ruins pelo público – não invalidem o personagem. O Super-Homem, por exemplo, não perdeu a adoração de seus fãs porque o filme “Batman vs Superman: A Origem da Justiça” (2016) foi considerado um fracasso1111. O produto parece não nulificar mais o legado do super-herói (BECKO, 2019).

Aspectos mítico-religiosos nas narrativas dos super-heróis

As histórias dos super-heróis são, pois, um fenômeno cultural, que atinge uma dimensão global e, à parte de todas as considerações relacionadas à construção de uma narrativa envolvente, é fundamental acrescentar aqui um aspecto indelével no gênero do super-herói e que, ao que parece, contribui significativamente para esse grau elevado de persuasão e penetração numa espécie de consciência coletiva: a forte presença de elementos mítico-religiosos em suas narrativas. A fala da Tia May a Peter Parker, indicada no início de nossa reflexão, falando sobre como o Homem-Aranha inspira e enobrece as pessoas é um indicativo dessa presença mítico-religiosa nas histórias e que, de acordo com nossa hipótese, atua ininterruptamente para aquilo que nos propomos a reconhecer como um movimento de adoração cúltica. Essa presença mítico-religiosa nas histórias dos super-heróis pode ser identificada por meio de três aspectos: 1) a construção do gênero da superaventura associada à ideia de religião civil; 2) os super-heróis como símbolos de um desejo de poder; 3) as aproximações teológicas entre a superaventura e as narrativas religiosas. Há ainda outros aspectos que podem ser destacado, mas, para tanto, sugerimos consultar leitura específica (REBLIN, 2019).

O primeiro aspecto se refere à religião civil. A cultura estadunidense, sua visão de mundo, sua estruturação simbólica é fortemente marcada pelo espírito protestante que acompanhou os primeiros colonizados ao “novo mundo”, de modo que este processo for percebido pelos imigrantes como o caminho percorrido pelo povo de Deus do Egito à Terra prometida. Essa ideia é traduzida na autocompreensão de “povo eleito” e no conceito de “destino manifesto”. Isto é, está presente a ideia de que os Estados Unidos seriam o “novo Israel”, liberto de uma vida servil da Europa feudal rumo a um novo mundo, com liberdade e autorregência, o que traduz num sentimento de inocência política, que autoriza aos estadunidenses julgar os povos e intervir quando necessário; afinal, reside o compromisso de que o povo eleito por Deus também se torna responsável por travar as batalhas do Senhor contra as (forças julgadas como) do mal. Em outras palavras, a ideia de “povo eleito” se desdobraria na ideia de “destino manifesto”:

Por que a providência divina contemplou os Estados Unidos com essa terra? Como razão constantemente foi mencionado o experimento político exitoso de “liberty and selfgovernment [liberdade e autocracia]”. Com a concepção de que a providência divina revela-se nos sucessos e nas conquistas dos EUA, perdeu-se a antiga imagem bíblica do “povo eleito” e sua eleição acolhida na fé e mantida em meio a sofrimentos. A eleição oculta, acolhida pela fé, foi substituída pelo destino manifesto nos êxitos dentro da história universal. Tanto é que o recurso à providência divida servia à apoteose do próprio sucesso. [...] Se os EUA foram eleitos para a salvação de todos os povos e da humanidade, então a sua política não só pode, como deve ser avaliada pelo critério da promoção da liberdade dos povos, de sua autocracia e dos direitos humanos. O perigo fica evidente quando a concepção do “manifest destiny” é utilizada para reprimir, conquista e apoiar ditaduras que despreza, a humanidade para fins da própria “segurança nacional”. (MOLTMANN, 2003, p. 194-195.)

Essas ideias religiosas de povo eleito, de destino manifesto, foram cruciais para a compreensão de sociedade e de nação estadunidense. E é a isso que Robert Bellah (1992) chamou de religião civil. É por isso que os feriados mais importantes dos Estados Unidos são o Memorial Day e o Thanksgiving, pois ambos refletem a compreensão de providência divina e de nação redentora do mundo. Essas ideias estão incutidas na formação do gênero da superaventura, porque os super-heróis frequentemente se posarão como salvadores do mundo. Isto é, eles refletem em suas narrativas essa autoconsciência da atuação divina na construção da história do povo estadunidense.

O segundo aspecto se refere aos super-heróis como símbolos de um desejo de poder. Super-heróis lidam com transcendência, com uma ânsia de poder em termos de potência, do desejo de ser mais, que se reflete na presença dos superpoderes ou ainda na personificação de ideias de moralidade, que se expressa na iconografia do herói. (REBLIN, 2008). Nas palavras de Nildo Viana (2005, p. 41), “o processo de burocratização e mercantilização das relações sociais no capitalismo cria a necessidade, através da fantasia, de superar a prisão que se tornou a vida social e conquistar uma liberdade imaginária para compensar a falta de liberdade real”. Esse desejo de poder também se reflete na construção do corpo e na superação dos limites impostos ao corpo humano. Nessa direção, os super-heróis acabam se tornando uma espécie híbrida entre quem nós somos e quem nós gostaríamos de ser.

Por fim, o terceiro aspecto identifica as aproximações teológicas entre as narrativas da superaventura e as histórias religiosas. As histórias dos super-heróis são, ao fundo, histórias de salvação que possuem uma estrutura narrativa muito próxima às narrativas bíblicas. Assim como Deus se manifesta na história para salvar seu povo, muitas vezes, à despeito de quem ele é, o super-herói surge igualmente para salvar o povo de um perigo e restaurar a ordem original, nem que, muitas vezes, essa ordem restaurada seja a simples manifestação do status quo, das coisas como elas são. Nas palavras de Christopher Knowles (2008 p. 131),

Todos os super-heróis são, basicamente, salvadores. Diferentemente dos salvadores religiosos, porém, os super-heróis oferecem a salvação como um acontecimento concreto e nada ambíguo. Eles existem simplesmente para salvar as pessoas de perigos físicos – o que explica seu encanto permanente. Histórias sobre suas façanhas lidam com a ansiedade real e satisfazem uma necessidade profunda.

E aqui é interessante observamos a aproximação temática, a metodológica e a ideológica das narrativas religiosas em relação à superaventura (REBLIN, 2015). Assim como as narrativas religiosas, as histórias dos super-heróis também apresentam temas que são caros à humanidade e pauta recorrente da discussão teológica e do discurso religioso: esperança, injustiça, o Bem Supremo e os valores éticos imprescindíveis para a construção de uma sociedade melhor. As histórias dos super-heróis também lidam com a discussão sobre a presença do mal na sociedade, na vida humana, e de como esse mal afeta as relações e o mundo. Assim como muitas divindades, os super-heróis também assumem um compromisso com a humanidade, buscando a salvação. Logo, há diversas aproximações temáticas entre narrativas religiosas e as histórias da superaventura.

Além disso, convém destacar ainda as aproximações metodológica e ideológica. As histórias de super-heróis são construídas por uma estrutura de narrativa mítica (REYNOLDS, 1992), que visam criar uma coesão social, reafirmar a identidade, ter uma pretensão universal, com temas que intentam, antes, “falar ao coração humano”. Nessa direção, assim como muitas narrativas religiosas que são contadas e recontadas continuamente, as histórias de super-heróis mantêm uma mesma estrutura narrativa a fim de provocar um exercício de anamnese, isto é, de por em movimento uma ação metodológica da repetição e do alimento de uma memória afetiva (REBLIN, 2015). Ademais, essa ação também repercute numa perspectiva ideológica, visto que expressa a faculdade humana de projetar ideais e de criar mecanismos de tradução desses ideais em valores, narrativas concretas. O exercício de projetar, idealizar, por meio da fé um “reino de Deus” e buscar formas de manutenção desse ideal por meio da narração de histórias ou da realização de ações concretas fomentadas por esse ideal também acontece nas histórias dos super-heróis

As histórias dos super-heróis possuem, portanto, elementos simbólico-religiosos em suas narrativas. Esses elementos também se traduzem em símbolos, nas iconografias utilizadas nas histórias em quadrinhos como forma de comunicação e mesmo na inclusão intencional de elementos religiosos como recursos narrativos (REBLIN, 2016). Por essas e outras razões, os super-heróis se tornam um locus revelationis da experiência religiosa e é por essas e outras razões que Christopher Knowles vai afirmar, na já referida citação no início de nosso texto, que

É exatamente o tratamento reverencial dado a esses personagens – o retrato essencialmente religioso feito deles – que ressoa com a massa de espectadores atuais. Temos testemunhado aí, com efeito, o surgimento de um estranho tipo de religião. Hoje, os super-heróis representam para nós o papel antes representado pelos deuses nas sociedades do passado. Hoje, os fãs não rezam para o Super-Homem ou para o Batman – ou pelo menos não admitem isso. Mas, quando vê fãs vestidos como seus heróis prediletos em convenções de histórias em quadrinhos, você está testemunhando o mesmo tipo de adoração que havia no antigo mundo pagão, onde os celebrantes se vestiam como o objeto de sua adoração e encenavam seus dramas em festivais e cerimônias. (KNOWLES, 2008, p. 36).

Os super-heróis, portanto, personificam elementos religiosos, de modo que são capazes de evocar movimentos devocionais por parte do fandom. Isso porque, justamente, a religião pode ser melhor compreendida como um sistema de símbolos capaz de estabelecer motivações e disposição duradouras nas pessoas, como diria Clifford Geertz (1989), ao mesmo tempo que é também expressão de uma ausência, como apontaria Rubem Alves (2005).

Processos rituais a partir da cultura de fãs de super-heróis

A nossa análise parte de uma inspiração etnográfica e autoetnográfica para compreensão das aproximações entre o consumo de super-heróis e os aspectos religiosos que identificamos nesses processos. Nesse contexto, contaremos com os depoimentos de entrevistados aliados às nossas próprias visões e experiências como fãs de super-heróis.

Segundo Wolcott (1987), a pesquisa etnográfica busca descrever e interpretar o comportamento social humano, inserido nos padrões culturais. Peirano (2008, p. 3) defende que “a (boa) etnografia de inspiração antropológica não é apenas uma metodologia e/ou uma prática de pesquisa, mas a própria teoria vivida”. Segundo a autora, uma referência teórica não apenas comunica a pesquisa, mas é elemento essencial da etnografia:

No fazer etnográfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada nas evidências empíricas e nos nossos dados. Mais: a união da etnografia e da teoria não se manifesta apenas no exercício monográfico. Ela está presente no dia-a-dia acadêmico, em sala de aula, nas trocas entre professor e aluno, nos debates com colegas e pares, e, especialmente, na transformação em “fatos etnográficos” de eventos dos quais participamos ou que observamos. Desta perspectiva, etnografia não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma maneira de interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em ação (Ibid.).

A prática da autoetnografia pode fornecer, de acordo com Evans & Stasi (2014), uma ferramenta crítica e inovadora para as pesquisas, já que permitem narrativas mais incorporadas, que deem mais pistas sobre o que significa assumir para o sujeito assumir certas posições e de que forma isso o ajuda a criar um senso de si como uma experiência de vida.

A partir da construção de dados, propomos a análise por meio de três categorias: (i) materialidades, (ii) comunidades e (iii) espaços.

4.1. O caráter das materialidades: a importância dos objetos

Quando eu vi A Morte do Superman na banca numa edição especial com capa laminada e aí eu comprei. A estratégia de choque no fã, ou de choque no sujeito que não é fã, mas que tá atento pra essas coisas, funcionou completamente pra mim. Eu fiquei assim: “Ah, o Super-Homem morreu”.
Obviamente eu atribuo valor ao papel, a estocagem desse material, dessa ficção que eu gosto de ler e com a qual eu me ocupo boa parte do meu tempo, eu gosto de ter ela em papel. Eu gosto de manusear ela e navegar no papel.
Eu acho o seguinte: se tu gosta de quadrinhos, cinema, séries, e tu de alguma forma através de adereços externos tu demonstra isso, como camiseta, broche, colar, bolsa, bóton...

Os trechos acima são depoimentos retirados de entrevistas realizadas com fãs de super-heróis. E o que todos eles apresentam em comum é a questão da importância das materialidades para essa comunidade.

Douglas & Isherwood (2004) consideram os bens de consumo como elementos que comunicam categorias culturais e valores sociais. Segundo os autores, as escolhas de consumo carregam significados sociais, já que dizem algo sobre o sujeito, sua família, sua cidade, sua rede de relações. O ato de consumir se estabelece, portanto, como um processo no qual todas as categorias sociais são continuamente definidas, afirmadas ou redefinidas. Para Janotti Jr. (2003, p. 11-12), “é importante, nesse contexto, identificar a maneira como os objetos são consumidos e o modo como as suas apropriações são efetivadas”.

Objetos materiais são um cenário. Eles nos conscientizam do que é apropriado e inapropriado. Nos dizem que isso é um casamento, aquilo é uma atividade impura. Mas funcionam de modo mais efetivo quando não olhamos para eles, quando apenas os aceitamos. Iniciar uma discussão sobre a moldura de um quadro, e não sobre o quadro, as convenções do teatro em vez da peça, os potes num casamento em vez do casamento, o papel de parede num quarto em vez da conversa aconchegante que podemos ter no quarto, tudo isso seria muito embaraçoso; algo que não se deve mencionar foi alçado a primeiro plano. [...] A conclusão surpreendente é que os objetos são importantes não porque sejam evidentes e fisicamente restrinjam ou habilitem, mas justo o contrário. Muitas vezes, é precisamente porque nós não os vemos. Quanto menos tivermos consciência deles, mais conseguem determinar nossas expectativas, estabelecendo o cenário e assegurando o comportamento apropriado, sem se submeter a questionamentos. Eles determinam o que ocorre à medida que estamos inconscientes da capacidade que têm de fazê-lo. (MILLER, 2013, p. 78-79)

De modo geral, o consumo sempre esteve relacionado a expressões como materialismo, que, por sua vez, está associado à superfluidade, vazio, insignificância. No entanto, Miller (2013) alerta: a história do aspecto moral do consumo não deve ser confundida com a história do consumo em si, visto que os indivíduos sempre consumiram bens criados por eles mesmos ou por outros. Algumas áreas de estudo tratam o consumo a partir de uma perspectiva mais ampla. O autor comenta que as disciplinas que mantiveram um interesse mais ou menos contínuo no tópico foram a ciência econômica e os estudos de administração. As duas lidam com o consumo como fundamental para o estudo das relações dos indivíduos com o mercado. Barbosa & Campbell (2006, arquivo digital) explicam que

Assim, na sociedade contemporânea, consumo é ao mesmo tempo um processo social que diz respeito a múltiplas formas de provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmos bens e serviços; um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de sentido e de identidades, independentemente da aquisição de um bem; uma estratégia utilizada no cotidiano pelos mais diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos de direitos, estilo de vida e identidades; e uma categoria central na definição da sociedade contemporânea.

Faz parte das práticas dos fãs de super-heróis adquirir determinados bens materiais que tenham relação com os personagens ou narrativas adoradas. Histórias em quadrinhos, action figures, pôsteres, colecionáveis. Os fãs estão rodeados de possibilidades de consumo para expandir a sua ligação afetiva com os super-heróis. Mas, afinal, onde está a dimensão mitológica nessa prática? Ao nosso ver, o que os fãs fazem hoje com os objetos adquiridos se assemelha muito aos altares que os religiosos costumam ter em suas casas.

Para Roque (2004, p. 11), o altar funciona como um ponto de conexão entre os aspectos humano e divino:

ssumindo-se, por excelência, como objecto litúrgico, o altar é igualmente uma obra de arte. O conceito sagrado que lhe é inerente concretiza-se através do mais belo e mais precioso, num espaço próprio e com um conjunto de elementos destinados à liturgia, numa dupla ocorrência: por um lado, a criação artística levada ao sublime, traduzindo os parâmetros estilísticos, culturais e técnicos da época e do lugar; por outro lado, a obrigação imperiosa de se adequar ao fim a que se destina. Isto significa que o objecto irá reflectir o melhor da produção artística dentro das regras da sua funcionalidade.

E, se entendemos que as histórias em quadrinhos como verdadeiras obras de arte, fica ainda mais evidente essa aproximação que estamos propondo. Zilles (1997, p. 7) afirma que “[...] o católico sabe muito bem que uma imagem não se identifica com a realidade, sobretudo quando se trata de Deus”. Segundo o autor, “Deus sempre será maior que sua imagem visual e conceitual” (Ibid.). No caso do ritual religioso, o culto é, portanto, endereçado não às imagens ao próprio Deus, e não às imagens; o culto das imagens, de acordo com Zilles, é relativo.

Pensando na relação dos fãs com seus super-heróis favoritos, podemos inferir que – tendo em vista que os personagens passam pelas mãos e visões de diferentes artistas (roteiristas, ilustradores, editores, diretores, etc) – os fãs adoram aquilo que eles identificam como os elementos centrais do herói, ou seja, sua identidade, que se supõe ser algo invariável. Constrói-se então um legado para ser venerado. E uma das formas de praticar a adoração desse legado é através dos objetos. Daí as estantes dos fãs repletas de bens relacionados aos personagens (Figura 2).

A perspectiva da comunidade: a função da alteridade

De acordo com Rocha (2008, p. 3), “o mito é uma narrativa. É um discurso, uma fala. É uma forma de as sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações”. Conforme apontamos anteriormente, os super-heróis das histórias em quadrinhos parecem ter função similar. E, por ter essa dimensão social, podemos considerar que os mitos – e, consequentemente, os super-heróis – tem muito a nos dizer sobre as questões relacionadas à coletividade.

As religiões, de modo geral, sempre tiveram um caráter socializador (SETTON, 2008), já que “são espaços produtores de valores morais e identitários, são, por excelência, espaços formadores de consciência” (Ibid., p. 16). “Em síntese, conceber as religiões como matrizes de cultura é considerá-las enquanto sistemas de símbolos, com linguagem própria, distinta das demais matrizes de cultura que compõem o universo socializador do indivíduo contemporâneo”. (Ibid.)

Setton (2008) considera que a religião funciona como subespaço social, capaz de construir uma compreensão sobre a realidade dos indivíduos. Se entendemos os super-heróis como parte da mitologia contemporânea, podemos apontar que esse caráter referente à coletividade é também elemento fundamental para esse fenômeno social.

No caso dos fãs de super-heróis, percebemos que a formação de comunidades parte do gosto e das preferências pessoais:

A moral da história é que as pessoas gostam de trocar informações entre elas, tu gosta de ter coisas em comum, então se tu não tem coisas em comum com a pessoa, tu vai procurar pessoas que tu tem coisas em comum. [...] Hoje em dia tu entra nos grupos de Facebook pra ti buscar coisas do teu interesse, conhecer pessoas que têm informação pra trocar contigo e isso faz com que tu fique mais tempo dentro do Facebook e mais informação e mais coisa inútil também, mas faz parte. O universo dos quadrinhos me propiciou a que eu conhecesse pessoas diferentes, com modos de vida e ideologias diferentes e houve assim um intercâmbio bastante diferente, bastante interessante que me propiciou a conhecer todo um universo de pessoas bacanas, tá? E até mesmo me facilitou na questão da proximidade, de fazer novas amizades, justamente com pessoas com gostos diferentes não me daria, não me sentiria confortável para isso e possivelmente não me dariam abertura para isso. Então é isso, é... cria uma questão bastante importante aí, você se sente acolhido e participante de um grupo.

Mas por que existe essa importância da presença do outro nesses fenômenos? A questão pode ser respondida pelas análises de Hall (2006) no que tange à identidade. Para o autor, as sociedades da denominada modernidade tardia são caracterizadas pela diferença. A identidade depende de algo fora dela, ou seja, de outra identidade, de uma identidade que ela não é, mas que, de certa forma, fornece as condições para que ela exista. Somos brasileiros, porque não somos argentinos ou canadenses. Somos roqueiros, porque não somos pagodeiros. A identidade é, assim, marcada pela diferença.

Tendo em vista os fãs de franquias da cultura pop, podemos identificar diversas demonstrações do reconhecimento da identidade de fã a partir da diferença. Existem, então, rivalidades entre fandoms de Star Wars e Star Trek, de Pokémon e Digimon, de Miley Cyrus e Selena Gomez, etc. No caso dos super-heróis, podemos apontar como um aspecto de diferenciação e disputa a rixa entre os fãs da Marvel e da DC Comics, por exemplo.

Eu seu trabalho, a proposta de Pustz (1999) é apresentar e analisar a cultura norte-americana dos quadrinhos, a partir da identificação de dois grandes grupos: os leitores de quadrinhos tradicionais, que envolvem as clássicas histórias de super-heróis, e os leitores de quadrinhos alternativos, que visam uma audiência adulta e disposta a ler o que, muitas vezes, são consideradas histórias muito realistas em oposição aos gibis convencionais. Ser parte de uma comunidade de leitura específica permite, conforme o autor, que os leitores se identifiquem como fãs. E esta identificação separa essas pessoas do resto da população “mundana” (não-fã).

A leitura como fã, argumenta Jenkins, é “um modo distintivo de recepção” que geralmente envolve a revisão ou releitura e tradução para outras atividades culturais e sociais. “A recepção do fã não pode ser e não existe isoladamente, mas é sempre moldada através da entrada de outros fãs”. Os dois se diferenciam e são separados pelo resto do mundo cultural. Eles podem ser marginalizados e ridicularizados pela sociedade dominante, mas se identificar como fã também pode dar ao indivíduo certa “identidade coletiva” através da qual “forjar uma aliança com uma comunidade de outros em defesa dos gostos que, como resultado, não pode ser lido como totalmente aberrante ou idiossincrático”. Para os seus membros, de acordo com Jenkins, o fandom “oferece [...] uma comunidade não definida em termos tradicionais de raça, religião, gênero, região, política ou profissão, mas sim uma comunidade de consumidores definida através de sua relação comum com textos compartilhados” (Ibid., p. 20, tradução nossa).12,

No final das contas, as histórias em quadrinhos e os demais produtos de super-heróis acabam fazendo parte desse conteúdo compartilhado com base nos interesses comuns.

De modo geral, faz-se substancial para a pesquisa de fãs, assim como em quaisquer outros estudos relacionados a culturas, buscar enxergar o fandom como um conjunto multicultural que é unificado por algo fundamental (PUSTZ, 1999). E, no contexto desse trabalho, esse elo se trata de uma devoção aos super-heróis que é criada, alimentada e ressignificada a partir da busca desses sujeitos por oportunidades de novas experiências para ampliar o vínculo com o personagem.

As manifestações coletivas: os espaços dos rituais

Nas religiões, as igrejas, templos e mesquitas, dentre outros, são os espaços físicos mais consolidados para as práticas de culto. Magnani (2006, p. 1) aponta que

em cada canto da cidade é possível encontrar uma espécie de oásis, discreto ou bem visível que, no meio da agitação característica da vida urbana, oferece uma pausa propícia ao recolhimento, à oração silenciosa, ao encontro com alguém disposto a ouvir, a dar um conselho, fazer uma imposição de mãos ou conduzir um trabalho corporal para realinhar os “chakras”.

Burmann (2009, p. 66) defende que “o templo, enquanto espaço sagrado, é um meio pelo qual a Comunidade celebra sua religiosidade, especialmente reunida em culto”. Mas, para os fãs de super-heróis, quais são seus locais de culto? Para Pustz (1999), o lugar mais importante é a loja de quadrinhos, que servem como uma espécie de clube cultural onde os fãs podem passar o tempo sendo eles próprios entre seus amigos e outros indivíduos semelhantes. Desta forma, a loja de quadrinhos é um lugar para a cultura, assim como para comércio. Não é à toa que importantes livrarias converteram poucas estantes de quadrinhos em estrelas principais de espaços geek, a exemplo da Livraria Cultura, em Porto Alegre.

Além das lojas especializadas, Pustz (1999) aponta que essa cultura também foi construída de outras maneiras. As convenções de quadrinhos, realizadas anualmente, oferecem aos fãs um lugar físico para se reunir. Lá, eles podem comprar quadrinhos de uma grande variedade de revendedores e conhecer e obter conselhos de profissionais de quadrinhos. Vários encontros são realizados durante as convenções para permitir que fãs falem sobre seus quadrinhos e personagens favoritos. As convenções se tornaram um dos espaços mais consolidados para o encontro dos fãs:

E eu acho que até pra, por exemplo, pessoas que são mais retraídas, mais tímidas, que têm uma dificuldade de fazer amigos, mas quando essa pessoa tá num evento grande como a CCXP que vai acontecer agora lá em São Paulo, e você tá sozinha lá, mas se você por exemplo tá sozinha e vai ou não vestida a caráter, mas se você estiver vestida a caráter, se tá no evento é porque todo mundo já sabe que tu já gosta de quadrinhos senão não estaria ali, ponto. Então tu estar vestida a caráter ou como cosplay então facilita essa troca de experiências, o entrosamento, porque aí você não fica naquela ânsia e naquela necessidade e “ah vou perguntar o que? Ah como é que vou iniciar o diálogo”, porque na realidade os diálogos e as conversas já começam naturalmente, porque uma pessoa é mais extrovertida e vai fazer esse papel por ti, vai facilitar. E se você de fato gosta, é um fã de quadrinhos, você tem conhecimento, então vai haver um intercâmbio interessante, vai facilitar o teu entrosamento e vai fazer com que você se sinta mais acolhido por aquele grupo.

A partir dessas análises, é possível perceber que – assim para os religiosos das mais diferentes crenças – os fãs de quadrinhos e de super-heróis também possuem espaços próprios para suas práticas de culto e de socialização com outros fãs.

Conclusões

A prática dos rituais ocorre desde os primórdios. Sua importância reside no seu desenvolvimento e imposição silenciosa aos participantes, em sociedades simples ou complexas. Sua aceitação e repetição é uma demonstração da própria necessidade de sua existência, sendo que a polissêmica significação desses eventos pode ser explicada pelas características, necessidades e evolução de cada sociedade. (DIAS, 2009, p. 72). Nessa direção, as histórias dos super-heróis emergem como uma espécie de narrativa religiosa capaz de evocar práticas de devoção e adoração que se traduz no comportamento do fã. Passa pela aquisição de itens colecionáveis, pela participação em eventos, pelo impulso de se transvestir de seus personagens prediletos e representar, quase que liturgicamente, as ações e os feitos extraordinários desses personagens em processos rituais contemporâneos.

Focalizar rituais é tratar da ação social. Se esta ação se realiza no contexto de visões de mundo partilhadas, então a comunicação entre indivíduos deixa entrever classificações implícitas entre seres humanos, humanos e natureza, humanos e deuses (ou demônios), por exemplo. Quer a comunicação se faça por intermédio de palavras ou de atos, ela difere quanto ao meio, mas não minimiza o objetivo da ação nem sua eficácia. A linguagem é parte da cultura; também é possível agir e fazer pelo uso de palavras. Em outros termos, a fala é um ato de sociedade tanto quanto o ritual. (PEIRANO, 2002, p. 9). As narrativas dos super-heróis gestadas nos quadrinhos e em outras mídias reverberam valores, sentidos, percepções de mundo e de vida em sociedade impregnados de valores religiosos. Independente do meio, as narrativas da superaventura atuam como expressão de uma sociedade e visam falar a ela e a responder suas angústias, seus medos, suas esperanças, sua ânsia por imortalidade. Os fãs dos super-heróis interagem com esse conteúdo, eles o incorporam em suas práticas, apropriando-se dele, adaptando-o, transformando-o e o rememoram a cada novo evento, a cada nova narrativa que é lida, performatizada, vivida.

Referências

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Notas

[1]“He knows a hero when he sees one. Too few characters out there, flying around like that, saving old girls like me. And Lord knows, kids like Henry need a hero. Courageous, self-sacrificing people setting examples for all of us. Everybody loves a hero. People line up for them. Cheer them. Scream their names. And years later, they’ll tell how they stood in the rain for hours just to get a glimpse of the one who taught them to hold on a second longer. I believe there’s a hero in all of us that keeps us honest, give us strength, make us noble and finally allows us to die with pride. Even though sometimes we have to be steady and give up the thing we want the most. Even our dreams”. SPIDER-MAN 2. Sam Raimi. EUA: Columbia Pictures/Marvel Enterprises/Laura Ziskin : Columbia Tristar Home Entertainment, 2004. DVD Vídeo (127 min.) (Edição especial com 2 discos), cap. 35. (Tradução própria).

[2]“VINGADORES: Ultimato” está próximo de se tornar a maior bilheteria do mundo. Correio do Povo, Porto Alegre, 28 maio 2019. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2019.

[3]CAMPOS. 31 séries de TV e filmes baseados em HQs que estreiam em 2019. ComboPOP. 12 jan. 2019. Disponível em: . Acesso em 10 jun. 2019.

[4]FATURAMENTO da Netflix e da Amazon deve ultrapassar as bilheterias de cinema até 2020. Observatório do Cinema. 15 jun. 2017. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2019.

[5] CCXP bate recorde de público com maior comic con do mundo, diz organização. UOL, São Paulo, 10 dez. 2017. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2019.

[6]ABOUT Comic-Con International. Comic-con.org. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2019.

[7]“Public opinion ranged widely, from those who interpreted Superman’s downfall as a righteous critique of America’s moral bankruptcy to those who recognized it as a marketing stunt to boost comic book sales. In an editorial for the Comics Buyer’s Guide years later, leading comic book retailer Chuck Rozanski claimed that upon hearing about the decision, he had called DC Comics editor Paul Levitz, pleading with him that “since Superman was such a recognized icon within America’s overall popular culture ... DC had no more right to ‘kill’ him than Disney had the right to ‘kill’ Mickey Mouse.” According to Rozanski, by choosing to kill Superman for sensational purposes, DC would be breaking an implicit promise to the American people to preserve the hero’s legacy as a “trustee of a sacred national image.”

[8]MORCELLI, Felipe. 25 Anos da Morte de um Super-Homem: História e curiosidades. Terra Zero. 13 set. 2018. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2019.

[9]Termo em inglês surgido da junção das palavras fan (fã) e kingdom (reino), utilizado para designar as comunidades de fãs.

[10]"‘Superheroes and comic books were made for each other,’ suggests scholar Robert Harvey, so it is not surprising that another element of comics literacy is knowledge of this genre of stories. Superhero adventure gave the format action-filled, formulaic stories that took advantage of comics’ serial nature and bright illustrations; the format gave the genre (virtually born in comic books) a place where characters’ adventures could be ‘imbued with a sufficient illusion of reality to make the stories convincing’. Because of this close relationship, superhero stories have been the most common comic book genre.”

[11] BRIDI, Natália. Batman Vs Superman | Decepção com o filme pode levar a redução de lançamentos da Warner Bros. Omelete, São Paulo, 06 abr. 2016. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2019.

[12]“Reading as a fan, Jenkins argues, is “a distinctive mode of reception” that often involves reviewing or rereading and translation into other cultural and social activities. ‘Fan reception can not and does not exist in isolation, but is always shaped through input from other fans’. Fans both set themselves apart from and are set apart by the rest of the cultural world. They may be marginalized and ridiculed by mainstream society, but identifying as a fan can also give an individual a certain amount of ‘collective identity’ through which ‘to forge an alliance with a community of others in defense of tastes which, as a result, cannot be read as totally aberrant or idiosyncratic’. For its members, according to Jenkins, fandom ‘offers . . . a community not defined in traditional terms of race, religion, gender, region, politics, or profession, but rather a community of consumers defined through their common relationship with shared texts’”.

[13]Fonte: http://portoalegrecenterlar.com.br/site/noticia/2015/01/18/universo-tecnologi co;jsessionid=1757F13731085F66BB99CD98A55BDFD8.site-201b?shopping=bourbon