Alteridade, amor e fé na filosofia da religião de Miguel de Unamuno      
Otherness, love and faith in Miguel de Unamuno’s philosophy of religion 

Newton Aquiles von Zuben*
Anderson da Silva Oliveira** 
*Doutor em Filosofia (Université Catholique de Louvain - 1970). Professor no Programa de PósGraduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Contato: nzuben@puc-campinas.edu.br
**Mestre em Ciências da Religião do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Contato: anderson.sioli@gmail.com

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Resumo

O presente artigo apresenta um estudo sobre a relação entre o sentimento religioso e a busca de sentido para existência, a partir da filosofia da religião de Miguel de Unamuno. Procura-se explicitar como o sentimento religioso, na forma de uma fé pessoal, cria sentido para a existência. Para tal fim, empreende- -se um estudo dos conceitos de alteridade, amor e fé, e sua articulação pela noção de consciência pessoal, na antropologia filosófica de Unamuno. A busca de sentido e o sentimento religioso se identificam no anseio de não morrer. Estão enraizados na afetividade humana, com o que contrariam a razão lógica e científica. Na contradição entre fé e razão, cabe à fé, pela palavra poética, criar sentido para a existência.  

Palavras chave: Filosofia da Religião. Miguel de Unamuno. Alteridade. Amor. Fé. 

Abstract

This article presents a study on the relation between religious feeling and the search for meaning for existence, based on Miguel de Unamuno’s philosophy of religion. This study seeks to explain how religious feeling, in the form of a personal faith, creates meaning for existence. For this, a study about alterity, love and faith and their articulation by the notion of personal conscience, in Unamuno’s philosophical anthropology. The search for meaning and the religious feelings are identified in the desire to not die. They are rooted in human affectivity, which contradicts logical and scientific reason. In the contradiction between faith and reason, it is up to faith, through the poetical word, to creat meaning for existence.     

Keywords: Philosophy of Religion. Miguel de Unamuno. Alterity. Love. Faith. 

Introdução 

Ocenário conceitual no qual se situa este trabalho é o da busca de sentido do religioso, no contexto da modernidade, em função da obra filosófica do pensador espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936). Unamuno teve grande relevância na inserção dos temas e questões do pensamento moderno na Espanha, entre o final do século XIX e início do XX. Ernest Curtius (1954), por esse motivo, lhe conferiu o epíteto de Excitator Hispaniae. Com efeito, Miguel de Unamuno é, juntamente com José Ortega y Gasset, um dos principais expoentes do pensamento filosófico espanhol do século XX. 

O pensamento filosófico de Unamuno passou por muitas interpretações. Em Unamuno, teríamos uma filosofia da personalidade (MORA, 1985). Há, porém, quem não o considere um filósofo (ZAMBRANO, 2004), embora admita que sua obra literária tenha relevância e interesse filosófico, enquanto outros o tomam como um precursor do existencialismo (ABELLÁN, 1989). François Meyer (1962) e Cirilo Flórez Miguel (2014) mostram a proximidade da filosofia unamuniana com o vitalismo espiritualista de sua época, aproximando-o da abordagem filosófica de Henri Bergson (1859-1941). De fato, tanto para Bergson como para Unamuno, “a vida transborda a inteligência” (BERGSON, 2015, p. 41). Ambos entendem a razão e seus métodos mecânicos e formais como insuficientes para dar conta dos problemas vitais. No entanto, Flórez Miguel (2014) não deixa de ressaltar que a singularidade da filosofia de Unamuno em relação ao vitalismo estaria em sua abordagem trágica. Sua filosofia também estaria, portanto, no domínio das filosofias trágicas, como as filosofias de Nietzsche e Schopenhauer (GALÁN, 1996). Para além das correntes citadas acima, Meyer (1962) aponta ainda, por exemplo, as analogias da filosofia de Unamuno com o pragmatismo, o romanticismo e o irracionalismo. 

A Unamuno não desagradaria essa dificuldade de seus comentadores em acomodá-lo em alguma das correntes filosóficas de sua época. Nosso autor sempre foi avesso às classificações e buscou manter-se independente dos sistemas teóricos fechados. Mas o que dizer da interpretação que o desconsidera como filósofo? Conforme veremos, não se pode considerar Unamuno um filósofo, se tivermos um conceito de filosofia como sendo uma atividade estritamente racional, lógica ou analítica. Para Unamuno (1997), a filosofia, atividade profundamente enraizada nas inquietações humanas, está mais próxima da poesia que da ciência. Nosso autor tinha horror à filosofia profissional, encerrada nos limites da academia. Não se pode compreender a proposta filosófica unamuniana desde uma perspectiva estritamente racional do filosofar. 

Esteja a razão com quem estiver – e todos a têm, em alguma medida –, o fato é que o pensamento de Unamuno é de caráter trágico. Nisto todos consentem. Estamos diante de um pensamento trágico que se expressa de múltiplas formas, podendo-se até mesmo falar da presença de várias “máscaras do trágico” (GALÁN, 1996), na reflexão unamuniana. Contudo, consideramos de extremo acerto a caracterização da filosofia unamuniana exposta na interpretação de Andrés Marcos (2008). 

Marcos caracteriza a filosofia de Unamuno como estando “más de acuerdo a una fenomenología de la experiencia o mejor de una recreación o POÉTICA DE LA EXPERIENCIA”1 (MARCOS, 2008, p. 94). Ora, que experiência Unamuno se propõe recriar poeticamente? A experiência que foi o tema do título de seu principal ensaio filosófico, publicado em 1913, o sentimento trágico da vida. Tal sentimento nasce com a descoberta da morte, e trata-se do desejo de vivermos para sempre, do anseio de imortalidade, mas conscientes de que morreremos. De se estar entre a esperança de que a vida tenha uma finalidade humana e a aterrorizante visão de que a nossa consciência termine na absoluta inconsciência, em nada. É a contradição entre o que a razão dita e o que vitalmente desejamos. 

Da experiência de nossa finitude e de nossa solidão radical, nasce a fé de sua superação. É esse anseio de superação da morte, do sem sentido existencial, com todas as suas contradições, que Unamuno busca recriar com sua escrita. 

Para a recriação poética de nossa experiência trágica da vida, Unamuno lança mão de vários gêneros e recursos literários. Quem se aproxima de sua obra o encontra transitando e experimentando novas formas, pelo ensaio (Del sentimiento trágico de la vida), pelo drama (El otro), pelo romance (Niebla), pelo conto (El espejo de la muerte), pela poesia (El Cristo de Velázquez) e por textos experimentais de difícil classificação (Cómo se hace una novela). Seja em prosa, seja verso, Unamuno explora as possibilidades da linguagem poética para superar os limites da linguagem lógica. Se está nos mostra a vida dissecada e fria, imóvel, a linguagem poética é capaz de nos revelar a vida palpitante desde as suas entranhas, em seu ritmo próprio. 

Outro recurso, utilizado para a reflexão sobre a experiência recriada, é a inclusão dos leitores em seu texto. Unamuno (MARCOS, 2008) busca o engajamento e a cumplicidade do leitor, na criação do texto. O leitor, identificando-se com o autor pela leitura, torna-se o coautor do texto, recriando, não apenas o texto em sua coerência como também, em si mesmo, a experiência vital de que o texto é o veículo. Em suma, Unamuno busca criar situações vitais em cuja implicação o leitor seja levado a uma vivência reflexiva do problema que propõe. Trata-se, contudo, de buscar uma reflexão dialética, dialógica, como alguns diriam, com o leitor desde a raiz afetiva do pensamento, em que cabe a discordância e a contrariedade em relação ao autor. Em outros termos, Unamuno tenciona abordar juntamente com o leitor um problema vital, a partir de sua vivência recriada poeticamente, e não um problema de coerência lógica, abordado formal e abstratamente. 

Usar da linguagem poética é pôr em jogo formas não delimitadas racionalmente. A literatura, a poesia, diria Unamuno, pode penetrar o que excede a razão sem cair em contradição: o ilógico e contraditório está no método científico, não na poética. A poesia não é a negação da filosofia, mas uma possibilidade para que a filosofia ultrapasse os limites da linguagem formal. O símbolo, a metáfora, enfim, a palavra poética mobiliza o imaginário na vivência afetiva do problema, buscando sua compreensão em sua concretude, despido de abstração. 

Os que cobram rigor científico e lógico de Unamuno não percebem que, ao buscar esse rigor, Unamuno estaria sendo contraditório e incoerente com o que propõe a si mesmo. Conforme argumenta Andrés Marcos (2008, p. 91), teríamos a seguinte contradição lógica: “para demostrar que la realidad no ha de ser leída de forma científica se aportan pruebas científicas. Con esta acción estaríamos realizando e institucionalizando aquella forma de pensamiento que queremos desterrar”. O próprio Unamuno, em carta a seu amigo D. José A. Balseiro, datada de 27 de fevereiro de 1928, aponta: “mis supuestas contradicciones están en el lector adialéctico y clasificativo” (UNAMUNO, 2012, p. 250). 

Para os que procuram provas que os guiem em segurança até uma conclusão logicamente verdadeira, ou definições e conceitos que estruturem um sistema fechado e sem contradições, a obra de Unamuno não passa de literatura com ambições filosóficas. No entanto, Unamuno não pretendeu jamais construir um sistema filosófico, tão pouco elaborar um sistema para negar a validade dos sistemas racionais, o que não significa que sua obra esteja desprovida de continuidade e coerência. Já em 1985, nos ensaios que compõem En torno al casticismo, Unamuno deixa claro o método ao qual será fiel, no desenvolvimento de seu pensamento por toda a sua vida. Enfatiza o filósofo: 

Suele buscarse la verdad completa en el justo medio por el método de remoción, via remotionis, por exclusión de los extremos, que con su juego y acción mutua engendran el ritmo de la vida, y así sólo se llega a una sombra de verdad, fría y nebulosa. Es preferible, creo, seguir otro método, el de afirmación alternativa de los contradictorios, es preferible hacer resaltar la fuerza de los extremos en el alma del lector para que el medio tome en ella vida, que es resultante de lucha. (UNAMUNO, 1916a, p. 20).

Em relação a essa perspectiva que põe a contradição como expressão da tragicidade da vida, Unamuno coincide com Kierkegaard, para quem “onde há vida, há contradição” (KIERKEGAARD, 2016, p. 229). Ainda segundo Kierkegaard (2016, p. 229), o “trágico e o cômico são o mesmo, na medida em que ambos são a contradição, mas o trágico é contradição sofredora, e o cômico é contradição indolor”. Assim, como Kierkegaard e Antero de Quental, Unamuno (1997) identifica o cômico com a razão e o trágico com a vida afetiva. Teríamos, desse modo, duas maneiras de situarmos a contradição: a cômica, via racional, vê a saída da contradição por sua resolução lógica, abstrata; e a trágica, a experiência viva da contradição, desespera da saída, pois não há resolução que não dilacere irremediavelmente quem vive a contradição. 

A razão lógica vê na contradição a saída, porque o que está fora de seu sistema formal já é de antemão rejeitado como ilógico, sem sentido, e afastado do interior do sistema. Um sistema não questiona a si mesmo, pondo-se em contradição. O questionamento grave e sério, o qual o devolve à contradição, vem de fora, da vida que escapa dos limites traçados pelo sistema. Essa contradição vital já não é mais cômica, motivo de riso e desdém. Instalada no interior da consciência como uma experiência dilacerante, torna-se um drama trágico em que as resoluções racionais são tão ilusórias quanto os sonhos que rejeita. O cômico suspende a contradição, a vê como resolvida, como irracional e ridícula, pois não pode admitir os dois extremos opostos de um problema: a razão tem que escolher. Todavia, o trágico vive a contradição na agonia, a luta, dos opostos, no ritmo da vida, sem poder escolher entre eles. O trágico se resolve, ou melhor, se dissolve apenas com a morte. 

Para Unamuno, de todas as experiências a mais trágica é a consciência de finitude, refletida sobretudo em nossa morte pessoal. A tragédia não está simplesmente no fato de que morreremos, mas na ausência de sentido de nossa existência que o fato de nossa mortalidade nos revela. Se, ao morrermos tudo voltará ao nada de onde viemos, para que progresso, cultura, ciência, arte, política e religião? Para que tanto sacrifício? A tragédia está em preencher de sentido nossa vida e a que nos sobrevive. Tragédia que não pode ser solucionada pela ciência. 

Estamos diante do que Ariès (2014) chama de “tentação do nada”, uma tentação presente sobretudo no século XVII e início do XVIII. Não se trata de uma simples tendência ao ateísmo ou de uma queda no niilismo. Essa tentação do nada corresponde à incerteza da fé, a qual, abalada pela razão dissolvente da modernidade em suas esperanças, não quer deixar de crer, pois a razão sóbria de ilusões apenas pode oferecer- -lhe o nada. Não seria então a filosofia de Unamuno uma filosofia sem interesse para o pensamento contemporâneo? Muito embora Ariès considere a “tentação do nada” como algo característico da fase inicial da modernidade, segundo o historiador, “ainda hoje o nada pode nos interpelar com a mesma força que nos séculos XVII e XVIII.” (ARIÈS, 2014, p. 456). Para Unamuno, a interpelação do nada é o grande problema de que a ciência e a cultura moderna fogem, após trazerem a religião para os limites da razão. Assim, estamos em face de um problema religioso o qual a razão moderna não pode resolver satisfatoriamente. Conforme reconhece ainda Ariès, a vida futura “permanece o grande fato religioso de todo o período contemporâneo.” (ARIÈS, 2014, p. 632). 

É essa incursão pela tentação do nada e pela preocupação pela vida futura, pós-morte, que inscreve a filosofia de Unamuno em uma filosofia não só trágica como também religiosa. A filosofia de Unamuno é de motivação religiosa, pois aborda todo tema desde essa perspectiva religiosa de salvação de nossa consciência do nada. A religião é uma doutrina de salvação, movida pela palavra de cura. A questão, para Unamuno, é justamente esta: a de nos salvar do nada. O sentimento trágico é um sentimento que nos abre à perspectiva religiosa em que tudo se salva, tudo tem uma finalidade. Sua relação com a filosofia da religião pode ser vista em um duplo sentido, segundo París (1994, p. 428): “en cuanto el pensador vasco se ocupa directamente de religión y en cuanto — como decía Wittgenstein de sí mismo — enfoca todos los problemas desde un punto de vista religioso.” Esse ponto de vista religioso não é ponto de vista confessional ou proselitista: é, antes, profundamente laico e independente de ortodoxias. É um ponto de vista, conforme veremos, acentuadamente antropológico e está fundamentado em uma profunda reflexão acerca da consciência pessoal. 

É a partir de sua ontologia da consciência que devemos analisar o tema da imortalidade da alma, na filosofia unamuniana. O “imortal anseio de imortalidade” (UNAMUNO, 1997), ao qual Unamuno dedicou inúmeras páginas de seus escritos, é uma paixão enraizada no próprio ser de cada pessoa. Unamuno costuma apoiar sua tese na leitura particular que fez de Espinosa (MEYER, 1962), afirmando que a essência do homem “no es sino el conato, el esfuerzo que pone en seguir siendo hombre, en no morir” (UNAMUNO, 1997, p. 26), esforço que implica tempo indefinido, o que significa, para Unamuno, que o homem não quer morrer nunca. E esse anseio de não morrer, a fome de imortalidade, o querer ser sempre, é a essência atual do homem. 

Ademais, não apenas cada homem se esforça por perseverar em seu ser, como é consciente desse esforço. O que significa que ser, para o homem, para a consciência, é, na fórmula unamuniana, ser-se, ser para si. Esse vínculo entre a persistência em seu ser e sua consciência ocorre de tal modo que é impossível a uma pessoa conceber-se como não existindo. O nada absoluto lhe é inimaginável e toda tentativa de trazer à consciência a representação do estado de absoluta inconsciência causa vertigem e angústia (UNAMUNO, 1997). Não existir é equivalente à ausência de consciência. E, como a consciência possui primado ontológico sobre todo o vivido e conhecido por ela, isto é, sobre a totalidade de seu campo de relação, de seu mundo, é pela consciência que o ser ganha sentido. Por conseguinte, o desaparecimento de uma consciência pessoal equivale ao desaparecimento de todo um mundo. Assim, ante a aterradora visão de seu “anonadamento”, a consciência vê desvanecer- -se no nada radical, juntamente consigo mesma, todo o seu universo. 

O ser-se é consciente não apenas de seu conatus, como também de sua finitude, da ameaça constante de deixar ser. Morte e vida se entrelaçam agonicamente na experiência de existir. Contudo, como sua essência é o empenho com que persiste em ser sempre o mesmo e ser mais, o homem não se resigna a morrer e tão pouco a perder sua consciência pessoal. Logo, a fome de imortalidade do ser-se, do homem consciente de si e de sua finitude, é ao mesmo tempo negação de sua finitude e de sua infinitude; é a busca agônica de perpetuar seu eu pessoal para além de si, no infinito, mas sem romper seu limite, sem deixar de ser ele mesmo. 

De acordo com Unamuno, o religioso está enraizado na afetividade humana, e não em sua racionalidade. A ânsia de imortalidade e o desejo de Deus são, no fundo, uma só coisa. São o desejo de não morrer e a esperança de um além-morte, de imortalidade pessoal. Nosso objetivo, neste artigo, é indicar, a partir da filosofia de Unamuno, como esse anseio de não morrer, enquanto sentimento religioso, alcança a forma de uma fé pessoal que cria sentido para a existência. Para tal, veremos como a fé viva que Unamuno defende está associada intimamente com a alteridade da pessoa e o amor enquanto seu modo de ser.

A consciência pessoal como ser-se

Em sua obra mais célebre, Del sentimiento trágico de la vida, de 1912, Unamuno nos recorda: “Consciencia, conscientia, es conocimiento participado, es consentimiento, y con-sentir es com-padecer.” (UNAMUNO, 1997, p. 155). Toda obra da consciência se realiza e objetiva com, relaciona-se com o outro, de maneira que sem o outro não há o eu. Anos mais tarde, nas notas conhecidas como Manual de quijotismo, Unamuno (2005, p. 129) voltará a meditar sobre a mesma ideia, nos seguintes termos: “Con-sciencia saber con otro, ser convicto y confeso. La conciencia es social como el lenguaje. Verdad es aquello en que convenimos”, e mais adiante, no mesmo fragmento, afirma que a “consciencia es conciencia de algo”. 

A consciência somente é, enquanto menção a algo, a outro. A intencionalidade intrínseca à consciência lhe dá caráter relacional. Não é apenas autorreferencial, contudo, também referencial a outro, determinando seu limite; é, pois, um ato de relação e desdobramento, de representação do outro; de si para o outro, e de si para si mesma. O desdobramento da consciência se dá pela consciência da própria percepção consciente. Nesse desdobramento de si mesma, a consciência se reconhece não apenas como ego, mas também como alter, um outro. O sujeito consciente, quando toma consciência de si, quando se põe como objeto, estranha de si mesmo, se vê como outro, representa-se para si mesmo. Não há introspecção pura, livre de conteúdo. A consciência é sempre um ato de objetivação, no entanto, enquanto ato, não é objetável. Fora de seu limite, da ação de seu corpo individual, a consciência jamais se encontra tangível. Segundo Unamuno (1997, p. 162), “ser es obrar y sólo existe lo que obra, lo activo, y en cuanto obra.” A existência da consciência é, portanto, uma atividade, um obrar, e só pode ser percebida enquanto obra, enquanto ex-siste, isto é, enquanto se coloca para fora, no mundo. A consciência é um ato, e podemos dizer que o ritmo com que se realiza esse ato, sua obra, é a personalidade, o eu singular de um homem de carne e osso. O que existe é a pessoa, e a pessoa é representação de si no palco da história, é ser-se. 

Em Aforismos y definiciones, de 1923, Unamuno faz a seguinte distinção entre ser e ser-se: “Ser no es lo mismo que serse. Un animal, aunque sea humano, es; una persona, se es. Serse es propio de la personalidad.” (1958a, p. 1192). E mais adiante, acrescenta: 

Serse es ser para sí, y ser para sí es ser para los otros. El que no es en él otros y para los otros, el que carece de representación, no se es, y no es para sí, carece de personalidad. Y cuando se mira al espejo no se ve. Es decir, no se mira. El animal que uno es no pasa de ser; la persona que uno es, se es. Y esta persona es el hombre histórico, el que hace su papel en su tablado, en su mundillo, el que representa el actor, el hipócrita. (UNAMUNO, 1958a, p. 1192).  

Ser-se é ter consciência e de si, e ser para si, o que implica ser para os outros. Uma vez que o ser-se é resultado do desdobramento reflexivo da consciência, é impossível que um homem não se encontre consigo mesmo enquanto outro, representando um papel. É desse encontro consigo mesmo que nasce sua humanidade (JOHNSON, 1970) ou, em outras palavras, é desse encontro consigo mesmo e com os outros, a sociedade que representa em si, que o homem passa de simplesmente ser, de seu estado animal, para ser pessoa, um homem histórico. 

No espelho de sua consciência, o homem desdobra-se em sujeito e objeto, porém, é esse desdobrar-se que é a realidade da consciência. Os dois polos do desdobramento (JOHNSON, 1970), o subjetivo e o objetivo, não podem existir um sem o outro. Essa correlação constante entre os dois polos faz com que a consciência humana seja sempre um ser-se, uma pessoa que representa seu papel na história para si e para os outros. A consciência é um cenário, um palco, no qual se representa o papel; no entanto, ao ator, conforme veremos, lhe é impossível tirar a máscara e deixar de representar (UNAMUNO, 2005). 

A existência como problema religioso

Como podemos ver, a pessoa identifica-se com o ser-se, é a representação que um homem faz de si mesmo em sua consciência; e representação que faz de si e de outros para si mesma e para os outros, no drama histórico. A personalidade é constitutivamente histórica, isto é, faz-se na e pela ação histórica. Conforme Unamuno, há “en todo hombre dos, el de carne y hueso, el físico, y el de libro, el bíblico” (2005, p. 79) ou, em outros termos, há o homem real, o indivíduo, e o homem pessoa. A pessoa possui a unidade do indivíduo, porém, enquanto sujeito bíblico e histórico, a pessoa está sujeita a ser outro e relacionar-se com o outro. Em um movimento de desdobramento, a pessoa dirige-se para fora de si, ao mesmo tempo que se concentra em si mesma. Há uma alteridade intrínseca na constituição da personalidade. 

Pode-se, contudo, pelo frisado anteriormente, questionar-se o seguinte: se a pessoa é o papel que se representa na história, ou seja, uma personagem ou uma máscara, então quem está por detrás da máscara, quem é o ator, o homem real? Conforme o que aqui já foi destacado sobre a natureza da consciência, sobre sua “irrealidade”, fica implícito que não há uma resposta simples a tal pergunta. É impossível saber quem é o homem real, pois este se confunde com a máscara, com o papel, ou o mito que fez ou fizeram de si. Atrás da máscara há apenas o vazio. Ao despir-se para ver-se no espelho, confronta-se com o nada, o fundo vazio da consciência. Porém, isto, para um homem consciente, que é pessoa, é impossível, pois sempre se vê representando-se, refletindo- -se. Assim, “¿Hay desnudo completo?” – questiona Unamuno, para logo responder – “No, no hay más desnudo completo que el de la nada. Y esto porque todo es revestimiento, todo es traje, todo es forma.” (UNAMUNO, 1998, p. 50). Um homem não pode reconhecer-se sem seu traje, sem sua máscara, vive em si o “paradoxo del actor” (UNAMUNO, 2005, p. 80); somente pode ver-se representando desde fora de si mesmo, é “actor y espectador a la vez.” (2005, p. 80). 

Desse modo, perguntar sobre o quem de alguém, por sua pessoa, não é perguntar sobre uma essência, uma natureza fixa e acabada, mas por sua existência. “Existir” – ensina Unamuno – “en la fuerza etimológica de su significado es estar fuera de nosotros, fuera de nuestra mente, ex-sistere.” (UNAMUNO, 1997, p. 195). Existir é, pois, estar fora de si, todavia, conforme nos lembra Unamuno, em seus monodiálogos, “no se existe sino para los demás.” (1972, p. 11). O problema da existência da consciência pessoal, do eu singular de cada homem, é o problema de sua existência substancial, de sua realidade objetiva e de sua perpetuidade. O cogito ergo sum prova a insistência do eu, seu estar para e em si mesmo, e não sua existência, sua objetividade (UNAMUNO, 2005). O problema da existência pessoal é, no fundo, um problema religioso, pois se trata do problema de perpetuar e de dar realidade objetiva à consciência pessoal e de sua finalidade. 

Em um dos fragmentos do Manual de quijotismo , encontramos o seguinte texto: 

Yo sé quien soy! Mihi quaestio factus sum, Confesiones San Agustín. El problema fundamental, el único problema. No el de la felicidad, no el del deber, no el de la vida, el de la existencia. Existo o no existo? El problema religioso. Conócete a ti mismo. (UNAMUNO, 2005, p. 86).

Em Unamuno, a expressão “¡yo sé quien soy!” é equivalente a “¡yo existo!” (2005), e existir é obrar, que, nesse caso, significa expressar a pessoa, a si mesmo. Dessa forma, um homem se é obrando. Nesse sentido, Unamuno nos propõe que “el viejo adagio de que operari sequitur esse, el obrar se sigue al ser, hay que modificarlo diciendo que ser es obrar y sólo existe lo que obra, lo activo, y en cuanto obra.” (UNAMUNO, 1997, p. 162). E a obra de um homem é sua pessoa ou, em outras palavras, conhecer quem se é, é conhecer sua obra, pois “conocerse es el princípio de la personalidad.” (UNAMUNO, 2005, p. 113). Logo, saber que se é, ter consciência de si, é obrar, porque todo pensamento reflexivo é ativo e possui finalidade. “Se piensa” – ressalta Unamuno – “para algo y el para, la finalidad, supone acción y la acción realidad, es decir, externidad o exterioridad.” (UNAMUNO, 2005, p. 100). A ação de externar, de buscar dar realidade para a consciência, de existir, é obra de personalidade e sentido. Obra que se apoia no outro. 

Alteridade 

A alteridade intrínseca à formação da pessoa, na filosofia de Unamuno, se concretiza com outras duas esferas fundamentais para a constituição da pessoa, a do amor e a da fé. Duas esferas, cujo estudo nos levará ao que Unamuno considera o sentido autêntico do religioso. 

Ora, conforme vimos, a pessoa se identifica com o ser-se que, por sua historicidade, está sujeito a ser outro e relacionar-se com o outro. O ser-se é constituído pela alteridade, o reconhecimento e a abertura para o outro. Pela alteridade, o homem não só é capaz de abrir-se à perspectiva de mundo do outro, como também essa outra perspectiva lhe revela instâncias de si mesmo até então ocultas ou obscurecidas, de tal modo que o conhecimento de si mesmo somente lhe é possível por via do conhecimento do outro. Aquele que se recusa a ouvir a voz do outro não pode compreender a si mesmo: “no comprende” – argumenta Unamuno – “uno que esa voz que cree de sus entrañas es la voz de los otros, de aquellos a quienes no quiere oír, que por sus entrañas le llega.” (1958b, p. 522). O si mesmo é conformado pelo outro, introjetado em uma pluralidade de vozes em várias instâncias representativas do eu. Cada homem leva em si uma multiplicidade de máscaras e papéis para representar, no teatro da história. 

Pode-se aludir, dessa forma, a dois movimentos de alteridade que se complementam, um interior e outro exterior. Ao mesmo tempo que a pessoa se abre para o outro que está fora, num movimento de ex-sistência, ela interioriza as performances do outro, no palco do teatro interior que é a consciência. Esse outro introjetado relaciona-se com a imagem projetada de nós pelos outros, imagem esta também interiorizada e confrontada com o querer ser de cada um. O querer ser é que unifica e diferencia essa multidão interior. De acordo com Unamuno, a identidade do eu, o sentimento de si mesmo que constitui a personalidade singular de cada um, é resultante da relação de contraste com o outro. A alteridade possibilita olhar a vida desde o ponto de vista do outro, tendo em conta as diferenças pelo sentimento de semelhança. 

Como podemos notar, em Unamuno, o tema da alteridade se desenvolve no questionamento sobre o outro que nos conforma em nossa subjetividade. É à luz desse questionamento que se deve compreender a personalização e o caráter autobiográfico do modo de Unamuno tratar os problemas abordados em sua obra. Conforme reconhece Tejada (2009, p. 110), “[...] debajo de la costra del don Miguel ‘yo-yoísta’, se puede detectar una interrogación fundamental sobre la alteridad alojada en el interior del sujeto.” 

Unamuno sempre se defendeu da acusação de egolatria, feita por seus críticos. Sempre sustentou que, ao tratar de si, referia-se a cada um dos homens. Em Del sentimiento trágico de la vida (1997, p. 31), por exemplo, escreve: “[...] no se trata de mí tan sólo; se trata de ti, lector...; se trata del otro, se trata de todos y de cada uno”; lembremos que, para nosso autor, cada singularidade, cada consciência humana, é uma totalidade, e que, conforme suas palavras, o “singular no es particular, es universal.” (UNAMUNO, 1997, p. 31). Isso significa que cada eu singular é representativo de toda a humanidade. O “yo” unamuniano não é, pois, um “yo” histriônico, reduzível ao simples afã de notoriedade ou glória. O eu de Unamuno, o seu eu que se nos acerca e inquire por toda a sua obra, esse eu que insiste em falar sobre si mesmo, é o único pelo qual e com o qual o autor pode falar de cada eu humano. Ao falar sobre si, ao fazer “un trabajo de auto-cirurgía” (UNAMUNO, 1997, p. 321), ele nos convida a passar pela mesma experiência, isto é, a conhecer cada um dos homens, conhecendo a si mesmo. Nas palavras de Tejada (2009, p. 113): “Unamuno quiere hacer ver que el desnudamiento de su alma, lejos de mostrar unas ansias exhibicionistas o narcisistas, forma parte eminente de un proyecto de conversión de la ciudadanía” ou, ainda, segundo Ferrater Mora (1985, p. 39): “Unamuno podía no hablar en nombre de ‘la humanidad’, pero aspiraba a hablar en nombre de cada uno de los seres humanos.” 

Essa espécie de expressão lírica ou, em termos agostinianos, essa via interior para o conhecimento de si e dos demais, Unamuno a chamava de egotismo, em contraposição ao egoísmo. Em “¡Ensimísmate!”, Unamuno (1972, p. 24) traça a diferença entre o egotista e o egoísta, nos seguintes termos: “El egoísta es el que defiende y exalta sus intereses, sus cosas, no a sí mismo, no al yo que es, y el egotista es el que se defiende y exalta a sí mismo, al yo que es.” O egotista não fala de suas coisas, mas de seu eu. Realiza uma reflexão sobre si mesmo e, desse modo, ao falar de seu eu, fala de cada outro eu pessoal. O eu egotista gravado nas páginas de seus escritos é um espelho para vermos nosso próprio eu, porque “el que se confiesa ante otro, de palabra o por escrito, le obliga al oyente o al lector a una confesión própria.” (UNAMUNO, 1972, p. 22). Diante da presença do outro que nos inquire, que se aproxima e nos interpela desde um ponto de vista diferente, somos obrigados a nos expor. Conforme Unamuno, o “egotismo es una tierra común a los hombres todos” (1972, p. 23), é um eu comum que se revela um nós. É por esse “yo común” que podemos chegar mais facilmente uns aos outros e pelo qual o diferente desvela sua semelhança, isto é, sua mesma condição originária, já que “[...] lo verdadeiramente original, es lo originario, lo común a todos, lo humano.” (1916c, p. 18).E esse “yo común” só é possível, em grande medida, porque somos conformados pelo outro, pelo semelhante, em nossa comum humanidade originária. 

A personalidade é, pois, uma criação intersubjetiva. O indivíduo que Unamuno defende é o indivíduo aberto à comunidade, o indivíduo de alteridade, de sorte que, para o filósofo, o “propio de una individualidad que lo es, que es y existe, consiste en alimentarse de las demás individualidades y darse a ellas en alimento. En esa consistencia se sostiene su existencia y resistir a ello es desistir de la vida.” (UNAMUNO, 2005, p. 177). Nessa perspectiva, ainda que para existir seja preciso insistir, a existência só se sustenta na con-sistência, isto é, na relação antropofágica com o outro. Os homens chegam a ser eles mesmos, a possuir obra pessoal, alimentando-se das “almas” uns dos outros. A obra individual, quando pessoal, é sempre obra comum, obra, na linguagem de Unamuno, do espírito. Essa obra pessoal fundada no “yo común”, que nos aproxima, encontra seu veículo de transmissão e sua qualidade espiritual, e se dá como alimento, pela palavra. A língua é uma atividade comunitária, a qual propicia a transmissão histórica da personalidade de uma comunidade, é a base do “yo común”, que permite o egotista ser espelho para o outro. 

Ao questionar-se sobre a sua novela, o mito em que se convertia, com a obra que realizava, Unamuno ressalta: 

El Unamuno de mi leyenda, de mi novela, el que hemos hecho juntos mi yo amigo y mi yo enemigo y los demás, mis amigos y mis enemigos, este Unamuno me da vida y muerte, me crea y me destruye, me sostiene y me ahoga. Es mi agonía. ¿Seré como me creo o como se me cree? (UNAMUNO, 2005, p. 187).

No íntimo da existência da pessoa, o que dá unidade ao seu obrar é a agonia, a luta, entre as múltiplas representações e narrativas de si. A realização do querer ser é agonia, pois se forja em contradição e contrariedade com o eu idealizado por si e pelos demais. Assim, a alteridade não é apenas a positividade do encontro com o que há de semelhante entre os indivíduos e dos elementos da tradição que compartilham; a alteridade é também a negatividade da irredutibilidade do outro, da diferença e distância que não podem ser superadas, de sorte que, numa pessoa, se dá a contradição entre as várias instâncias representativas de si mesma. Ao obrar, existir, a pessoa se coloca contra o outro que a situa desde fora, desde sua própria existência. Logo, entre uma pessoa e outra dá-se uma relação intersubjetiva marcada pela contrariedade de suas obras, de seus papéis históricos. Essa contrariedade e distância do outro, a qual faz com que não possa ser reduzido, que seja sempre radicalmente outro, é causa do choque doloroso que leva um indivíduo a ter consciência de si e de sua obra. Sem o outro que está contra, o problema da personalidade nem mesmo seria colocado, pois tudo seria o mesmo. 

Abertura para o outro: o amor

Somente conhecendo o outro, um homem conhece a si mesmo, e “puesto” – acrescenta Unamuno – “que conocer es amar, acaso convendría variar el divino precepto y decir, ‘ámate a ti mismo como amas a tu prójimo’.” (UNAMUNO, 2005, p. 224). O amor é o sentimento, o desejo, melhor dizendo, que constitui a alteridade. O amor faz com que o indivíduo rompa o narcisismo do eu e se abra ao outro. Somente aquele que ama pode chegar a ser pessoa. A fim de compreendermos a importância do amor para a constituição da vida humana, na filosofia de Unamuno, recordemos que o filósofo espanhol compreende o homem como um ser fundamentalmente sentimental, pois, em sua filosofia, o sentir-se ser é anterior ao saber-se ser. E, conforme observa Flórez Miguel (2014, p. 17), de acordo com Unamuno, “el sentimiento más originario del hombre no es el de la angustia de sentirse único y sólo, sino el sentimiento del amor, que es un sentimiento íntimamente unido al concepto de persona.” Conforme nos deixou escrito Unamuno, “el amor no es en el fondo ni idea ni volición; es más bien deseo, sentimiento; es algo carnal hasta en el espíritu.” (UNAMUNO, 1997, p. 149). O amor é o modo pelo qual se sente a si e aos outros, é o modo de ser fundamental do homem que, na fórmula agostiniana, anseia “amar e ser amado” (Confissões II, 2, 2). Não é, por conseguinte, apenas um estado de consciência, mas o modo pelo qual a consciência rompe sua totalidade em direção ao todo que está fora de si, é o que permite sua relação com o outro, ou seja, ser pessoa. 

Contudo, o amor também tem suas gradações. Há um amor sexual, originado do instinto de conservação do indivíduo, e há um amor espiritual ou compassivo, nascido do instinto de perpetuação da pessoa. 

Tomando como ponto de partida o amor sexual, o amor voltado para a satisfação dos impulsos de reprodução e deleite sexual, Unamuno procura demonstrar que o verdadeiro amor está na perpetuação do espírito dos amantes e não na perpetuação da carne. De acordo com Unamuno, somente o amor compassivo é realmente, de forma íntegra, amor. O amor, como toda a atividade da vida humana, tem sua origem na constituição biológica humana, por isso, Unamuno irá afirmar que o amor sexual é o tipo gerador de todo outro amor (UNAMUNO, 1997). Nessa forma, a relação de amor entre as pessoas é um egoísmo mútuo: busca- -se mais a própria satisfação do que a relação com o outro, porque cada “uno de los amantes es un instrumento de goce inmediatamente y de perpetuación mediatamente para el outro.” (UNAMUNO, 1997, p. 150). Embora, nessa fase, o amor seja essencialmente a busca de deleite pessoal, não está ausente a dor de amar, porque o “amor busca con furia, a través del amado, algo que está allende éste, y como no lo halla, se desespera.” (UNAMUNO, 1997, p. 148). Para além do prazer imediato, o amante procura perpetuar-se no outro. Esse encontro amoroso com o outro é marcado pela negatividade da dor, pois esse perpetuar-se é, ao mesmo tempo, um entregar-se ao outro. 

O amor coloca ambos os amantes em sua verdadeira realidade. Os amantes, ao se relacionarem sexualmente, perpetuando-se em sua prole, sofrem a dor de perpetuar a morte, a dor de proteger e perder. É desse amor animal, e da dor que engendra, que surge o amor “espiritual y doloroso”, o amor com plena consciência de sê-lo. A dor que o amor espiritual engendra é, portanto, a dor da alteridade, a dor de saber-se distinto dos demais, ao mesmo tempo que deseja ser o outro, isto é, experimentá-lo em sua real alteridade. A relação movida apenas pelo deleite sensual não descobre a alteridade, pelo contrário, vê o outro como igual, anulando a alteridade. Segundo Unamuno, quando “se goza olvídase uno de sí mismo, de que existe, passa a otro, a lo ajeno, se en-ajena. Y sólo se ensimisma, se vuelve a sí mismo, a ser él en el dolor.” (UNAMUNO, 1997, p. 156). O gozo, o deleite, causa o alienamento de si mesmo, o qual impede o conhecimento de si e do outro. Essa passagem para outro não é a passagem pela alteridade, a qual causa dor e sofrimento, mas pelo deleite da igualdade. Este é o movimento típico do narcisista, cujo amor é sempre amor próprio, uma espécie de deleite sensual de si mesmo. O narcisista busca o igual, aquele que reflete sua imagem e, por isso, vive assim sem consciência real de si mesmo, ou negando seu real ser pela fuga da dor. O outro somente é admissível para ele, enquanto uma extensão de si mesmo, ou objeto de prazer. Dessa maneira, ele se aliena, porque, sem a alteridade, se confunde com o outro enquanto extensão de si, ou o rejeita completamente, por ser sua negação. Somente se ensimesmando, voltando-se para sua própria solidão e diferença, por meio da dor, é que volta a si mesmo e que se reconhece e conhece o outro. 

A relação com o outro, o diferente, ao invés de anular o sentimento de si mesmo, alimenta-o. Apenas pela dor se chega a ser pessoa, visto que, conforme Unamuno (1997, p. 216), a dor “es la sustancia de la vida y la raíz de la personalidad, pues sólo sufriendo se es persona.” O narcisista, o sujeito de amor-próprio, não será capaz de conhecer a si mesmo, de criar uma obra pessoal autêntica, enquanto não chegar a si mesmo pela dor que é amar o outro. O amor narcisista, sem sofrimento compassivo, não é realmente amor, já que o “amor y el dolor se engendran mutuamente, y el amor es caridad y compasión, y amor que no es caritativo y complaciente, no es tal amor.” (UNAMUNO, 1997, p. 217-218). 

Vemos, portanto, que o sofrimento é a condição para ser pessoa e para o amor espiritual. Assinala Unamuno (1997, p. 151): 

[...] los hombres sólo se aman en amor espiritual cuando han sufrido juntos un mismo dolor, cuando araron durante algún tiempo la tierra pedregosa uncidos al mismo yugo de em dolor común. Entonces se conocieron y se sintieron, y se em-sintieron en su común miseria, se compadecieron y se amaron. Porque amar es compadecer, y si a los cuerpos les une el goce, úneles a las almas la pena.

E é por esse amor compassivo que se dá a abertura para o outro. Essa abertura coloca o outro não mais como objeto, ou como inimigo, todavia, como um semelhante com quem se padece uma mesma dor. A semelhança das demais pessoas é “el lazo común que nos une con ellas en el dolor.” (UNAMUNO, 1997, p. 156). O amor revela a semelhança na diferença, por meio da alteridade, afirmando-a num campo comum. Como semelhante, o outro não perde o seu mistério, sua distância e irredutibilidade, aquilo que o torna outra pessoa. Não se cria, assim, conforme a expressão de Han (2017), o “inferno do igual” no qual a alteridade é anulada, erodindo o amor e as relações pessoais com sentido. Aos amantes, o amor compassivo lhes revela sua “común miseria y su felicidad común” (1997, p.152), a proximidade que os torna semelhantes. 

Essa aproximação reveladora da semelhança entre os seres é elemento constituinte da pessoa; toda pessoa se constitui na relação com o outro. “Mi yo vivo” – escreve Unamuno – “es un yo que es en realidad un nosotros; mi yo vivo, personal, no vive sino en los demás, de los demás yos.” (1997, p.187). O si mesmo é, em seu palco interior, a consciência, a relação e representação de outros. Segundo Unamuno (1997, p. 154), “el amor personaliza todo cuanto ama, todo cuanto compadece”; ama-se somente o que é semelhante, porém, é o amor que busca e nos revela as semelhanças, porque a “compasión es, pues, la esencia del amor espiritual humano, del amor que tiene conciencia de serlo, del amor que no es puramente animal, del amor, en fin, de una persona racional.” (UNAMUNO, 1997, p. 153). 

Dessa forma, pelo ato de amar, os homens conhecem sua própria miséria e dependência do outro. E os que conhecem sua “aparencialidade”, seu estado de nonada, conhecem a “aparencialidade”, a “naderia” dos demais, se compadecem deles, os amam, isto é, vivenciam uma mesma dor. Eles se compadecem do outro por sua semelhança em “aparencialidade”, por não serem mais que um nonada. E assim, de compadecer-se de si e do próximo, passa-se aos poucos a amar, personalizando todos os outros seres. Quando alguém sente o universo dentro de si, em sua consciência, onde “todas las cosas han dejado su dolorosa huella”, chega “al tedio de la existencia, al pozo del vanidad de vanidades.” (UNAMUNO, 1997, p. 154). Quando se conhece e se sente a finitude de todos os seres é quando se passa a compadecer de tudo, ao amor universal. Sentir o todo dentro de si é personalizar esse todo, criar um laço de relação, isto é, estabelecer uma comunidade com o todo. 

O amor rompe, pois, o limite de nossa consciência, “nos hace” – salienta Unamuno – “personalizar al todo de que formamos parte” (1997, p. 165). O homem não se resigna a estar no mundo só como mais um fenômeno objetivo, entretanto, atua sobre o todo do universo, personalizando-o, dando vida e sentido ao seu mundo. É a imaginação, pela faculdade da fantasia, que é a força geradora de empatia. A fantasia, por obra do amor, nos revela a luta pela existência de todos os seres, personaliza-os, isto é, lhes confere uma vontade e consciência próprias. Pela imaginação se penetra na totalidade do outro, em seu mundo; é a imaginação que cria a consciência social e nos mantém viva a consciência do outro, não apenas como fenômeno objetivo, mas como um semelhante que padece da mesma dor e alegria. 

Al oírle un grito de dolor a mi Hermano – nos fala Unamuno –, mi proprio dolor se despierta y grita en el fondo de mi conciencia. Y de la misma manera siento el dolor de los animales y el de un árbol al que le arrancan una rama, sobre todo cuando tengo viva la fantasía, que es la facultad de intuimiento, de visión interior (UNAMUNO, 1997, p. 157).  

Por essa consciência aguda do sofrimento, próprio e dos demais, dessa dor que se converte em angústia por amar e ser amado, e por nos revelar ao mesmo tempo a morte e a vida, o vazio e a plenitude da vida, o amor se converte, na filosofia de Unamuno, no sentimento propriamente trágico da vida humana. Mesmo quando só se vislumbra sofrimento e morte, o amor cria, contra toda lógica, esperança naquele que ama. O amor é o sentimento que dá sentido ao mundo, que salva a todos, indiscriminadamente, atribuindo-lhes generosamente bondade; o amor não entende de códigos e, por isso, perdoa. O amor cria esperança e por ela se mantém, porque, conforme Unamuno (1997, p. 211), o amor “mira y tiende siempre al porvenir, pues que su obra es la obra de nuestra perpetuación; lo proprio del amor es esperar, y sólo de esperanzas se mantiene.” (1997, p. 211). Quem ama se compromete sem garantias, por isso, entrega-se totalmente à esperança de criar amor, isto é, de perpetuar não a morte e a carência de ser, mas vida e a esperança. Ora, a base de toda esperança, a força que a mantém, é a fé. Amor, esperança e fé vão unidos um ao outro, de maneira que, na falta de um desses elementos, o outro não se concretiza. 

A Fé criadora

A fé é condição necessária para a prática de amar, pois sustenta a sua esperança. E, embora sustente a esperança, que seja a força que a mantenha, a fé é, por sua vez, fruto da esperança. Entre esperança e fé há dependência mútua. Ter fé é viver de acordo com a realidade que ela representa e que se espera ou, em outras palavras, ter fé é uma vivência de comprometimento com a concretização daquilo que se espera. De fato, conforme vimos, o amor, que é o modo fundamental pelo qual se expressa o desejo humano pela vida, seu desejo de conservar e perpetuar a vida, nos faz buscar com esperança sua conservação e perpetuação. A instância primeira do ato de crer é a esperança: a fé, mais que conectada à esperança, lhe está subordinada (UNAMUNO, 1997). Assim, Unamuno ressalta que “no es que esperamos porque creemos, sino más bien que creemos porque esperamos.” (1997, p. 200). Não é a fé, portanto, que cria a esperança, mas a esperança oriunda do amor pela vida, o desejo esperançoso de perdurar nela, que cria a fé. 

Nesse sentido, a fé não pode ser confundida com a adesão sem reflexão, por simples costume ou educação, a um conjunto de dogmas, isto é, de códigos. Toda fé autêntica é, para Unamuno, obra de uma experiência íntima e pessoal. Sem tal experiência, que é sempre de amor e esperança, toda fé perde seu valor e sentido. Logo, Unamuno (1997) distingue entre a fé autêntica, fruto da experiência íntima de cada pessoa, e a fé implícita ou “fe del carbonero”, como ele costumava chamá-la. Esta última, a “fe del carbonero”, é a fé dos que creem naquilo que foram educados para crer; sem qualquer reflexão; é apenas uma submissão ao que lhes chega posto por uma autoridade socialmente reconhecida. A fé autêntica, conforme Unamuno, não é dogmática, mas produtiva, isto é, ela mesma cria seu objeto. 

A forte oposição que manteve Unamuno, em toda sua vida, a todo tipo de dogmatismo fez com que tecesse duras críticas à fé implícita, especialmente no modelo católico de seu tempo. No ensaio La fe, de 1900, defendia uma perspectiva irracional da fé, uma “fe religiosa más que teologal, fe pura, y libre todavia de dogmas” (UNAMUNO, 1916b, p. 225); fé que é, antes de tudo, pistis, confiança, e não gnosis, conhecimento. No entanto, anos mais tarde, em Del sentimiento trágico de la vida, Unamuno reconhece que a “fe pura libre de dogmas, de que tanto escribí en un tiempo, es un fantasma. Ni con inventar aquello de la fe en la fe misma se salía del paso. La fe necesita una materia en que ejercerse.” (UNAMUNO, 1997, p. 200). A fé é interpretada, por conseguinte, como um elemento composto, no qual entram um elemento cognoscitivo e um elemento afetivo; e se apresenta como uma forma de conhecimento, ainda que não racional. Daí a dificuldade de separá-la de dogmas e doutrinas. 

No entanto, esse elemento racional da fé autêntica faz com que as convicções e certezas, daquele que crê, não estejam desprovidas de incerteza. O crer, conforme recorda Unamuno (1997), possui dois sentidos contraditórios, na língua castelhana corrente: um, o de maior grau de adesão a um conhecimento tido como verdadeiro, e o outro, de adesão vacilante. Todo ato de fé é um comprometimento que implica um risco, pois sua convicção e certeza não garantem sua verdade. Quem crê está sempre sujeito ao engano. De acordo com Unamuno, a fé, por mais convicta que esteja, leva consigo um elemento de incerteza. A fé está subordinada à esperança, e não se pode ter plena certeza do que ainda está em estado de promessa. 

A dúvida é, desse modo, um elemento da fé, seja pelo elemento pessoal do engano naquilo em que se confia, seja pelo elemento racional que questiona e contradiz a fé, sobretudo quando está se faz dogmática. Assim, a fé como elaboração consciente de nossa esperança precisa ser transmissível e compreensível, e só o pode ser sob o signo de um pensamento, ou sentimento, feito ideia. Entretanto, segundo Unamuno (1997, p. 130), “si la fe, la vida, no se puede sostener sino sobre razón que la haga trasmisible -y ante todo trasmisible de mí a mí mismo, es decir, refleja y conciente-, la razón a su vez no puede sostenerse sino sobre fe.” A fim de melhor compreender essa relação entre fé e razão a que alude Unamuno, é preciso não perdermos de vista alguns dos pressupostos fundamentais de sua filosofia. 

Lembremos que todo conhecimento surge, em primeira instância, da necessidade de conhecer para viver. O conhecimento, por mais abstrato que seja, está subordinado à vida. O mundo fenomênico nos é dado, primeiro, pelo sistema trófico, o qual nos revela o mundo objetivo, para logo depois a razão lhe dar forma, figuração; não podemos esquecer que a razão brota da fantasia, que a razão trabalha sobre o sentido social, fruto do amor, que é a imaginação. A distinção formal e objetiva da realidade, conforme já frisamos anteriormente, surge do esforço de imaginação e comunicação intersubjetiva do sentimento do mundo de cada consciência. A razão, que trabalha sobre as percepções antropomorfizadas pela linguagem, cria seu objeto tanto quanto a fé. No entanto, o fim da vida é viver e não compreender (UNAMUNO, 1997). Daí que, diante da razão, que é potência analítica e definidora, que atua sobre os fenômenos, depurando o que há de ilógico na fantasia, enfim, diante da ciência que nos dá um mundo objetivo, matando o mundo ideal, é compreensível que a vida se apoie na fé, que cria e sustenta o mundo ideal que a consola e satisfaz seu anseio fundamental de imortalidade, este que não pode senão ser negado pela razão diante dos dados da experiência. Em outros termos, enquanto a razão afirma o limite, definindo a realidade de maneira objetiva, a fé, guiada pelas esperanças do amor, cria um mundo ideal, isto é, um mundo no qual encontra um sentido para a vida. 

A fé autêntica é, para Unamuno, como podemos ver, uma fé agônica. Ainda que a razão se volte contra a fé, é graças à dúvida por ela implantada que a fé se torna ativa e pessoal. A fé sem o elemento da dúvida corre o risco de ser apenas uma fé implícita ou de se degenerar em fanatismo. Não obstante essa necessidade do elemento racional, a fé, enquanto fruto da esperança e do amor, é um elemento volitivo, que visa sempre à ação prática, e não à compreensão teórica. Aquele que crê cria o mundo pela sua vontade. Assim, para Unamuno, “creer es, en primera instancia, querer crer.” (UNAMUNO, 1997, p. 130). 

A fórmula existencial dessa fé agônica, Unamuno a encontra no capítulo IX do Evangelho segundo Marcos. A passagem nos relata o pedido de um pai para que Jesus salvasse seu filho do espírito que o afligia desde criança, se Jesus pudesse fazê-lo... Esse pai angustiado, ao ouvir de Jesus que todas as coisas são possíveis a quem crê, exclama: “Eu creio! Ajuda a minha descrença!” (Marcos, IX, 24). Ao que Unamuno comenta: “Porque cree, es decir, porque quiere creer, porque necesita que su hijo se cure, pide al Señor que venga en ayuda de su incredulidad, de su duda de que tal curación pueda hacerse.” (UNAMUNO, 1997, p. 136). A fé se sobressai à razão pela ação, é flor da vontade. Os homens, por suas obras, por obrarem de acordo e em defesa daquilo que creem, é que criam a fé. Por isso, afirma Unamuno que “los mártires hacen la fe más aún que la fe los mártires.” (UNAMUNO, 1997, p. 204). Aquele que viveu por sua fé deixa não apenas princípios teóricos, contudo, uma obra pessoal, um testemunho de vida, para a história. 

Diferentemente do conhecimento, gnosis, a fé aceita a incerteza em seu interior, pois a fé é essencialmente confiança, pistis, no que está por se concretizar. Não se crê em algo, como nas palavras de uma promessa: crê-se em alguém que promete ou assegura algo. Aquele em quem se acredita, em quem se tem fé, é o elemento pessoal objetivo da fé, “porque la fe, garantia de lo que se espera, es, más que adhesión racional a un principio teórico, confianza en la persona que nos asegura algo.” (UNAMUNO, 1997, p. 200). Conforme Unamuno, esse elemento pessoal da fé, a relação de confiança, é seu elemento propriamente religioso, porque, sendo o maior desejo e esperança do homem o de viver sempre, é a confiança de que há um Ser pessoal, o qual possa concretizar esse desejo, que lhe justifica confiar nesse Ser que transcende sua situação mortal. Não se crê na ideia de Deus, mas em Deus. 

A fé se refere, enquanto vontade, sempre ao porvir, subordina-se à esperança, isto é, crê-se no que se espera. Não se tem fé no que é ou no que foi, a não ser como garantia ou promessa do que virá (UNAMUNO, 1997). Todavia, embora esse elemento pessoal possa levar ao engano, é justamente “este elemento personal de la creencia le da un carácter afectivo, amoroso y sobre todo, en la fe religiosa, el referirse a lo que se espera.” (UNAMUNO, 1997, p. 204). Esse caráter afetivo da fé compromete nossa existência no mundo, configurando nosso modo de ser em vista do que esperamos, porque “la fe es cosa de la voluntad, es movimiento del ánimo hacia una verdad práctica, hacia una persona, hacia algo que nos hace vivir y no tan sólo comprender la vida.” (UNAMUNO, 1997, p. 204). Assim, a fé está intimamente relacionada com a vontade de não morrer, com o que Unamuno chama de fome de imortalidade, e para salvar-se da morte, cria-se um mundo no qual a morte não exista. 

Cabe observarmos que, assim como a fé não pode ser reduzida à adesão racional a algum princípio teórico, também não se identifica completamente com o querer, com a vontade. Mesmo que a fé esteja em íntima relação com a vontade e seja apresentada em forma volitiva, a fé pode ser vista, segundo Unamuno, como uma potência anímica criadora distinta da vontade, porque “ni el sentimiento, ni la inteligencia, ni la voluntad crean, sino que se ejercen sobre materia dada ya, sobre materia dada por la fe. La fe es el poder creador del hombre.” (UNAMUNO, 1997, p.205). A vontade só cria quando exercida com fé, ou melhor, quando é fé. 

A fé cria seu objeto e relaciona-se pessoalmente com ele, de sorte que, se o homem não vê no objeto aquilo que espera e anseia, se não encontra motivos para confiar-lhe sua vida, um consolo para sua inquietude, não poderá crer nele. Recordemos, na filosofia de Unamuno, o maior anseio do homem é viver, viver sempre, ou seja, a imortalidade. E o objeto desse anseio de nunca morrer é personificado em Deus, embora o filósofo reconheça que há religiosidades que não possuem a ideia de Deus. Pode-se replicar Unamuno, como ele mesmo o faz (UNAMUNO, 1997), arguindo que Deus, ou qualquer outra realidade transcendente não seja uma ideia objetiva e que, como objeto de fé, não teria realidade objetiva fora da fé mesma. Contudo, não podemos perder de vista que Deus é, para Unamuno, o símbolo do impulso vital que leva o homem a desejar ser, a amar e buscar viver sempre. Dessa maneira, a fé religiosa não é o simples arbítrio de uma vontade subjetiva, mas uma necessidade fundada na própria condição humana. Deus é o impulso vital personalizado, a Consciência universal que nos salva do nada. É uma verdade de fé, religiosa, porém, essa verdade de fé não é um mero capricho, fruto de um delírio, pois “llevamos a Dios dentro, como sustancia de lo que esperamos” (UNAMUNO, 1997, p. 205), isto é, Deus está dentro do homem em forma de desejo, como amor. “El amor” – argumenta Unamuno – “nos hace creer en Dios, en quien esperamos, y de quien esperamos la vida futura” (UNMUNO, 1997, p. 212), de modo que Deus “está en nosotros por el hambre que de Él tenemos, por el anhelo, haciendose apetecer” (1997, p. 191). 

Deus é a verdade que faz viver eternamente, que cria imortalidade. E essa verdade se afirma por amor e esperança, por fé. O amor é um ato de fé. A fé religiosa cria aquilo de que sente a ausência, porque o sente antes como desejo. Assim, “se crea a Dios, es decir se crea Dios a sí mismo en nosotros por la compasión, por el amor. Creer en Dios es amarle y temerle con amor, y se empieza por amarle aún antes de conocerle, y amándole es como se acaba por verle y descubrirle en todo.” (UNAMUNO, 1997, p. 205). 

Essa fé religiosa, evidentemente, não é irracional, é “contra racional” (UNAMUNO, 1997). Isso significa que, por mais que leve em si uma expressão racional, a fé sempre sustentará seu objeto contra os ataques da razão. A associação entre fé e razão, em Unamuno, se dá pela luta. “La fe verdadeiramente viva” – escreve Unamuno –, “la que vive de dudas y no las sobrepuja [...] es una voluntad de saber que cambia en querer amar.” (1944, p. 77). A fé que fica apenas no elemento racional, em busca da certeza, está fadada ao fracasso. Cabe ainda precisar, com Unamuno, que querer crer “no es precisamente creer o crear, aunque sí comienzo de ello.” (UNAMUNO, 1997, p. 205). Somente se ama a Deus, quando a angústia por nosso destino pessoal, a finalidade da vida, recoloca a questão do sentido de maneira radical e absoluta. Por conseguinte, começa-se a vislumbrar um sentido e a buscá-lo, mesmo que contra a razão. No entanto, adverte Unamuno (1997, p. 206), “creer en Dios es hoy, ante todo y sobre todo, para los creyentes intelectuales, querer que Dios exista.” Ao homem moderno, embebido de cultura e razão, a agonia, a luta pelo sentido, é mais intensa e dramática, porque, na modernidade, a razão tende a buscar ocupar o lugar que é próprio ao sentimento religioso. Todavia, a cultura não se sustenta por si mesma, e a razão, enquanto força analítica e dissolvente, tende a revelar o sem- -sentido da vida. 

Conclusão 

Vimos que a fé é a esperança de ser e ser sempre do homem, que questiona por Deus desde si mesmo. Busca por Ele desde a sua necessidade de um fundamento que sustente sua vida para além de seu limite e finitude. A fé, como a poesia, é criação de sentido. Podemos afirmar, seguindo Cerezo Galán (1996, p. 23), que, em Unamuno, “la creación genuina es la posición del sentido o finalidad del mundo, no ya desde la nada, sino contra la nada.” E a razão moderna que tende, segundo Unamuno (1997), ao nada, ao que é morto e imóvel, é incapaz por si mesma de criar um fundamento sólido que nos faça viver. Enquanto crise de sentido, a crise moderna é uma crise religiosa. 

Contudo, ao descobrirmos no homem a dimensão da pessoa, sua dimensão histórica, pela qual ex-siste sua consciência individual em relação consigo mesmo e com o outro, e, aprofundando em seu fundamento afetivo, que é o amor espiritual que lhe permite abrir-se ao outro e não cessa de esperar, nós nos deparamos com a fé e seu poder criador de sentido. “La fe” – enfatiza Unamuno – “nos hace vivir mostrándonos que la vida, aunque dependa de la razón, tiene en otra parte su manantial y su fuerza, en algo sobrenatural y maravilloso.” (1997, p. 204). Para o filósofo espanhol, a fé salva a vida do sem sentido racional e transforma a razão dissolvente, pelo abalo de sua palavra criadora, em pensamento vivo. 

Referências

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Notas

[1]  Ênfase em caixa alta feita pelo autor citado.