NO DIA MAIS CLARO, NA NOITE MAIS DENSA: Mito e religião nos quadrinhos do Lanterna Verde.
ON BRIGHTEST DAY, ON BLACKEST NIGHT: Myth and religion in Green Lantern’s comics.

Felipe Ribeiro Cazelli*
*Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória. Atualmente é docente do Centro de Ensino Superior de Vitória (CESV).Contato: felipecazelli@hotmail.com
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Resumo
A experiência do sagrado se dá por meio de símbolos e o impacto deles na consciência, transformando a forma como o indivíduo percebe e atua sobre o mundo. O símbolo, quando se estrutura em modalidade narrativa, dá origem aos mitos. Os mitos cumprem importantes funções nas vivências subjetivas, sendo a atribuição de sentido à existência humana a maior delas. O Lanterna Verde é membro de uma tropa, que lhe confia um anel de poder, ensinando-o a se utilizar de sua capacidade de imaginação e sua força de vontade, para lutar contra as ações das trevas. O anel é um tema recorrente na mitologia – como o Anel de Nibelungo e o anel de Giges em Platão – e na literatura e cultura pop, como a saga d’O Senhor dos Anéis. Remete diretamente ao simbolismo do círculo, que faz referência ao arquétipo do Self. Desta forma, o objeto de estudo deste artigo é, especificamente, o arco intitulado “Origem Secreta”, do mito do Lanterna Verde, que se insere na perspectiva dos Mitos de Anéis e ensina lições sobre poder, imaginação, criatividade, responsabilidade e superação do medo, através da repetição ritualística de uma espécie de “oração”, utilizada para “reenergizar” o anel, constituindo um discurso religioso.

Palavras chave: Sagrado. Quadrinhos. Mito. Símbolo. Lanterna Verde.

 

Abstract
The experience of the sacred is given through symbols and their impact on consciousness, transforming the way individuals perceive and act in the world. The symbol, when structures itself as a narrative, gives birth to myths. The myths fulfill important functions in subjective experience, the attribution of meaning to human existence being one of the greatest. Green Lantern is a member of a corps, that grants him a ring of power, teaching him to use his imagination skills and willpower, to fight the forces of darkness. As a symbol, the ring is a recurrent theme in mythology – such as The Ring of Nibelung –, being quoted even in Philosophy – the Gyges’s ring in Plato –, and in pop culture phenomena, such as The Lord of the Rings. It refers directly to the symbolism of the circle, which is a reference to the archetype of the Self. This way, the object of this paper is, specifically, the storyline “Secret Origin”, from The Green Lantern myth, participating in the perspective of the Ring Myths, teaches lessons about power, imagination, creativity, responsibility and overcoming fear, through the ritualistic repetition of a kind of a “prayer”, used to “reenergize” the ring, constituting a religious speech.

Keywords:Sacred. Comics. Myth. Symbol. Green Lantern.

Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar as Histórias em Quadrinhos do Lanterna Verde, mais especificamente um arco de histórias lançado em 2008 intitulado “Origem Secreta”, que, como o próprio nome diz, busca revelar a origem do super-herói. A análise intenciona identificar os elementos simbólicos e mitológicos na narrativa, para determinar se ela pode ser compreendida como um mito contemporâneo e, consequentemente, servir como fundamento para uma experiência religiosa. Para tanto, é necessário estabelecer sobre que bases se estrutura a experiência religiosa e qual relação existe entre a religiosidade e o mito. Em seguida, buscar-se-á evidenciar as características da HQ em contraposição a outros mitos e narrativas religiosas.

A metodologia adotada no presente artigo é a fenomenológi-ca, que busca descrever e explicitar os pressupostos a partir dos quais se pode falar em experiência religiosa, fundada na categoria do “sagrado”, bem como o estudo comparativo de diferentes manifestações históricas de narrativas mitológicas, seja no campo da religião, da literatura, da filosofia ou da cultura pop (especialmente cinema e quadrinhos). O corpo do artigo se divide em três seções.

A primeira seção busca construir o referencial teórico desde o qual se analisará o objeto em questão, a HQ do Lanterna Verde. Para tanto, noções de “sagrado”, “símbolo” e “mito” serão discutidas, trazendo colaborações da fenomenologia da religião, bem como da psicologia analítica. A meta é determinar as bases e os fundamentos da experiência religiosa individual, aquela que acontece a despeito da existência ou não de uma estrutura institucionalizada de religião.

A segunda e breve seção visa apresentar a trama da HQ em seus principais elementos, apresentando-a no sentido de disponibilizá-la para investigação.

A terceira e última seção procede à análise propriamente dita, na qual se buscará explicitar os elementos mitológicos da HQ em contraposição a outras estruturas semelhantes em mitos e outras narrativas diversas. Para conseguir isso, será necessário trazer ao trabalho a perspectiva teórica que desvela estruturas formais nas narrativas religiosas da humanidade, de forma a nos auxiliar na identificação desses mesmos elementos estruturais na História em Quadrinhos.

Espera-se conseguir demonstrar que a experiência religiosa não se limita àquela que se realiza sempre a partir de textos reconhecidamente “sagrados” por parte de religiões institucionaliza-das, mas pode acontecer com qualquer narrativa que apresente elementos religiosos

1. Sagrado, símbolo, mito e histórias em quadrinhos

É bastante evidente que o fenômeno religioso, enquanto elemento que compõe a experiência humana, participa de uma dimensão coletiva, podendo ser analisada desde o ponto de vista de seu impacto na vida social e suas consequências para as relações intersubjetivas. Entretanto, existe um outro olhar sobre a religião que parte, não de uma visão sobre a coletividade, mas de uma vivência subjetiva, individual. O objetivo dos estudos realizados sob esse ponto de vista é “captar aquela experiência germinal, livre e criadora, que estaria na base das produções espirituais e culturais”, desvelando tanto o ponto de partida quanto o de chegada da religião, localizando-os no “Erlebnis religioso, isto é, a experiência religiosa vivida, considerada a fonte de onde brotam as religiões positivas” (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 10). Esse elemento fundamental, essa experiência que define a religião para além de suas manifestações culturais, que caracteriza a religião como um fenômeno autônomo, é a categoria do “sagrado” (OTTO, 2011, p. 35).

Detectar e reconhecer algo como sendo “sagrado” é, em primeiro lugar, uma avaliação peculiar que, nesta forma, ocorre somente no campo religioso. Embora também tanja outras áreas, por exemplo, a ética, não é daí que provém a categoria do sagrado. Ela apresenta um elemento ou “momento” bem específico, que foge ao acesso racional [...], sendo algo árreton [“impronunciável”], um ineffabile [“indizível”] na medida em que foge totalmente à apreensão conceitual. (OTTO, 2011, p. 37)

É a partir da caracterização dessa categoria fundamental, definida com o termo “sagrado” – também chamado “numinoso” (OTTO, 2011, p. 38) –, que se busca compreender de que maneira as suas mais diversas manifestações no âmbito da cultura constituem as experiências vividas na subjetividade. Os fenomenólogos da religião localizam, nessas experiências, aquilo que identificam como a essência da religião, ou seja, aquilo que faz com que as mais diferentes doutrinas possam se adequar à mesma definição (CROATTO, 2001, p. 9). Ao constatar, de acordo com a citação de Otto, que o sagrado “foge ao acesso racional”, sua definição é uma tarefa complexa, pois essa tal essência, enquanto vivência originária, se encontraria para além da linguagem ou da possibilidade de conceituação. Não faz parte da modalidade ordinária de experiências cotidianas identificadas pela consciência como a “realidade”, tomada objetiva e materialmente. Influenciado pelo pensamento de Rudolf Otto, Mircea Eliade (1992, p. 16) afirma que:

O Sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais”. É certo que a linguagem exprime ingenuamente o tremendum, ou a majestas, ou o mysterium fascinans mediante termos tomados de empréstimo ao domínio natural ou à vida espiritual profana do homem. Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural.

A possibilidade humana de experienciar “realidades” totalmente diversas das chamadas “realidades naturais” é consequência direta da capacidade de simbolizar. É o que diferencia os seres humanos dos outros animais, que vivem exclusivamente em uma realidade única, já pré-programada ou pré-estabelecida. Para o animal, sua experiência de mundo é somente aquela que ele experiencia diretamente através de sua materialidade. Rubem Alves nos ensina que “o animal é seu corpo. Sua programação biológica é completa, fechada, perfeita. Não há problemas não respondidos. E, por isso mesmo, ele não possui qualquer brecha para que alguma coisa nova seja inventada” (ALVES, 1999, p. 18). Assim, enquanto se pode dizer que a estrutura ontológica do animal é fechada, sendo possível prever seu comportamento, de acordo com a espécie, em cada fase da vida, o mesmo não pode ser dito acerca dos seres humanos.

De maneira diversa de como ocorre com os animais, o ser humano é ontologicamente aberto. Não está fechado em sua programação biológica, a ditar-lhe seu comportamento ou suas realizações, ao longo de sua existência material. De fato, enquanto os animais parecem perfeitamente adaptados ao seu ambiente natural, aos seres humanos a natureza constantemente parece hostil. Assim, a superação das limitações humanas perante um ambiente hostil, somada à abertura ontológica de sua constituição, leva a espécie humana a desenvolver uma “rede” ou “sistema simbólico” (CASSIRER, 2012, p. 47). O símbolo situa o indivíduo numa “realidade” que difere qualitativamente daquela na qual vivem os animais. Segundo Cassirer (2012, p. 48):

Não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo. São os variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana. Todo o progresso humano em pensamento e experiência é refinado por essa rede, e a fortalece. O homem não pode mais confrontar- -se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas o homem está, de certo modo, conversando constantemente consigo mesmo.

Dessa maneira, a “rede simbólica” é o fundamento da expe-riência humana no mundo, que se torna, por consequência, um mundo necessariamente humano. Assim, esse outro mundo, ou outra realidade, na qual vive o homem, deixa de ser “meramente física” para se tornar simbólica. Ou, em outros termos, deixa de ser profana para se tornar sagrada (ELIADE, 1992, p. 17). A dualidade representada por essa dicotomia também pode ser identificada na própria natureza dual do símbolo. A origem etimológica da palavra “símbolo”, derivada do grego, remete a uma união, visto que significa “pôr junto” (CROATTO, 2001, p. 85). O uso contemporâneo do termo carrega, de seu significado original, a referência a um duplo nível significativo, ou às duas dimensões de sentido “postas juntas” pelo símbolo. A primeira é a que poderíamos identificar como profana: diz respeito à percepção imediata da realidade concreta da coisa, em suas significações mais comuns e superficiais. A outra, que, por contraposição, chamamos de sagrada, fala de um sentido que transcende a própria coisa, que a “atravessa”, apontando para algo que está além dela. A capacidade de “transignificação”, ou seja, de apontar para esse “segundo sentido” transcendente, é o que constitui algo como simbólico (CROATTO, 2001, p. 87).

O sagrado tem, na capacidade de transignificação do símbolo, o meio mais adequado para sua expressão, uma vez que, “como ele é irracional, ou seja, não pode ser explicitado em conceitos, somente poderá ser indicado pela reação especial de sentimento desencadeado na psique” (OTTO, 2011, p. 49). O que significa dizer que a experiência do símbolo, enquanto vivência do sagrado, provoca um impacto na consciência, aparecendo como elemento atribuidor de sentido. Para Durand (1988, p. 15):

Não podendo figurar a infigurável transcendência, a imagem simbólica é transfiguração de uma representação concreta através de um sentido para sempre abstrato. O símbolo é, portanto, uma representação que faz aparecer um sentido secreto; ele é a epifania de um mistério.

As representações míticas, por sua vez, ao contarem uma história, utilizam os símbolos em linguagem narrativa. Em outras palavras, “dizer mito é o mesmo que dizer símbolo mítico” (BAZÁN, 2002, p. 15). Assim, o mito constitui um conjunto de narrativas simbólicas que visam transmitir uma perspectiva do sagrado, que se encontra, necessariamente, para além das palavras, localizando-se no “mistério”; os mitos são, assim, “símbolos narrados” (MAÇANEIRO, 2011, p. 37). Ao viver o sagrado, o indivíduo sente a necessidade de transmitir essa experiência aos seus semelhantes. Uma vez que o mistério escapa à possibilidade de transmissão através do discurso racional, estruturado sobre o uso de definições e conceitos precisos, então sua comunicação ao outro se dá na forma do discurso simbólico do mito. Acerca dessa necessidade de transmissão da experiência no numinoso, do mistério contido na vivência do sagrado, bem como sua realização no mito, ensina Croatto (2001, p. 82):

A experiência do Mistério (inclusive quando não personificado) é essencialmente afetiva e, portanto, participativa. Ela não pode ser vivida de forma individual e isolada. Seria uma carga insuportável! Comunicá-la alivia. A experiência do Mistério é um processo psicológico fácil de ser entendido. Mas sua comunicação possui um valor sacramental, enquanto significa e realiza novamente a presença do sagrado. A expressão religiosa é tanto a comunicação do vivido, como uma nova vivência. Cada uma das linguagens dessa vivência – o símbolo, o mito, o rito – recria a experiência religiosa a sua maneira, mas todas participam dessa característica.

A transmissão da experiência do sagrado através de um mito proporciona ao indivíduo a apreensão do sentido de seu cotidiano, bem como a melhor forma de conduzir sua vida através dos acontecimentos que fazem parte da vivência humana, independente da cultura na qual ele esteja inserido. Para Eliade, “a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria” (ELIADE, 2000, p. 13). Essa visão de mito representa a perspectiva da fenomenologia da religião, para a qual o mito é uma maneira de expressar o significado profundo das vivências arquetípicas da humanidade. Paul Ricoeur (2013, p. 184) explica:

De acordo com a fenomenologia da religião, o mito- -narrativa seria simplesmente o invólucro verbal de uma forma de vida, sentida e vivida antes de ser formulada. Essa forma de vida exprimir-se-ia, em primeiro lugar, num modo de agir global relativamente a todas as coisas. Mais do que na narrativa, seria no rito que esse modo de agir se exprimiria de uma forma mais completa e a própria palavra mítica constituiria apenas o segmento verbal dessa ação total. De um modo ainda mais profundo, ação ritual e palavra mítica, tomadas conjuntamente, apontariam para lá delas mesmas, para um modelo, um arquétipo, que imitariam ou repetiriam.

Os arquétipos são estruturas formais do inconsciente coletivo, comuns a todos os indivíduos, enquanto imagens primordiais herdadas de nossos antepassados longínquos, de forma semelhante aos padrões de resposta a estímulos internos, o que chamamos de instintos. Por serem comuns a todos, Jung chamará os arquétipos (e, consequentemente, o inconsciente coletivo) de psique objetiva (MENDES; FREITAS, 1983, p. 27). As estruturas formais dos arquétipos serão preenchidas pela experiência subjetiva, para dar origem às imagens arquetípicas expressas nos mitos das mais diversas culturas, constituindo a “manifestação” ou a forma de expressão do arquétipo, conforme explica Xavier (2006, p. 185):

O arquétipo em si, como fator estrutural inconsciente (da mesma forma que o instinto), é inapreensível, inacessível à consciência; é uma forma vazia de apreensão, uma facultas praeformandi, uma possibilidade de representação dada a priori [...]. O que será apreensível à consciência é a manifestação do arquétipo, a imagem arquetípica – a qual se constitui em síntese da forma a priori do arquétipo com a experiência do indivíduo, ou seja, a forma vazia preenchida pela experiência subjetiva.

Embora se diga que a estrutura formal arquetípica será preenchida pela experiência individual, não se pode afirmar que tal experiência tem sua constituição como um produto exclusivo da consciência subjetiva, ou seja, ela não é de exclusiva responsabilidade do indivíduo, como algo que brota de sua constituição particular. Isso porque a individualidade não é algo inteiramente autônomo e absolutamente independente, mas, sim, é construída já a partir da vivência da coletividade. Isso nos leva a afirmar, juntamente com Mircea Eliade, que “até as experiências místicas mais pessoais e mais transcendentes sofrem a influência do momento histórico” (ELIADE, 1998, p. 9). Em outras palavras, pode-se dizer que o ego individual se constitui na inter-subjetividade, fundando sua origem também na relação entre os indivíduos, no contato com o outro, conforme explica Capalbo (2008, p. 24):

A significação do mundo não é obra de um só ego subjetivo, mas de uma pluralidade de egos, visto que é intencionado por vários egos, inaugurando-se, assim, uma relação inter-subjetiva na qual a significação é atribuição de uma comunidade de pessoas e, portanto, essencialmente histórica. A significação do mundo presente não desvincula da do mundo passado, e se ligará à do mundo futuro.

Ou seja, a “significação do mundo” tem sua dimensão individual, mas é igualmente social e histórica. Dessa maneira, pode-se concluir que as experiências que “preenchem” os arquétipos, e que dão origem aos mitos, são culturais, isto é, fazem parte do conjunto de tradições e conteúdos, que vai sendo transmitido ao longo de gerações, de forma coletiva (BAZÁN, 2002, p. 13). A expressão do mito na cultura se dá através da religião, que promove a “reatualização e a ritualização do mito” (BRANDÃO, 1990, p. 39). Nesse sentido, as Histórias em Quadrinhos (HQs), em especial as de super-heróis – também chamadas de superaventuras (REBLIN, 2015, p. 18) –, podem ser enquadradas exatamente no conceito de “mitos contemporâneos” (REBLIN, 2008, p. 156), por apresentarem “a versão moderna dos heróis mitológicos ou folclóricos” (ELIADE, 2000, p. 159), ou seja, reatualizam os mitos, preenchendo suas formas arquetípicas com elementos da cultura dos dias atuais. As Histórias em Quadrinhos de super-heróis podem ser pensadas, portanto, desde uma perspectiva religiosa da realidade, uma vez que “fazem parte do humano enquanto humano, lidam com o sentido de viver e morrer” (REBLIN, 2015, p. 18). Segundo afirma Reblin (2015, p. 21):

Mais que um romance de folhetim, a superaventura é uma narrativa mítica que conta uma história de salvação protagonizada por um herói, que é ritualisticamente rememorada e atualizada aos novos contextos. Enquanto tal, a superaventura reitera exemplarmente valores e concepções de mundo e traz as características atinentes ao mito.

Assim, é desde esse ponto de vista que se busca, aqui, analisar as HQs do Lanterna Verde. Assentado sobre as reflexões anteriores acerca do caráter simbólico do mito, bem como sobre suas funções na vivência humana e sua relação com a religião, agora será possível desvelar o caráter mítico das HQs do referido personagem. Ao identificar o que elas têm de simbólico, em compara-ção a outras narrativas míticas – trabalho geralmente operado pela Fenomenologia da Religião (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 54) –, espera-se identificar o que existe de potencialmente religioso em sua narrativa. Antes, porém, de realizar a efetiva análise dos elementos fundamentais da história, faz-se necessário apresentá-los, por uma questão didática.

2. Lanterna Verde: Origem Secreta

Dentre os principais personagens da editora DC Comics, que compõem o famoso supergrupo Liga da Justiça, é bem possível que o Lanterna Verde seja um dos menos conhecidos do grande público, apesar da produção cinematográfica de 2011. 1 Surgindo como conceito na década de 40, passa por intensas reformulações no final da década de 50 e começo de 60, se tornando a versão que conhecemos hoje. Knowles (2008, p. 158) resume:

Em 1959, um Lanterna Verde de orientação sci-fi (Showcase nº 22) fez sua aparição; ressuscitou, não como um herói que obtém seus poderes numa lanterna mágica, mas como um piloto de provas chamado Hal Jordan que recebe a iniciação numa galáctica Corporação da Lanterna Verde das mãos de um alienígena agonizante.

Especificamente, a versão a ser abordada por este artigo é aquela apresentada pelo escritor Geoff Johns, que assumiu os roteiros em 2004 e escreveu o personagem até 2011, reapresentando-o à nova geração de leitores, atualizando-o para o século XXI, mas com base no personagem dos anos 60. Respeitando a mitologia do Lanterna Verde, Johns mantém seus elementos fundamentais, ao mesmo tempo em que atualiza a narrativa. No arco de 2008, intitulado “Origem Secreta”, Johns reconta o surgimento do personagem. Esse arco foi publicado originalmente nos Estados Unidos, na revista mensal intitulada “Green Lantern”, em seu volume 4, dos números 29 a 35. No Brasil foi publicado pela Editora Panini, no título mensal “Dimensão DC: Lanterna Verde”, dos números 9 ao 15. Ambas as versões foram utilizadas como fonte de consulta para a realização deste artigo.

Na história, somos apresentados a Hal Jordan, o filho do meio de uma família de três irmãos. Apaixonado pela profissão de seu pai, piloto de caças da Força Aérea, sempre o acompanha até a Base Aérea para assistir a seus voos e, justamente por isso, acaba presenciando sua morte quando o avião sofre um acidente. Jordan culpa pelo acidente a empresa que construiu o avião, a Ferris Aeronáutica. A despeito dos protestos de sua mãe, o garoto segue os passos do pai, se alistando na Força Aérea assim que completa 18 anos, decisão que o afasta mais e mais de sua família. Teria que suportar, ao longo de sua juventude, duas outras situações difíceis de lidar: sua imprudência, sua irresponsabilidade e seu pavio curto o fazem ser expulso de seu trabalho; sua mãe vem a falecer de câncer, sem que ele pudesse lhe dar um último adeus, devido às desavenças acerca de sua escolha de carreira. E se essa apresentação parece um tanto apressada, é importante dizer que tudo isso acontece ainda na primeira parte da história, numa narrativa dinâmica, que não perde tempo com elementos desnecessários.

O final da primeira parte e começo da segunda nos apresenta o personagem Abin Sur, um Lanterna Verde alienígena de pele magenta que, tendo aprisionado um vilão, viaja em direção à Terra à procura de informações acerca de um suposto evento vindouro, a “Noite Mais Densa”2 . Falaremos mais sobre ele adiante. Enquanto Hal Jordan lida com as dificuldades de arrumar um novo emprego, o prisioneiro de Abin Sur consegue se libertar e, após um breve confronto, foge deixando tanto a nave quanto seu piloto bastante avariados. Sur consegue fazer um pouso forçado num deserto, mas fica à beira da morte. A busca de um substituto que possa empunhar o anel encontra Hal Jordan, que é levado, pelo poder do Lanterna Verde, à presença de Abin Sur, recebendo a honra e a responsabilidade de se tornar o mais novo membro da Tropa dos Lanternas Verdes. Após um pequeno ato de heroísmo, Jordan é convocado a OA, um planeta distante, Distrito Central da Tropa, para iniciar seu treinamento.

Em OA, descobrimos definitivamente (se já não o soubéssemos) que “Lanterna Verde” não é somente um personagem, mas um título, conferido a inúmeros indivíduos, de todos os cantos do Universo, formando uma Tropa, cuja missão é proteger os planetas e seus biomas de quaisquer ameaças. Eles são uma espécie de força policial cósmica, e cada membro, um Lanterna Verde, possui um anel de poder. Concluído o treinamento, Jordan é recebido oficialmente como membro da Tropa. Enquanto isso, em outro lugar, o Lanterna Verde chamado Sinestro recebe instruções para investigar a morte de Abin Sur na Terra.

De volta a seu planeta natal, Hal Jordan tenta retomar sua vida, quando seu caminho se cruza com o de Sinestro. Eles passam a conduzir juntos a investigação, descobrindo o paradeiro do vilão que escapara da nave de Sur, aprisionando-o. Depois de aprender mais algumas lições, Jordan, juntamente com Sinestro, são convocados novamente a OA, para prestar contas de suas ações durante a perseguição ao vilão. Lá, o novo Lanterna Verde terráqueo confronta os Guardiões, entidades imortais protetoras do Universo, os criadores da Tropa. No fim, as coisas acabam se ajeitando e Jordan volta pra Terra.

O Mito do Lanterna Verde

A história do Lanterna Verde, em muitos pontos, corresponde ao tema arquetípico da Jornada do Herói, uma representação de fases comuns no desenvolvimento da vida humana, tanto nas relações estabelecidas com os outros quanto nos obstáculos a serem superados (BRANDÃO, 1999, p. 20-21). É possível também relacionar o anel dos Lanternas Verdes à temática do “anel de poder”, presente em várias mitologias, possuindo inclusive representações na literatura, na cultura pop e na filosofia. Pretende-se abordar aqui ambos os aspectos mitológicos e arquetípicos.

Em primeiro lugar, em se tratando da figura do Herói, é importante esclarecer o que significa essa estrutura mitológica e qual seu sentido para a experiência humana. Assim, a primeira pergunta que exige resposta é: “o que é um herói?”. Na busca por essa definição, Fingeroth propõe que o Herói representa um modelo de ser humano a ser almejado; é a projeção no nosso “eu superior”, ou seja, daquilo que identificamos como o que há de melhor em nossa constituição humana, especialmente do ponto de vista moral (FINGEROTH, 2004, p. 14). Por ser capaz de superar qualquer dificuldade, inclusive sob as condições mais adversas, o Herói nos arrebata por nos dar esperança, auxiliando-nos a acreditar em nossa própria capacidade de superação. Diz ainda:

Pode-se chamar de herói alguém que se ergue acima de seus medos e limitações para conquistar algo extraordinário. No mundo real, bombeiros que correm para dentro de prédios em chamas, soldados que avançam frente a fogo inimigo, astronautas que se lançam ao espaço apesar das altas chances de resultado letal, são geralmente o padrão a partir do qual o heroísmo é medido.
Em outro nível, ainda no mundo em que habitamos, um professor que, dia após dia, tenta educar sob circunstân-cias muito adversas, uma vítima de acidente que, apesar da dor e enorme dificuldade, persiste em reaprender habilidades perdidas, ou um médico que cuida de pacientes com AIDS em nações do terceiro mundo assoladas pela peste são considerados heróis. Eles lutam contra o azar, e às vezes o derrotam3. (FINGEROTH, 2004, p. 14)

Aqui podemos traçar o nosso primeiro paralelo com o Lanterna Verde: o requisito para ser selecionado como o portador de um anel da Tropa é “superar grande medo” (fig. 2), representando literalmente a definição de “Herói” apresentada acima. Essa parte do mito nos ensina a importância de sobrepujar nossos medos, para alcançar nosso verdadeiro potencial. Hal Jordan, porém, ainda não é o Herói mitológico, capaz de realizar grandes feitos, sem antes passar pelo Rito de Iniciação, que tem sua correspondência mitológica específica, geralmente representando a passagem da infância para a vida adulta, ou seja, de um momento de crescimento e amadurecimento (BRANDÃO, 1999, p. 27). Com relação à definição de Herói e sua posição como um modelo exemplar a ser seguido, Lutz Müller (2017, p. 9) ensina:

O herói nos fascina tanto porque pura e simplesmente ele personifica o desejo e a figura ideal do ser humano. Ele defende a nossa causa e por isso nos identificamos com ele. Reencontramo-nos nos seus medos e sofrimentos, nos seus combates, vitórias e derrotas, na sua luta pela sobrevivência. Ele é o nosso consolo nos tempos difíceis e nos dá esperanças de que, apesar de tudo, podemos conseguir algo, de que não estamos entregues a um destino cego, ainda que tudo pareça em vão. Ele também nos serve de modelo. Quase sempre mostra-nos virtudes e valores humanos mais maduros, como por exemplo a coragem civil e o desinteressado engajamento social e, dessa maneira, cumpre uma tarefa social muito importante. Nossa identificação com ele encoraja-nos a conservar esses valores, mesmo quando não vemos mais esperança e preferiríamos nos resignar.

Henderson (2008, p. 168) também nos mostra a importância do “arquétipo da iniciação”, representado nos “ritos de passagem”, para o desenvolvimento da psique e a passagem da adolescência para a vida adulta. É interessante como as atitudes de Hal Jordan permanecem infantis mesmo depois de alcançar cronologicamente a idade adulta, numa referência à falta de um rito de passagem que o leve de uma etapa a outra da vida. É a submissão ao treinamento e ao processo de iniciação da Tropa que faz com que ele se desenvolva, cresça e assuma as responsabilidades que lhe cabemcomo o Herói. Voltando à questão do Herói como criança, sabe-se também tratar-se de um arquétipo (JUNG, 2000, p. 153-180). A criança mítica geralmente é órfã ou foi abandonada, sendo criada por pais adotivos ou por animais (MÜLLER, 2017, p. 16).

O Lanterna Verde é órfão. Perde seu pai no desastre aéreo e acaba perdendo a mãe antes mesmo de sua morte por câncer, uma vez que corta relações com ela. Ao ser recebido pela Tropa, se depara com vários Lanternas alienígenas que se assemelham a animais, e, inclusive, é treinado por um que lembra um porco, chamado Kilowog (fig. 3). Acerca do sentido psicológico do arquétipo da criança, diz Boechat (2008, p. 24):

[...] A criança heroica que foi abandonada (i.e., o constante motivo da exposição da criança) e que veio a ser cuidada por animais pretende significar que o verdadeiro processo de individuação só poderá acontecer fora dos domínios dos padrões estabelecidos pelos pais. Isto é, o processo de individuação é natural, espontâneo e instintivo e terá sempre um novo recomeço a cada indivíduo.

O arquétipo da criança fala diretamente a nosso lado infantil, com todas as inseguranças, irresponsabilidades e medos que sentíamos quando éramos crianças nós mesmos; por outro lado, devemos perceber como a criança é o “futuro em potencial”, pois é o estágio da criança aquele que “prepara uma futura transformação da personalidade” (JUNG, 2000, p. 165). Ao relatar um sonho de um paciente em uma situação semelhante à do super-herói, ou seja, já na idade cronológica adulta, mas ainda sem assumir as responsabilidades da fase correspondente, Henderson nos ajuda a compreender o arquétipo que também se encontra representado no Lanterna Verde Hal Jordan:

Um jovem de 25 anos sonha que sobe uma montanha em cujo topo há um altar. Perto do altar vê um sarcófago sobre o qual se encontra uma estátua dele mesmo. Aproxima-se então um padre encapuzado carregando um bastão, no qual reluz um disco solar. (Discutindo mais tarde o sonho, o jovem disse que o ato de galgar a montanha lembrou-lhe o esforço que fazia na sua análise para alcançar o domínio próprio.) Para sua surpresa, teve a impressão de estar morto, e em lugar de uma sensação de realização sentiu-se deprimido e assustado. Mas nesse momento, com a irradiação dos raios solares, recebeu um sentimento de força e rejuvenescimento. (HENDERSON, 2008, p. 171)

A importância dos sonhos, com relação aos mitos, está no fato de que, como afirma Joseph Campbell (2006, p. 42), “o mito é o sonho público, e o sonho é o mito privado”, uma vez que ambos apresentam estrutura semelhante e têm a mesma origem: o inconsciente. Nota-se, no sonho do paciente, dois outros elementos presentes no mito do Lanterna Verde: o “padre encapuzado” que vem salvar o jovem ecoa a chegada de Abin Sur, aquele que traz o anel que será utilizado por Hal Jordan.

O simbolismo do poder que é transferido de um ao outro também coincide na forma do elemento arredondado: em um, o disco solar; no outro, o anel. O poder em si aparece, em ambos os casos, como uma espécie de irradiação luminosa. O tema da figura que disponibiliza ao Herói o poder necessário para que ele possa realizar suas proezas é arquetípico e presente em diversas mitologias. Na saga do Herói, conforme categorizada por Campbell, esse é o momento do “auxílio sobrenatural”, em que aparece “uma figura protetora (que, com frequência, é uma anciã ou um ancião), que fornece ao aventureiro amuletos que o protejam contra as forças titânicas com que ele está prestes a deparar-se” (CAMPBELL, 2007, p. 74). Henderson, seguindo na mesma linha, também fala desse momento:

Em várias dessas histórias a fraqueza inicial do herói é contrabalançada pelo aparecimento de poderosas figuras “tutelares” – ou guardiães – que lhe permitem realizar as tarefas sobre-humanas que lhe seriam impossíveis de executar sozinho. (HENDERSON, 2008, p. 144)

É curioso como a palavra usada por Henderson, “guardiães”, é exatamente o nome das entidades responsáveis por toda a Tropa dos Lanternas Verdes, ao mesmo tempo exercendo função parecida com a dos Deuses: se, por um lado, fornecem proteção e sustentam a fonte do poder da Tropa, por outro, também são aqueles que exigem obediência. Quando Hal Jordan confronta essa exigência (fig. 4), também está cumprindo um importante papel em seu desenvolvimento, pois, como já foi dito, a Jornada do Herói, representando o processo de individuação, é fora dos padrões, instintivo e espontâneo. No fim das contas, Hal Jordan descobre que o poder do Lanterna Verde não vem dos guardiães ou do anel: vem de dentro dele mesmo, a partir de sua força de vontade e sua criatividade, como lhe ensina seu novo mentor, o Lanterna Verde chamado Sinestro.4 A temática da força de vontade como verdadeiro poder traz o tema do esforço pessoal como requisito para a consecução do processo de individuação, o encontro com a melhor versão de si, o Self. Sobre isso, explica Xavier (2004, p. 63-64):

É necessário que o eu faça um esforço consciente para se religar ao Eu Superior, transcendendo, assim, esse limiar de separação. Esforço aqui não deve ser entendido negativamente como algo antinatural. [...] Pelo fato de possuir essa instância psíquica inata – o Self –, até mesmo o homem que se diz ateu busca intuitivamente uma forma de canalizar e expressar essa necessidade interna. Se isso não acontecer de maneira saudável e natural, aparecerá de forma distorcida, neurótica ou patológica [...].
No sentido que se deseja atribuir aqui, esforço significa direcionar a libido e nosso livre-arbítrio voluntária e conscientemente para reverenciar e ir ao encontro do sagrado, de seu Eu Superior ou Self. Se não pudéssemos fazer esta escolha conscientemente, não seríamos humanos, mas simples autômatos.

Para além da temática do Herói, resta falar ainda sobre as relações entre a história do Lanterna Verde e o símbolo do anel de poder. Em princípio, é possível apontar para uma série de outros famosos anéis da mitologia, da literatura e da filosofia. E, em seguida, pode-se apontar também para o simbolismo do anel na nossa sociedade e descortinar sua leitura mais profunda, enquanto a representação do círculo que, por sua vez, é um símbolo da totalidade do Self.

Em sua obra “A República”, Platão usa o personagem Glauco para nos contar a história do anel de Giges (2000, p. 43-45). Nessa história, um homem justo descobre, em um buraco no chão provocado por um terremoto, um anel que lhe dá o poder de se tornar invisível. Ele acaba, então, usando o poder do anel para seduzir a rainha, matar o rei e tomar seu lugar como governante. O ponto defendido por Glauco é o de que a certeza da não punição levaria até o indivíduo mais justo a cometer injustiças, ou seja, só se é justo por receio das consequências. Jeff Brenzel aborda essa história, na tentativa de buscar explicar a bondade dos heróis das HQs (BRENZEL, 2009, 145-156). O prestigiado escritor J. R. R. Tolkien, em sua primeira obra literária publicada, “O Hobbit”, também apresenta a história de um anel que torna seu usuário invisível e que corrompe sua integridade, levando-o a cometer atos vis. Esse anel, posteriormente, tornar-se-á elemento central no épico “O Senhor dos Anéis”, obra mais famosa de Tolkien. A relação entre Tolkien e a filosofia de Platão é discutida por Lily Howard-Hill que, apesar de não afirmar categoricamente a inspiração platônica de Tolkien, ao menos admite que ele certamente tinha bom conhecimento sobre a obra do filósofo grego (2017, p. 1).

O trabalho de Timothy Fisher também aproxima a obra de Tolkien à ópera de Richard Wagner, “O Anel do Nibelungo”, encontrando várias similaridades entre elas (FISHER, 2015, p. 20). A obra wagneriana inspira-se diretamente na mitologia nórdica e conta a história de um anel que dá grande poder – mas também amaldiçoa – e três jornadas de Heróis se entrelaçam: Wotan (Odin), Siegfried e Brünnhilde (FISHER, 2015, p. 26). Foge do intento deste artigo discutir as relações entre os anéis “amaldiçoados” e “corruptores” e o anel de poder do Lanterna Verde que, ao menos num primeiro momento, não guarda maldição alguma.5 O importante é estabelecer que o tema do “anel” é recorrente e, portanto, arquetípico.

Joseph Campbell (2006, p. 226-227) lembra de vários tipos de anéis que manifestam símbolos arquetípicos: o anel de casamento, que representa o círculo que envolve a vida de um casal; o anel papal que simboliza Jesus chamando os apóstolos pescadores; o anel dado ao rei ou rainha no ato da coroação, representando a servidão atrelando o rei a seu povo. Enquanto símbolo, o anel, dado seu formato, se enquadra na categoria de círculo. Jung (2000, p. 351) associa o círculo com a figura da mandala, que são “desenhos circulares rituais” de origem indiana, usados para meditação. Na perspectiva junguiana, o círculo é um símbolo que representa a totalidade, adequando-se ao arquétipo do Self, que é o “arquétipo que orienta a vida psíquica como um núcleo regulador, a partir de uma dinâmica finalista de integração das vivências psíquicas” (CAZELLI, 2019, p. 87). Isso significa que o Self é o centro integrador de nossa psique, para onde nossa energia está teleologicamente voltada, ou seja, o “natural” é que caminhemos em direção ao Self, à totalidade, à integração de nossa vida psíquica, e o círculo é um símbolo dessa caminhada. Portanto, onde encontramos o círculo como símbolo, encontramos esse mesmo sentido. Jaffé explicita esse fato apresentando

[...] o círculo (ou esfera) como um símbolo do self: ele expressa a totalidade da psique em todos os seus aspectos, incluindo o relacionamento entre o homem e a natureza. Não importa se o símbolo do círculo está presente na adoração primitiva do sol ou na religião moderna, em mitos ou em sonhos, nas mandalas desenhadas pelos monges do Tibete, nos planejamentos de cidades ou nos conceitos de esfera dos primeiros astrônomos: ele indica sempre o mais importante aspecto da vida – sua extrema e integral totalização.

Assim, o anel do Lanterna Verde é mais um símbolo que reforça o sentido do personagem enquanto Herói mítico, uma vez que, conforme foi visto, a saga do Herói representa o processo de individuação, a transcendência de si mesmo, a caminhada em direção à totalidade, enquanto o simbolismo do anel remete exatamente a essa totalidade à qual o Herói aspira. Sua caminhada envolve a manifestação, através do poder do anel, daquilo que o Lanterna Verde consegue imaginar; tal manifestação é tão forte quanto for a força de vontade do Herói. Portanto, o anel tem, basicamente, três limitações. As duas primeiras são a criatividade e a força de vontade de seu portador. A última envolve a necessidade de recarregar o anel a cada 24 horas. Essa recarga envolve erguer o anel diante de uma lanterna (verde!) e proferir o Juramento dos Lanternas Verdes: “No dia mais claro, na noite mais densa, o mal sucumbirá ante minha presença; Aquele que venera o mal há de penar quando o poder do Lanterna Verde enfrentar!”.

O Juramento, a ser realizado ao menos uma vez por dia, ritualisticamente, lembra uma oração. Sua diferença com relação às orações comumente conhecidas é o lugar onde se encontra sua “fonte de poder”. Enquanto as orações se voltam a um poder “superior”, metafísico, localizado fora do sujeito, o Juramento dos Lanternas Verdes aposta na força que se encontra dentro deles, que se manifesta com sua “presença”. Essa é mais uma lição que pode ser extraída das Histórias em Quadrinhos do Lanterna Verde: a verdadeira força está dentro de cada um.

Conclusão

Existem elementos o suficiente, nas Histórias em Quadrinhos, para que se possa classificá-las como os mitos do nosso tempo. Os mitos funcionam como guias, levando-nos a viver melhor, através das importantes lições que nos ensinam. E como disse Mircea Eliade (2000, p. 22), “‘viver’ os mitos implica [...] uma experiência verdadeiramente ‘religiosa’”. Portanto, a experiência com os mitos presentes nas HQs também pode ser chamada de religiosa. Nas histórias do Lanterna Verde, identificamos diversos elementos da Jornada do Herói, uma estrutura mítica arquetípica, ou seja, que pode ser encontrada em muitas mitologias, de culturas que sequer tiveram contato entre si. A Jornada do Herói é um símbolo do nosso processo de crescimento e desenvolvimento rumo à nossa própria totalidade, que é representada pelo símbolo do círculo. Na HQ o círculo é o anel de poder, ativado pela força de vontade de seu portador. O mito do Lanterna Verde, portanto, nos ensina as mesmas importantes lições dos principais mitos de Heróis, nos auxiliando a superar nossas dificuldades e acreditar em nosso potencial. Assim, entrar em contato com as Histórias em Quadrinhos, assim como é com os mitos, lendo-as, contando-as, buscando compreender as lições que elas transmitem, nos expõe aos benefícios da realização das funções míticas das narrativas. Tais atitudes constituem formas de ritualização que se configuram como essencialmente religiosas, com o acréscimo de lidar com elementos míticos reatualizados, mais próximos da cultura contemporânea do que os principais textos sagrados das grandes religiões.

Referências

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Notas

[1]LANTERNA VERDE. Martin Campbell. EUA: Warner Bros. Pictures/DeLine Pictures: Warner Home Video, 2011. DVD Vídeo (114 min.). O filme foi um fracasso de público e crítica, desencorajando o estúdio a produzir uma já anunciada continuação. O final da película deixa, inclusive, questões pendentes a serem resolvidas pelo projeto futuro, que nunca viu a luz do dia, deixando soltas as pontas da história cinematográfica do personagem. Vale dizer, ainda, que o filme foi fortemente inspirado pelos quadrinhos analisados neste artigo, mas não constituiu uma boa adaptação por uma série de fatores que não têm qualquer coisa a ver com seu material original.

[2]O cataclísmico evento denominado “A noite mais densa” chega, de fato, a acontecer na mesma linha histórica do personagem que estamos analisando, porém alguns arcos adiante. Depois do arco denominado “Origem secreta”, abordado aqui, vieram “A guerra dos anéis”, “Agente laranja” e “A ira dos Lanternas Vermelhos”, para, em seguida, ser publicado “A noite mais densa”, seguido por “O dia mais claro”, com a resolução da questão e fim dessa “encarnação” ou “versão” do personagem. Todos esses arcos foram publicados em encadernados no Brasil pela Editora Panini.

[3]“A hero can be said to be someone who rises above his or her fears and limitations to achieve something extraordinary. In the real world, firemen who race into burning buildings, soldiers who advance in the face of enemy fire, astronauts who launch into space despite the high odds of lethal outcome, are often the standard by which heroism is measured. On another level, still in the world we inhabit, a teacher who, day after day, attempts to educate under adverse circumstances, an accident victim who, despite pain and enormous difficulty, persists in relearning lost skills, or a physician who ministers to AIDS patients in a plague-stricken, third world nation can all be considered heroes. They fight the odds, and sometimes beat them”. (tradução nossa).

[4]Mais adiante na história, Sinestro se tornará um vilão, ao incorporar a essência do espectro Amarelo de luz e se tornar uma espécie de “Lanterna Amarelo”, representante do poder do Medo.

[5]Em arcos futuros da HQ, pode-se ver que um anel de poder eventualmente traz consequências negativas ao seu portador, mas isso teria que ser abordado num outro artigo.