O uso da literatura de cordel no ensino religioso
The use of cordel literature in religious education

Maria José de Araújo*
Ivanaldo Oliveira Santos Filho**
*Mestranda em Ensino na UERN. Contato: mjcaico@ yahoo.com.br
**Pós-doutorado em Estudos da Linguagem pela Universidade de São Paulo (2011), em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutorado em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2005). Contato: ivanaldosantos@yahoo.com.br
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Resumo
O artigo tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre o uso da literatura de cordel nas aulas de Ensino Religioso como forma de transmitir os conteúdos de forma interdisciplinar, interativa e dinâmica. Ao longo da discussão demonstra-se que o uso da literatura de cordel, em sala de aula, é uma forma do Ensino Religioso se aproximar da comunidade, da religiosidade popular, da fé espontânea dos grupos humanos mais humildes e da poesia popular. Por fim, afirma-se que a literatura de cordel possui uma forte diversidade religiosa. Uma diversidade ligada a religiosidade popular, a poesia, a cultura popular e ao cotidiano do cidadão. Essa diversidade poderá ser uma ponte para a construção de espaços de aprendizagem dentro da disciplina Ensino Religioso escolar.

Palavras chave:Ensino Religioso. Literatura de cordel. Sala de aula.

 

Abstract
The article aims to present a reflection on the use of cordel literature in Religious Education classes as a way to transmit the contents in an interdisciplinary, interactive and dynamic way. Throughout the discussion it is demonstrated that the use of cordel literature in the classroom is a way for religious teaching to approach community, popular religiosity, the spontaneous faith of the humblest human groups and popular poetry. Finally, it is argued that cordel literature has a strong religious diversity. A diversity linked to popular religiosity, poetry, popular culture and the daily life of the citizen. This diversity may be a bridge to the construction of learning spaces within the school Religious Education discipline.

Keywords:Religious Education. Cordel literature. Classroom

Introdução

OEnsino Religioso, enquanto uma das áreas do conhecimento, oferece ao educando várias possibilidades de conhecer as religiões existentes – o estudo do fenômeno religioso, do transcendente, da ética, dos ritos e da história das religiões. Logo, promover o diálogo, o respeito e a valorização diante das crenças religiosas que existem no contexto social é um exercício que exige sensibilidade entre sujeitos com convicções diferentes. Para tanto, sabe-se que para cativar o educando para esses conteúdos, por vezes envolvendo temas complexos e polêmicos, o professor precisa criar alternativas para que estes conhecimentos sejam transmitidos de forma que o aluno tenha alegria em estudar

Atualmente, tanto no campo das ciências da religião, da teologia, da pedagogia e de outras áreas do saber, existe uma preocupação no sentido de tornar o conteúdo do Ensino Religioso mais atraente, mais próximo da realidade sociocultural do educando, inclusive explorando alternativas lúdicas.

Esse artigo tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre o uso da literatura de cordel nas aulas de Ensino Religioso, como forma de transmitir os conteúdos de forma interdisciplinar, interativa e dinâmica, para que os alunos sintam satisfação em conhecer os conteúdos dessa disciplina. Não se trata de discutir ou apontar uma solução para as precauções que envolvem o Ensino Religioso ou de como melhor repassar o conteúdo teórico ao educando, mas de como associar os temas da disciplina a conteúdos presentes nos contextos sociais em que os alunos estão inseridos.

O gênero literário literatura de cordel, que também é ofício e meio de sobrevivência para centenas de cidadãos brasileiros, foi reconhecido no dia 19 de setembro de 2018, pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, como Patrimônio Cultural Brasileiro (cf. IPHAN, 2018). Trata-se de um justo reconhecimento. A literatura de cordel é uma das expressões literárias que melhor representam o cotidiano e a história do povo brasileiro.

Por estar ligada ao cotidiano sociocultural e ao mundo lúdico e poético do Nordeste e de outras regiões do Brasil, é possível se pensar no uso da literatura de cordel com finalidades pedagógicas nas aulas de Ensino Religioso.

Para alcançar o objetivo, o artigo foi dividido em três partes: Ensino Religioso; Literatura de Cordel; O uso da literatura de cordel no Ensino Religioso. Diante das discussões realizadas, afirma-se que a literatura de cordel possui uma forte diversidade religiosa, ligada à religiosidade popular, à poesia, à cultura popular e ao cotidiano dos cidadãos. Essa diversidade poderá ser uma ponte para a construção de espaços de aprendizagem dentro da disciplina Ensino Religioso nas escolas.

Ensino Religioso

O Ensino Religioso esteve presente no currículo escolar ao longo da história da educação. Em seu percurso enquanto disciplina da matriz curricular da Educação Básica, sofreu críticas em relação à sua permanência nas escolas, como também em relação aos conteúdos ministrados. Com o passar do tempo, a disciplina foi criando autonomia e, de certa forma, espaço nas escolas. Essa abertura se deu por meio das leis que vieram dar força e apoio para que o Ensino Religioso pudesse traçar caminhos e entrelaçar saberes.

Dentre os documentos que ressaltam a seriedade do Ensino Religioso, temos a própria Constituição Federal, que enfatiza no seu art. 210, “§ 1º: O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” (BRASIL, 2000). Outros documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), explicam a função do Ensino Religioso nas escolas:

Portanto, na escola o Ensino Religioso tem a função de garantir a todos os educandos a possibilidade deles estabelecerem diálogo. E, como o conhecimento religioso está no substrato cultural, o Ensino Religioso contribui para a vida coletiva dos educandos, na perspectiva unificadora que a expressão religiosa tem, de modo próprio e diverso, diante dos desafios e conflitos. O conhecimento resulta das respostas oferecidas às perguntas que o ser humano faz a si mesmo e ao informante. [...] O homem finito, incluso, busca fora de si o desconhecido, o mistério: transcende. Esse fenômeno religioso é a busca do Ser frente à ameaça do Não-ser. E, a humanidade tem quatro respostas possíveis como norteadoras do sentido da vida além morte: a ressurreição, a reencarnação, o ancestral e o nada. Cada uma dessas respostas organiza-se num sistema de pensamento próprio, obedecendo uma estrutura comum. E, é dessa estrutura comum que são retirados os critérios para organização e seleção dos conteúdos e objetivos do Ensino Religioso (BRASIL, 2002, p. 3-4).

A construção desse componente curricular se encontra organizado nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso (FONAPER, 1997), que atribuem ao Ensino Religioso caráter pedagógico como o de qualquer outra disciplina do currículo da escola. Nesse documento são apresentados os seguintes eixos norteadores do trabalho docente na sala de aula: Culturas e Tradições Religiosas; Escrituras Sagradas e/ou Tradições Orais; Teologias, Ritos; e Ethos. Detalhando cada eixo, temos nos PCNs:

Culturas e Tradições Religiosas: É o estudo do fenômeno religioso à luz da razão humana, analisando questões como: função e valores da tradição religiosa, relação entre tradição religiosa e ética, teodiceia, tradição religiosa natural e revelada, existência e destino do ser humano nas diferentes culturas [...]. Escrituras Sagradas e/ou Tradições Orais: São os textos que transmitem, conforme a fé dos seguidores, uma mensagem do Transcendente, onde pela revelação, cada forma de afirmar o Transcendente faz conhecer aos seres humanos seus mistérios e sua vontade, dando origem às tradições. E estão ligados ao ensino, à pregação, à exortação e aos estudos eruditos[...]. Teologias: É o conjunto de afirmações e conhecimentos elaborados pela religião e repassados para os fiéis sobre o Transcendente, de um modo organizado ou sistematizado. [...]. Ritos: É a série de práticas celebrativas das tradições religiosas formando um conjunto de: a) rituais [...]; b) símbolos [...]; e c) espiritualidades .. Ethos: É a forma interior da moral humana em que se realiza o próprio sentido do ser. É formado na percepção interior dos valores, de que nasce o dever como expressão da consciência e como resposta do próprio “eu” pessoal (BRASIL, 2002, p. 4-8).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso defendem que os conhecimentos proporcionados pelo Ensino Religioso no contexto escolar não servem para práticas proselitistas, e sim para a valorização da pluralidade religiosa e cultural em sala de aula, favorecendo a liberdade de cada educando expressar suas crenças.

Outro documento que funciona como suporte teórico ao Ensino Religioso nas escolas, aprovado recentemente, em 2017, é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Esse documento leva em consideração o que as leis preconizam e destaca:

O Ensino Religioso busca construir, por meio do estudo dos conhecimentos religiosos e das filosofias de vida, atitudes de reconhecimento e respeito às alteridades. Trata-se de um espaço de aprendizagens, experiências pedagógicas, intercâmbios e diálogos permanentes, que visam o acolhimento das identidades culturais, religiosas ou não, na perspectiva da interculturalidade, direitos humanos e cultura da paz. Tais finalidades se articulam aos elementos da formação integral dos estudantes, na medida princípio básico à vida em sociedade em que fomentam a aprendizagem da convivência democrática e cidadã (BRASIL, 2018, p. 435).

A BNCC ainda explica a função do Ensino Religioso no currículo do Ensino Fundamental, enfatizando que “adota a pesquisa e o diálogo como princípios mediadores e articuladores dos processos de observação, identificação, análise, apropriação e ressignificação de saberes” (BRASIL, 2018, p. 434). Nesse sentido, a BNCC destaca as competências específicas do Ensino religioso no Ensino Fundamental:

Conhecer os aspectos estruturantes das diferentes tradições/movimentos religiosos e filosofias de vida, a partir de pressupostos científicos, filosóficos, estéticos e éticos; Compreender, valorizar e respeitar as manifestações religiosas e filosofias de vida, suas experiências e saberes, em diferentes tempos, espaços e territórios; Reconhecer e cuidar de si, do outro, da coletividade e da natureza, enquanto expressão de valor da vida; Conviver com a diversidade de crenças, pensamentos, convicções, modos de ser e viver; Analisar as relações entre as tradições religiosas e os campos da cultura, da política, da economia, da saúde, da ciência, da tecnologia e do meio ambiente; Debater, problematizar e posicionar-se frente aos discursos e práticas de intolerância, discriminação e violência de cunho religioso, de modo a assegurar os direitos humanos no constante exercício da cidadania e da cultura de paz (BRASIL, 2018, p. 435).

Para valorizar e respeitar a diversidade religiosa no Brasil, no dia 04 de janeiro de 2019, publicou-se no Diário Oficial da União a nova lei que protege os estudantes que faltarem a algumas aulas por motivos religiosos. Essa lei entra em vigor em março de 2020 e as instituições de ensino, desde a educação básica até as universidades, públicas e privadas, poderão ter até dois anos para a colocarem em prática.

Art. 7: Ao aluno regularmente matriculado em instituição de ensino pública ou privada, de qualquer nível, é assegurado, no exercício da liberdade de consciência e de crença, o direito de, mediante prévio e motivado requerimento, ausentar-se de prova ou de aula marcada para dia em que, segundo os preceitos de sua religião, seja vedado o exercício de tais atividades, devendo-se- -lhe atribuir, a critério da instituição e sem custos para o aluno, uma das seguintes prestações alternativas, nos termos do inciso VIII do caput do art. 5º da Constituição Federal: I - prova ou aula de reposição, conforme o caso, a ser realizada em data alternativa, no turno de estudo do aluno ou em outro horário agendado com sua anuência expressa; II - trabalho escrito ou outra modalidade de atividade de pesquisa, com tema, objetivo e data de entrega definidos pela instituição de ensino. § 1º A prestação alternativa deverá observar os parâmetros curriculares e o plano de aula do dia da ausência do aluno. § 2º O cumprimento das formas de prestação alternativa de que trata este artigo substituirá a obrigação original para todos os efeitos, inclusive regularização do registro de frequência. §3º As instituições de ensino implementarão progressivamente, no prazo de 2 (dois) anos, as providências e adaptações necessárias à adequação de seu funcionamento às medidas previstas neste artigo (BRASIL, 2019).

Porém, para que seja assegurado pela Lei, o aluno deverá apresentar com antecedência um requerimento evidenciando que tem direito de usufruir dos benefícios estabelecidos. Nessa perspectiva, podemos perceber o espaço que o Ensino Religioso e todas as crenças estão conseguindo na sociedade. O Ensino Religioso se torna importante porque, dentre outros fatores, trata-se de uma disciplina que funciona como um espaço privilegiado para se debater e se refletir, numa perspectiva interdisciplinar, os problemas éticos relacionados à formação integral do aluno (FAZENDA, 1999). Além disso, é uma disciplina que possui um currículo interdisciplinar que pode ser trabalhado em suas relações com outras áreas do conhecimento da Educação Básica.

A disciplina de Ensino Religioso pode ser considerada uma educação inventiva, reflexiva e humana, facilita a discussão sobre o sentimento da vida, cujas referências estão no estudo sobre outras tradições e culturas religiosas que acontecem na história (SILVA, SILVA, HOLMES, 2008, p. 146).

Nesse sentido, o educador precisa, além de ter uma formação adequada para ministrar essa disciplina, estar aberto a outras realidades em que o educando está inserido, tendo uma abertura para o pluralismo religioso existente na sociedade atual, como também buscar um olhar de humildade para se trabalhar em conjunto com outras áreas do Saber.

O Ensino Religioso, como parte integrante do currículo da Educação Básica, possui conteúdos próprios e tem uma prática docente própria, além de sua presença no seio escolar proporcionar aos educandos uma disposição para estarem em contato com o sagrado, com valores que por vezes são esquecidos da sociedade. Igualmente, o valor de conhecer e discutir acerca do pluralismo religioso existente na sociedade, que é formada por diferentes culturas religiosas que necessitam ser respeitadas em suas peculiaridades. Sobre essa questão, ressalta-se:

A identidade das diversas religiões e denominações constituem um corpo de conhecimento relevante para o mundo e a cultura; o aluno tem o direito de ter acesso a esse conhecimento, com suas convergências e divergências. Sem preservação de identidade, não há diálogo; há aniquilamento e substituição (CRUZ, 2001, p. 72).

O Ensino Religioso se apresenta como um componente curricular significativo, tendo em vista que transmite conhecimentos próprios e faz parte não somente da realidade dos educandos, como também da sociedade como um todo. No ambiente escolar, esta disciplina tem como finalidade garantir a preservação de valores éticos e morais, fazendo com que os alunos tenham uma postura de contato e respeito com o transcendente, dialogando com várias expressões religiosas, além de formar alunos com consciência crítica diante das diversas realidades em que estão inseridos.

Nessa perspectiva, vemos o Ensino Religioso como uma disciplina relevante na educação escolar por possibilitar temáticas pertinentes à formação do aluno e propor momentos de reflexão diante da realidade que os cerca. Percebemos que o Ensino Religioso é uma possibilidade para se debater, do ponto de vista ético, temas relevantes para o ser humano na sociedade contemporânea, tais como: o individualismo radical, as desigualdades sociais e as diversas crises humanitárias que assolam o atual modelo social. Logo, explicitar o fenômeno religioso nas suas mais diversas manifestações e expressões oferece os meios para compreender a realidade na qual estamos inseridos. Abre-se o leque para desenvolver uma consciência crítica acerca dos temas abordados no Ensino Religioso, para o qual a literatura nos serve de instrumento de mediação e expressão da realidade social.

Literatura de Cordel

O nome cordel se refere à forma como os poemas, na forma de folhetos, ficavam pendurados no cordão para serem vendidos nas feiras livres do Nordeste do Brasil. Os portugueses foram os primeiros a trazerem a literatura de cordel para o Brasil. Somente na metade do século XIX é que os cordéis começaram a aparecer em forma de folhetos, com particularidades próprias do Brasil. Os folhetos incluem diversos temas, tais como: episódios históricos, fatos do cotidiano, lendas, religião e tantos outros. Nesse sentido, podemos perceber que não há limite para a criatividade do poeta cordelista, pois tudo pode virar poesia em suas mãos.

Para reafirmar a origem da literatura de cordel, destaca-se:

O nome literatura de cordel provém de Portugal e data do século XVII. Esse nome deve-se ao cordel ou barbante em que os folhetos ficavam pendurados, em exposição. No nordeste brasileiro, mantiveram-se o costume e o nome, e os folhetos são expostos à venda pendurados e presos por pregadores de roupa, em barbantes esticados entre duas estacas fixadas em caixotes (CAVIGNAC, 2006, p. 77).

No Brasil, a literatura de cordel é uma produção típica do Nordeste, principalmente nos estados da Paraíba, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte. Os folhetos de cordel eram vendidos pelos próprios poetas durante as feiras livres. Atualmente, o Cordel é vendido em outros estados brasileiros, como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, em casas de culturas, feiras culturais e apresentações de cordelistas, como também em livrarias. Cavignac, (2006, p. 72), enfatiza que “podemos considerar a literatura de cordel como o jornal do povo, pois ela trata de todos os assuntos suscetíveis de interessar à população marginalizada pelo sistema”.

Em relação aos folhetos, no formato de um pequeno livro contendo um poema, destaca-se:

Faz-se necessário ainda perceber que a marca caraterística do Cordel é sua apresentação em folhetos confeccionados em papel-jornal cujo número de páginas é geralmente múltiplo de quatro, com intuito de facilitar a impressão e montagem. Entretanto, nos primórdios os folhetos eram intitulados de acordo com o número de páginas. Até oito páginas chamava-se folheto, os de dezesseis páginas eram considerados romances e os de trinta e duas páginas eram chamados de história. Além dessas características básicas, o que veio a acrescentar nas obras foi o surgimento da xilogravura, que integra o folheto, caracterizando-se por ilustrar a capa da narrativa (SANTOS, DIAS, 2017, p. 137-138).

É importante destacar, dentro do contexto do surgimento da literatura de cordel, a influência dos poetas Silvino Pirauá de Lima, Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista e João Martins de Athayde. O poeta Leandro Gomes de Barros foi um dos primeiros cordelistas, tornando- -se conhecido como o “pai da literatura de cordel brasileira”, devido ao fato de o mesmo haver explorado e dado forma a todos os gêneros e temáticas de cordéis, tornando-se o primeiro editor de cordel do Brasil.

Outro nome de destaque na literatura de cordel foi João Martins de Athayde, que, após a morte de Leandro, conseguiu da viúva deste os direitos de publicação de boa parte de suas obras. Essa atitude contribuiu para que a literatura de cordel ganhasse espaço, além de proporcionar empregos, devido à difusão do cordel pelas feiras livres, proporcionando assim muitos revendedores.

Com o passar dos tempos, a literatura de cordel foi ganhando espaço e visibilidade em diversas regiões brasileiras. Na região de Teixeira, na Paraíba, temos registro de alguns cantadores como o escravo Inácio da Catingueira e Romano da Mãe d’Água. Inácio era analfabeto, mas era um improvisador excelente, enquanto que Romano tinha bastante instrução. Ambos disputaram uma peleja que foi registrada em folhetos por Leandro Gomes de Barros. Outros nomes merecem destaque: José Galdino da Silva Duda, João Melchíades Ferreira da Silva, Severino Borges Silva e Antônio Eugênio da Silva.

Nos tempos atuais, merecem destaque dentro da literatura de cordel, os poetas José João dos Santos, conhecido como Mestre Azulão, Antônio Ribeiro da Conceição, Antônio Américo de Medeiros, Geraldo Amâncio Pereira, entre outros, que mostram toda a sua criatividade e habilidade em proclamar cordéis em todas as regiões do Brasil.

Dentre os cordéis que fazem um retrato do Nordeste brasileiro, pode-se citar A História do valente Zé Garcia, de João Melchíades Ferreira da Silva, que conta a história de um vaqueiro cheio de façanhas, que, por amor, organiza o rapto de sua amada Sinforosa. Esse cordel ficou famoso por ter sido um dos mais populares, fazendo uma “rica descrição dos costumes sertanejos, em um ambiente onde predominava a lei dos mais fortes” (HAURÉLIO, 2010, p. 35).

A literatura de cordel pode ser considerada uma literatura regional, que tenta retratar o cotidiano, fazendo com que o leitor contextualize o enredo que o cordel apresenta com fatos que acontecem na sua realidade, isto é, na sociedade em que vive. Sobre essa questão, ressalta-se:

Dois critérios parecem determinantes na definição de uma literatura popular. Considerada o como a expressão ingênua da alma do povo, ela se distingue da literatura erudita, antes de tudo pelo seu público alvo e pela sua forma, sempre diversidade (CAVIGNAC, 2006, p. 69).

Desse modo, percebemos que esse tipo de literatura é um dos mais próximos à linguagem popular, tendo em vista o seu rápido entendimento e também a criatividade com que os poetas escrevem. Outro fator importante na literatura de cordel é que “embora se trate de poesia, o folheto é essencialmente um relato: se aproxima mais do conto, do ponto de vista de sua forma e de seu conteúdo, do que da poesia” (CAVIGNAC, 2006, p. 75).

Nesse ponto, vemos a literatura de cordel como algo que denota certa criatividade por parte dos poetas, como também uma literatura voltada para as camadas marginalizadas e humildes do sertão nordestino. Destacamos ainda que essa literatura é um tipo de poesia rural que conta histórias relacionadas a acontecimentos locais, nacionais e internacionais, mas interpretados através da cultura popular. Por isso é necessário e importante conhecer a história do sertão, como a economia, a política, a religião e outros aspectos, para poder compreender as histórias contadas nos folhetos.

A literatura de cordel apresenta duas formas: a oral, que é improvisada e cantada pelos poetas, e a escrita, que é o próprio cordel impresso, podendo algumas vezes também ser cantada:

O cordel e sua expressão oral não correspondem a um gênero literário claramente determinado. Formando mais do que uma literatura popular unicamente oral e escrita, seus laços são recíprocos, os situam a meio caminho da poesia, do conto, da lenda e do mito. A literatura oral foi e continua sendo um dos temas clássicos que os antropólogos analisam conhecer uma sociedade (CAVIGNAC, 2006, p. 246).

Podemos ainda perceber que o relato oral é bem estruturado e carregado de improviso feito pelo cordelista, nome que se dá aos poetas cantadores de cordel. Geralmente é uma leitura carregada de simplicidade. Dentro desse contexto, Haurélio (2010, p. 17) acrescenta:

É importante destacar que os poetas reaproveitam em seus cordéis os acontecimentos da vida cotidiana, das pessoas e das suas relações com a sociedade em que estão inseridos. Assim, podemos perceber nos cordéis a reafirmação da cultura popular, sua ascensão e resistência com o passar dos tempos, uma vez que “as narrativas populares, seus heróis e mitos, a poesia popular com sua estética específica, assim como seus comportamentos de religiosidade, valorizados, revelam uma outra forma de compreender o mundo e a vida” (MANZATTO; SBARDELOTTI, 2017, p.08).

O poeta Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré, traz em sua poesia uma profunda consciência social, discutindo em suas poesias as temáticas relacionadas ao nordeste, como a desigualdade social, os problemas envolvendo o latifúndio, os conflitos de terra, a mística e a religiosidade do povo simples do sertão nordestino. Dessa forma, o poeta discute, analisa e faz uma reflexão acerca dessas temáticas relacionadas ao sofrimento do homem nordestino. Manzatto (2017), destaca que Patativa do Assaré

[...] retratou a vida do cearense e do nordestino a partir de sua vida de agricultor pobre, preocupado com a situação dos seus conterrâneos, dos excluídos, dos marginalizados pelo sistema, utilizando de uma linguagem acessível a todas as pessoas que tiveram a oportunidade de o escutarem, e de lerem sua obra (MANZATTO;SBARDELOTTI, 2017, p. 18).

A poesia de Patativa do Assaré é marcada pela constante denúncia social em seus versos. Com aguda crítica social, sua poesia reveste-se de reflexão e denúncia de problemas sociais que acometem os mais pobres, fazendo um apelo a necessidade da igualdade e justiça para todos. Patativa se coloca no lugar dos oprimidos e marginalizados, assumindo questões sociais, políticas e religiosas. Villas Boas & Silva (2017, p.81), ressaltam:

Ademais, sua poética consegue ultrapassar o processo de repetição muito presente na oralidade, que repete temas da seca, da pobreza, da fome e miséria, muito constantemente. Ele coloca seu leitor frente a um diálogo que o interpela. O poeta pensa, reflete e expõe seu fazer com ferramentas que lhe estão muito disponíveis: a imaginação, a linguagem cabocla e a escrita do homem simples.

Patativa do Assaré, de forma simples e compreensiva, denunciava as injustiças e desigualdades sociais dentro de suas poesias, defendendo os marginalizados e oprimidos pela sociedade. Muitos outros cordelistas seguem o exemplo de Patativa do Assaré, mesmo de forma discreta.

De um modo geral, ao problematizar as condições de vida, os interesses entre diferentes grupos e os conflitos sociais, o cordel é a tradição mais próxima e compreensiva da realidade. Por isso, situamos o cordel enquanto alternativa para se debater a pluralidade do fenômeno religioso na sala de aula, exigindo dos sujeitos e grupos sociais respostas às diferentes situações e desafios do cotidiano. Combinar Ensino Religioso e a cultura popular expressa na literatura de cordel abre possibilidades para o campo da interdisciplinaridade.

O uso da literatura de cordel no Ensino Religioso

O uso da literatura de cordel nas aulas de Ensino Religioso se torna um recurso interdisciplinar, colaborando para o desenvolvimento da leitura dos alunos, oralidade, socialização e, sobretudo, agregando múltiplos saberes. Trata-se de uma alternativa didática para se trabalhar os conteúdos das aulas de Ensino Religioso de forma criativa e prazerosa, mostrando ao educando que é possível unir os saberes do Ensino Religioso àqueles oriundos da cultura popular.

Para se trabalhar com a literatura de cordel em sala de aula é importante que o professor de Ensino Religioso proporcione uma discussão sobre o que seria a literatura de cordel, como forma de ver os conhecimentos prévios dos alunos em relação à temática em discussão. Partindo desse ponto, o educador poderá ainda fazer um panorama sobre a história da literatura de cordel, enfatizando o seu surgimento no Brasil e em outros países.

Os folhetos de cordéis nos dão várias possibilidades de se trabalhar em diversas áreas do conhecimento, como, por exemplo, a história, a geografia, a língua portuguesa e o Ensino Religioso. No entanto, está no professor a incumbência de fazer as devidas adaptações para que a aula tenha o êxito esperado, possibilitando-se as conexões entre o conteúdo teórico-metodológico e a literatura de cordel. Sobre essa questão, afirma-se:

Numa aula da disciplina de Ensino Religioso, o uso da literatura de cordel poderá desencadear um diálogo com a cultura, especialmente a cultura popular. O cordel pode trazer a redescoberta de vivências e experiências da vida do aluno, levando em consideração que este pode ter contato com familiares ou amigos que apreciam esse tipo de poesia popular ou que têm alguma experiência concreta com o cordel e possa trazê-la para o ambiente escolar.

É importante ressaltar que a literatura de cordel pode ser utilizada de várias formas no contexto da sala de aula. Nesse sentido, o professor de Ensino Religioso pode trabalhar alguns assuntos da disciplina fazendo conexão com diferentes cordéis, proporcionando aos alunos a interdisciplinaridade. Relacionando conteúdos aprendidos em sala de aula e contextualizando-os com o tema abordado no folheto de cordel, fazendo com que se encontre algo em comum em ambas as partes.

Ao se trabalhar com o cordel em sala de aula (MARINHO, PINHEIRO, 2012), o professor não pode descartar o livro didático de Ensino Religioso, tendo em vista que se vai necessitar trabalhar com os conteúdos próprios dessa disciplina. Como mediador do conhecimento, o docente necessita ter domínio sobre o que vai ensinar e como vai ensinar. A finalidade pedagógica do cordel deve possibilitar partilha de conhecimento e reflexão interdisciplinar. Para o Ensino Religioso é fundamental que a contextualização alcance a vivência dos estudantes, de modo que possam ressignificar processos, histórias e experiências. A utilização do cordel em sala de aula ultrapassa a prática comum da memorização dos versos, para alcançar níveis de interpretação e formas de ver o mundo.

Para tanto, os cordéis devem ser selecionados de acordo com as temáticas dos conteúdos que estão no plano de aula, de forma que se possa facilitar a compreensão dos alunos, além de atingir os objetivos propostos para a atividade.

Dentro da perspectiva de utilizar a literatura de cordel nas aulas de Ensino Religioso, propõe-se com exemplo uma atividade didática em que poderão ser utilizados os folhetos de cordéis relacionados a um assunto do livro didático de Ensino Religioso “Crescer com alegria e fé”, da editora FTD, cujos autores são Ednilce Duran e Glair Arruda. Os autores são bacharéis em Teologia, com especialização em educação religiosa. Nesse sentido, os “temas são tratados considerando a diversidade de tradições religiosas no Brasil”, evitando, assim, o “dogmatismo e o proselitismo que perigosamente podem surgir do debate religioso” (DURAN, ARRUDA, 2013, p. 4).

Desse modo, o livro faz parte de uma coleção interdisciplinar, fazendo interações com outras áreas do conhecimento:

O Ensino Religioso está intimamente ligado a outros domínios do conhecimento humano. É assim, por exemplo, com a História, a Ciência e a Filosofia. A Filosofia e a Teologia trabalham juntas, por exemplo, para compreender o fenômeno religioso. Da mesma forma, História e Antropologia, Psicologia e Arte... Enfim, todos esses saberes contribuem para uma educação integral em que os conteúdos abrangentes oferecem subsídios para a compreensão e transformação da realidade em que vivem os alunos (DURAN, ARRUDA, 2013, p. 5).

Juntamente com os conteúdos do livro, os autores também abordam os temas transversais, como ética, saúde, meio ambiente e pluralidade cultural. Também discutem temáticas relacionadas à cidadania, temas sociais e o convívio familiar e escolar, considerando todos os contextos em que os alunos estão inseridos.

A atividade pedagógica com a literatura de cordel poderá ser realizada numa turma do 8º ano do ensino fundamental e levará em consideração o conteúdo que os alunos estavam estudando nas aulas de Ensino Religioso em um livro didático. No caso proposto como exemplo, o tema abordado no livro didático é O lugar das riquezas. A meta da aula deverá ser repensar as relações entre os valores materiais e espirituais, além de discutir a questão do consumismo, que está tão presente na sociedade contemporânea.

A proposta se concretizará por meio das discussões em sala de aula sobre o conteúdo do livro didático e, em seguida, será abordada a história da literatura de cordel, apresentando para os alunos vários cordéis com temáticas diferentes entre si.

Os alunos deverão se agrupar, discutir a relação que os cordéis têm com o conteúdo do livro didático e, após essas discussões, serão selecionados três cordéis que tratem do tema consumismo, discutido no conteúdo de Ensino Religioso. Dentre os folhetos que lidam com essa temática, podemos citar: Meio Ambiente e a Caatinga, do poeta Agostinho Francisco dos Santos, Os sete pecados capitais, do poeta Heliodoro Morais e O agregado, de Patativa do Assaré.

No cordel Meio Ambiente, em linhas gerais, o poeta apresenta uma discussão acerca de alguns conceitos relacionados ao Meio Ambiente, destacando os impactos que o homem, em sua ação consumista, provoca. Em seguida, faz um alerta voltado para o cuidado que devemos ter para a sua preservação.

O impacto ambiental
É uma grande mudança
Do nosso Meio Ambiente
Que a estrutura balança
É causada pelo homem
Sem pagar qualquer fiança
Esse impacto pode ser
Positivo ou negativo
Negativo representa
O romper definitivo
Do equilíbrio ecológico
Esse é o grande motivo
Que provoca prejuízos
Ao nosso Meio Ambiente
Poluindo alimentos
De forma muito aparente
Indústria, mineradoras
Estão ligadas na lista da gente.
É necessário portanto
A licença ambiental
Pra quem fez poluição
De uma maneira cabal
Pra reduzir os impactos
Com uma regra geral.
Os impactos negativos
São de nossas atitudes
Falta de educação
Dos ignorantes e rudes
Causando estes efeitos
Acabam rios e açudes.
(SANTOS, 2015, p. 09-10).

Dentro dessa perspectiva, as discussões envolvendo a literatura de cordel e os conteúdos do Ensino Religioso devem se intensificar, por parte dos alunos, com exemplos voltados à questão ambiental e do consumismo na sociedade atual, principalmente dentro do contexto socioambiental em que os alunos estão inseridos. Desse modo,

Os métodos de ensino têm que considerar em seus determinantes não só a realidade vital da escola (representada principalmente pelas figuras do educador e do educando), mas também a realidade sociocultural em que está inserida (RAYS, 1996, p. 86).

Outro cordel que também poderá ser trabalhado na aula é Caatinga. Nesse cordel, o poeta trata do bioma Caatinga de forma bem realista, provocando a refletirmos sobre nossas ações sobre a natureza, como elas alteram o ambiente e mostrando a realidade de um Bioma ameaçado pela ação humana irresponsável:

Outros crimes cometidos
Para indústria implementar
Não respeita nosso solo
A exploração de lascar
Querendo recursos hídricos
Botando pra arrebentar
Vem os combustíveis fósseis
Projeto de irrigação
Drenagem ser critério
Chega a salinização
No solo assoreamento
Com desertificação
A situação da ‘Caatinga’
É de Bioma ameaçado
Nível de desmatamento
Por todos está provado
A falta de proteção
O deixa muito abalado
É grande o desmatamento
Mais de cinquenta por cento
São dados do Ministério
Que também é muito lento
Permite a destruição
Por ser muito desatento.
(SANTOS, 2015, p. 05).

Nessa perspectiva, a questão da ameaça que o bioma está sofrendo está ligada ao consumismo, que é uma forma de ganância do homem, o qual não sabe utilizar de forma responsável os bens que a terra lhe oferece em seu favor. Em síntese, todo o cordel é uma denúncia que aponta para os maus tratos vistos na devastação do ambiente.

Ressaltamos ainda que o Meio Ambiente é o conjunto de seres vivos e animados que cercam o ser humano, incluindo este próprio, compreendendo as relações econômicas, sociais e culturais presentes na sociedade. Dessa forma, devemos fazer o educando refletir que, na medida em que cuidamos de todos esses setores, estaremos propiciando uma qualidade de vida melhor para todos e, assim, contribuindo para o equilíbrio ambiental.

Os sete pecados capitais, do poeta Heliodoro Morais é um cordel com temática religiosa, tratando dos sete pecados capitais que o cristianismo destaca em sua doutrina. Porém, alguns dos pecados capitais citados pelo poeta possuem uma relação com o consumismo.

O primeiro pecado capital
Diz respeito a insaciável “gula”
Um desejo infinito que circula
No limite do senso racional
Seu querer é acima do normal
Uma coisa qualquer de desperdício
Que expõe o guloso ao sacrifício
Dos valores morais e do salário
No consumo demais desnecessário
Em favor da carência do seu vício.
Esse mal, bem maior do que se pensa,
Tanto envolve o desejo por comida
Quanto a sede do copo de bebida
Onde a gula também marca presença
Vírus fértil da febre da doença
Que traduz compulsão ao consumismo
Induzindo ao total inconformismo
Quem quer tudo que vê na sua frente
Embrulhado na caixa de presente
Da cobiça sem par do egoísmo
Há sinais de desvios de virtude
E lampejos de pura incoerência
Na lacuna mental da consciência
De quem perde a noção de plenitude
Sua cura provém da atitude
De buscar no processo de mudança
O domínio da autoconfiança
Pra banir tal postura contumaz
E através do equilíbrio ser capaz
De agir com cautela e temperança.
Em segundo lugar vem a “ganância”
O mais tolo de todos os pecados
Que se apoia nos sonhos provocados
De grandeza, fartura e abundância
Procurando manter sempre à distância
As pessoas e eventos sociais
E apesar do que tem, quer sempre mais
Faz questão de brigar de ser escravo
Dos prazeres dos bens materiais
A ganância, essa irmã da avareza,
Busca tanto pra si que fantasia
Que a moeda, num toque de magia,
Faz surgir a fortuna, da pobreza
E alimenta a cobiça da riqueza
Pelo seu sentimento interesseiro
Faz do sonho, de ter, o seu coveiro
Eu, passando na vida de carona,
Faz o lago da morte vir à tona
E lhe afoga num rio de dinheiro
A ganância excessiva é coisa séria
Sinaliza a cortina de fumaça
Que se esconde no ego na desgraça
Da fortuna que faz sua miséria
O seu corpo, sem alma, é só matéria
Nesse cofre repleto de amargura
Pois a morte é quem abre a fechadura
Do portão do além que lhe espera
Onde vai ser mais pobre do que era
Sem levar um tostão pra sepultura.
(MORAIS, 2018, p. 2-4).

Nesse sentido, o pecado da gula está relacionado a comer além do necessário, sendo também uma das formas de consumo desregrado, tendo em vista que, ao consumir de forma exagerada, corremos o risco do desperdício. Dentro do contexto do pecado da gula, o desperdício seria de alimentos. Numa sociedade em que muitos não têm quase nada, devemos refletir que o que sobra na mesa pode faltar para alguém que não tem nada, sendo inclusive essencial para a sobrevivência.

A ganância também se relaciona intrinsecamente com o conteúdo do livro didático, uma vez que a mesma leva o homem a querer sempre ter mais: dinheiro, roupas, calçados, produtos eletrônicos e muito mais. Nessa aquisição descontrolada de produtos, muitas vezes, chegamos a descartar algo que daria para ser utilizado mais vezes. Esse pecado é cometido pelos corruptos, os agiotas, os sonegadores e todos aqueles que consideram o dinheiro como a única fonte de felicidade. Nas últimas estrofes (MORAIS, 2018), o poeta ressalva que a ganância não leva a salvação. Quando morremos, não levamos nada, somente os bens espirituais, que são as boas obras que fizemos na Terra.

Um outro cordel que poderá ser discutido neste contexto é o de Patativa do Assaré, cujo título é O agregado. Esse cordel traz uma reflexão sobre os contrastes que existem entre patrão e empregado:

Quem véve no luxo, somente gozando,
Dinheiro gastando sem mágoa e sem dor,
Não pensa, nem julga e também não conhece
O quanto padece quem mora a favor
Meu Deus! Como é duro se ouvi o lamento,
O grande trumento do triste agregado!
Oxente das coisa mais boa da vida,
De roupa rompida, sem cobre, coitado!
Os fio dizendo: — Papai, tou com fome!
E o pobre desse home a chora como loco,
Oiando a famia, tão magra e tão fraca
Na veia barraca de paia de coco.
Pra ele armoçá, é preciso premêro
Corre o dia inteiro, sadio ou doente,
Só acha um consolo, na sorte tão crua,
Nos beijo da sua muié paciente
Acorda bem cedo e do frio agasalho
Sai para o trabaio, de foice ou de enxada;
Assim padecendo crué abandono
Na roça do dono da casa caiada
Não crê nas promessa do rico opulento,
No seu sofrimento só pensa em Jesus,
Rogando e pedindo pra tê piedade,
Levando a metade do peso da cruz
As suas criança, pra quem tudo farta,
Não brinca, não sarta, não tem alegria,
Enquanto pinota na casa caiada
Feliz meninada, rebusta e sadia
Não vai à cidade, só véve lutando,
Limpando ou brocando, socado na mata
Ninguém lhe conhece, nem sabe o seu nome,
Se acanha com os home que bota gravata
Se às vez ele fica parado, escutando
Arguém conversando, falando de guerra,
Cochicha uma reza, baixinho, em segredo,
Tremendo com medo dos grande da terra
Assim ele véve, do mundo esquecido,
Com fome despido, a chorar como loco,
Oiando a famia tão magra e tão fraca,
Na veia barraca de paia de coco
(ASSARÉ, 2012, p. 339-340).

O termo “agregado” nos faz refletir sobre o abandono social em que muitas pessoas se encontram, sendo exploradas por uma minoria. Atrelada a esse abandono, podemos ver a questão da temática do consumismo, levando em consideração que muitos não têm nada, enquanto uma pequena minoria vive bem e nem se lembra dos mais necessitados.

Patativa do Assaré destaca a desigualdade social que existe, transparecendo na vida precária que o agregado leva com sua família. Faltam os bens mais básicos, como roupa, barraca, comida etc. Assim, podemos perceber uma das consequências do consumismo: a desigualdade social se concretiza no abandono dos mais necessitados.

Percebe-se a integração e a socialização da literatura de cordel com o conteúdo do livro didático, a saber, O lugar das riquezas, que discute o consumismo na sociedade atual. Os três cordéis mencionados, de formas diferentes entre si, abordam a temática do consumismo em diferentes aspectos, do ambiental ao religioso.

Nessa perspectiva, podemos encontrar, ainda, cordéis que falam sobre o próprio Ensino Religioso, os conteúdos que fazem parte dessa disciplina e as bases legais e jurídicas que a inserem como área do conhecimento nas séries da Educação Básica nas escolas públicas.

Como exemplo de literatura de cordel relacionada à temática do próprio Ensino Religioso tem-se o cordel produzido pelo poeta Hélio Gomes Soares, que assina seus cordéis com o pseudônimo de Hegos, cujo título é O que é Ensino Religioso? (SOARES, 2010). Esse cordel apresenta a diversidade de crenças religiosas existentes no Brasil:

VIII
Ensino Religioso
Assegura o respeito
À nossa diversidade
Cultural sem preconceito
De crenças religiosas
Ou valores do sujeito
IX
Não fazer proselitismo
Diz o artigo trinta e três
Dessa Lei que estou falando
E explicando pra vocês
Mas não quero ver ninguém
Se calar por timidez
X
Quero ouvir vocês falando
Respondendo a questão
O que é proselitismo?
Vocês sabem? Sim ou não?
Se não sabem vou dizer
Prestem bem muita atenção
XI
Professor que faz sermão
Condenando outra crença
Que impõe seu pensamento
Sem ouvir que outro pensa
Acha o dono da verdade
Não respeita a diferença
XII
Isso é proselitismo
Não é papo pra escola
Professor que é educador
No dever nunca se enrola
Nem prega religião
Muito menos se bitola
XIII
No Brasil tem muitas crenças
Cada uma com seus ritos
Todas elas têm mistérios
Com fenômenos e mitos
Profetas e mensageiros
E sagrados manuscritos
XIV
Das crenças que têm aqui
Muita gente é cristã
Mas também têm muçulmanos
Seguidores do Islã
Tem gente no judaísmo
E na seita de Satã
XV
Além dessas no Brasil
Se encontra o espiritismo
A Umbanda e o Candomblé
O Xamã e o hinduísmo
Que das bandas do oriente
Veio Tao como o budismo.
(SOARES, 2010, p. 3-5).

É importante ressaltar que o Brasil é formado por várias tradições religiosas que precisam ser valorizadas em suas particularidades, não somente na sala de aula, como também na sociedade de forma geral. Nesse contexto, Soares (2010) mostra que o Ensino Religioso é um saber que tem características próprias do campo religioso, que precisam ser socializados em sala de aula de forma a contemplar democraticamente o pluralismo religioso presente na sociedade.

Desse modo, é nas aulas do Ensino Religioso que os alunos terão a oportunidade de conhecer a diversidade religiosa que existe em seu meio e, assim, contextualizar suas próprias crenças e valores, frutos de suas heranças culturais. Dentro desse cenário de respeito às diferenças podemos perceber a questão da intolerância religiosa, que deve ser discutida nessas aulas.

Quando discutimos a intolerância religiosa, levamos em consideração a cultura da paz, que é um assunto imprescindível na sala de aula, tendo em vista que, ao promovermos uma cultura de paz, estamos também promovendo o respeito em relação ao outro. Assim, ao trabalhar com a cultura da paz, lembramo-nos dos promotores da paz, que são homens e mulheres que em vida fizeram algo para promover a fraternidade e a paz, sendo lembrados até hoje pelo mundo.

Como exemplo de cordel sobre essa temática, há o Cordel da Paz, de autoria do poeta Romero Meneses, que fala da paz seus promotores:

Convido a sociedade
Para a marcha mundial
Onde a paz do ser humano
É o tema principal
Pelo senso de urgência
Ações de não violência
Seja o nossa ideal
Invoco Mahtma Gandhi
Luter King e outros mais
Na luta por liberdade
E direitos sociais
Presentes pela memória
Unindo nossa história
No mesmo sonho de paz
A nossa luta de paz
Pra toda humanidade
É feita pelo diálogo
Com interatividade
Cada qual com sua arte
Vem fazer a sua parte
Com mais criatividade.
Para se chegar na paz
É preciso um novo olhar
Entender que cada ser
Navega no mesmo mar
Que cada um é irmão
Na mesma embarcação
Aprendendo a navegar
Resgatar valores simples
A família a amizade
Afeto pelos humildes
O respeito a lealdade
Uma cultura de paz
A gente mesmo é quem faz
Na solidariedade
Unir as próprias idéias
Encontrando soluções
Solucionar conflitos
Propondo transformações
Sermos todos plantadores
Aprendendo a plantar flores
Nos jardins dos corações
[...] (MENESES, 2009)

Nesse cordel, podemos discutir assuntos relacionados à questão do respeito, diversidade, amor, amizade, questões políticas, étnicas e tantos outros temas pertinentes à sociedade de um modo geral. O importante é motivar o aluno a fazer conexão entre o conteúdo de Ensino Religioso e o tema que o cordel aborda, associando-os, consequentemente, ao contexto em que está inserido.

Nas estrofes seguintes, o poeta destaca a importância de construir a paz, de forma que o outro se beneficie, que façamos atos de humanismo, levando em consideração que “somos todos passageiros/da nave da existência/sujeitos a tempestades/da nossa inconsciência [...]” (MENESES, 2009). Ainda a partir dessa estrofe, podemos discutir assuntos relacionados à existência, refletindo sobre a vida e os valores que cultivamos durante esta passagem aqui na Terra.

Diante das discussões, podemos compreender que os temas presentes dentro da literatura de cordel têm conexão com os assuntos do Ensino Religioso, o que pode fazer com que os alunos compreendam de forma satisfatória esses conteúdos e possam também contextualizá-los com o ambiente da sociedade como um todo.

Assim, dentro desse contexto, ao se trabalhar com a literatura de cordel nas aulas de Ensino Religioso, o professor deve explorar as possibilidades que o cordel pode proporcionar, como, por exemplo, trabalhar a oralidade dos alunos, a cultura popular do Nordeste e outras regiões do Brasil, a religiosidade presente nos cordéis e outros assuntos que fazem parte do cotidiano da sociedade.

Deve-se destacar a importância de conhecer a história do poeta e seu contexto para podermos ter uma compreensão dos assuntos abordados no cordel. Como sabemos, os cordéis retratam fatos da realidade que não dizem respeito só ao poeta, mas também ao meio em que este viveu ou vive.

Salientamos ainda que, ao se trabalhar com a literatura de cordel, estaremos valorizando a cultura popular. Nesse sentido, destaca-se:

Experiências culturais fortes e determinantes de grandes obras artísticas como o Cordel – seu valor não está apenas nisto – estão praticamente esquecidas e a escola pode ser um espaço de divulgação destas experiências. Sobretudo mostrando o que nelas há de vivo, de fervescente, como ela vem sobrevivendo e adaptando- -se aos novos contextos socioculturais. Como elas têm resistindo em meio ao rolo compressor da cultura de massa (MARINHO, PINHEIRO, 2012, p. 128).

Ainda dentro desse contexto, é necessário enfatizar e, ao mesmo tempo, apresentar algumas sugestões de atividades que podem ser realizadas na sala de aula. Destaca-se:

[...] uma boa estratégia é a realização de uma Feira de Literatura de Cordel. A Feira pode ser realizada em uma tarde, uma amanhã, durante um dia; por exemplo, ser uma atividade específica, mas também figurar dentro de uma semana cultural, artísticas etc. Ela pode compreender diferentes atividades: Folheteiros vendendo seus folhetos; Emboladores e violeiros cantando, fazendo desafios, improvisado; Exposição de xilogravuras e de folhetos antigos e/ou novos; Murais com reportagens sobre cordelistas e literatura de cordel em geral; Palestras e oficinas de criação de poemas de cordel, realizadas por poetas locais (MARINHO, PINHEIRO, 2012, p. 132).

Nessa perspectiva, o professor tem várias possibilidades de realizar um trabalho interdisciplinar na disciplina de Ensino Religioso com o uso da literatura de cordel. Desse modo, ao trabalhar com os conteúdos da disciplina de Ensino Religioso, o professor propiciará ao aluno contato com saberes do campo religioso, ético e moral, como também, um meio de interação, socialização e prazer.

Conclusão

Tendo em vista as discussões acerca do Ensino Religioso, da literatura de cordel e também dessa expressão poética-literária nas aulas de Ensino Religioso como uma forma de construir uma ponte entre os saberes das disciplinas, percebemos que é possível o professor de Ensino Religioso aplicar uma aula em que os alunos possam ter a oportunidades de aprender diversos conteúdos numa aula poética e dinâmica.

Ao se trabalhar nas aulas de Ensino Religioso com esse tipo de literatura, em forma de poema, o professor não só está proporcionando aos alunos o conhecimento de diversidades religiosas como também, o aluno terá a oportunidade de resolver algumas dificuldades que existe em seu processo de aprendizagem, como a leitura, a escrita, a produção textual, a socialização, o respeito e a valorização diante do diferente.

Por fim, afirma-se que a literatura de cordel possui uma forte diversidade religiosa. Uma diversidade ligada a religiosidade popular, a poesia, a cultura popular e ao cotidiano do cidadão. Essa diversidade poderá ser uma ponte para a construção de espaços de aprendizagem dentro da disciplina Ensino Religioso escolar.

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