Teologia e Literatura no universo das histórias em quadrinhos – 2ª. Parte

Carlos Ribeiro Caldas Filho
Antonio Manzatto
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A relação da teologia com a literatura encontra-se amplamente estabelecida, a partir de diferentes abordagens teórico-metodológicas e aproximações hermenêuticas. Prova inconteste desta afirmação é a própria existência de Teoliterária – Revista de Literaturas e Teologias, que há anos serve como veículo para partilha e socialização de trabalhos acadêmicos nesta interface. Não sem razão Teoliterária é periódico amplamente aceito, muito bem avaliado pelos órgãos governamentais responsáveis pela constante aferição da qualidade dos programas de pós-graduação stricto sensu no Brasil, e suas respectivas revistas.

Quando os editores de Teoliterária tomaram a decisão – ousada, diga- -se de passagem – de publicar um dossiê sobre a temática Teologia e literatura no universo das histórias em quadrinhos não pensaram que o sucesso seria tanto e que o número de submissões seria tão elevado a ponto de ser necessário desdobrar o número temático, publicando-o em duas edições consecutivas. Pensou-se que haveria um único dossiê com esta temática, com quatro ou cinco artigos. Mas para surpresa geral de todos, houve literalmente dezenas de submissões. Esta exuberância provocou não apenas surpresa, mas também alegria, pois os aficionados da nona arte não poderiam ter outro sentimento a não ser profunda satisfação ao ver aumentar o reconhecimento acadêmico de um diálogo que até há pouquíssimo tempo seria considerado impossível. Acadêmicos “integrados” (para usar a categoria criada pelo intelectual italiano Umberto Eco) não admitem a possibilidade de diálogo acadêmico entre um campo do saber “sério”, como a crítica literária – ou a teologia – com uma literatura tida como de qualidade inferior, como as histórias em quadrinhos. Mas aos poucos esta xenofobia acadêmica e este etnocentrismo intelectual, por assim dizer, vão sendo desafiados e estão sendo cada vez mais deixados de lado. A literatura das histórias em quadrinhos é tão “séria” como qualquer outra.

Portanto, temos agora a segunda parte deste dossiê, que, assim como a primeira, publicada em agosto último, apresenta grande riqueza e densidade na variedade dos temas apresentados e nas análises dos temas trabalhados.

Abre o dossiê o artigo de Cristine Fortes Lia e Daniel Clós Cesar intitulado Agora sei falar: o judaísmo em O Gato do Rabino. O artigo é uma análise da HQ feita por Joann Sfar, quadrinista judeu francês. O judaísmo, a despeito de sua antiguidade e importância na formação do universo simbólico-cultural do Ocidente, segue sendo em grande medida um ilustre desconhecido mesmo em círculos acadêmicos de estudos de religião. A referida HQ apresenta uma curiosa e divertida introdução ao judaísmo, através de uma fantasia sobre um gato na Argélia, então colônia francesa no início do século passado que pertence à filha de um rabino. O gato devora um papagaio, e adquire o dom da fala. Seguem-se diálogos interessantíssimos e inteligentíssimos entre o gato, mordaz e crítico, e o rabino pai de sua dona. O artigo de Cristine Fortes Lia e Daniel Clós Cesar aborda com muita propriedade esta história HQ.

Reino do amanhã – Kingdom come no original – de Mark Waid (roteiro) e Alex Ross (arte) é uma das HQ’s mais cultuadas de todos os tempos, ocupando lugar de destaque no “Santo dos santos” do mundo da cultura pop. Na primeira parte deste dossiê tivemos artigo que explorou o aspecto messiânico do Superman na referida história. Agora nesta segunda parte temos outro artigo sobre a mesma história, que se torna cada vez mais icônica. Desta feita, os estudiosos Anderson Luciano Cruz e Paulo Henrique Pinheiro Barbosa Cruz abordam a mesma HQ, porém a partir de ponto de vista diferente do mencionado artigo da primeira parte deste dossiê. Em Religiosidade, linguagem e significação: considerações sobre os aspectos religiosos presentes na capa do romance gráfico Reino do Amanhã, Anderson e Paulo Henrique trabalham, a partir da semiótica, tal como expresso no título de seu artigo, os elementos religiosos presentes na capa da celebrada graphic novel.

Quem tem um mínimo de familiaridade com o mundo das HQs já ouviu falar de Stan Lee, o “mago” da Marvel, falecido no ano passado com quase cem anos, o criador de personagens famosíssimos amados por bilhões de pessoas ao redor do planeta. Certa feita, entrevistado sobre qual seria sua criação favorita, Stan Lee respondeu que era o Surfista Prateado – Silver Surfer no original (na verdade, o Surfista Prateado, assim como vários outros personagens da Marvel, são co-criação de Stan Lee e Jack Kirby, outro gênio do mundo dos quadrinhos). Lee e Kirby imaginaram um humanoide chamado Norrin Radd, habitante de Zenn-La, um mundo de tecnologia avançada que superou a condição de guerra e desigualdade social da Terra. Por circunstâncias, Norrin Radd é transformado no Surfista Prateado, um ser que singra o espaço em uma prancha de surfe, e vem parar na nossa Terra. Não são poucas as questões filosóficas, religiosas e teológicas presentes nas histórias do galante navegador solitário do cosmos que quer a todo custo voltar para o seu planeta natal, mas não consegue. Estas questões são apresentadas no artigo do jovem estudioso de religião Romero Carvalho em seu artigo O elemento religioso no Surfista Prateado, o terceiro deste dossiê.

Talvez o Surfista Prateado não seja conhecido de muitos que não sejam leitores frequentes de HQs. Mas mesmo estes já ouviram falar do Batman, criado pelo quadrinista estadunidense Bob Kane há exatos 80 anos. Poucos heróis e super-heróis do mundo dos quadrinhos conseguiram tanta fama quanto o Batman. Pois o Batman é o tema do quarto artigo deste dossiê, de autoria de Emerson Sbardelotti, que apresenta a busca da e a luta pela justiça do “Homem Morcego” como um lócus teológico.

O quinto artigo do dossiê é de autoria de Daniel Rocha, historiador e estudioso do protestantismo estadunidense, e tem por título There’s a new world coming: o dispensacionalismo pop nos quadrinhos. There’s a new world coming – algo como “um mundo novo vem aí” (literalmente, “há um mundo novo chegando”) é o título de uma HQ publicada nos Estados Unidos em 1974. Esta HQ é uma popularização da visão escatológica futurista dispensacionalista pré-milenista que é adotada por amplos setores doevangelicalismo da grande nação do norte, e que também tem não poucos seguidores entre evangélicos “clássicos” e pentecostais na América Latina, tanto a de expressão espanhola como a de expressão portuguesa.

Felipe Ribeiro Cazelli, estudioso do elemento religioso na cultura pop é autor do sexto artigo do presente dossiê: No dia mais claro, na noite mais densa: mito e religião nos quadrinhos do Lanterna Verde. Este personagem, integrante da famosa Liga da Justiça, a equipe de super seres da DC, foi criado nos anos de 1940, e “revitalizado” na primeira década dos anos 2000 graças aos trabalhos do roteirista Geoff Johns e do desenhista brasileiro Ivan Reis. O conceito do Lanterna Verde é interessante por demais: nesta mitologia, o universo está dividido em setores, ou quadrantes, e cada um deles é vigiado por uma espécie de polícia espacial. Cada tropa destas tem uma cor, e cada cor simboliza uma virtude. O nosso planeta Terra pertence ao Setor 2814, vigiado pela Tropa dos Lanternas Verdes. Cada integrante da tropa usa um anel de poder, que no caso dos verdes é a energia da força de vontade. Em seu artigo Cazelli explora o simbolismo do anel, presente em muitas mitologias antigas, e também em obras literárias modernas, como O Senhor dos Aneis, de J. R. R. Tolkien, para apresentar elementos religiosos presentes neste personagem.

Um terceiro integrante da Liga da Justiça é o tema do sétimo artigo do dossiê: o Superman, o único capaz de rivalizar com o Batman em termos de popularidade. Francisca Jaquelini de Souza Viração é autora de Olhem lá no céu: Superman e o profetismo judaico. Já se produziram não poucas leituras do Superman que viram o super-herói como uma figura – para usar a categoria do crítico literário alemão Erich Auerbach – de Jesus Cristo. Francisca Jaquelini apresenta uma leitura diferente: para a autora, o Superman é uma figura sim, não do Messias cristão – Jesus – mas dos profetas hebreus.

Por fim, o último artigo do dossiê, de autoria de Rogério Gonçalves de Carvalho, apresenta tema não muito usual: os heróis do underworld, o mundo dos ínferos, isto é, o mundo inferior, associado às trevas. Não é comum encontrar estudos que abordem tais personagens. Como exemplos, Rogério Carvalho apresenta Spawn, cujo epíteto é “soldado das trevas”, Hellboy, de Mike Mignola, um demônio criado por humanos para combater entidades malignas, e o exorcista John Constantine.

Aos poucos está sendo formado no Brasil um corpus de textos acadêmicos que exploram o diálogo entre a teologia e os estudos de religião com o mundo da cultura pop ou nerd. Já há alguns livros que tratam desta interface. Certamente haverá mais. Teoliterária, com sua ousadia editorial, tem contribuído decisivamente para que este diálogo tenha sua legitimidade acadêmica cada vez mais reconhecida em nosso país

Como de hábito, além da publicação do dossiê, Teoliterária abre espaço para também publicar produções que tratam, por viés distinto, do diálogo entre teologia e literatura e, mais amplamente, entre religião e arte. Assim sucede também no presente volume, com uma série de artigos que contemplam horizontes distintos, mas pertinentes, dessa interface.

Assim temos, na sequência o estudo de Douglas Ferreira Barros e Carlos Campêlo da Silva que relacionam, com características também filosóficas, pensadores do porte de Kierkegaard e Camus no cruzamento da afirmação da fé e do sentimento derevolta. Tanto Kierkegaard quanto Camus são referências constantes nos trabalhos acadêmicos contemporâneos, e relacioná-los é tarefa bastante promissora, como mostra o artigo.

A mística de Tereza d’Ávila também é constantemente trabalhada em nosso país, mas aqui Lúcia Pedrosa-Pádua o faz, de maneira criativa e instigante, a partir de uma referência literária bem específica, qual seja a prosa da parábola do bicho da seda. Na sequência, Marcio Cappelli apresenta sua reflexão teológica a partir do Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago, personagem de respeito no universo da literatura. Que em suas obras transpareça uma teologia ficcional, para utilizar a terminologia do autor, é o que o artigo apresenta de maneira bastante interessante.

Wilma Steagall de Tommaso amplia o horizonte de nossa reflexão ao trazer seu estudo sobre a arte que exprime o sagrado na relação entre arte sacra e liturgia. O contexto, portanto, é muito mais amplo, contemplando uma reflexão que vai para além da relação entre teologia e literatura e mergulha no diálogo aberto entre arte e religião. De volta à literatura, Sérgio Carvalho de Assunção oferece uma reflexão sobre a poesia de Jorge de Lima e Murilo Mendes, poetas que também são amplamente trabalhados em nosso meio, mas aqui ele introduz o conceito de poesia beatífica, apresentando uma chave de leitura interessante para o trabalho de ambos os poetas.

Elton Emanuel Brito Cavalcante nos conduz ao universo de Ricardo Guiraldes, mergulhando em uma das novelas do literato argentino para nos conduzir a um paralelo com nossa realidade contemporânea, cheia ela também de misérias e esperanças. Em seguida incluímos o trabalho de José Diógenes Dias Gonçalves que reflete sobre a responsabilidade das religiões nos conflitos vividos pela humanidade e seu necessário engajamento na construção da paz, sendo seu caminho guiado pelo literato russo Liev Tolstói. Encerrando este número de Teoliterária, retomamos a prática da publicação de resenhas de livros publicados no horizonte do diálogo entre teologia e literatura. Assim, Glaucio Souza apresenta o trabalho de Certas Canções, de Antonio Manzatto, relacionando o pensamento religioso e teológico com o universo da música popular brasileira.

Apresentamos, assim, uma gama variada de temas e autores, todos relacionados com o trabalho que se faz na pós-graduação do país. Também por isso, a partir desse ano, a revista passou a ser quadrimestral, ampliando as possibilidades de publicação dos trabalhos acadêmicos produzidos na área. Pensamos que, dessa maneira, Teoliterária pode exercer seu papel de ser veículo de comunicação entre pesquisadores de distintas instituições, favorecendo o intercâmbio, o diálogo e a troca de ideias no desenvolvimento das relações entre teologias e literaturas.