Danilo Dourado Guerra* Emivaldo Silva Nogueira**
*Doutorado (2018) e mestrado (2015) em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, com estágio doutoral sanduíche na Università Degli Studi di Padova, Itália (2017). Bolsista CAPES PROSUC/ PDSE. Bacharelado em Teologia pelo Seminário Teológico Batista Nacional - SETEBAN-GO (2009- 2011) e pela Faculdade da Igreja Ministério Fama-FAIFA (2012- 2012).
**Doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) - PDSE -Pontifícia Universidade Católica do Chile (PUC Chile). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás).
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Resumo:
Nesse texto, na tentativa de compreensão do conceito metodológico de autodiscernimento encontrado na filosofia proposta por Abraham Joshua Heschel, objetivamos atentar para a sua compreensão do conceito de “Homem”, uma vez que o autodiscernimento pressupõe o homem que procura a sua essência transcendental. E mais ainda, para Heschel, a filosofia tem a função de analisar a religião como responsável pelas respostas fundamentais do homem, quando a religião deixa de fazer isso, ou ela se tornou ineficaz ou o homem moderno se tornou animalizado, indiscernido. Estrutura-se, pois, o fenômeno do Eclipse de Deus na modernidade. Inventariar tais matizes filosóficos à luz de Abraham Joshua Heschel torna- -se o desafio por nós proposto na senda sequencial deste artigo.
Palavras chave: Heschel, autodiscernimento, homem, religião, filosofia.
Abstract
In this text, in an attempt to understand the methodological concept of self- -discernment found in the philosophy proposed by Abraham Joshua Heschel, we aim to pay attention to his understanding of the concept of “Man,” since self-discernment presupposes the man who seeks his transcendental essence. Moreover, for Heschel philosophy has the function of analyzing religion as responsible for man’s fundamental answers when religion fails to do so, either it has become ineffective or modern man has become animalized, indiscernitant. The phenomenon of God’s Eclipse in modernity is therefore structured. To inventory such philosophical nuances in the light of Abraham Joshua Heschel becomes the challenge we propose in the sequential path of this article.
Keywords: Heschel, self-discernment, man, religion, philosophy.
Nascido em Varsóvia, na Polônia, no dia 11 de janeiro de 1907, Abraham Joshua Heschel estava inserido no seio de uma família tradicionalmente judaica. Assim, desde cedo, adquiriu um conhecimento profundo das tradições, sobretudo do hassidismo.1Emergente dessa tradição ampliou, a partir dela, sua reflexão e veio a se tornar um dos maiores expoentes do pensamento judaico, sobretudo quando da questão do diálogo inter-religioso.
O hassidismo, mesmo sendo um círculo restrito, não foi capaz de manter Heschel dentro de seus limites. Aos 17 anos, optou pelo curso secundário “secular” moderno, com o intuito de chegar à Universidade, algo para além das perspectivas de um judeu tradicional da Polônia naquela época. Ele sentia que o ambiente religioso de um pietismo místico não conferia espaço para a influência da sociedade moderna sobre seus membros. Mas, Heschel recebeu apoio da família.
Seguiu então para Vilna, onde se matriculou no Yidish Realgymnasum e começou a participar de um grupo de Poesia Yidish, quando publicou a coletânea Der Shem Hamefoiresh: Mensh (O Nome Divino: Humano), em 1933. Destacamos que
os primeiros estudiosos da obra hescheliana pouca importância conferiram a este primeiro livro de Heschel. Imaginavam que por se tratar de uma obra literária, pouca relevância teria para a compreensão de seu pensamento. Podemos dizer que este ponto de vista predominou até os anos 70 (LEONE, 2002, p. 29).
Entretanto, trata-se da primeira síntese entre sua herança hassídica e a modernidade, estando já presentes os principais conceitos que ele trabalharia anos mais tarde. Nesta coletânea, apareceu o fundamento do pensamento hescheliano, onde o método e conceito do autodiscernimento já era a base de seus escritos, e a preocupação com o homem2 era uma constante. Para Heschel, segundo Leone, na coletânea Der Shem Hamefoiresh: Mescheh (O Nome Divino: Humano), já “transparece pela primeira vez a ideia hescheliana que o homo sapiens somente desperta para o humano, que lhe é imanente, quando desperta para o encontro com Deus” (LEONE, 2002, p. 29). A visão filosófica-religiosa de Heschel sobre o homem é que ele é a manifestação imanente do Divino em cada fenômeno do universo e em cada ação humana. Mas com o advento da modernidade, outro processo foi iniciado pelo fato de que a civilização, dita moderna, não se dá conta de que quanto mais se afasta dos valores transcendentais, mais está incentivando a desumanização.
Em Weber, a modernidade é um feixe de processos econômicos complexos e entrelaçados. Esses processos abrangem os aspectos: econômicos, políticos, culturais e subjetivos da sociedade. Ao observar a sociedade como um conjunto de linhas de forças que se dão e se movem constantemente em tensões e problemas de continuidade, o sociólogo estabelece um paralelo entre a concepção científica3 e a concepção religiosa do ator social e de seu mundo. Em sua concepção, o progresso científico é a mais importante fração do processo de intelectualização, que também pode ser visto como um processo de desencantamento4 do mundo, pois nele não há mais forças misteriosas incalculáveis, tudo pode ser dominado pelo cálculo e pela técnica (WEBER, 1982, p. 165). O desencantamento do mundo é o anúncio da crise da religião como fator de explicação do real, a dessacralização da realidade advinda com surgimento da ciência moderna. Nesse contexto, a modernidade tira Deus e coloca o homem no centro, remove a religião em detrimento da ciência. A noção de homem, ou humanidade passa a ser a fonte de valores para se justificar as realidades, não mais o divino.
Dentro dessa atmosfera de mutação social, o método hescheliano do autodiscernimento é considerado na perspectiva do encontro pessoal com sua imagem divina, uma vez que o homem é humano e divino, trará a dignidade que é uma das principais preocupações de Abraham Joshua Heschel. Neste sentido, suas obras podem ser interpretadas como a de um radical filósofo religioso, que buscou salvaguardar a santidade humana frente à barbárie.
Esta observação merece atenção, especialmente pelo fato de que Heschel viu a tarefa do filósofo da religião não como construção de uma “religião da razão”, que se baseia em fontes não-judaicas, nem na análise de “experiência religiosa”. A primeira tarefa substituiria a religião5 ; já a segunda se tornaria semelhante à psicologia da religião, sendo este um dos grandes problemas entre religião e fé no século XIX e que suas fumaças chegaram até nós e necessitam de uma distinção. Para Heschel:
a filosofia da religião deve ser exercida de dois modos: como radical discernimento de religião em termo de seu próprio espírito e como uma nova avaliação crítica da religião do ponto de vista da filosofia. Isso representa um esforço da religião para justificar suas reivindicações; para demonstrar sua eficácia, não meramente sua relevância, persistindo, portanto, como um método de esclarecimento, exame e eficácia, mais do que uma origem de insights fundamentais (HESCHEL, 1975, p. 24).
Trabalhar a filosofia judaica proposta por Heschel apenas racionalmente, quando se está comprometidos somente em apreender algo sobre o mundo, é diferente do que ele propõe, a saber, uma filosofia da religião situacional, e isso implica que o homem esteja totalmente envolvido nas temáticas, além de ter como princípio a imparcialidade e a estupefação (HESCHEL, 1975, p. 18). Para o filosofo, é necessário um envolvimento, sendo testemunha daquilo que fala, escreve e vive. Desta forma, o filósofo não escreve e fala de coisas não empíricas, dando respostas a problemas que não o tocam, mas é, antes de tudo, aquele que precisa comungar consigo mesmo, com aquilo que fala e acredita ser. “E assim, por exemplo, o problema da filosofia religiosa não é como um homem atinge um conhecimento a respeito de Deus, mas, antes, como podemos nós atingir um conhecimento a respeito de Deus” (HESCHEL, 1975, p. 18). É este pensamento que Heschel tomou para sua filosofia do autodiscernimento.
Ao escrever isso, Heschel pretende penetrar e iluminar a religião judaica em sua realidade subjacente, a relação viva e dinâmica entre Deus e o homem, através da compreensão empática dos documentos da tradição de Israel e da experiência do judeu religioso. Embora Heschel trouxesse para esta tarefa as ferramentas da filosofia moderna, apontou, repetidamente, que nenhuma quantidade de análise racional poderá esgotar a riqueza e a plenitude desta realidade, destacando, portanto, o fato de que a própria razão revela seus próprios limites e que a qualidade inefável do Divino não pode ser completamente reduzida a qualquer esquema de categorias conceituais, porque o homem apreende mais do que pode compreender.
É possível confirmar que os estudos desenvolvidos por Heschel contribuíram para a formação de sua filosofia do judaísmo, expressa em um dos seus livros fundamentais, intitulado, “Deus em Busca do Homem” (1975), do qual tomamos como base para essa exposição. Nessa obra, toda a filosofia de Heschel está marcada por uma insistência no valor da experiência, do momento vivido, do insight e da intuição e a religião é definida como a resposta para as perguntas fundamentais do homem. E ao tentar recuperar as questões existenciais importantes, para as quais o judaísmo oferece respostas, Heschel elaborou uma Teologia de Profundidade, ou seja, uma Teologia6 que vai abaixo dos fenômenos de superfície de dúvida moderna, e resulta numa abordagem humanística para o Deus pessoal da Bíblia, que não é nem uma abstração filosófica, nem uma projeção psicológica, mas uma realidade viva que tem um interesse apaixonado por suas criaturas.
Heschel se propõe a pesquisar a profundidade da fé, determinado em apreender o que as pessoas expressam, o que não expressam e também “os insights” que nunca foram declarados. Mas, o que vem a ser um autodiscernimento? E o que significa insight?
O autoconhecimento ou o autodiscernimento tem sido, de vários modos, a preocupação central da filosofia (a primeira de três máximas inscritas no portal do Templo de Apolo em Delfos era ‘conhece-te a ti mesmo’). Sua importância tem sido enfatizada por Sócrates e Platão (HESCHEL, 1975, p. 19).
Para Heschel, o conceito de autodiscernimento ou autocompreensão radical7 , pode ser compreendido como um “pensamento a respeito de pensamento”, ou seja, um processo de introspecção. Nesta ação, o eu profundo discernido se estabelece sob duas perspectivas; o insight e a interpretação8 desses insights através de símbolos9 e conceitos.
A autocompreensão radical deve admitir não somente os frutos do pensamento, isto é, os conceitos e símbolos, mas também a raiz do pensamento, a profundidade do discernimento, os momentos de proximidade na comunhão do eu com a realidade (HESCHEL, 1975, p. 20).
Insight é entendido como aquele que não se enquadra dentro dos limites dos métodos comuns; por isso ele ficaria mais bem colocado como um método de revelação. O insight é a surpreendente e inesperada descoberta de uma verdade, cuja estruturação se opera no subconsciente ou mesmo no inconsciente. São coisas que sabíamos, em momentos e circunstâncias fortuitos, enchendo-nos de pânico ou indizível alegria. Matemáticos, cientistas, artistas, escritores, profetas e filósofos tiveram insights, no transcorrer de suas vidas. Em maior ou menor escala, todos nós já o experimentamos. Arquimedes, o grande matemático grego, surpreendido por uma descoberta científica, e esquecido das conveniências sociais, percorreu, euforicamente, as estreitas ruas de Atenas, gritando, em voz alta: “Acabei de achar, acabei de achar...”.
Ao descobrir a lei da relatividade, um violento insight prostrou o sábio Einstein, no leito, por 14 dias! Newton foi contemplado por um insight ao ver caindo da macieira uma maçã, o que o levou a descobrir a lei da gravidade. Dá-se o insight, ao resplandecerem, no horizonte da nossa inteligência, os esplendores de uma verdade clara. Insight – In, dentro; sight, visão – É uma visão dentro do estalo, é o rápido penetrar duma clara, e inesperada realidade (SILVA, 1999, p. 55). Para rememorar esses insights fundamentais do judaísmo, Heschel procura “não cair no escolasticismo da filosofia grega, de tentar adaptar o que é vago a uma categoria lógica exata” (HESCHEL, 1975, p. 21).
Pois esse também foi um dos erros graves da Ontoteologia10, que, por não discernir intimamente os insights, separou o ato de crer do conteúdo da crença, e não há possibilidade de estudar a fé sem estudar o homem, manifestando-a em seus ritos e celebrações.
Muitos pensadores ocidentais esqueceram essa dupla origem do homem, estimando que a origem “celestial” era da alçada exclusivamente da fé e que somente o “terrestre” poderia ser objeto de experiência e de prática. Foi a partir de visões assim que o homem moderno se tornou a fera mais indomável da história humana. Ora, a origem celestial do homem faz parte de seu ser essencial; assim, na profundidade de seu ser, ele participa do Ser divino e pode tornar-se consciente de tal participação, em experiências particulares, em rememoração do insight fundamental. A matéria e o espírito, o essencial e o existencial têm uma só e mesma origem; a dificuldade e a ascese consistem em não opor uma dimensão à outra ou desenvolver um aspecto do ser humano em detrimento do outro. Trata-se de harmonizar o interior com o exterior, o essencial com o existencial, reencontrar o transcendente.
Foi também por estas observações feitas na sua comunidade judaica, a qual se encantava com o desenvolvimento da modernidade e esquecia-se de sua identidade, que Heschel propôs um autodiscernimento no judaísmo, uma anamnése (zikaron = hebraico) da vivência da fé. Sem um autodiscernimento é inconcebível falar ou viver da fé, de Deus, ou de outra coisa se a pessoa não estiver totalmente envolvida na intimidade profunda com o insight, com Deus, com o mistério, ou com aquilo a que se propôs falar, pois o importante é a rememoração dos insights, esse “ir-e-voltar” entre o céu e a terra, o interior e o exterior, o material e o espiritual; esse “ir-e-voltar” que é próprio do humano divinizado. Não é suficiente apenas descrever uma ideia a respeito da fé, de Deus ou da religião, como também “não se pode penetrar a consciência do homem devoto sem antes entender a realidade que existe por trás desta devoção, o substrato essencial da fé,” numa vida que se coloca no horizonte divino.
Nesse texto, na tentativa de compreensão do conceito metodológico de autodiscernimento encontrado na filosofia proposta por Abraham Joshua Heschel, é fundamental que antes atentemo-nos para a sua compreensão do conceito de “Homem”, uma vez que o autodiscernimento pressupõe o homem que procura a sua essência transcendental, e mais ainda, a filosofia, para ele, tem a função de analisar a religião como responsável pelas respostas fundamentais do homem, quando a religião deixa de fazer isso, ou ela se tornou ineficaz ou o homem moderno se tornou animalizado11, indiscernido. Estrutura-se, pois, o fenômeno do Eclipse de Deus na modernidade. Inventariar tais matizes filosóficos à luz de Abraham Joshua Heschel torna-se o desafio por nós proposto na senda sequencial deste artigo. Caminhemos!
A tentativa de identificar quem é o homem não é uma tarefa simples e nem muito menos nova. Aliás, há muito tempo, diversos pensadores vêm tentando encontrar o melhor conceito para designar o homem em toda a riqueza de suas dimensões objetivas e subjetivas.
As respostas dadas a essa questão fundamental são inúmeras e bastante diversificadas, porque diversas são as mentes e as interpretações que a formulam e os que tentam respondê-la, como também as realidades nas quais todos (as) estão imersos. É por isso que se alguém tivesse a possibilidade de perguntar a um ateniense do período de Péricles (461-429 a.C.) quem é o homem, a resposta obtida teria muitas possibilidades de ser completamente diferente daquela do religioso judeu, ou mesmo a que seria dada por um empresário capitalista do nosso tempo. Mas para Heschel, como para o judaísmo, Deus coloca o homem em alta posição:
A imagem de Deus é o que distingue o homem do animal, e é somente por causa disso que lhe foi conferida a faculdade de exercer o poder12 no mundo da natureza. Conservando essa semelhança, ele tem domínio sobre os animais. Se ele atraiçoar a semelhança, rebaixa- -se, perde a sua posição de eminência na natureza (HESCHEL, 1974, p. 161-162).
Mais do que mera relação entre governante e súdito, entre governante e governado, entre criatura e artífice, entre imortal e mortal, o homem, sob o ponto de vista judaico, traz dentro de si uma parte divina. Diferentemente de uma concepção de um deus transformado em humano ou de um ser humano panteonizado em divindade13, o homem é colocado em posição oposta, sem que nenhuma criatura se interponha entre ele e Deus. Uma relação imediata, sem intermediários, é determinada entre ambos, e não há indivíduos com privilégios especiais ou extraordinários:
O ser humano é precioso. Segundo Heschel, a pessoa é a única entidade no espaço a qual a santidade é associada. Os objetivos são tornados sagrados em virtude do homem e pelo homem. A vida humana é a única coisa considerada intrinsecamente sagrada, a única coisa de supremo valor (LEONE, 2002, p. 156).
Mas a crise de valores que se abate sobre o mundo tem afastado o homem paulatinamente, porém, de maneira progressiva, da sua imagem divina e da experiência transcendental em nossos dias, submergindo-o numa caverna cada vez mais escura.
O pensamento de Abraham Heschel a esse respeito é de uma clareza tão cristalina que chega a espantar, pelo fato de que a civilização, dita moderna, não se dá conta de que, quanto mais se afasta dessa imagem divina e dos valores transcendentais, ela está assumindo a própria desumanização. Heschel identifica, assim, o envenenamento básico da civilização moderna: a morte do Sagrado. Com esse conceito, ele se refere à morte da “alma” do homem moderno. Dessa forma, o irromper da barbárie não era uma surpresa, mas uma consequência nefasta do simulacro de humanismo que restava, quando o ser humano não era mais visto com a referência que lhe é devida:
Deus fora “aprisionado nos templos” e, dessa forma, a má consciência do homem moderno o leva a eclipsar a sua própria civilização. As conquistas materiais já não poderiam simular o sucesso da civilização, enquanto, por outro lado, a humanização regredia, pois o homem morre quando esquece o motivo pelo qual vive (LEONE, 2002, p. 83-84).
Na tradição filosófica ocidental, a palavra “humano”, derivada do latim humanus, homo sapiens, designa o que é relativo ao Homem como espécie. O ser humano distingue-se dos outros animais por agir com racionalidade. Possui grande capacidade mental e habilidade para desenvolver utensílios e adquirir conhecimento14. É um aspecto muito estudado pela Antropologia. O termo humano é utilizado também como adjetivo com o significado de bondoso ou generoso, compreensivo ou tolerante e tem muitos antônimos: falta de civilização; desumano; inumano e crueldade de bárbaro. A história do século XX nos obriga a dissociar essas duas acepções e a refletir sobre o conceito, aparente mente contraditório, mas de fato perfeitamente coerente, de “humano e desumano”.
Em que consiste o “processo humano racional animalizador”? Para o Sociólogo Norbert Elias15, um de seus aspectos mais importantes é que a violência não é mais exercida de maneira espontânea, irracional e emocional, pelos indivíduos, mas é monopolizada e centralizada pelo Estado16. Graças ao processo “civilizatório”, as emoções são controladas, o caminho da sociedade é pacificado e a coerção física fica concentrada nas mãos do poder político17. O que Elias não parece ter percebido é o reverso dessa brilhante medalha: o formidável potencial de violência acumulado pelo Estado.
As pessoas do século XX são, com frequência, implicitamente propensas a ver-se e a ver sua época como se os seus padrões de civilização e racionalidade estivessem muito além do barbarismo de antes e o das sociedades menos desenvolvidas de hoje. Apesar de todas as dúvidas que envolveram a crença no progresso, a imagem que essas pessoas têm de si mesmas permanece impregnada por tal crença. Entretanto, seus sentimentos são contraditórios, um misto de auto-amor e de auto-ódio, de orgulho e de desespero – orgulho na extraordinária capacidade para as descobertas e as iniciativas audaciosas de sua época, e para os progressos humanizadores a que ela vem assistindo, desespero a respeito de suas próprias e irracionais barbaridades (ELIAS, 1997, p. 271).
Se nós nos referirmos ao antônimo da palavra “humano” – falta de civilização, desumano, inumano, e crueldade de bárbaro, a produção deliberada de sofrimento, nenhum século na história conheceu manifestações de desumanidades tão extensas, tão massivas e tão sistemáticas quanto o século XX.
Certamente, a história humana é rica em atos indiscernidos, cometidos tanto pelas nações “civilizadas” ou “humanizadas” quanto pelas tribos “sem civilidade”. A história moderna, depois da conquista das Américas, parece uma sucessão de atos desse gênero: o massacre de indígenas das Américas, o tráfico de negros, as guerras coloniais, a Ditadura Militar. Trata-se de uma desumanidade “civilizada”, isto é, conduzida pelos impérios coloniais economicamente mais avançados. Para o Rabino Alexandre Leone, diante das circunstâncias atuais;
ou o homem reflete a imagem de Deus ou a da besta. E diante da barbárie e da desumanidade, torna-se ainda mais importante reafirmar a busca do divino mediante a afirmação da santidade da condição humana. Voltando ao texto citado, sobre a guerra, Heschel comentava: “o martírio de milhões neste exato momento exige que nos consagremos à realização do sonho divino por salvação” (LEONE, 2002, p. 84).
Para Karl Marx, um dos críticos mais ferozes desses tipos de práticas maléficas e destruidoras, próprias da modernidade, tais práticas, estão associadas às necessidades de acumulação do capital. Em O Capital18, especialmente no capítulo sobre a acumulação primitiva, encontra-se uma crítica radical dos horrores da expansão colonial: a escravização ou o extermínio dos indígenas, as guerras de conquista, o tráfico de negros. Essas barbáries e atrocidades execráveis que, segundo Marx, não tem paralelo em qualquer outra era da história universal, em nenhuma raça por mais selvagem, grosseira, impiedosa e sem pudor que ela tenha sido. Não foram simplesmente passadas aos lucros e perdas do progresso histórico, mas devidamente denunciadas como uma infâmia.
Havia outrora, em tempos muito remotos, duas espécies de gente: uma elite laboriosa, inteligente e, sobretudo econômica, e uma população constituída de vadios, trapalhões que gastavam mais do que tinham. A lenda teológica conta-nos que o homem foi condenado a comer o pão com o suor de seu rosto. Mas, a lenda econômica explica-nos o motivo por que existem pessoas que escapam a esse mandamento divino. Aconteceu que a elite foi acumulando riquezas e a população vadia ficou, finalmente, sem ter outra coisa para vender além da própria pele. Temos ai o pecado original da economia (MARX, 1982, p. 829).
Considerando algumas das manifestações mais sinistras do capitalismo, como as leis dos pobres ou os workhouses19, Marx escreveu, séculos atrás, passagens surpreendentes e proféticas sobre essa reificação do homem. A vigência plena do capitalismo manipulatório, sob a dominância do capital financeiro, com a precarização estrutural do trabalho, caracterizada pela presença do desemprego de massa e a nova precariedade salarial, compõem o cenário de barbárie como metabolismo social, isto é, processo cotidiano de desefetivação do ser genérico do homem. Deste modo, dissocialização e manipulação reflexiva dilaceram o devir humano dos homens, obliterando, tendencialmente, sua capacidade de “negação da negação”, eis o sentido da barbárie social que parece anunciar a Escola de Frankfurt, quando dizem que a barbárie é engendrada no próprio seio da civilização e é parte integrante dela. É humanidade leprosa, sendo a barbárie a lepra dessa civilização.
Mas com o século XX, um limite é transgredido e se passa a um nível superior; a diferença é qualitativa. Trata-se de uma desumanidade especificamente moderna, do ponto de vista de seu ethos, de sua ideologia, de seus meios e de sua estrutura. A filósofa judia Hannah Arendt não acredita que exista um Eichmann20 em cada um de nós, mas suas características é que se multiplicariam em sociedades de massa, inclinadas ao não exercício do pensamento e à falta de profundidade21.
A Primeira Guerra Mundial inaugurou esse novo estágio do “homem racional animalizado”, um homem totalmente distante das questões metafísicas22, com as características da utilização de meios técnicos mais modernos, industrialização do homicídio, a exterminação em massa, graças às tecnologias científicas de ponta.
Os massacres que encarnam de maneira mais acabada o homem animalizado indiscernido são o genocídio nazista contra judeus e ciganos e a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki. Os dois são, provavelmente, os mais integralmente modernos: as câmaras de gás nazistas e a morte atômica norte-americana contêm praticamente todos os ingredientes do animal irracional que o homem moderno se tornou. Impessoalidade do massacre. Populações são “eliminadas” com o menor contato pessoal possível entre quem toma a decisão e as vítimas, como é descrito por Hannah Arendt na sua obra “Eichmann em Jerusalém”. E disso, Heschel pode falar com propriedade, pois sofreu na “própria pele” o peso desse processo desumanizante. Na caça aos judeus, este nosso filósofo, que nos convida ao autodiscernimento, perdeu a maior parte de sua família nos campos de concentração:
Comentando a barbárie nazista e a crise da civilização agravada pela guerra, que era iminente em 1938 e efetiva em 1944, quando o texto de Heschel foi publicado, ele começa dizendo: ‘a marca de Caim na face do homem tem sombreado a semelhança com Deus’. E diante do terror, do genocídio e da agonia de milhões – inclusive a sua família – Heschel perguntava: ‘Quem é o responsável?’. Notemos bem que a pergunta hescheliana não é ‘quem é o culpado?’(LEONE, 2002, p. 83).
Heschel não pergunta quem é o culpado exatamente deixando transparecer que essa responsabilidade, nas atrocidades humanas, é de todos nós. O martírio das vítimas do Holocausto não é apenas dos judeus, mas do ser humano enquanto tal é uma visão do martírio divino. A imagem do quadro de Chagal, do judeu crucificado, com todos os sentidos que esta imagem de origem cristã evoca na mente ocidental, poderia ser aqui usada como um paralelo, uma analogia do sofrimento divino e humano descrito por Heschel.
Para Hannah Arendt, o ser humano perderia sua condição de pessoa jurídica e moral nos campos de concentração, morrendo interiormente ao reduzir-se ao nível das “reações idênticas”, mas mantendo-se vivo fisiologicamente: “A dominação completa consuma-se quando a pessoa humana, que é de algum modo uma mistura particular de espontaneidade e condicionamento, for transformada num ser completamente condicionado, cujas reações podem ser calculadas mesmo quando for conduzido à morte certa” (ARENDT, 2001, p. 240). Esse radicalismo destituiria o homem de sua existência autêntica, transformando os elementos que o constituem fundamentalmente (natalidade, pluralidade e individualidade), retirando-lhe a individualidade e o próprio significado da existência. Segundo Arendt, o surgimento de um mal radical representaria o fim da noção moderna de progresso gradual dos valores. No sistema totalitário, o mal radical configurava um movimento onde “tudo é possível”, ultrapassando o niilismo do “tudo é permitido”.
O genocídio dos judeus e dos ciganos é também, como observa o sociólogo Zygmunt Bauman, um produto típico da cultura racional burocrática que elimina da gestão administrativa toda interferência moral. Ele é, deste ponto de vista, um dos possíveis resultados do processo civilizador, como racionalização e centralização da violência e como produção social da indiferença moral.
Como toda outra ação conduzida de maneira moderna – racional, planificada, cientificamente informada, gerida de forma eficaz e coordenada – o Holocausto deixou para trás todos seus pretensos equivalentes pré-modernos, revelando-os em comparação como primitivos, esbanjadores e ineficazes. [... Ele se eleva muito acima dos episódios de genocídio do passado, da mesma forma que a fábrica industrial moderna está bem acima da oficina artesanal (BAUMAN, 1998, p. 15).
A ideologia legitimadora do genocídio é ela também de tipo moderno, pseudo-científica, biológica, antropométrica, eugenista. A utilização obsessiva de fórmulas pseudo-medicinais é característica do discurso antissemita dos dirigentes nazistas, o que pode ser notado nas conversações privadas deles. Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler insistia que: a batalha na qual nós estamos engajados hoje é do mesmo tipo que:
a batalha liderada, no século passado, por Pasteur e Koch. Quantas doenças não tiveram sua origem no vírus judeu... Nós não encontraremos nossa saúde sem eliminar os judeus (BAUMAN, 1998, p. 71).
Diante destes fatos e declarações, percebemos que a modernidade ao invés de humanizar o homem, tem o deixado ainda mais animalizado, indiscernido e totalmente distante de sua realização. Para Heschel, o homem, que era o co-criador do mundo, tornou-se o deformador do sagrado. Dessa forma, aquele que deseja retornar à sua imagem transcendental e que reconhece em si a humanidade desumana precisará fazer o retorno, o autodiscernimento. Descobrir dentro de si o insight e saber interpretá-lo como fundante de sua imagem divina, procurar dentro de si a sua humanidade perdida no encantamento da ciência, da tecnologia e da velocidade com que tudo passa, onde a religião, o transcendente e a alteridade são totalmente descartáveis e coisificados.
Os efeitos da modernidade anunciam um veio estrutural onde as mentalidades tem adotado a razão humana como a capacidade questionadora e definidora do real. No racionalismo, a razão humana define a ontologia da realidade. Nesse contexto, a ciência não só explica o mundo, mas também é uma forma de dominação e reorganização do mundo. Um mundo cada vez mais feito à imagem e semelhança do homem. É nesse cenário reorganizado que transitamos e vivemos.
A maioria dos seres humanos percorrem suas vidas em busca de um sentido para sua existência. Mesmo que esse terreno de significações aponte para um ‘possível’ final, em que o grande sentido da vida seja a não existência do sentido, nada mais. No interim dessa busca por significações que respondam seus maiores anseios, a religião se configura como uma grande possibilidade de resolução da questão humana. Através dela, ainda que entre caminhos labirínticos, o relativo homo religiosus almeja seu encontro com o absoluto23.
“A religião é a resposta humana daquele que se percebe na situação de estar diante do divino”, afirma Leone (2008, p. 14), comentando a explicação de Heschel sobre o conceito de religião. Na perspectiva hescheliana, a religião nasce a partir da experiência humana com o Sagrado24, como sendo uma resposta à experiência. Se a religião é esta resposta, torna-se evidente que ela está condicionada aos parâmetros culturais, sociais e históricos daquele que faz essa relação com o transcendente. É essa experiência vivencial que inquieta o homem a continuar mantendo uma relação dialógica com Deus, relação esta que se concretiza pela rememoração do insight, ou seja, pelo autodiscernimento. Heschel acredita que o homem é antropologicamente religioso, uma vez que carrega em si a imagem da divindade, dessa forma a religião, espaço onde o homem transcende suas experiências e vivencias, também precisa passar pelo processo de auto avaliação. A religião hoje perdeu grande espaço, deixando de corresponder aos anseios desse homem moderno que carrega tantas angústias e, por isso, ele busca métodos que prometam respostas definitivas, como é a pretensão da ciência atual.
Em um mundo, desmagificado, com perspectivas de desencantamento, as questões teológico-filosóficas, ligadas à existência de um ser transcendental, foram progressivamente esquecidas, ou melhor, substituídas pelo paradigma antropológico das inquietações humanas, e, nesse afastamento do homem da sua imagem transcendental, a “indústria da cultura”25 possui significativa contribuição. Para Heschel, sua filosofia, além de denominada como humanística, também é uma filosofia da Religião e, mais especificamente, da religião judaica. Nesta perspectiva, Heschel é bastante incisivo:
é costume responsabilizar a ciência secular e a filosofia anti- -religiosa pelo eclipse da religião na sociedade moderna. Seria mais honesto responsabilizar a religião por seus próprios defeitos. A religião entrou em declínio não porque foi refutada, mas porque tornou-se irrelevante, insensível, opressiva e insípida. Quando a fé é absolutamente substituída pela profissão de fé, a adoração pela disciplina, o amor pelo hábito, quando a crise de hoje é ignorada por causa do esplendor do passado, a fé se torna mais propriamente uma herança tradicional do que uma fonte de vida; quando a religião fala mais pela autoridade do que pela voz da compaixão – sua mensagem torna-se sem significado (HESCHEL, 1975, p. 15).
Ora, se a religião tem se tornado insignificante é porque o homem não consegue retornar à sua experiência simpática, deixando-se, cada vez mais, ser conduzido pelo “sonho americano” proposto pela ciência, não percebendo seus limites. Ora, a ciência consegue dizer que, alguém colocar veneno no chá da avó, certamente ela morrerá, mas ela não pode dizer se isso é moralmente correto ou não. A religião, nas análises heschelianas, é a que ainda responde às perguntas fundamentais da vida humana, a saber; qual o destino da minha vida? Para onde eu vou? De onde eu vim? Mas, quando a religião se esquece que ela é a portadora dessas respostas, então, de fato, é impossível ver os limites da ciência, a qual cada dia mais ganha credibilidade e espaço na vida humana. E a religião, por sua vez, entra em declínio e a “crise se estabelece”.
Ao comentar a descrença nos personagens bíblicos que se abateu sobre a humanidade, sobretudo a partir do século passado, Aíla Andrade, na sua recém-lançada obra “Eis que faço novas todas às coisas – teologia apocalíptica”, se direciona também nesta mesma reflexão sobre o autodiscernimento da religião em outra perspectiva, que se faz pertinente. Segundo a autora:
hoje, a verdade não mais se reduz à exatidão científica. Há espaço para a fé, mas esta foi tão machucada no ringue da Modernidade que ficou quase irreconhecível. Poucos sabem qual é a sua identidade, é urgente reconstruir seu rosto! Mas nem todos estão ocupados ou preocupados com isso. Para a maioria das pessoas, basta uma fé ou crença superficial, sem o crivo da razão (ANDRADE, 2012, p. 10).
Heschel, como sendo um homem profundamente religioso, percebeu todos esses despropósitos na sua comunidade judaica, e, com isso, indicou que esta passasse por um processo de autoanálise, uma vez que ela transcorre a vida do homem. Mas Heschel não trará para esse processo de autorreflexão somente a razão, muito embora ela seja substancialmente importante. A tradição filosófica judaica tem um princípio bem particular, que é o próprio termo “judaísmo” o sujeito de estudos, tendo como principal fonte de inspiração as sagradas escrituras, como Heschel aponta: “apesar de todo o apreço para com a razão e de nossa gratidão para com ela, a inteligência nunca foi encarada na tradição judaica como sendo auto-suficiente” (HESCHEL, 1975, p. 37). O filósofo quer evidenciar que, mesmo sendo a razão imprescindível para o autodiscernimento, ela não é a guia mestra nesse processo. Diferentemente da tradição grega que,
lendo as palavras da filosofia ocidental, é Platão ou Aristóteles, os estoicos ou os neoplatônicos que encontramos frequentemente. O espírito do pensamento deles paira sobre cada página do que foi escrito sobre filosofia. Contudo, procuraríamos em vão a Bíblia no recesso das metafísicas ocidentais. Os profetas estão ausentes quando os filósofos falam de Deus (HESCHEL, 1975, p. 41).
Vemos aqui, de maneira clara, o que diferencia as duas tradições filosóficas: uma leva em conta o método racional, a outra o situacional26; uma os grandes pensadores gregos, a outra, os profetas bíblicos; uma fala de conceitos, a outra fala de vivência. Heschel percebe essa grande diferença de métodos filosóficos e tem consciência que, para a tradição grega, esse modo judaico de filosofar é teologia, mas mesmo assim se autodenomina filósofo, e mais ainda, faz filosofia de uma realidade, de uma religião, de uma tradição, que é a da única que ele conhece experiencialmente; a judaica. Pode até ser uma “Teologia”, mas não aquela entendida pelo cristianismo, que foi trazida pela visão grega e que fala de conceitos.
Se a tradição grega ausentou a Bíblia da história da filosofia, significando o próprio modo de pensar, a maneira de ver o mundo e a religião, na Tradição judaica, a Bíblia toma quase todas as páginas de filosofia. É verdade que não se encontra nenhum vocabulário filosófico na Bíblia, mas a filosofia judaica é entendida como uma confrontação com o conceito da Bíblia, sublinhando os grandes capítulos na história da luta do homem com Deus. Nesta perspectiva, Heschel, que havia estudado e feito sua tese de doutorado sobre os Profetas, se utilizou de muito destas figuras bíblicas para orientar seu pensamento e seu modo de ver a realidade em geral, uma vez que esses homens bíblicos foram os primeiros a vivenciarem a experiência de insight, mas, sobretudo de autodiscernimento.
Na modernidade, esses personagens foram esquecidos, tornados quase que falsos, no sentido de sua existência. Ora, se os Profetas hoje são “considerados” simbólicos, a religião também, sobretudo pela experiência que eles tiveram com a transcendentalidade, se torna símbolo, porém símbolo mítico, que realiza e fala de coisas não reais, não empíricas. Denotando, assim, que o que é verdadeiro e sério é aquilo que é provado e comprovado pelo método científico.
O advento da modernidade leva-nos a um real reconhecimento da situação do homem diante das questões transcendentais. Ela nos faz saber que devemos viver como homens que se arranjam sem Deus, pois com Deus e diante dele, vivemos sem ele. Essa perspectiva situa os termos de uma dialética da ausência e da presença de Deus. Assim, é nesta ausência que surge o mistério de uma presença que é a experiência dos totalitarismos, das atrocidades da guerra, das ambiguidades promovidas pela técnica, que nos mostrou que, a história da emancipação iluminista pode tornar-se trágica, frente às novas e mais cruéis alienações. Segundo Heschel:
os pensamentos, crenças e sentimentos religiosos estão entre as mais decepcionantes atividades do espírito humano. Muitas vezes, presumimos que é em Deus que nós cremos, mas, na realidade, isso pode ser um símbolo de interesses pessoais que nós enfatizamos. Podemos presumir que Deus nos preocupa, mas pode ser que nos ocupamos com o nosso próprio ego. Examinar nossa existência religiosa é, por essa razão, uma tarefa que deve ser executada constantemente (HESCHEL, 1975, p. 23).
Enquanto isso se esboça, uma saudade do “totalmente outro27”, redescobre-se a presença de um Deus que não concorre com o homem, antes disso, encontra-se a contradição do homem secular: com Deus e na presença de Deus, ele vive sem Deus. “Sabe se, o homem religioso crê por convicção ou por uma simples asserção? A existência de Deus é uma certeza ou uma probabilidade?” (HESCHEL, 1975, p. 23). Foram e são as perguntas que levam toda e qualquer tradição religiosa a uma autoanálise, e foram a partir delas que Heschel inquietou a sua comunidade religiosa. Tais questionamentos permeiam ainda hoje a sociedade.
A raiz dessa dialética do divino no mundo moderno deve ser procurada nos fatores que presidem o advento da modernidade e que caracteriza a grande engrenagem tecnológica. Portanto, diante da emancipação do homem, como se coloca tudo isso frente o problema da religião? Na verdade, o discurso sobre o Transcendente soa absurdo, vazio e não científico, onde a ideologia protesta contra um Deus que reduz o homem, alienando-o do seu processo de libertação, à espera de um futuro prometido: “a religião é o ópio”28 que impele os oprimidos à resignação, e que os torna vítimas inertes e resignadas de seus senhores. Maquinismo, ciência e ideologia da emancipação parecem proclamar a morte de Deus29. Consequentemente, nos próprios fatores que caracterizam a modernidade vêm delineando-se em meio a contradições e obscuridades, uma perturbação e uma espera que ilumine e dê sentido às contradições irredutíveis e insolúveis da realidade, propostas pela nova portadora da verdade: a ciência.
Logo, no tecido mais profundo dos fatores que presidem o advento da sociedade secular se delineia uma nova provocação com relação à religião, emergindo a interrogação sobre o seu fundamento: o homem moderno e secular se reabre a possibilidade de falar de Deus. Constatase a atual e presumível futura persistência da religião não mais encontrada em experiências limitantes de qualquer ideologia reinante, mas sim, numa possível abertura de consciência para a religião, donde se abstraem todas as filosofias, sejam elas tecnicistas ou absolutizantes, que se revelam ainda mais impregnadas de possíveis alienações. Sendo assim, dar este passo significa reconhecer o totalmente outro, confessar que a razão moderna não é tudo, abrindo-se a uma real consciência, onde nem o maquinismo, nem a ciência, muito menos as ideologias, conseguem conter a persistência do homem moderno em crise, em se reabrir para a experiência transcendental.
Nesta perspectiva, os Profetas, figuras indissociáveis do pensamento hescheliano, tem muito a corroborar com os tempos hodiernos, sobretudo com a religião no que tange a rememoração da sua essência divina, pois essa rememoração é a própria renovação do insight fundamental, principal instrumento na construção da religião e da própria ética humana.
Na concepção hescheliana, o homem é essencialmente bom e por isso capaz de produzir o bem ao outro, mas olhando para a história, percebemos que este homem é também capaz de produzir e mecanizar o mal. Assim, é importante a virtude de discernir-se às boas escolhas, ou seja, ser ético ou abandonar a capacidade de agir corretamente diante das escolhas. Dessa forma, pode-se considerar que a felicidade é fruto das boas escolhas e boas ações do homem. Pode-se pensar que a infelicidade talvez possa ser nomeada de “desigualdade social”, fome, miséria, doenças ou outros substantivos do gênero. Um desencadeamento de maledicências decorrente de uma falta de ética humanitária.
Talvez seja possível reconhecer que os frutos das mazelas da infelicidade sejam as guerras, o desentendimento, e a falta de fraternidade entre os povos. Pode ser admissível que a infelicidade seja o mal que assola a humanidade. O mundo está carente de uma ética prática, que faça do homem mais humano para com os outros. Estamos necessitados de uma reflexão sobre o sentido da vida do outro, a importância do outro. Não é mais possível deixar que nosso egoísmo exclua o outro, como ator social em seu protagonismo, fazer parte da sociedade. Segundo Heschel;
esta condição essencial do homem assumiu uma premência peculiar em nossa época, vivendo numa civilização onde são estabelecidos fatores a fim de exterminar milhões de homens, mulheres e crianças; que fez sabão de carne humana. O que fizemos para tornar possíveis crimes como esses? O que estamos fazendo para impossibilitar crimes como esses? O homem moderno pode ser caracterizado como um ser indiferente às catástrofes. Uma vítima brutalizada à força, sua sensibilidade está se reduzindo progressivamente; seu senso de horror está minguando. A distinção entre o que é certo e o que é errado tornou-se confusa, obscurecida. Tudo o que nos resta é estar aterrados e perplexos com nosso senso de horror (HESCHEL, 1975, p. 464).
Heschel quer denotar exatamente até onde a inumanidade atingiu o homem e a sociedade, essa falta de uma ética prática que trate da ação levou o homem a cometer as maiores atrocidades da história contra os seus semelhantes, atingindo não só uma época da história, mas trazendo vestígios e efeitos (retro) interpretativos até os dias atuais. Se percebermos as relações internacionais, sobretudo no que tange aos conflitos, a corrida armamentista ou mesmo sobre a problemática ambiental, veremos claramente o desconforto que cada nação sente em não abrir mão da violência, da coerção.
O homem moderno trucidou a ética relacional. Talvez todas essas desgraças que assolam a humanidade hoje se desnudam como fruto de escolhas não acertadas. Diante das virtudes e vícios, o homem até poderia conhecer as virtudes, mas não saber utilizá-las. É como ter um martelo em mãos: podemos saber o que ele é, mas não sabemos usá- -lo; ou ainda ter em mão as melhores ferramentas para edificação de um prédio, mas não sabermos usá-las; o que adianta ter as melhores ferramentas e a melhor argila e não saber fazer uma escultura? Colocar algo em prática significa aprofundar na vivência da virtude e na possível construção de uma vida feliz. Para o nosso filósofo;
o homem é rebelde e está cheio de violência, mas, no entanto, é tão querido que Deus, o Criador do céu e da terra, se entristece quando ele o abandona. O amor de Deus pelo homem é profundo e íntimo e, no entanto, sua ira pode ser dura e aterrorizante. O poder humano tem um valor muito pequeno, mas a compaixão humana é divinamente preciosa. Enquanto o comportamento do homem é mal, o seu retorno a Deus pode fazer do seu caminho uma avenida de Deus (HESCHEL, 1973, p. 37-38).
Essa falta de ética, para Heschel, é fruto das escolhas não acertadas da vida, uma escolha que não foi discernida, não ponderada. Toda a miséria atual, vista desta ótica, nos leva a refletir sobre o que fizemos da ética no mundo em que habitamos. Heschel nos interpela: “teria sido o homem bíblico indiferente à terrível desordem da história do mundo, da terrível crueldade do homem?” (HESCHEL, 1975, p. 462). A “fome de justiça” que tantos querem, pode ser a resposta de uma sociedade que não olha os seus reflexos, mergulhada no sofrimento de escolhas de lideranças corruptas, das quais, na maioria das vezes, fazem o que querem, sem o auxílio da compreensão ética.
O mundo se afunda em um descaso de poluição, proliferação de doenças, pandemias que castigam as pessoas, conflitos internacionais, problemas ambientais e educacionais, de saúde e moradia. Os princípios éticos que regiam a humanidade nos períodos clássicos foram totalmente derrocados pela nova ciência que emergia. Entretanto, para Heschel;
o problema da vida não começa com o problema de como cuidar-se dos crápulas, de como prevenir a delinquência ou evitar os crimes. O problema da vida começa com a concepção de que todos nós cometemos erros em nossa convivência com nossos semelhantes. As atrocidades silenciosas, os escândalos ocultos, que nenhuma lei previne, são os verdadeiros focos da infecção moral. O problema da vida começa, de fato, na relação conosco mesmos, no manejo de nossas funções emocionais, no modo como tratamos com a inveja, o orgulho e a avidez (HESCHEL, 1975, p. 480).
Heschel nos diz que, para tematizar uma ética prática que não só cuide da vida social, das relações interpessoais e internacionais, é preciso, antes de tudo, o reconhecimento de que o homem, indistintamente, precisa retomar sua ligação transcendental, revestir-se de sua imagem divina e retratar do cuidado com essa semelhança que ele tem com a divindade. É uma ética totalmente humanista, ao mesmo tempo é uma ética que engloba a totalidade, sendo universal.
Se for imperativa, essa crescente onda de violência que assola o mundo nos leva a uma autoanálise profunda, à retomada da essência humana que é divina. Para Heshcel, é quase impossível compreender, e mais ainda aceitar, racionalmente, a maldade das pessoas “revestidas de sua imagem”, não só a maldade violenta que atinge o físico, mas a maldade que atinge o psicológico e as profissões de fé. Tantas pessoas poderiam fazer o bem e praticar a caridade, a tolerância diante do semelhante que também é uma imagem do divino, do Santo. Esta palavra, “semelhante”, deveria ser levada muito em conta diante da situação que a vida nos proporciona, segundo nossas atitudes de exclusão social e desprezo pelos mais pobres. A maldade praticada poderia até mesmo ser evitada, se refletíssemos o verdadeiro sentido de ser semelhante. O semelhante é o meu outro, é o meu próximo, é um como eu sou, um ser humano que também depende deste mundo para viver e sobreviver. O outro deve ser respeitado na sua totalidade. O semelhante é, pois, o outro como espelho de mim mesmo, como reflexo candente de Deus em nós.
Na concepção hescheliana poderíamos questionar também o sentido ético de ser caridoso ou complacente para com quem pratica o mal e a violência. Mas se todos nós tomássemos consciência de nossas atitudes maldosas, ou seja, de nossas iniquidades, provavelmente não existiria mais a intensidade do mal em nosso meio. Não teríamos a preocupação em nos resguardar das maldades alheias e vindas contra nós. Não poderia ser concebível que o bem gere o mau, se todos prefigurassem sua imagem antropológica. Nesse (re) enquadramento imagético-divino talvez não fosse possível a presença do mal no ser humano. Precisamos ser estandartes do transcendental no mundo, nossa imagem deveria irradiar a nossa essência divina, que gera paz como uma luz em meio às trevas. O divino deve fluir de nosso ser como uma chama que aquece o frio da maldade. Chama que nunca se apaga em nosso coração. Neste calor de amor e fraternidade, conseguiríamos reacender no mundo a chama que crepita, em muitas das vezes, timidamente nas trevas da maldade humana. Todos nós podemos ser sinais da bondade no mundo, e ser símbolos do bem. Uma reflexão ética sobre nossas mazelas poderia nos trazer a luz na escura irracionalidade, travestida de racionalidade.
Podemos ser capazes de fazer da miséria uma vitória contra a injustiça, ou então, do sofrimento um escudo poderoso contra a vingança e prepotência humana. As maldades e as injúrias do mundo não poderiam ser capazes de nos arrancar a nobreza da alma. A partir das escolhas que fazemos e das decisões que tomamos, tornamos a realidade em que vivemos o que ela é de fato. Se, aos moldes edênicos, formos realmente senhores da história, pelo fato de poder fazer escolhas com base na ética, então, somos capazes de reencontrar o sentido da vida. A pergunta para todo esse viver do ser humano, para toda busca que faz, seria a sua imagem, seria Deus. No fundo de toda busca do ser humano estaria a busca da própria felicidade. Tanto a busca do conhecimento, o sentido da vida, a origem e fim de todas as coisas, tudo passa pelo propósito de ser feliz. Encontrar o Transcendente, explicar as realidades metafísicas, seria a busca da felicidade. Na realidade, o ser humano busca encontrar a verdadeira felicidade. A pergunta agora não poderia ser mais sobre a origem das coisas, o conhecimento, o ser e o não ser, mas poderia ser: o que é e onde está a minha essência, minha imagem divina? A partir daí, poderíamos chegar a um fim, a uma ética.
Diante desse desafio, urge, pois, observar no nosso cotidiano, o que rege o dia e o que impulsiona o homem. Neste modo de ser e pensar, o homem discernido direciona suas atitudes mediante os acontecimentos de cada dia. A maldade seria disseminada sem nenhuma reserva de culpa, pois, a consciência humana acusaria o destino como autor determinante da vida. O homem é autor da vida que tem, o homem é dirigente do dia que lhe foi dado. Não se pode omitir perante os desejos, as vontades e as decisões. Cabe, a cada um, autoanalisar-se e reger suas escolhas. O homem pode fazer o melhor de si mesmo, dar o melhor de si mesmo para que não se torne “mais um dia” na sua vida. Para que a vida, em sua ontologia praxiológica, valha a pena. O homem pode ser melhor, pode fazer o melhor, pode reconstruir o que foi destruído. O bem parte de ações éticas, aceitar a vida é fazer com que ela seja melhor a cada dia. A única salvaguarda para o perigo, diz Heschel, “é uma vigilância constante, uma orientação constante. Essa orientação, essa vigilância é dada àquele que vive a luz do Sinai; cujas semanas, dias, horas, são colocadas ao ritmo de keva e kevanah” (HESCHEL, 1975, p. 481). - (Liturgia e Intenção do Coração). É essa vigilância constante, essa autoanálise frequente que conduzirá a humanidade num parâmetro ético que, segundo a abordagem hescheliana, salva não só o homem, mas o espaço onde ele vive. Na dinâmica do autodiscernimento que se propaga, desfaz-se o arcabouço animalizante do humano, se desobscurece o sol divino encoberto, e no final, ainda que momentâneo, do Eclipse de Deus perante os olhos entreabertos da humanidade.
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—
[1] O hassidismo é um movimento dos hassidim (“piedosos”) que constitui o judaísmo ortodoxo. Foi fundado na Polônia, no século XVIII, por Israel, filho de Eliezer, conhecido como Baal Shem Tov (O Mestre do Bom Nome). Cf. Leone (2002, p. 26-27).
[2] Tratamos aqui a partir da perceptiva hescheliana de homem enquanto ser humano (homem, mulher) pleno, em sua integralidade existencial e imagem divina.
[3] Para Weber (1982, p. 164) a ciência é algo ad infinitum que caminha por um processo de perguntas e realizações sempre superadas e continuadas. Na realidade. A partir dessas constatações há uma reflexão em relação à significação da própria ciência. Pois, “porque alguém se dedica a alguma coisa que na realidade jamais chega, e jamais pode chegar ao fim?”. Em busca das significações, Weber (1892, p. 166) ao citar Leão Tolstói mostra que todo labor cientifico do homem civilizado, em meio à morte, ao conhecimento e aos problemas, pode na verdade “cansá-lo da vida, mais não saciá-lo dela”. Nesse sentido indaga-se o valor da ciência, a sua vocação dentro da vida total da humanidade. Portanto, se antes a ciência era o sol no mito da caverna de Platão, hoje, as construções intelectuais da ciência constituem um campo irreal de abstrações artificiais que procuram agarrar a essência da vida sem conseguir (WEBER, 1982, p. 167).
[4] Sabe-se é que entre o ‘sacrifício intelectual’ do crente e o intelectualismo científico, a linha de tensionamento entre as esferas de valor da ‘ciência’ e a esfera do ‘sagrado’ se faz insuperável. Dessa forma, o destino do nosso tempo se caracteriza pela racionalização e intelectualização, principalmente pelo desencantamento do mundo. Assim, precisamente os valores últimos e mais sublimes do ser humano retiraram-se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade das relações humanas diretas e pessoais. Nesse contexto, quem não for homem para enfrentar o destino de sua época, pode voltar silenciosamente aos braços das velhas igrejas que estão abertos para eles, e afinal elas não criam dificuldade para sua volta (WEBER, 1982, p. 182-183).
[5] Apesar da polissemia conceitual que a orbita, a religião pode ser definida como um sistema simbólico (GEERTZ, 1989), estruturado e estruturante (BOURDIEU, 1998), um conjunto de crenças e ritos que pressupõe a classificação de todas as coisas em reais e ideais, sobre as quais os homens pensam, em classes ou em grupos opostos (DURKHEIM, 1989), é a maneira de conhecer a realidade e pensar sobre ela (ERICKSON, 1996).
[6] O termo Teologia é formado aqui no seu sentido amplo e anterior ao significado dado pelo cristianismo.
[7] Heschel se utiliza desse termo como designando o mesmo processo de autodiscernimento. Cf. Heschel (1975, p. 19).
[8] Para Heidegger (2006, p. 203-204), a matriz de toda interpretação está no compreender. Segundo ele, “compreender é o ser existencial do próprio poder-ser da presença de tal maneira que, em si mesma, esse ser abre e mostra a quantas anda seu próprio ser”. Na relação entre presença e compreensão, “o compreender sempre diz respeito a toda a abertura da presença como ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2006, p. 206). É dentro dessa esfera ontológica que se encontra a arte da interpretação, a partir dessa relação fenomênica entre o ser humano e a realidade à sua volta. À luz desse prisma teórico, a interpretação é uma elaboração, isto é, “não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas no compreender” (HEIDEGGER, 2006, p. 209).
[9] O ser humano é homo simbolicus. Na relação entre o humano e o símbolo o simbolismo resulta em uma função social de comunicação, mas antes disso, ou simultaneamente, em uma realidade vivencial. Dentro dessa configuração, o símbolo transmite, comunica a experiência vivida, e também atuando como mediador entre o transcendente e o sujeito da experiência (CROATTO, 2001, p. 85). Dentro do processo da linguagem religiosa, o símbolo surge como a linguagem fontal, da experiência religiosa, ele funda todas as outras. É a primeira linguagem, a base que alimenta as demais. Através do símbolo, “o homo religiosus solidariza-se com o cosmo, com os outros seres humanos e especialmente com o Mistério” (CROATTO, 2001, p. 107).
[10] Ontoteologia significa uma teologia que leve em conta apenas conceitos, muito embora sejam eles importantes, mas é uma teologia que não se preocupa com a situação, com a vivência. Para Heschel, é impossível falar de qualquer coisa, seja no campo metafísico, seja na esfera pragmática se não estiver totalmente envolto na questão em voga, e foi exatamente esse aspecto vivencial que a ontoteologia esqueceu.
[11] O conceito de homem animalizado é trabalhado por Heschel no sentido de diferenciar o homem divinizado, ou seja, aquele que reflete a imagem divina, transcendental, que passou pelo processo de autodiscernimento e rememora o “insight fundamental”, do homem racional animalizado, significando ser esse homem animalizado plenamente dotado de razão, mas se utiliza dessa razão para se autodestruir de modo que cada vez mais se afasta da sua essência, a qual para Heschel é a sacralidade do homem, a própria imagem de Deus, “bendito seja ele”. Conforme Leone (2002, p. 84) “o que constitui a animalidade é a faculdade de utilizar um mecanismo de desencadeamento (déclanchement) para converter em ações ‘explosivas’ uma soma tão grande quanto possível de energia potencial acumulada”. Cf. Lalande (1999).
[12] Para além das teorias o poder é, sobretudo, algo experiencial que se vive, se exerce. Este só possui existência quando é posto em ação (FOUCAULT, 1995). O termo ‘poder’, em Foucault, designa relações entre os ‘parceiros’, vistas como “um conjunto de ações que se induzem e se respondem umas as outras” (FOUCAULT, 1995, p. 240). Nesse panorama, o exercício do poder é definido como “um modo de ação sobre as ações dos outros”, consistindo em conduzir condutas e em ordenar a probabilidade (FOUCAULT, 1995, p. 244). Assim, o exercício do poder é elaborável, transformável e adaptável, não é simplesmente uma relação de violência ou consentimento entre parceiros, mas está vinculado ás mudanças no outro provocada pelas ações, podendo produzir tanta aceitação como pode ser desejado.
[13] Cf. Guerra (2018, p. 147-234).
[14] Cf. Rios (2005).
[15] Norbert Elias foi um sociólogo alemão. De família judaica, teve de fugir da Alemanha nazista exilando-se em 1933 na França antes de se estabelecer na Inglaterra onde passará grande parte de sua carreira.
[16] O Estado é o que existe; é a vida real e ética, pois ele é a unidade do querer universal, essencial, e do querer subjetivo – e isso é a moralidade objetiva. O indivíduo que vive nessa unidade possui uma vida ética, tem um valor que existe nessa substancialidade. Cf. HEGEL (1995, p. 39).
[17] O político, por sua parte, é uma forma social de existência. Por esse termo visam- -se os princípios geradores das múltiplas formas de sociedade (LEFORT, 1991, p. 253). O político está na sociedade como um todo, o poder político circula em toda sociedade (SCHIMITT, 2006). O termo se relaciona à ideia de convivência a partir dos vínculos sociais (QUADROS, 2009). Dentro da nova ciência política, o político é definido como campo do puro poder (MILBANK, 1995, p. 22).
[18] O Capital é um conjunto de livros de Karl Marx como crítica ao capitalismo. Muitos consideram essa obra o marco do pensamento socialista marxista.
[19] As Casas de Trabalho (Workhouses) foram estabelecidas em Inglaterra no século XVII. Segundo a Lei dos Pobres adotada, em 1834, só era admitida uma forma de ajuda aos pobres: o seu alojamento em casas de trabalho com um regime prisional; os operários realizavam aí trabalhos improdutivos, monótonos e extenuantes; estas casas de trabalho foram designadas pelo povo de “bastilhas para os pobres”. Cf. Dicionário político. Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/Work. Acessado dia 18 de abril de 2013.
[20] “Segundo Hannah Arendt, Eichmann era um jovem ambicioso, e não suportava mais a vida rotineira, sem significado e consequência que até então levava. A filiação ao partido Nazista seria a oportunidade que ele esperava para se destacar. Eichmann foi funcionário do governo alemão durante o domínio de Hitler naquele país, e há de se considerar sua participação na solução final de extrema importância. Na solução final dos julgamentos, seu nome foi usado pelos nazistas quando se referiam à aniquilação do povo Judeu. Eichmann foi capturado e sequestrado em um subúrbio de Buenos Aires, na Argentina em 1960, usava nome falso de Ricardo Cleman, foi à Israel para ser julgado na corte Distrital de Jerusalém. Eichamnn relata, em seu depoimento, que nunca matou um judeu sequer, e que também nunca ordenara a matança, acontece que nem a defesa e nem ninguém naquele tribunal estava se importando muito com a explicação dele, seu julgamento mais parecia um espetáculo armado em que o principal protagonista era ele mesmo, um verdadeiro circo, onde o foco das pessoas era exclusivamente culpar Adolf Eichmann pelas atrocidades cometidas contra os Judeus. Ele é acusado pela morte de mais de 6 milhões de Judeus”. Disponível em: http://www.Trabalhosfeitos .com/ensaios/Relat%C3%B3rioParcial-Caso-Eichmann/454724 .html. Acessado dia 03 de maio de 2013.
[21] No julgamento de Eichmann, Arendt percebeu que quanto mais se ouvia o acusado, mais óbvio ficava sua inaptidão para pensar do ponto de vista do outro. A todo o momento, ele tropeçava na língua alemã, usava clichês e frases feitas para se esquivar da realidade, apoiando-se na repetição, na rotina. A ausência de criticidade lhe era peculiar, chegando até mesmo a afirmar: “Minha única língua é o oficialês [Amtssprache]”. Cf. Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, p. 62.
[22] Na concepção de Rorty e Vattimo (2006, p. 17-26), vivemos em uma idade pós-metafísica da sociedade. Nesse contexto, Deus entrega todo seu poder ao ser humano. Há uma desconstrução da verdade como evidencia intuitiva, onde o fim da metafísica aponta para a encarnação do logos, convertendo assim o Ser em algo disponível para o sujeito finito. Dentro dessa desconstrução da metafísica, os sucessos históricos do homem como a revolução francesa apontam para os seres humanos que cada vez mais aprenderam a confiar em suas próprias forças. Nesse contexto, tanto o pragmatismo como a hermenêutica são movimentos que surgem não só como uma rebelião contra todas as teorias autoritárias da verdade, mas também impulsionados pelo ânimo de aperfeiçoar a forma que os homens entendem uns aos outros.
[23] A religião é algo misterioso, enigmático. Seu núcleo polissêmico anuncia uma inesgotabilidade de significados. A religião se cria, recria, se movimenta. A matriz de enunciados da experiência religiosa sempre se reforma, transforma. Desde os primórdios da humanidade o teo-religioso tem se configurado como uma estrutura de (des) ordenamento social em suas especificidades.
[24] Na definição de Otto (1985, p. 11), o sagrado “é antes de mais nada, interpretação e avaliação do que existe no domínio exclusivamente religioso”, sendo uma complexa categoria que está acima de predicados teológicos e filosóficos, constituindo-se por algo numinoso, tremendum, inefável (REIMER, 2009).
[25] É um termo usado pelos filósofos Adorno e Horkheimer, da Escola de Frankfurt, designado o processo capitalista que abrange todas as esferas da sociedade transformando-a em “coisa”. Neste contexto o homem se tornou meramente um instrumento do processo capitalista e da grande cadeia que a indústria cultural se tornou.
[26] “O princípio do pensamento situacional é, sem dúvida, imparcialidade, mas também estupefação, temor, envolvimento. O filósofo, do mesmo modo, é uma testemunha, não um responsável pelos atos alheios. A não ser que estejamos amando ou lembremos vivamente o que nos aconteceu quando estávamos amando, ignoramos o amor” (HESCHEL, 1975, p. 19).
[27] Cf. Otto (1985).
[28] Em Alemão: “Die Religion Sie ist das Opium des Volkes”. Frase de Karl Marx como crítica à religião que, segundo ele, é o ópio do povo. Disponível em: http://fathel.com.br/revista/ wp-cont ent/uploads/downloads/2 010/12/critica_a_critica_arruda.pdf. Acessado dia 09 de maio de 2013.
[29] Na concepção de Rorty e Vattimo (2006, p. 17-26), estamos vivendo agora o tempo pós-cristão da morte de Deus, no qual a secularização tem se convertido em uma norma de todo discurso teológico.