Bernanos: Católico e Antimoderno
Bernanos: Catholic and Anti-Modern

Cássio Oliveira Lignani*
*Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letaras: Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: cassio.lignani@gmail.com
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Resumo
A obra de Georges Bernanos está inserida no que se define por “romance católico”, rótulo sob o qual se estabeleceu uma tradição que reúne uma diversidade de escritores, o que não significa necessariamente que todos se inclinem em um exercício dogmático e militante, nem mesmo que suas obras possam ser consideradas a expressão de um pensamento cristão. Antes disso, o “romance católico” manifesta-se, tanto na França, quanto no Brasil, como mais uma antítese da Cidade de Deus agostiniana, pela qual se pode perscrutar uma crítica mística ao mundo contemporâneo. A modernidade, nesse sentido, é o que faz emergir uma neocristandade no início do século XX, à qual muitos escritores, distantes da igreja dogmática, mas engajados nos tópicos espirituais, debruçaram-se. Considerar a obra bernanosiana como a simples expressão de um pensamento cristão seria, nas palavras de PICON (1948), para os não cristãos, como estar “diante da porta de um jardim selado”. Tal abordagem anularia o universo que se abre a partir da superfície religiosa e que se oferece como um desdobramento das investigações do mundo moderno. É nesse sentido que Bernanos, escritor católico, é antes um intelectual que experimenta, a partir de seu deslocamento, de uma vida de degredo físico e de busca espiritual, das encruzilhadas entre a razão e a fé, uma curva católica e espiritualista, da qual não apenas sofre suas influências, mas à qual também contribui em grande parte com a sua consolidação.

Palavras chave:Bernanos; modernidade; razão; fé; tédio. Mistagogia.

 

Abstract
Georges Bernanos’s work is inserted in what is defined by “Catholic novel”, a label under which a tradition has been established that brings together a diversity of writers, which does not necessarily mean that everyone bends in a dogmatic and militant exercise, not even may his works be considered the expression of the Christian thought. Prior to this, the “Catholic novel” manifests itself, both in France and in Brazil, as an antithesis of the Augustinian “City of God”, through which a mystical critique of the contemporary world can be scrutinized. Modernity, in this sense, is what gives rise to a neo-Christianity in the early twentieth century, to which many writers, far from the dogmatic church, but engaged in spiritual topics, have bent over. To consider the Bernanosian work as the mere expression of Christian thought would be, in the words of PICON (1948), for non-Christians, to be “standing at the door of a sealed garden.” Such an approach would nullify the universe that opens from the religious surface and offers itself as an offshoot of investigations of the modern world. Bernanos is rather an intellectual who experiences, from his displacement, a life of physical degradation and spiritual pursuit, the crossroads between reason and faith.

Keywords:Bernanos; modernity; reason; faith; tedium.

Introdução

E m seu panfleto La France contre les robots (1944), escrito no Brasil, Bernanos apresenta sua concepção acerca do mundo moderno dotada de um pessimismo frente ao que o autor vai chamar de determinismo econômico. Ao pensar o mundo em meio aos desdobramentos do final de Segunda Guerra Mundial, o escritor francês vai afirmar que o período das ideologias já teria se encerrado, associando Inglaterra, Estados Unidos e União Soviética em um mesmo projeto, que seria o da manutenção de um “sistema” que lhes garantisse poder e riqueza.

A Rússia não tirou menos proveito do sistema capitalista do que a América ou a Inglaterra; ela assumiu o papel clássico do parlamentar que faz fortuna na oposição. Em suma, os regimes já ditos opostos pela ideologia estão agora estreitamente unidos pela técnica1. (BERNANOS, 1970, p.7, tradução nossa).

O mundo moderno sobre o qual Bernanos fala é o mundo da técnica, e, nesse espaço, a liberdade estaria perdida. O homem livre, conforme concebido pela França revolucionária, que por sua vocação individual contribui com a construção de uma cidadania coletiva, deixa de existir a partir do momento que a Revolução Industrial promove um chamado determinismo econômico.

Os acontecimentos que marcam a passagem do século XVIII para o século XIX, segundo Bernanos (1970), transformaram o homem, que já foi um “animal religioso”, em um “animal econômico”. Isso significa, nas palavras do próprio escritor, que esse mundo moderno provocou uma profunda mudança na existência material e espiritual do homem.

Dizia-se, outrora, que o homem era um animal religioso. O sistema o definiu de uma vez por todas como um animal econômico, não somente escravo, mas objeto, a matéria quase inerte, irresponsável, do determinismo econômico, e sem esperança de se emancipar disso, visto que ele não conhece nenhum outro motivo certo que o interesse, o lucro. Preso em si mesmo pelo egoísmo, o indivíduo não aparece mais do que como uma quantidade desprezível, submissa à lei dos grandes números; que não se saberia fingir empregá-lo que pelas massas, graças ao conhecimento das leis que o regem. Assim, o progresso não está mais no homem, está na técnica, no aperfeiçoamento dos métodos capazes de permitir uma utilização cada dia mais eficaz do material humano.2 (BERNANOS, 1970, p. 7-8, tradução nossa).

Essa passagem do homem religioso para o econômico, a reificação e a massificação do homem como força de trabalho, e, sobretudo, a primazia da técnica teriam culminado no Realismo do século XIX, cujos métodos racionais conduzem as operações do mundo moderno. O homem, portanto, não poderia ser concebido senão como parte dessa engrenagem que funciona o sistema. “O que dá a unidade da civilização capitalista, é o espírito que a anima, é o homem que ela criou. É ridículo falar das ditaduras como monstruosidades caídas da lua, ou de um planeta ainda mais distante, no plausível universo democrático”3 (Ibidem, p.9, tradução nossa). A perversidade do sistema, advinda da especulação econômica, é a criação das massas que servem para fornecer “soldados e desempregados”, peças de reposição em grande número, transformados materialmente e espiritualmente, esse homem moderno que, não só autoriza, como tornam possível o surgimento das monstruosidades do totalitarismo.

A tradição de liberdade que o autor atribui à França é inconcebível e indefensável no contexto sistemático do mundo moderno. Segundo Bernanos (1970), a liberdade, além de ser uma premissa para a manutenção da humanidade do homem, é uma vocação sobrenatural, um advento divino. A liberdade civil, ideia sob a qual os revolucionários franceses se uniram, e a liberdade sobrenatural, advento divino sob o qual está uma tradição de cristandade, perdem-se no mundo moderno, em que o sistema anula a individualidade e incorpora as religiões.

A perda da individualidade do homem no mundo moderno resulta, segundo o autor, na perda da alma. O homem moderno, sob essa concepção, é um homem sem alma, sem motivo e sem desejo. Isso se dá pelas formas de organizações, muitas das quais aparentemente inofensivas. Alguns exemplos que aparecem em La France contre les robots desses atos despretensiosos são a coleta de impressões digitais, o imposto sobre o sal e o serviço militar obrigatório. Bernanos (1970) afirma que essas ações de estado são medidas aceitas pelo homem pequeno burguês sem se perguntar o porquê. É a partir daí que se funda a sociedade de controle, cujas requisições são atendidas inconscientemente. Tal postura, ou impostura, resulta em um retrocesso da civilização e, não bastasse isso, na aceitação de atos que sustentam uma natureza autocrática do sistema com uma falsa aparência de diligência. A emergência dos regimes totalitários na Europa é explicada por Bernanos em razão da anulação das liberdades do homem com a falsa sensação de que isso se daria em prol de uma pátria, sendo que a noção de Pátria, diferentemente da de Estado, deveria ser a manutenção dessas liberdades. O mundo moderno submete o homem, sem que este perceba, a uma lei suprema, à qual ele confia sem que se perceba de que, ao fazê-lo, perde sua liberdade.

La France contre les robots expõe a visão mais aparente de Bernanos acerca da modernidade. Embora tenha a concisão e a superficialidade de um panfleto, traz um testemunho espontâneo e verdadeiro das aflições do escritor, o que permitirá também, compreender as relações entre suas obras ficcionais e a experiência do mundo moderno. Há, em seus textos ensaísticos, uma nostalgia do homem francês do passado e sua tradição revolucionária. Para Bernanos (1970), a revolução só seria possível pela fé religiosa no homem, e acredita que, nos momentos iniciais da Revolução Francesa, antes de se desencadear a fase do Terror, teria havido essa comunhão dos homens visando a um bem comum. Servir a essa causa confunde-se com a noção bernanosiana de liberdade, que acredita a liberdade possa ser encontrada pelo servir, e que o servir só se daria por amor. Apesar de notável a concepção cristã de Bernanos, tal acepção moral é, sobretudo, uma clara oposição à servidão perversa do mundo moderno. “Apenas um homem livre é capaz de servir, o serviço é por sua própria natureza um ato voluntário, a homenagem que um homem livre faz de sua liberdade a quem lhe apraz, àquele que ele julga acima de si, àquele que ele ama.”4 (BERNANOS, 1970, p.25, tradução nossa).

Os temas da liberdade e da capacidade de renúncia pelo amor estará presente nas tragédias de seus personagens ficcionais. A experiência sobrenatural, a capacidade de se buscar até chegar ao próprio esquecimento, em um total desprendimento de si próprio, será um dos caminhos desses personagens, que só poderá se consumar com a total consagração de uma vida mundana e decadente.

A experiência existencial de seus personagens assemelha-se à dos homens criados pelas guerras, a quem Bernanos (1970) chamará de “homens de consciências deformadas”. Para o autor, após o final da Segunda Guerra, seria impossível pensar em liberdade. Isso se mostra a partir das observações que Bernanos (1970) faz da Primeira Guerra Mundial, da qual participou pelo exército francês. As guerras modernas são incapazes de produzir heróis, uma vez que são atos de Estado, propensas apenas a fornecer um material humano resignado e resistente compreender. A crítica que Bernanos faz a esse homem produto da guerra nasce de sua própria experiência, ao afirmar que a guerra da qual participou não produziu rebeldes, mas, no máximo, aventureiros incapazes de qualquer outra tarefa. Homens dedicados, engajados na necessidade de realizar uma tarefa, mas completamente alheios a um mundo que os renegava (BERNANOS, 1970, p.27).

O sentimento de Bernanos pós-1920 em relação ao homem originário dessa década foi de decepção, e isso, admite o autor, foi o que o levou a dedicar-se à literatura. Pouco tempo depois, em 1926, seria publicado Sob o Sol de Satã. É inevitável associar Bernanos à sua religião, mas fica premente em seus textos ensaísticos, e também ficcionais, embora os tópicos religiosos estejam sempre presentes, uma busca pela encarnação desse espírito livre e revolucionário diante de um mundo sem heróis, resignado e privado de experiências significativas, daí a deformidade que ele atribui a esse período, consequência do que ele chamará de tragédia do século XIX, o século das máquinas.

[...] as guerras de outrora, as guerras políticas, as guerras de soldados, formavam heróis e bandidos, a maior parte heróis e bandidos ao mesmo tempo. Mas a guerra moderna, a guerra total, trabalha para o Estado totalitário, ela lhe fornece seu material humano. Ela forma uma nova espécie de homens, abrandados e quebrados pela provação, resignados a não compreender, a não “buscar compreender”, segundo sua palavra célebres, razoáveis e céticos na aparência, mas terrivelmente desconfortáveis nas liberdades da vida civil que eles desaprenderam de uma vez por todas, que eles jamais reaprenderão[...] (BERNANOS, 1970, p.31).

No mundo moderno, esse homem resignado dá lugar às máquinas, na incessante busca pela eficiência e pelo lucro. Àqueles que acreditam que essa nova época é um caminho natural da ciência, Bernanos (1970) afirma que a tragédia do século XIX é o fato de que o homem daquele século ainda não estava preparado para as máquinas. Nesse sentido, ele evita o discurso contra a ciência e contra a razão, uma vez que atribui essa mudança espiritual e material do homem à velocidade das transformações, isto é, o homem moderno não teve outra opção que não fosse a rendição diante dos acontecimentos acelerados da civilização das máquinas. Para Bernanos, as máquinas não originaram a maldade do homem, mas expandiram seus limites.

É a partir dessas observações em tom exaltado de La France contre les robots que se antevê a visão de mundo moderno bernanosiana. Trata-se de um dos seus últimos textos publicados em vida, dezoito anos depois da publicação de seu primeiro romance, em que se destaca a experiência “monstruosa” dessa nova sociedade. Bernanos faz essa crítica mostrando as contradições do mundo, em que a ciência, movida pelo saber, é incorporada pelo sistema, movido pela ganância. Tais percepções se dão a partir de uma forma de expressão religiosa, o que não muda o tema em questão, mas apenas as imagens que são utilizadas para melhor compreender esse mundo. Sob essa perspectiva é que o escritor francês afirma que o homem moderno perdeu sua vida interior, ou seja, sua alma, e que o mundo moderno é um mundo humilhado.

A religião, embora seja indissociável da percepção de mundo bernanosiana, configura-se como um meio necessário para encontrar com o universo metafísico e sobrenatural, por isso os tópicos religiosos nas obras de Bernanos, não podem ser desvinculados dos questionamentos profanos, relacionados sobretudo à crítica sobre o mundo moderno. Para pensar a trajetória imaginária de seus personagens, é necessário buscar a constituição de um sentido de vida, que envolve dúvida, incerteza e, principalmente as encruzilhadas da alma. Nesse sentido, perpassar pelas questões religiosas significa propor com maior intensidade a aventura sobrenatural sem perder no horizonte desta análise sua contraposição com o mundo profano.

Não é por acaso que as paróquias que envolvem os romances Sob o Sol de Satã e Diário de um pároco de aldeia estejam consumidas pelo tédio, e os protagonistas das obras, ambos padres, sofram a agonia da fé, por sua decadência em não conseguirem atingir o ideal de santidade. Para definir esse ideal, segundo Bernanos, e também o que seria essa aventura sobrenatural, é inevitável evocar Joana D’Arc, a quem o escritor francês dedicou o ensaio Joana D’Arc, relapsa e santa (1929), símbolo supremo desse ideal de cristandade, já perdido no mundo moderno, que supre a fé do autor. Pode-se dizer que a menina Joana D’Arc, queimada aos dezenove anos pela própria igreja que viria a canonizá-la quase quinhentos anos depois, condensa aquilo que Bernanos busca em seus heróis. “O lugar místico da Joana de Bernanos é o mesmo do pároco de Ambricourt: o Jardim das Oliveiras. Esse é o lugar de todos os heróis cristãos de Bernanos [...]” (BASTAIRE, 2013, p,16). O Jardim das Oliveiras é o espaço da angústia e da agonia, o lugar que precede a crucificação e a morte.

A maneira como Joana D’Arc vive aquele momento simboliza uma conduta já perdida, um momento chave de oposição entre “a igreja institucional e a igreja dos santos”, algo que Bernanos remarca constantemente em sua época, daí a nostalgia e sua inconformidade com o mundo moderno, e, claro, com a igreja institucional desse período, que culmina em resignação e derrota. “A essa meditação sobre a Igreja acrescenta- -se uma contemplação da figura de Joana, em que Bernanos reúne três características que lhe são caras: a infância, o heroísmo e a agonia” (Ibidem, p.12). Essas características estarão presentes nos romances Sob o Sol de Satã e Diário de pároco de aldeia, mas a partir de uma experiência decadente, distante do caráter corajoso de Joana D’Arc, coragem que resulta também da ingenuidade de uma criança que ignora as ameaças que a cercam, seja pela inocência, seja pela sua experiência sobrenatural.

Embora o lugar da agonia seja o espaço de ambos os romances, a imagem de Joana, como ideal intangível, opõe-se às imagens dos párocos que sofrem uma agonia sem redenção, um sofrimento esvaziado de qualquer sentido, ou seja, heróis que experimentam uma fé questionada, mas que, ainda assim, expiam a perversidade de uma sociedade derrotada. Sob o viés católico, é possível dizer que “o drama moderno está inteiramente ligado ao drama da Igreja, visto que o declínio espiritual está na fonte de todos nossos males: a crise política, social, econômica [...]” (PICON, 1948), mas é preciso relacionar esse “declínio espiritual” no contexto da sociedade moderna, e isso Bernanos realiza em sua crítica ao mundo moderno, presente em seus textos ensaísticos, mas também em seus romances. Os sacerdotes, longe de incorporarem a pureza e a santidade de uma santa como Joana D’Arc, vivem na contradição, pois lutam contra ao mesmo tempo em que suscitam a mediocridade do mundo moderno. Diferem-se dos santos e aproximam-se de seus paroquianos, o pequeno burguês entediado e decadentista, já que têm a fé colocada em dúvida, e cujos sofrimentos dificilmente são recebidos com a aquiescência dos santos.

Os santos, como todos os homens, conhecem as dificuldades da vida e parece que frequentemente eles sofrem até mesmo mais que o homem médio. No entanto, sua santidade não se encontra nos seus sofrimentos, mas em sua atitude em relação a esses sofrimentos, na sua aceitação dessas dores da vida.5 (BUSH, 1962, p. 15, tradução nossa)

A experiência do sobrenatural deixa transparecer a insuficiência do discurso humano e se apresenta nas encruzilhadas da trajetória do herói, cujo destino trágico é inevitável, uma vez que a santidade, no mundo moderno, é intangível. A escolha pelos sacerdotes como heróis implica, necessariamente, em uma valoração da experiência da fé, constituinte de sua existência. Esse é um dos traços que os diferenciam do homem médio, no entanto, sua tragédia é justamente a angústia de não conseguir assumir aquilo que os aproxima da humanidade. Segundo Picon (1948), a experiência do sobrenatural é o centro de cada um dos livros de Bernanos, e a fé, em seus romances, não estaria vinculada a uma adesão incondicional a um fundamento espiritual da realidade, o que o teórico chama de “espiritualismo”, mas a um “sobrenaturalismo”, ou seja, aquilo que transcende a natureza a partir de uma perspectiva puramente racional. O êxito na experiência sobrenatural se dá com o “sentimento de uma presença. Nós não estamos sós – e o absoluto toma a forma do mais fraterno companheiro.” (PICON, 1948, p. 94, tradução nossa). A solidão, para um homem religioso, pressupõe a ausência de Deus, e, por conseguinte, da ausência de si, que culminaria em uma morte trágica. “Contra a tradição de um cristianismo da aquiescência, Bernanos representa, depois de Pascal e Kierkegaard, a tradição de um cristianismo trágico.”6 (PICON, 1948, p. 93, tradução nossa).

Como se pode notar, a experiência do sobrenatural é indissociável de seu contexto histórico, e a trajetória das personagens bernanosianas mostram que mesmo a tradição religiosa não resiste ao declínio do mundo moderno. Nesse espaço, a especulação teológica suplanta a fé, não mais suficiente para a condução da vida coletiva em direção a uma verdade existencial. É nesse sentido que se pode afirmar que a obra de Bernanos funda-se a partir da dúvida e da crise. Por mais católico que seja, ainda que evoque uma cristandade perdida, e se mostre desejoso de uma nostálgica “igreja dos santos”, e que impetuosamente escreva contra a igreja institucional incorporada à lógica perversa do mundo moderno, Bernanos apresenta em sua obra um mundo sem milagres, doentio e decadente, nos quais a santidade e o sacerdócio estão marcados pelo signo da dúvida, da qual decorre toda sua falência e falibilidade. Seus heróis da ficção, assim como seus companheiros de guerra apresentam-se resignados e sós. No caso dos sacerdotes, tal resignação é ainda mais profunda, visto que a solidão se configura como a ausência de Deus. Não é por acaso, como já dito anteriormente, os heróis sacerdotes de Bernanos são aqueles que vivem mais intensamente a experiência do sobrenatural. (ESTÉVE, 1959). É a partir dessa visão, do homem moderno e sua perda da vida interior, e da experiência sobrenatural, que será feita a aproximação de sua obra com o existencialismo.

Conclusão

A atitude do escritor seria a de um existencialismo cristão – trágico –, não a do sacerdote que traz a verdade e ilumina as vidas com seu exemplo de fé. Não só os personagens santificados de seus romances, como o Padre de Ambricourt – Diário de um Pároco de Aldeia – e o Padre Donissan – Sob o Sol de Satã, como o próprio Bernanos também carregam o signo da contradição marcado pela dúvida frente ao mistério e a inquietação provocada pela situação do mundo moderno. (LIMA, A.A., 1968)

Inserir a obra de Bernanos na corrente existencialista significa, muito mais do que pretendê-la em uma corrente filosófica, estabelecer um vínculo com o pensamento moderno de questionamento ao imanentismo. Trata-se, pois, de distanciá-la de uma concepção essencialista cristã, ampliando seu poder simbólico ao relacioná-la ao existencialismo ateu. Muito além de um pressuposto idealismo transcendente e espiritualista, a obra bernanosiana funda-se na experiência humana, sobretudo em algumas de suas dimensões mais críticas, como a crise e a angústia de ser. Nesse sentido, busca-se analisar seus personagens, não por um desígnio divino, mas a partir de suas ações frente aos problemas que se revelam ao longo da narrativa.

Para o autor, que iniciou sua carreira literária aos 40 anos, escrever “era a forma da vocação e da evocação e também o instrumento de revolta contra a iniquidade humana que consumia o seu prazer de existir.” (FRANCO, 1968, p.84) Nesse cometimento com a escrita, transparecem em seus romances os três temas que orientam a obra bernanosiana: o tédio, a santidade e a morte. Do tédio se forma o que se poderia chamar de “encruzilhada das almas” na obra romanesca de Bernanos. Desse ponto originário, tem-se a “experiência existencial fundamental”, que seria a gênese do caos e da ordem, da possibilidade de escolha entre um destino satânico ou divino, e tema recorrente na obra do escritor francês, segundo o qual “todos os pecados capitais juntos danam menos homens do que a Avareza e o Tédio.7 ” (BERNANOS apud LIMA, 1968, p.29)

Svendsen (2006) observa que a acédia (acídia, tédio) já foi considerada pela Igreja como o pior dos pecados, uma vez que todos os outros derivariam dela, ideia que se reforça também na obra de Dostoievski8 . A acédia, enquanto conceito moral, provoca o tédio, estado psicológico, e sua superação se dá por meio da transcendência, uma vez que não se trata de “uma questão de ócio, mas de significado.” (Ibidem, p.36) A religião é evidentemente uma fonte de sentido, uma alternativa ao mistério, a transcendência para superar o tédio.<`/p>

Em princípio, a obra de Bernanos se aproxima da concepção de tédio depreendida dos pensamentos de Pascal como ausência de fé. (ESTÈVE, 2009) É preciso salientar, contudo, que o tema é um argumento recorrente e incandescente nos romances do escritor francês, uma vez que, além de desencadear os acontecimentos e as reflexões dos personagens, pressupõe uma existência insatisfatória e o aumento do niilismo (SVENDSEN, 2006), configurando, sobretudo nessas obras que evocam a crença religiosa, um conflito irredutível.

Em Sob o Sol de Satã, Germana Malorthy, Mouchette, é a personagem que “sabe amar” e nutre em si “a curiosidade do prazer e do risco, a confiança intrépida daqueles que arriscam tudo em um só golpe, afrontam o mundo desconhecido, recomeçam a cada geração a história do velho universo.9 ” (BERNANOS, 2009, p.68) Da paixão impetuosa desencadeada pela jovem Mouchette, chega-se à desilusão do desencontro entre a fé e a razão. Deslocada, refugiada em seus desejos, a personagem torna-se sombria, e o tema do tédio, associado à solidão, surge logo no início da trama. “A personagem que ela fingia ser destruía a outra pouco a pouco, e os sonhos que a tinham conduzido caíam um por um, roídos pelo verme invisível: o tédio.10” (Ibidem, p.94) O encontro com Mouchette será um toque de obscuridade na prova de fé do padre Donissan, uma das expiações necessárias em seu caminho para a santidade.

O tema reaparece também na obra Diário de um Pároco de Aldeia, acompanhando o padecimento de um jovem padre que se encontra em desassossego, acometido não só pela saúde débil, mas também pelas dúvidas nos desafios da condução espiritual de sua paróquia.

Minha paróquia está devorada pelo tédio, eis a palavra. Como muitas outras paróquias! O tédio as devora sob nosso olhar e não podemos fazer nada. Qualquer dia, talvez, o contágio nos alcançará; nós descobriremos em nós esse câncer. Pode-se viver muito tempo com isso.11 (BERNANOS, 2009, p.1031, tradução nossa)

O tédio evidencia-se como um problema teológico, como se o homem sem deus fosse nada e tivesse consciência disso, entregando- -se a distrações, tal como sugere a concepção de Pascal apontada por Svendsen (2006). Pressupõe-se, além disso, desse estado psicológico, uma ausência de sentido, que torna a vida injustificável e a existência insignificante. Na obra de Bernanos, o tédio é apontado como a origem manifesta da destruição da humanidade. (SVENDSEN, 2006)

Ao pensar as alternativas que se oferecem ao tédio, chega-se à segunda e à terceira seções propostas para estudo na obra de Bernanos: a santidade e a morte. A primeira remonta à ideia de uma igreja invisível, visto que a santidade parece ser a alma a partir da qual se estrutura a igreja dogmática. Trata-se, pois, da alternativa da fé, da aceitação do mistério, que não se dá de maneira instituída, mas de forma mais transparente e infantil. A fé é, na verdade, um ato de absoluta simplicidade. Isso não significa, contudo, que não haja sofrimento e expiação, uma vez que a santidade se encontra na atitude de aceitação diante da dor. (BUSH, 1962)

Aceitar não é compreender, e os santos em Bernanos não superam a humanidade, mas parecem assumi-la e excedê-la em seus sofrimentos e angústias, tal como Jeanne D’Arc, considerada pelo próprio autor como um signo puro e inocente, completamente alheio da especulação teológica, um alheamento característico de uma ingenuidade original perdida na infância, que pertence ao domínio do sagrado.

Como em Proust, como em todos os escritores da nostalgia... O que se foi está menos próximo da morte do que o que se é: em direção à infância se volta naturalmente aquele a quem a inexorável marcha do tempo desola, como em direção de uma ilusão de uma eternidade imanente.12 (PICON, 2009, p.31)

A santidade, em Bernanos, é esse contato com o eterno, um afastamento da morte – que não a nega – e é igualmente angustiante. A inocência da infância inspira uma incompreensão diante do sofrimento, e o autor, ao aceitar essa incompreensão “parece se relacionar com os existencialistas e, sobretudo, com Camus, que mostra também uma angústia particular diante do sofrimento humano.13” (BUSH, 1962, p.205)

Não há nada de belo na trajetória da santidade. Isso se manifesta na observação de um personagem de Sob o Sol de Satã, o escritor Antoine Saint-Marin, um homem de letras e contrário à igreja, que ao buscar conhecer mais sobre a vida do padre Donissan, admite que, assim como tudo no mundo, a santidade “só é bela em cena; o entorno do cenário é podre e feio.14” (BERNANOS, 2009, p.300, tradução nossa) A partir da trajetória do herói em seu primeiro romance e em Diário de um Pároco de Aldeia, ressaltando os textos críticos sobre o próprio pensamento do escritor, seria possível, portanto, estabelecer uma correlação entre o Bernanos e o existencialismo.

A fé aparece como resistência à condição humana que consome o prazer de existir, sendo, nesse sentido, uma alternativa ao tédio, embora não seja a única. Chega-se, dessa forma, a uma segunda alternativa: a morte. Parte-se, pois, do princípio do vazio existencial, da ausência de sentido que supera a própria existência. Nesse lugar, nem a fé, nem a ciência, nem a dúvida bastam; o tédio desencadeia o esvaziamento do ser. É o fim de um sonho, alegoria proposta no romance Sob o Sol de Satã.

Nesse momento, a vida cotidiana o retoma com tanta força, e tão bruscamente, que em um minuto não lhe resta nada, absolutamente nada em seu espírito de um passado contudo tão próximo. Esse brutal apagamento foi, sobretudo, ressentido como uma dolorosa diminuição de seu ser.15 (BERNANOS, 2009, p.191, tradução nossa)

Despertar, ser apartado da ilusão, rememora Septímio Severo, sob a pena de Bernardo Soares: “Fui tudo; nada vale a pena16”. Igualmente, a entediante falta de sentido não pode ser analisada se não se considera a decadência da experiência. Quando o cotidiano se torna carente de experiências comunicáveis, vive-se o princípio de uma realidade entediante que pode ser analisada como um problema central na obra de Bernanos e relevante para compreender a narrativa moderna. A carência na troca de experiências se dá justamente pela decadência de seu valor. (BENJAMIN, 2012)

Frente a um mundo diáfano e sem mistério, carente de sentido e falho em sua transmissão, no qual a existência é drasticamente insatisfatória e o tédio surge como estado substancial, que remonta o ser humano à sua origem, tem-se, além dos vícios, do caos e da violência, uma única possibilidade do novo, que é a própria morte.

O tédio está relacionado à morte, mas essa é uma relação paradoxal, porque o tédio assemelha-se a uma espécie de morte, ao passo que a morte assume a forma do único estado possível – uma ruptura com o tédio. O tédio tem a ver com a finitude e com o nada. É a morte em vida, uma não-vida. Na inumanidade do tédio ganhamos uma perspectiva de nossa própria humanidade. (SVENDSEN, 2006, p.43)

É preciso, portanto, compreender Bernanos como um escritor do tédio, aproximando-o, assim, de uma das problemáticas do romance moderno, e dissociando-o relativamente do rótulo de escritor católico. Pensar o tédio como insuficiência de uma existência, a santidade como a infância ainda plena de mistério, e a morte como a experiência do novo, é uma maneira de abordar as obras Sob o Sol de Satã e Diário de um Pároco de Aldeia como testemunhos de um artista, capaz de “aproximar de nós tragédias distantes e impregnar os momentos sem Deus com as dimensões do eterno.” (LIMA, 1968, p.17)

Muito além de sua orientação religiosa, Bernanos foi um escritor tempestuoso e inquieto frente ao mundo de sua época. Sua experiência de vida, que passa pela Primeira Guerra, pelo acompanhamento da Guerra Civil na Espanha, e pelo seu exílio no Brasil, onde viveu por seis anos e acompanhou a Segunda Guerra na angústia do alheamento, revela- -se no existencialismo contraditório de seus personagens, que transitam no tédio entre o caos e a ordem, a encruzilhada da alma que provoca o vazio existencial, que só é interrompido na crença da infância, a inocência da qual se origina a santidade, e na volta à origem, pelo mistério da morte inevitável.

Referências :

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ESTÈVE, Michel. Le sens de l’amour dans les romans de Bernanos. Paris: Lettres Modernes, 1959.

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FRANCO, Virgílio de Mello. Homenagem a Bernanos. In: SARRAZIN, Hubert. Bernanos no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1968, p. 75-84.

LIMA, Alceu Amoroso. Bernanos no Brasil. In: SARRAZIN, Hubert. Bernanos no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1968, p. 21-31.

PICON, Gaëtan. Georges Bernanos. Paris: Robert Marin, 1948.

PICON, Gaëtan. Bernanos romancier. In: Oeuvres romanesques: suivies de Dialogues des carmélites. Paris: Gallimard, 2009. p. 9-34.

SARRAZIN, Hubert. Bernanos no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1968.

SARRAZIN, Hubert. Bernanos e seus amigos no Brasil. In: SARRAZIN, Hubert. Bernanos no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1968, p. 1-14.

SVENDSEN, Lars. Filosofia do tédio. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

Notas

[1][...] la Russie n’a pas moins tiré profit du système capitaliste que l’Amérique ou l’Angleterre; elle y a joué le rôle classique du parlementaire qui fait fortune dans l’opposition. Bref, les régimes jadis opposés par l’ideologie sont maintenant étroitement unis par la technique.

[2]On a dit parfois de l’homme qu’il était un animal religieux. Le système l’a défini une foi pour toutes un animal économique, non seulement l’esclave mais l’objet, la matière presque inerte, irresponsable, du déterminisme économique, et sans espoir de s’en affranchir, puisqu’il ne connaît d’autre mobile certain que l’interêt, le profit. Revé à lui-même par l’égoïsme, l’individu n’apparaît plus que comme une quantité négligeable, soumise à la loi des grands nombres; on ne saurait prétendre l’employer que par masses, grâce à la connaissance des lois qui le régissent. Ainsi, le progrès n’est plus dans l’homme, il est dans la technique, dans le perfectionnement des méthodes capables de permettre une utilisation chaque jour plus efficace du matériel humain.

[3] Ce qui fait l’unité de la civilisation capitaliste, c’est l’esprit qui l’anime, c’est l’homme qu’elle a formé. Il est ridicule de parler des dictatures comme de monstruosités tombées de l alune, ou d’une planète plus eloignée encore, dans le plaisible univers démocratique.

[4]Mais un homme libre seul est capable de servir, le servisse est par sa nature même un acte volontaire, l’hommage qu’un homme libre fait de sa liberte à qui lui plaît, à ce qu’il juge au-dessus de lui, à ce qu’il aime.

[5]Le saints, comme tous les hommes, connaissent les difficultés de la vie et il semble que três souvent ils em souffrent même plus que l’homme moyen. Pourtant leur sainteté ne se trouve pas dans leurs souffrances mais dans leur atitude envers ces souffrances, dans leur acceptation de ces douleurs de la vie.

[6]Contre la tradition d’un Christianisme de la quietude, Bernanos représente, après Pascal et Kierkegaard, la tradition d’un christianisme tragique.

[7]Tous les péchés capitaux ensemble damnent moins d’hommes que l’Avarice et l’Ennui.

[8]“[...] eu sofria, e era um sofrimento verdadeiro, real; sentia ciúmes, ficava fora de mim... E tudo isso por tédio, senhores, tudo por tédio; fui esmagado pela inércia.” (DOSTOIEVSKI, 2011, p.14) “Evidentemente, o que não se inventará por puro tédio!” (Ibidem, p.19)

[9][...] la curiosité du plaisir et du risque, la confiance intrépide de celles qui jouent toute leur chance en un coup, affrontent un monde inconnu, recommencent à chaque génération l’histoire du vieil univers.

[10] Le personnage qu’elle affectait d’être détruisait l’autre peu à peu, et les rêves qui l’avaient portée tombaient un par un, rongés par le ver invisible: l’ennui.

[11] Ma paroisse est dévorée par l’ennui, voilà le mot. Comme tant d’autres paroisses! L’ennui les dévore sous nos yeux et nous n’y pouvons rien. Quelque jour peut-être la contagion nous gagnera, nous découvrirons en nous ce cancer. On peut vivre très longtemps avec ça.

[12]Comme chez Proust, comme chez tous les écrivains de la nostalgie... Ce qui fut est moins près de la mort que ce qui est: vers l’enfance se retourne naturellement celui que désole l’inexorable marche du temps, comme vers l’illusion d’une éternité immanente.

[13][...] semble se rapprocher des existentialistes et surtout de Camus qui montre aussi une angoisse particulière devant la souffrance humaine.

[14][...] n’est belle à voir qu’en scène; l’envers du décor est puant et laid

[15]À ce moment, la vie quotidienne le reprit avec tant de force, et si brusquement, qu’une minute il ne resta rien, absolument rien dans son esprit d’un passé pourtant si proche. Ce brutal effacement fut surtout ressenti comme une douloureuse diminution de son être.

[16] PESSOA, O livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 404.