A leitura literária da Bíblia e sua contribuição para a espiritualidade cristã.
A literary reading of the Bible and its contribution to Christian spirituality.

*João Leonel
*Doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp. Professor de Literatura na Graduação e Pós-Graduação em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP. Contato: joao.leonel@uol.com.br
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Resumo
Este artigo relaciona dois pilares da fé cristã: Bíblia e espiritualidade, indicando como a primeira, lida em perspectiva literária e em seu papel mediador entre o que crê e a divindade, contribui para o enriquecimento e aprofundamento da segunda. Para tanto, é utilizado o conceito de prazer na leitura, trabalhado por Roland Barthes. A Escritura é o olho por onde vejo a Deus e ele me vê. Desenvolve-se, igualmente, uma análise crítica da racionalidade exegética e de sua vocação enfaticamente historicista e argumenta-se pela necessidade de incorporar à exegese o aspecto emotivo dos textos bíblicos. Por fim, a partir dos elementos teóricos, são desenvolvidos exercícios de interpretação literária.

Palavras chave:Bíblia; espiritualidade; leitura literária; prazer; intepretação.

 

Abstract
This article lists two pillars of the Christian faith: the Bible and spirituality. It indicates how the Bible, interpreted from a literary perspective and as a mediator between the believer and the deity, contributes to the enrichment and deepening of the spirituality. For that, the concept of pleasure in reading, worked by Roland Barthes, is used. Scripture is the eye through which I see God, and he sees me. A critical analysis of exegetical rationality and its historicist vocation is presented. Argues the need to incorporate into the exegesis the emotive aspect of biblical texts. Finally, from the theoretical elements, exercises of literary interpretation are developed.

Keywords:Bible; Spirituality; Literary Reading; Pleasure; Interpretation.

Introdução

Preliminar para o desenvolvimento deste artigo é a definição de um dos termos utilizados em seu título: “espiritualidade”. A pesquisadora norte-americana, Joann Wolski Conn, no contexto da pesquisa acadêmica sobre o tema, afirma:

A Espiritualidade Cristã, como uma disciplina acadêmica, aborda a experiência de Deus como experiência. Este campo interdisciplinar examina o padrão concreto de sentimentos humanos, imagens, intuições, julgamentos, decisões, ações [...] e os vê a partir da perspectiva particular de nosso relacionamento com Deus, em Jesus Cristo, pela mediação do Espírito (1982, p. 60, tradução nossa, grifo da autora).

Para Conn, espiritualidade é “experiência e relacionamento”. O exegeta veterotestamentário Claus Westermann (1987, p. 10). expõe em outros termos a mesma perspectiva, ao dizer que o Antigo Testamento apresenta “[...] o aspecto sistemático da fala constante sobre Deus [...] num atuar recíproco entre Deus e o homem [...] reinando de parte a parte um falar e um agir” A experiência da relação entre Deus e o ser humano é o cerne da espiritualidade.

No entanto, há um elemento ausente na definição. Nas tradições cristãs, as Escrituras são colocadas como mediadoras na relação da humanidade com a Trindade. Do ponto de vista da experiência, o texto é fundamental. As Escrituras configuram o alicerce sobre o qual a experiência com Deus, a espiritualidade, é edificada.

Segundo Roland Barthes, teórico da literatura francês (1915-1980), em O prazer do texto:

Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado de que fala um autor excessivo (Angelus Silesius1 ): O olho por onde eu vejo Deus é o mesmo olho por onde ele me vê (BARTHES, 2002, p. 23).

Em outras palavras, o texto é central. Eis a síntese da experiência do cristão com Deus. As Escrituras são “O olho por onde eu vejo Deus [sendo as Escrituras] o mesmo olho por onde ele me vê”.

Em O prazer do texto, Roland Barthes propõe uma reação ao teorismo e à análise fria de textos literários. Propõe o prazer, o deleite como critério e experiência na leitura de textos. Ele nos ajuda a compreender a relação com Deus por meio da experiência da leitura da Bíblia.

Para Barthes, o texto é central no processo.

Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia (BARTHES, 2002, p. 74- 75, grifo do autor).

Eis a importância do que diz o francês. O texto não é apenas o olho com o qual eu contemplo Deus e sou contemplado por ele, mas é também o olho pelo qual eu vejo a mim mesmo. Nesse sentido, o texto tem como objetivo levar-me à experiência do autoencontro.

Continua Barthes:

Cada vez que tento analisar um texto que me deu prazer, não é a minha subjetividade que volto a encontrar, mas o meu indivíduo, o dado que torna meu corpo separado dos outros corpos e lhe apropria seu sofrimento e seu prazer: é meu corpo de fruição que volto a encontrar. E esse corpo de fruição é também meu sujeito histórico; pois é ao termo de uma combinatória muito delicada de elementos biográficos, históricos, sociológicos, neuróticos (educação, classe social, configuração infantil, etc.) que regulo o jogo contraditório do prazer (cultural) e da fruição (incultural) [...] (BARTHES, 2002, p. 73).

Tal encontro de prazer não será sempre ameno. Pois o eu que encontro no texto não é uma projeção que faço de mim mesmo em minha pretensa perfeição ou santidade, mas meu eu histórico, limitado, sujeito ao que me envolve e à realidade concreta de que sou um pecador envolto em complexidades, decepções e incompreensões. Eis o processo pelo qual a Bíblia opera em nós o processo de espiritualidade.

Portanto, tomo como premissa que a função do texto bíblico é gerar em nós espiritualidade. E a espiritualidade se constrói a partir do prazer – por vezes dolorido – da leitura que nos conduz à experiência profunda e visceral com Deus e conosco mesmo.

Antes de apresentar exercícios de leitura de textos bíblicos que testam tal proposição, é necessário fazer, mesmo que brevemente, algumas observações a respeito do campo exegético.

A exegese acadêmica e o prazer do texto

Início este tópico com uma citação do livro The Heart of Biblical Narrative: rediscovering biblical appeal to the emotions, de Karl Allen Kuhn, publicado em 2009.

Exegetas, em geral, têm demonstrado pouco interesse na dimensão afetiva da narrativa bíblica. Raramente o impacto emocional da literatura sobre os leitores tem sido tratado como um tópico relevante para o estudo crítico da narrativa bíblica. Quando refletimos sobre isso, essa omissão é digna de nota. Afinal, a emoção é fundamental para nossa experiência de envolvimento com outras formas de expressão narrativa. Por exemplo, quando lemos um romance ou uma obra dramática de não-ficção, vemos uma peça ou filme, nossas faculdades afetivas são, muitas vezes, profundamente envolvidas. As narrativas nos fazem sentir. Nós todos sabemos disso. No entanto, quando se trata das reflexões exegéticas dos pesquisadores bíblicos, eles desprezam o sentido da força afetiva de um texto (KUHN, 2009, posição 21, tradução nossa).

Há, em geral, no mundo acadêmico dos estudos bíblicos, uma desconsideração do prazer, das emoções que os textos bíblicos produzem em nós, leitores. Tais questões, na maioria dos casos, são delegadas ao campo prático da homilética como estratégias que um pregador emprega para trazer emoção aos seus ouvintes

Tal situação situa-se no quadro mais geral de crise epistemológica em que se encontra a ciência bíblica. Em artigo publicado em 2016 comentei a respeito dela2 . Afirmei que “As formas de construção do saber sofrem um esgotamento; o racionalismo agoniza; a teologia, enquanto ‘discurso sobre Deus’, perde seu sentido” (LEONEL, 2016, p. 50).

E, de modo mais específico: “A área exegética, de modo particular, participa da crise. Vários dos pressupostos que governaram por três séculos a pesquisa bíblica encontram-se sub judice. De modo específico, a crítica se dirige à interpretação acadêmica da Bíblia, que se manifesta em duas abordagens: a utilização do método histórico-crítico e a hermenêutica fundamentalista” (LEONEL, 2016, p. 50).

No artigo, utilizei um texto de Walter Brueggemann, que era relevante em 2016 e continua a sê-lo, no qual comenta a perspectiva pela qual os primeiros estudiosos críticos abordavam os textos bíblicos (2016, p. 50).

O fator decisivo já não era mais nenhuma reivindicação de autoridade bíblica, mas sim o método científico, que gozou de enorme popularidade e prestígio durante esse período. Os peritos já não eram mais escravos do texto. Eles pretendiam claramente ser mestres do texto [...] O perito controlava o texto; o livro se tornou um objeto inanimado (1984, p. 12, grifo nosso).

Seguindo a argumentação de Brueggemann, julguei relevante sua reflexão: “Os estudiosos representados por Wellhausen atribuíram ao texto não apenas uma falta de autoridade particular, como também de dinamismo. E ficaram apenas com fragmentos e trechos literários – tão sem brilho como um cadáver” (1984, p. 15, grifo nosso). A busca pela cientificidade e a aplicação de seus métodos dificultou o diálogo com a Bíblia e, por decorrência, o prazer em sua leitura.

A crise epistemológica das ciências bíblicas possui outra origem, principalmente no Brasil – o fundamentalismo religioso. Sob influência de movimentos norte-americanos fundamentalistas, definidos por Júlio Zabatiero como “[...] cristãos ultra-conservadores, que consideravam documento fundamental de sua fé os volumes originais da coleção The Fundamentals, publicados a partir de 1909 [...]” (2012, p. 107), que vieram para nosso país principalmente no início e meados do século 20, o fundamentalismo lançou raízes principalmente no meio protestante.

O fundamentalismo no Brasil não era e não é um movimento organizado formalmente, mas se resume a uma postura hermenêutico-teológica. Como disse anteriormente: “[...] o fundamentalismo, do ponto de visto hermenêutico, consiste em uma interpretação literal da Bíblia e em uma forte ênfase na constituição de dogmas” (2016, p. 51). A literalidade possui, como suporte, um historicismo acrítico que impõe ao leitor da Bíblia a aceitação “literal” de todos os seus conteúdos. Tal compromisso conduz ao dogmatismo e repercute na relação do leitor com a Bíblia. Se o objetivo dos textos bíblicos é a certeza acerca de fatos históricos registrados e a construção do dogma, resta pouco ou nenhum espaço para experimentar o prazer do texto.

Mesmo que antagônicas, as duas abordagens da hermenêutica bíblica, a crítica e a fundamentalista, sofrem de um desvio de rota. Iniciando com o objetivo de interpretar textos bíblicos em seus contextos, no caminho se desviaram, dando maior atenção à história do que ao texto. Se o crítico se esforça para demonstrar que passagens bíblicas estão vinculadas a períodos primitivos da sociedade humana, sendo, por isso mesmo, defasados e com inconsistências, o fundamentalista, igualmente utilizando ferramentas históricas, luta para provar que as imagens históricas presentes nos textos são verdadeiras nos detalhes de suas descrições. Em ambos os casos é comum a prática da reconstrução histórica que se torna determinante para a interpretação do texto. O texto não é mais central, muito menos o prazer em lê-lo. O texto se tornou refém do historicismo.

É necessário destacar também que ferramentas utilizadas tradicionalmente pela hermenêutica bíblica como a filologia, a etimologia e a morfologia contribuíram para que se pavimentasse uma interpretação historicista que vinculava os textos ao processo de seu desenvolvimento histórico e, ao mesmo tempo, os prendia irremediavelmente ao passado, uma vez que a exegese adequada era aquela que indicava o sentido original, dicionarizado, das palavras. Praticava-se uma espécie de arqueologia linguística.

Adicione-se a isso a fixação pela análise de pequenas porções textuais, partindo da premissa de que uma boa interpretação bíblica é aquela que consegue identificar o maior volume possível de informações relativas a um pequeno texto. Edificou-se, então, uma tradição de interpretação da Bíblia que pretende saber muito sobre fragmentos textuais, mas que tem dificuldades, ou mesmo não consegue compreender as articulações que movem grandes blocos e livros inteiros.

Além disso, o olhar exclusivo para o passado dificultou que se olhasse para a função fundamental de todo texto literário: inspirar, iluminar, inquirir, perturbar o leitor, requerendo dele, no processo de diálogo, que responda aos textos em posicionamentos existenciais. O diálogo entre texto e leitor se instaura não importando o momento histórico em que a leitura é feita.

Para preencher a lacuna criada pelas dificuldades hermenêuticas apontadas, a leitura literária da Bíblia tem sido um caminho alternativo há algumas décadas. Autores como Robert Alter, Northrop Frye, Frank Kermode, Harold Bloom e outros têm iniciado um produtivo diálogo com a exegese bíblica, produzindo belos frutos. A abordagem literária da Bíblia chegou ao Brasil mais recentemente com alguns pesquisadores, como Júlio Zabatiero e o grupo de pesquisas sobre o tema que eu coordeno, vinculado à pós-graduação em Letras, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP.

Análises literárias – espiritualidade movida pelo prazer do encontro no texto

Retomando a proposta de compreendermos o texto bíblico como o caminho pelo qual nossa espiritualidade se constrói, e que isso se dá pelo prazer da leitura e no encontro repleto de emoções com Deus e conosco mesmo, apresenta-se, a seguir, exercícios de leitura bíblica que pretendem ilustrar como o processo ocorre na prática.

Inicialmente, é necessário termos consciência de algumas proposições básicas para lermos a Bíblia como literatura:

• Abordar a Bíblia como literatura significa reconhecer que ela propõe um diálogo com o leitor. O olho pelo qual vejo e sou visto;
• Textos bíblicos em geral trabalham com uma versão mimética (de mimesis, representação) da realidade. Ao invés da Bíblia se remeter ao passado nu e cru, ela apresenta uma interpretação dele (que a teologia nomeia de revelação-inspiração), cujo objetivo é impactar o leitor;
• A leitura literária da Bíblia entende que todos os elementos presentes no texto participam de sua construção exercendo “funções” que visam construir o diálogo com o leitor. O tempo, cenários, personagens unem-se para produzir sentido;
• Na leitura literária da Bíblia os sentidos do texto buscam a reflexão e a aplicação contemporâneas. Elementos de atualização não estão “fora” do texto, mas “nele”, como estratégias de comunicação. O texto bíblico não torna claro tudo quanto diz. Ele deixa espaços para que o leitor o complemente e atualize3

Passa-se, agora, à análise de textos bíblicos, inicialmente com pequenas frases4.

Pequenas frases

1 Samuel 1.8.
Então, Elcana, seu marido, lhe disse55:
Ana, por que choras?
E por que não comes?
E por que estás de coração triste?
Não te sou eu melhor do que dez filhos?

A sequência do texto, nos vs. 9-10, simplesmente diz: “Após terem comido e bebido em Siló, estando Eli, o sacerdote, assentado numa cadeira, junto a um pilar do templo do Senhor, levantou-se Ana, e, com amargura de alma, orou ao Senhor, e chorou abundantemente”. Deve-se notar que Ana atende ao pedido de Elcana e alimenta-se. Mas quanto à pergunta a respeito de seu choro e tristeza, não há resposta. A respeito do v. 8, diz Robert Alter:

Essas palavras apresentam dois extremos, uma vez que expressam o profundo e solícito amor de Elcana por Ana e, ao mesmo tempo, sua incapacidade de entender o quão inconsolável ela se sente pela aflição causada pela esterilidade [...] É digno de nota que Ana não responde a Elcana (2019, v. 2, p. 178, tradução nossa).

Os vs. 9-10 deixam claro que a esposa continua chorando e agora surge um sentimento mais profundo: ela está “amargurada”. Quanto à última pergunta, que por sua posição recebe maior ênfase, não há resposta por parte de Ana, como identificou Alter. Dessa forma, em uma estratégia retórica, o narrador volta-se ao leitor, perguntando a ele: Como você responderia no lugar de Ana? O narrador intencionalmente deixa a pergunta em aberto para que o leitor a responda.

Isaías 1.3

Em virtude do sentido que as linhas poéticas constroem, é necessária uma tradução mais literal a partir do texto hebraico6.

Conhece o boi seu dono
e o jumento a manjedoura de seu senhor
Israel não conhece
meu povo não entende (“discernir” - byn7).

No v. 2 o profeta descreve Yahweh conclamando céus e terra como testemunhas de acusação diante de Israel. A denúncia é que “Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim”

A fala divina continua no v. 3, apresentando a revolta de Israel em sua forma concreta. Para compreender a seriedade do que é dito, é necessário dar atenção à forma como o versículo é montado.

A primeira linha começa com o verbo “conhecer” (yada‘), que, por sua posição na frase, desempenha papel central. O verbo, ausente da segunda linha, mas presente na construção do sentido de forma elíptica, somado à imagem de animais de uso comum pelos israelitas, apresenta uma imagem típica ao povo da época. É natural que bois e jumentos saibam quem são seus donos e o lugar onde se alimentam. No entanto, em oposição aos animais, Israel “não conhece e não entende” (v. 3). John N. Oswalt comenta:

[o] tema da natureza obediente e responsiva continua em Is 1.3, onde se diz que Israel é menos inteligente do que um boi ou um jumento, que ao menos sabem onde está o celeiro. Israel nem isso sabe, e persiste em dar as costas ao seu bom mestre, mesmo quando seu afastamento resulta em espancamento (v. 5) (OSWALD, 2003, p. 72, tradução nossa).

Cabe notar que nas duas primeiras linhas os verbos (o segundo é subentendido) possuem complemento: o boi conhece seu dono; o jumento [conhece] a manjedoura. Entretanto, os dois últimos verbos não possuem complemento. O que Israel não conhece? O que o povo de Yahweh não entende (podendo o verbo também significar “discernir”)? Isso faz parte da acusação contra o povo. Por que, então, não especificar seu erro? Artisticamente, o narrador deixa em aberto a falta de Israel. A hipótese é que o narrador propõe ao leitor que procure no livro de Isaías em que consiste o pecado do povo de Deus. Certamente, será uma leitura de confronto e de dor. Uma leitura de autocompreensão.

Blocos literários

Utiliza-se, agora, textos mais longos e complexos

Rute 1 8

O capítulo apresenta como eixo estruturador o termo “fome”.

Ele gera movimento ao texto, sendo mencionado no início da trama, motivo pelo qual o casal deixa Belém em direção a Moabe; no momento decisivo, quando Noemi resolve abandonar Moabe e retornar para Belém; e ao final, quando a menção ao princípio da cevada é um indicador de que a fome poderá ser superada (v. 22).

v. 1 (início): “Nos dias em que julgavam os juízes, houve fome na terra;”
v. 6 (meio): “Então, se dispôs ela com suas noras e voltou da terra de Moabe, porquanto, nesta, ouviu que o Senhor se lembrara do seu povo, dando-lhe pão” (a fome está implícita no movimento em direção a Belém – v. 19).
v. 22 (fim): “Assim, voltou Noemi da terra de Moabe, com Rute, sua nora, a moabita; e chegaram a Belém no princípio da sega da cevada”.

O texto é construído a partir de uma perspectiva prática: a fome que move a ação das mulheres.

Estrutura literária9

Todo texto narrativo se estrutura a partir da voz do narrador e das vozes dos personagens. Quando o narrador fala, principalmente o narrador em terceira pessoa, traz orientação ao leitor, permitindo que ele compreenda o que se passa na narrativa. Quando o narrador concede a voz aos personagens, o discurso destes deixa de ter a certeza da voz narrativa para introduzir elementos de incerteza sobre a veracidade, a exatidão e a confiabilidade daquilo que dizem10.

Esse jogo de vozes na narrativa é claro no capítulo primeiro de Rute:

Narrativa – v. 1-7: Narrador. Sentido fechado.
Diálogo – v. 8-13: Personagens. Noemi, Orfa e Rute. Sentido aberto. Narrativa – v. 14: Narrador (define as opções de Orfa e Rute). Sentido fechado. Diálogo – v. 15-17: Personagens. Noemi – Rute. Sentido aberto. Narrativa – v. 18-19a: Narrador. Noemi e Rute chegam em Belém. Sentido fechado. Diálogo – v. 19b-21: Personagens. Mulheres de Belém – Noemi. Sentido aberto. Narrativa – v. 22: Narrador. Noemi e Rute em Belém. O início da sega. Sentido fechado.

O narrador estrutura o capítulo ao indicar seus componentes e movimentos fundamentais. Nos primeiros sete versículos, ele introduz a narrativa e os elementos que a constituem: tempo (“Nos dias em que julgavam os juízes – v. 1); motivo que gera a narrativa (“houve fome na terra” – v. 1; morte dos homens da família – v. 3, 5; decisão de Noemi de voltar para sua terra – v. 6); cenários (de Belém de Judá para Moabe – v. 1); e personagens (“um homem de Belém de Judá” [Elimeleque] – v. 1-2; “sua mulher e seus dois filhos” [Noemi, Malom e Quiliom] – v. 1-2; Orfa e Rute, moabitas [casadas com Malom e Quiliom] – v. 4).

As próximas manifestações da voz do narrador ocorrerão no v. 14, indicando a decisão de Orfa de permanecer em Moabe, abandonando, assim, o projeto de seguir Noemi. Nos vs. 18-19a, revelando que, diante da firme posição de Rute em seguir Noemi, esta aceita a companhia e ambas chegam a Belém. Por fim, no v. 22, o narrador informa o leitor que Noemi e Rute conseguiram cumprir o plano inicial, chegando em Belém, e inclui um dado novo, que fornece a transição para o próximo capítulo: era o “princípio da sega da cevada”.

Todas essas informações do narrador tem como função situar o leitor no contexto do que está sendo narrado, indicando elementos necessários para a compreensão.

Os diálogos, por outro lado, revelam as posições e decisões tomadas pelas mulheres, que ocupam papel central. Se a voz narrativa constrói a estrutura para a compreensão do que lemos, a voz das personagens faz a narrativa avançar, introduzindo tensões e incertezas.

O primeiro diálogo, presente nos vs. 8-13, ocorre entre Noemi e as noras: Orfa e Rute. O leitor, informado pelo narrador da decisão de Noemi em voltar para Belém, juntamente com as duas mulheres (v. 6-7), percebe agora, na fala de Noemi, uma mudança de planos. No caminho (v. 7), repentinamente ela diz às companheiras: “Ide, voltai cada uma à casa de sua mãe” (v. 8), e discorre sobre as razões para tal pedido (v. 8b-9). Elas respondem negativamente, reafirmando a decisão de acompanhá-la (v. 10). Nova insistência, com argumentos mais contundentes (v. 11-13). Não há resposta. Nesse momento volta a voz narrativa, sintetizando a decisão de Rute e Orfa, talvez para não diminuir a dramaticidade da cena.

Novo diálogo é estabelecido nos vs. 15-17. Se no anterior houve a voz uníssona de Orfa e Rute em resposta a Noemi, agora apenas Rute dialoga com a sogra. Há um desequilíbrio entre as falas, o que já ocorreu no primeiro diálogo. Ali, Noemi ocupa praticamente toda a cena. As noras respondem apenas no v. 10. No segundo diálogo a situação é invertida. Rute assume o protagonismo do discurso, sendo que Noemi se manifesta apenas no v. 15. Tal situação insinua o início do protagonismo que será ocupado por Rute.

O último diálogo, vs. 19b-21, apresenta novos personagens: as mulheres de Belém que, em coro, dizem chocadas: “Não é esta Noemi”? Ela concorda, e, em resposta, afirma que seu nome deveria ser mudado para “Mara”, pois “grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso” (v. 21). Em seguida, termina sua fala, reconhecendo a tragédia que se abateu sobre ela e que tem origem no Todo-Poderoso. É necessário notar que ela encerra sua participação no capítulo com uma pergunta. Cabe ao leitor respondê-la.

É fundamental entendermos que os diálogos estabelecem sentidos abertos no texto, que visam a participação do leitor na construção de seus sentidos. O texto, de modo claro, se torna o olho pelo qual eu vejo a Deus, ele me vê, e vejo a mim mesmo.

O que pensamos sobre as personagens e sobre Deus? Noemi está certa em voltar para Belém no momento de fome, ou, mais, ela e o esposo estavam certos ao sair de Belém? Orfa age corretamente em retornar para seus pais? Não deveríamos interpretar as perguntas de Noemi às noras (vs. 11 e 13) de forma retórica? As perguntas não teriam o objetivo de mantê-las junto à anciã? Se esse for o caso, então, de fato, Orfa teria sido insensível? Rute, por sua vez, decide acertadamente ao abandonar família e terra e assumir o Deus de Noemi? Noemi não incorre em heresia ao culpar Yahweh por seus sofrimentos? E quanto ao próprio Yahweh, ele é realmente o responsável pelo sofrimento daquela família? Ele objetivamente matou o esposo e os filhos de Noemi? Ele trouxe fome à terra? Que tipo de Deus é esse?

O primeiro capítulo do livro de Rute possui uma magnífica densidade literária, cujo objetivo é comunicar-se com o leitor, levando-o a refletir, a completar sentidos, e a tomar decisões a partir da narrativa. Voltamos à metáfora citada por Barthes, do olho pelo qual sou visto e vejo.

1 Coríntios 13.

O último texto a ser analisado é muito conhecido e sua apropriação se dá em várias direções. Ele é estudado por exegetas, analisado filosoficamente, utilizado em cerimônias matrimoniais, tomado como base para composições musicais etc.

Como a abordagem neste momento se dá por meios literários, iniciamos Inserindo o capítulo 13 em um contexto maior, que o coloca em um bloco formado pelos capítulos 12, 13 e 14. Além disso, o capítulo 13 é reconhecido como centro do bloco11. Podemos estruturar literariamente o bloco da seguinte forma:

Cp. 12: diversidade de dons.
Cp. 13: o amor acima dos dons.
Cp. 14: buscar o melhor dom: profecia.

A estruturação do bloco é clara, uma vez que os capítulos 12 e 14 tratam de dons espirituais. Mesmo que o capítulo 12 traga a preocupação de Paulo com a unidade dos cristãos de Corinto, ainda assim o eixo de seu argumento é a diversidade de carismas dados à igreja. Do mesmo modo, o capítulo 14, mesmo enfatizando o dom de profecia, o faz no reconhecimento de que ele é um dentre tantos outros dons.

O capítulo 13, por outro lado, partindo dos dons (vs. 1-3), enfatiza a superioridade do amor (agápe), que não é apresentado em termos comparativos, mas qualitativos. Paulo se propõe a “[...] indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos” (12.31. Bíblia de Jerusalém).

Os dons, concedidos pelo Espírito Santo, não apenas são variados, como também distribuídos diferentemente. Segundo Paulo, “[...] a um é dada, mediante o Espírito, a palavra da sabedoria; e a outro, segundo o mesmo Espírito, a palavra do conhecimento; e a outro, no mesmo Espírito, a fé; e a outro, no mesmo Espírito, dons de curar” (12.8-9) etc. A variedade de dons presentes em uma comunidade indica a riqueza da ação do Espírito Santo nela.

Por outro lado, o amor não participa da definição dos dons. Como lembra Gordon Fee, “[...] Paulo não concebe o amor com dom aqui e em nenhum outro lugar” (1987, p. 625, tradução nossa). Na carta aos Gálatas, Paulo apresenta o amor como “fruto do Espírito Santo” que, contrariamente aos dons, deve estar presente na vida de todos os cristãos (Gl 5.22). Portanto, há uma diferença qualitativa entre dons e amor. Tal diferença será explorada no capítulo 13.

O capítulo 13, como o bloco dos capítulos 12 a 14, também apresenta uma estrutura quiástica, conforme notou Hans Conzelmann, que divide o texto em três segmentos: “(a) vv 1-3; (b) vv 4-7; (c) vv 8-12” (1975, p. 218)12. Sigo, abaixo, a divisão sugerida, inserindo a temática de cada tópico.

13.1-3: o amor é superior aos dons.
13.4-7: definição do amor.
13.8-13: razão de o amor ser superior: ele jamais acaba

A primeira parte (vs. 1-3) é estruturada pela expressão “ainda que [...] se não tiver”, que configura a superioridade do amor frente aos dons. Mesmo os dons mais estimados pelos coríntios, falar em línguas e profecia, se estiverem desacompanhados do amor, não trarão proveito algum.

O segmento paralelo, vs. 8-13, apresenta a razão de o amor ser superior aos dons espirituais. Os indicativos temporais: “desaparecerão, cessarão, passará” (v. 8), embora não tragam menção a um evento específico, aludem à vinda do “perfeito” (to teleion), quando os dons deixarão de existir. Para Joseph A. Fitzmyer, (2008, p. 498, tradução nossa) “sem dúvida, [a vinda do perfeito] tem a ver com o escaton ou o que Paulo chama de ‘o Dia do Senhor’ (1:8; 3:13; 5:5), ou com o telos, ‘fim’ (da presente era), como em 15:24”. Portanto, para Paulo, quando Jesus Cristo retornar, então os dons acabarão, pois deixarão de ter função. Mas o amor permanecerá (v. 13).

A parte central do quiasmo (v. 4-7) deixa de discutir a relação entre dons e amor para definir o agápe a partir de diversas características. Elas são positivas de negativas. O agrupamento obedece, novamente, uma estrutura quiástica, na qual os verbos positivos estão nos extremos e os negativos no centro.

13.4a: características positivas do amor.
13.4b-6a: características negativas do amor.
13.6b-7: características positivas do amor.

A forma como o texto está estruturado indica que o centro, a parte mais importante dele, reside naquilo que não é o amor. A ênfase de Paulo, portanto, é negativa. O apóstolo aponta para o fato concreto de que os coríntios, ao vivenciarem relacionamentos nutridos por ciúmes (3.3), soberba (4.6, 18) e interesse próprio (10.24), deixavam de amar uns aos outros. Ao colocar o aspecto negativo do amor como ponto central de todo o capítulo 13, Paulo está exortando seus leitores para que reflitam sobre essa questão.

Podemos dizer que 13.4-7 não é apenas o centro do capítulo 13, mas do bloco formado pelos capítulos 12 a 14. Representando graficamente, temos:

A partir dessa estratégica retórica, Paulo, mesmo sem ser explícito, coloca os leitores em uma situação de autorreflexão, que deve interferir no modo como pensam sobre si mesmos e sobre a relação com Deus. O texto, belo em sua estrutura e prazeroso de ler, se apresenta ao leitor como uma séria advertência. Embora não traga sinais de interrogação, aquele que se achega a ele é profundamente questionado.

Considerações finais

Ao final deste artigo, cabe reconhecer que a leitura literária da Bíblia não é uma frente de oposição ao que está estabelecido nas ciências bíblicas.

Esta forma de ler a Bíblia aproveita a erudição bíblica construída em séculos de pesquisa. O que a leitura literária da Bíblia procura é voltar ao foco principal: a leitura e fruição do texto bíblico como componentes centrais para a espiritualidade cristã. Experiência que é experimentada por comunidades de cristãos ao redor do mundo que ouvem a voz de Deus nas Escrituras.

O que não é mais possível manter é a ideia de que a análise acadêmica, científica da Bíblia, exclui emoções. O que se propõe neste texto é exatamente o contrário. Cada vez que se estudar seriamente as Escrituras, elas se comunicarão integralmente com aquele que delas se aproxima.

A ideia de encontrar prazer no texto e de permitir que a Bíblia trabalhe nossas emoções não é um exercício de vaidade pessoal, nem um preenchimento de carências intelectuais. Pelo contrário, é o reconhecimento de que a Palavra de Deus, para se efetivar em nossas vidas e aprofundar nossas vivências espirituais, precisa falar ao nosso ser integral: corpo, mente, emoções, psiquê.

Os exercícios apresentados buscam indicar que, acima de tudo, a leitura literária da Bíblia é uma prática de sensibilidade ao texto bíblico. Essa leitura pode ser feita por qualquer pessoa, sem necessidade de aparatos técnicos. É necessário apenas compreender que a Bíblia, como literatura, procura se comunicar com seus leitores e, com isso, abrir caminhos para que a espiritualidade, o encontro, a experiência com Deus, se efetive em profundidade.

Referências

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Notas

[1]Sacerdote católico-romano (sec. 17), nascido na Alemanha, místico e poeta.

[2]Nos próximos parágrafos sigo o que desenvolvi em meu artigo “Religião e linguagem literária: contribuições da literatura para a interpretação de textos religiosos” (2016, p. 50-51).

[3]Utilizo, principalmente, a teoria de Wolfgang Iser. Segundo o autor: “O não dito de cenas aparentemente triviais e os lugares vazios do diálogo incentivam o leitor a ocupar lacunas com suas projeções. Ele é levado para dentro dos acontecimentos e estimulado a imaginar o não dito como o que é significado [...] Portanto, o processo de comunicação se põe em movimento e se regula não por causa de um código mas mediante a dialética de mostrar e ocultar” (1999, v. 2, p. 106).

[4]Para tanto, será usada a BÍBLIA Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. revista e atualizada. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Quando outra versão for utilizada, haverá indicação e, quando for necessário, serão feitas alterações nas traduções a partir dos textos hebraico e grego.

[5]Mantenho as linhas em estrutura climática para tornar mais claro o movimento retórico do texto, que enfatiza a última pergunta de Elcana.

[6]A versão de João Ferreira de Almeida Atualizada traz: “O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende”

[7]Cf. BROWN, [198?], p. 106.

[8]Quanto ao livro de Rute, cf. o belo e sensível comentário escrito por Carlos Mesters (1986).

[9]Cf. a estrutura do capítulo 1 proposta por Mesters (1986, p. 16). Embora diferente da organização que apresento, o autor registra como um dos componentes de sua estrutura o “diálogo” presente nos blocos 1.8-14 e 1.19-21. 1,6-7: Começa a volta para a terra de Judá em busca do pão. 1,8-14: Lamento e diálogo de Noemi com as duas noras. 1,15-18: Rute decide ficar com Noemi e voltar com ela. 1,19-21: Lamento e diálogo de Noemi com as mulheres de Belém. 1,22: Termina a volta para a terra de Judá no começo da colheita

[10]Quanto a esses aspectos, cf. o detalhamento apresentado por Robert Alter (2007, p. 177-178).

[11]Cf. a estrutura proposta por Charles H. Talbert (1992, p. 81, tradução nossa). A. Dons espirituais (12:4-30). B. Motivação adequada para manifestar os dons (12:31-14:1a). A’. Dons espirituais (14:1b-40).

[12]Cf. a nota n. 10 no comentário de Conzelmann. Citando outros autores, ele explica tecnicamente como se desenvolve cada um dos componentes do quiasmo (1987, p. 218).