Vanessa Meira*
*Doutoranda em Teologia (EST – São Leopoldo, RS). Bolsista da CAPES. Contato: vanessarmeira@gmail.com
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Resumo:
Este artigo fará, através da pesquisa bibliográfica, uma avaliação teológica do conto “O Moinho do Diabo”, de Hans Christian Andersen. Essa análise incluirá o cotejamento entre a narrativa de Andersen e outras narrativas que incluam as figuras do diabo como tentador e do moinho como lugar de tentação. Esse conto ilustra como narrativas tradicionais somadas à tradições orais podem possibilitar novas leituras de conceitos teológicos, e reinvenções da figura bíblica do diabo na cultura popular. No caso do conto analisado nesta pesquisa, é possível concluir que um de seus objetivos é garantir ao leitor que, ainda que o diabo seja astuto, é possível superá-lo, e até mesmo enganá-lo, como demonstrou Andersen.
Palavras chave: Hans Christian Andersen; Diabo; Tentação; O Moinho do Diabo
Abstract
This article will, through bibliographic research, make a theological evaluation of the short story “The Devil’s Mill”, by Hans Christian Andersen. This analysis will include the comparison between Andersen’s narrative and other narratives that include the figures of the devil as a tempter and the mill as a place of temptation. This tale illustrates how traditional narratives added to oral traditions can enable new readings of theological concepts, and reinventions of the biblical figure of the devil in popular culture. In the case of the short story analyzed in this research, it is possible to conclude that one of the objectives of this tale is to assure the faithful that, even if the devil is astute, it is possible to overcome him, and even deceive him, as Andersen demonstrated.
Keywords: Hans Christian Andersen; Devil; Temptation; The Devil’s Mill
Odiabo, além de um fabuloso personagem literário, em muitos grupos religiosos, é responsabilizado por todo o mal presente no mundo. O imaginário religioso cristão ocidental constrói muitas imagens para ele e atribui-lhe o título de tentador (PIMENTEL, 1995, p. 13). No conto O Moinho do Diabo, de Hans Christian Andersen, é possível perceber a atuação do diabo exatamente nesse sentido. Embora esse conto de Andersen não figure na lista de suas produções mais famosas, ele contém elementos de uma teologia que encontra eco no imaginário religioso brasileiro: a figura tentadora do diabo através da ambição, e o desfecho vitorioso do protagonista sobre a tentação diabólica. Como representação do mal e antagonista de Deus, a figura bíblica do diabo é uma herança da tradição cristã ocidental. Junto com a figura do diabo, os conquistadores portugueses trouxeram ao Brasil o tema do diabo enganado ou superado por seres humanos (MAIOR, 1975, p. 15; PIMENTEL, 1995, p. 17). E logo que a figura do diabo chegou ao Brasil, a teologia popular tratou de reinterpretá-lo (SOUZA, 2005, p. 68).
A religiosidade popular de matriz cristã ocidental sempre acreditou na presença e ação do diabo no mundo, e essa reflexão teológica “[...] encontra-se presente na religiosidade popular cristã brasileira. Seja ela católica ou ainda protestante” (CUNHA; SANTOS, 2015, p. 57). O objetivo desse artigo é analisar, através da pesquisa bibliográfica e da análise literária e comparativa, a representação do diabo feita por Andersen em seu conto, buscando correspondências com a imagem do diabo no imaginário religioso cristão brasileiro, bem como avaliar o conceito de tentação presente no conto, dentro de uma perspectiva cristã, que levará em conta a tradição protestante/evangélica e católica, pois a teologia popular faz releituras e reinterpretações de elementos do ensino oficial da dogmática cristã, “tanto católica como protestante” (CUNHA; SANTOS, 2015, p. 41). A opção por essa visão mais ampla do tema da tentação e do diabo é justificável pois, apesar de o catolicismo popular brasileiro ser a “matriz da fé” do povo brasileiro (RUBENS, 2008, p. 37), a teologia popular brasileira é um fenômeno que também ocorre no protestantismo (CUNHA, 2012, p. 277-359).
Este artigo utilizará a classificação dos contos populares e as observações de Câmara Cascudo (2002; 2003), que coletou e analisou vários contos da tradição oral brasileira que falam do diabo sendo enganado ou superado por seres humanos quando “perde a aposta e é derrotado” (CÂMARA CASCUDO, 2003, p. 21).
Na teologia popular, como a do período colonial brasileiro, o diabo por vezes era visto como uma espécie de deus reserva, a quem se poderia recorrer sempre que o Deus oficial não atendesse (SOUZA, 2005, p.141), e isso se dava através de pactos e acordos. No entanto, há várias narrativas sobre pactos entre o diabo e seres humanos que terminam com o diabo “[...] enganado pelo homem ou mulher com quem realiza o acordo” (CÂMARA CASCUDO, 2003, p. 67). E muitos personagens fictícios encontraram a tentação em um moinho, com o próprio diabo à espreita, aguardando moleiros incautos ou ambiciosos para propor-lhes tratos ou fazer negociatas.
Ao longo da história, muitos autores usaram o cenário pastoril com um moinho para dar vida à suas obras. Um exemplo é o conto britânico coletado por Evelyne Brisou-Pellen, que faz parte do livro Contes traditionnels de Bretagne (BRISOU-PELLEN, 1992). Nesse conto, o personagem Yves Kerbic é um homem muito pobre e precisa de um moinho para prover sustento para sua família, então o diabo se apresenta para o personagem no corpo de uma cobra, como o fez no relato do livro de Gênesis na primeira tentação à seres humanos. Assim, a “antiga serpente chamada diabo” (Apocalipse 12:9) ofereceu para Yves tudo o que ele precisava e desejava, usando da mesma astúcia que utilizou para seduzir Eva (2 Coríntios 11:3).
Obviamente, ao longo das eras, o diabo refinou seus métodos, pois Eva sequer se espantou por estar falando com uma serpente, e, possivelmente, Yves não deve ter achado isso tão comum assim. Fato é que, segundo a lenda, o diabo ofereceu um moinho para Yves dizendo que ele e suas hostes infernais construiriam o moinho em uma noite, e caso não conseguisse realizar a empreitada, estava cancelado o trato. Porém, se ao amanhecer, um moinho estivesse construído, Yves Kerbic perderia a alma para o maligno.
Nessa narrativa, o moleiro consegue ser mais astuto que o próprio diabo, o engana, colocando no lugar da pedra uma estátua de Nossa Senhora, assustando o demônio, que foge apavorado num redemoinho de fogo. Assim, o moleiro consegue rescindir seu contrato com o tinhoso, e ainda fica com seu moinho. Esta narrativa faz parte de uma lenda francesa e o moinho de fato existe, está localizado na comunidade de Guérande em Loire-Atlantique, na França e faz parte dos monumentos históricos franceses.1
Num romance de 1945, Whitehorn’s Windmill, de Kazys Boruta (2010), baseado numa tradição lituana, podemos conhecer Baltaragis, o personagem principal, que é um moleiro. Ele também faz um trato com o diabo (chamado de PinĨukas no romance) que consiste em entregar sua filha primogênita, Jurga, ao diabo. O moleiro estava tão preocupado com o fato de sua filha não ter um pretendente e estar envelhecendo, que disse em certo momento que a casaria até com o próprio diabo (em algumas versões, a própria moça diz que casaria com o diabo, com medo de ficar solteira).
Porém, o final da narrativa de Boruta é trágico. Baltaragis tenta enganar o diabo mas perde sua esposa (que morre no parto), Girdvainis (um príncipe que tenta salvar Jurga) perde seus cavalos e é morto pelo diabo, Jurga fica sem seu príncipe e, finalmente, Baltaragis perde sua amada filha para o tentador (BORUTA, 2010).
Há ainda outro conto semelhante, coletado do folclore italiano, por Ítalo Calvino. Chama-se Nariz de Prata, e o diabo “aparece vestido de preto com seu estranho nariz de prata, pedindo a uma pobre lavadeira que lhe confie uma de suas filhas para trabalhar como criada em sua casa” (CORSO; CORSO, 2006, p. 153). E o diabo raramente aparece por acaso, “na verdade, como bem cabe às aparições do demônio, ele foi conjurado por uma das irmãs, ao exclamar que preferia partir com o próprio diabo a passar uma vida de tanta miséria” (CORSO; CORSO, 2006. p. 153), assim como Jurga e seu pai convidam o diabo para a narrativa, angustiados com medo da solteirce da moça.
Em Das Mädchen ohne Hände (A garota sem as mãos), narrativa coletada pelos irmãos Grimm (2016), um moleiro que havia perdido tudo estava na mais absoluta miséria, resolve então fazer um trato com o diabo. A tentação de ter, facilmente, riqueza e provisão para o resto da vida, poupando a família de uma existência miserável, enche o coração do moleiro. E o diabo pede apenas o que está atrás do seu moinho em troca de toda fartura e riqueza. O moleiro tenta se recordar o que existe atrás do seu moinho e conclui que ali, há apenas uma velha macieira. Feito o trato, o diabo afirma que em três anos voltará para buscar o que lhe pertence.
Quando o moleiro chega em casa, se depara com grande riqueza, baús e caixas cheios de ouro e sua esposa questionando de onde saiu tanta coisa. O moleiro responde que fez um trato com um velho na floresta e prometeu o que estava atrás do seu moinho e que em se tratando da macieira, havia feito um bom negócio. Sua esposa, aterrorizada, conta que no momento em que ele estava fazendo negócio com o velho, a filha dos dois estava varrendo o quintal atrás do moinho. Após ver-se enganado pelo diabo, o moleiro não pensa em abrir mão da riqueza recebida, e se dispõe inclusive a cortar as mãos da sua filha. O diabo não consegue se aproximar da menina, pois suas mãos estava demasiadamente limpas, representando a pureza e a falta de pecados na vida da pobre moça que estava, desde o dia do trato de seu pai com o diabo, sem cometer nenhum pecado. O diabo portanto, não consegue acesso à menina.
A história contrapõe os valores cristãos, representados pela filha, que era linda, piedosa, obediente, pura e fiel, com a ambição do pai. A história exalta a fé, a piedade e a devoção da filha do moleiro, que por ser tão fiel e piedosa, Deus permite que suas mãos cresçam novamente. É uma narrativa recheada de ensinamentos de valores cristãos, tendo como ponto de partida o moinho e um trato com o diabo. Em 2016, Jean-Christophe Soulageon produziu uma animação minimalista com a direção de Sébastien Laudenbach, chamada La jeune fille sans mains, baseada neste conto dos irmãos Grimm.
Percebe-se, portanto, que há diversas histórias do diabo atormentando moleiros em diferentes culturas, e que o tentador das narrativas não perde nenhuma oportunidade de levar vantagem sobre um moleiro pobre ou ambicioso. Algumas vezes tendo êxito, outras vezes, nem tanto. Há aqui um fator econômico envolvido: os moleiros, e outros trabalhadores braçais de ofícios humildes da Idade Média até a Revolução Industrial, representam bem as “condições precárias de vida” (MICHELLI, 2020, p. 183) das pessoas simples e pobres, geralmente com filhos para criar, que veem no pacto com o diabo uma forma de escapar da pobreza a garantir uma boa vida à família.
Segundo Câmara Cascudo (2003, p. 13), um conto, para ser considerado popular, deve ser antigo, de autoria anônima, bem divulgado e ter duração persistente. As narrativas de pactos com o diabo em moinhos conservam alguns traços gerais semelhantes, e as diferenças entre elas podem ser explicadas por assimilações, abandonos e enxertos feitos pelo povo ao longo do tempo: “O princípio e o fim das histórias são as partes mais deformadas na literatura oral” (CÂMARA CASCUDO, 2003, p. 12). Portanto, a existência de narrativas semelhantes evidencia uma origem antiga, anônima, persistente e popular.
Apesar de O Moinho do Diabo não poder ser considerado um conto folclórico primitivo (COLOMER, 2003, p. 54), pois aparentemente sofreu interferências editoriais de Andersen (BORTOLUSSI,1985). Porém, trata-se de uma narrativa fortemente baseada numa lenda popular (MAGALHÃES JR., 1978, p. 178) envolvendo o diabo e um moinho. A seguir, faremos uma breve análise da narrativa deste conto fabuloso registrado por Hans Christian Andersen.
Hans Christian Andersen (1805-1875) foi um célebre poeta e novelista dinamarquês, que se preocupava “essencialmente com a sensibilidade exaltada pelo Romantismo, e em suas estórias, tratou-a de maneira terna e nostálgica” tonando-se “um dos mais famosos escritores para crianças, em todo mundo” (COELHO, 1985, p. 117). O Moinho do Diabo não é seu conto mais famoso, na realidade, este nem é um conto originalmente seu. Assim como outros escritores infantis, Andersen “por vezes, em vez de inventar, se valia de lendas populares, como neste conto” (MAGALHÃES JR., 1978, p. 178). De cordo com a classificação de Câmara Cascudo (2003), esse conto é do tipo “demônio logrado” – narrativas em que o diabo é enganado e/ou superado, e tem seus planos frustrados no final.
Esse conto também foi publicado em francês (Le Moulin du Diable), no livro Nouveaux contes d’Andersen (1882). Em português, o único lugar onde esse conto foi localizado durante o levantamento bibliográfico desta pesquisa foi o primeiro volume de O diabo existe?, de Raimundo Magalhães Jr (1973), texto que servirá de base aqui.
A narrativa de Andersen também tem um moleiro como personagem principal, que assim como outros moleiros de histórias populares, era muito pobre e, além disso, tinha uma numerosa família para sustentar. Andersen nos dá a localização da morada do pobre moleiro, descreve com detalhes as belezas naturais do lugar, mas não fornece o nome do moleiro. Nos cabe saber que era apenas um moleiro pobre com uma família numerosa para alimentar.
Em muitas histórias, a fome é um grande vilão. Num comentário sobre a história de Hänsel und Gretel (João e Maria, na tradução para o português), Mário e Diana Corso avaliam:
A fome é um dos eixos em torno dos quais girou boa parte da história da humanidade, muitas vezes, impulsionando os movimentos migratórios, as disputas de poder, as guerras. No cenário europeu, onde nasceram essas histórias, o tema da falta de alimento só foi superado recentemente. Incontáveis ondas de escassez dizimaram boa parte da população ou os deixaram fracos para doenças de ocasião, de modo que, não faz muitos anos, o medo de morrer de fome era uma realidade cotidiana nesse continente (e ainda o é para uma inaceitável parte da humanidade) (CORSO;CORSO, 2006, p. 42).
Embora Andersen tenha entre suas histórias mais conhecidas narrativas que se “desenrolam no mundo fantástico da imaginação, a maioria está presa ao cotidiano” (COELHO, 1985, p. 118). Ele viveu num período de expansão industrial e da formação da nova classe - a de operários. “Andersen teve bem a oportunidade de conhecer o contrastes da abundância organizada, ao lado da miséria sem limites” (COELHO, 1985, p. 118). Ele próprio fazia parte dessa faixa social: a da probreza organizada em sistema. Coelho comenta:
Suas estórias mostram que sua principal reação a essa situação (pobreza) de fato, foi mais de resignação e de refúgio na fé religiosa, do que na revolta contra as injustiças sociais. Como um verdadeiro cristão vê esta vida como o “vale de lágrimas” que ele deve atravessar antes de ir para o céu, também suas personagens mostram- -se perfeitamente resignadas com as “provas” que a vida lhes impõem. Esses valores ideológicos presentes em sua obra não indicam, porém, que Andersen tivesse sido, ele mesmo, um resignado com as situações que a vida lhe ofereceu. Muito pelo contrário... Procurou sempre superá-las (COELHO, 1985, p. 118).
O personagem desta narrativa também gostaria de superar a adversidade, porém, pouco fazia a respeito, além de prantear sua sorte. Ele havia herdado um moinho que tinha sido “construído com tal desacerto e em lugar tão impróprio que o vento, raras vezes lhe movia as pás” (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1978, p. 179). O moleiro observava os outros moinhos de sua vizinhança produzindo e deixando seus donos ricos. Resignado, ele se via cada vez mais na miséria e passava seus dias a lamentar.
Até que numa “tarde, triste e desalentado, o pobre moleiro caminhava ao acaso pela campina, pensando nos dramas da sua existência” (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1978, p. 179), quando percebeu que estava diante da estrada que dava para o alto do morro. O moleiro continuou a subir, até que, por fim, chegou lá em cima. O vento no alto do monte é muito diferente do vento da planície. Andersen fala que “o vento, em redemoinhos, levantava as folhas que o outono fizera cair” (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR, 1978, p. 179).
Para o leitor brasileiro, o vento em redemoinho já seria um prenúncio do que estaria por vir. No folclore do Brasil temos a figura do Saci, que está muito presente na mística brasileira. Câmara Cascudo conta que, no nordeste, o Saci-ave ou Sem-fim é conhecido pelos supersticiosos como um demônio que tem prazer em enganar viajantes nas estradas (2002, p. 133). Aqueles que tiveram contato com a obra de Monteiro Lobato, podem fazer coro com João Carlos Marinho Silva quando ele diz: “nunca mais deparei com um gomo de bambu ou um redemoinho de folhas sem lembrar do Saci” (1978, p. 13).
Esses são detalhes que povoam o imaginário religioso brasileiro. Mas a tradição cristã ocidental, ainda faz um link entre montanha e tentação: quando o diabo quis tentar Jesus oferecendo-lhe todos os reinos da Terra, a narrativa bíblica revela que ele o levou ao alto de um monte (Lucas 4:5-7).
Portanto, ali estava o pobre moleiro, no alto de um monte, observando folhas dançando ao vento e questiona sua sorte: “’Um vento destes era o de que eu precisava lá embaixo, para mover o meu moinho!’ – exclamou o moleiro. — ‘Que desgraça o meu não ter sido construído aqui!’” (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 179). O diabo, que não perde a chance de tentar fazer negociatas com pessoas desesperançosas, engata um diálogo com o moleiro:
— Realmente – disse uma voz, por trás dele. – Sua ideia de agora não poderia ter sido mais feliz... Antes tarde do que nunca, não é mesmo? — Que quer dizer com isso? – indagou o moleiro, que, ao se voltar, vira um desconhecido, perto dele, sentado num penhasco. — Digo, simplesmente, que o moinho, construído aqui e não no vale, faria as coisas correrem de outro modo. E seus filhos hoje não sofreriam o suplício da fome (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 179).
Quando o desconhecido sentado num penhasco revela saber da sua vida, o texto diz que o moleiro estremeceu. Ele entende que estava falando com alguma entidade sobrenatural. O diabo demonstra saber exatamente do que o moleiro precisava.
No livro de Jó, Satanás fala que um homem faria qualquer coisa para salvar sua própria vida (Jó 2:4), se a família do moleiro estava passando por necessidades, ele próprio também estava. O moleiro também sentia fome, somado ao sentimento de incompetência por não prover sustento para seus filhos. Na tradição cristã católica e protestante, o diabo acompanha a história da humanidade desde o início (1Jo 3:8), portanto, conhece as necessidades do homem como ninguém, e assim consegue elaborar propostas irrecusáveis. Carlos Roberto F. Nogueira, no livro O diabo no imaginário Cristão, comenta que “o inimigo e miríades de demônios vagavam por toda parte, tentando e corrompendo, explorando cada fraqueza e desejo” (NOGUEIRA, 1986, p. 41-42). A figura popular do diabo é ambígua. Ele é considerado a personificação do mal absoluto (seguindo a visão teológica oficial e majoritária das igrejas cristãs), mas também é muitas vezes descrito como um ser que pode ser enganado, com traços de ingenuidade, e alvo de zombaria (CÂMARA CASCUDO, 2003, p. 195).
O diabo de Andersen apresenta essa ambiguidade, que é um sinal da presença da teologia popular, pois ele é um “[...] personagem familiar, [...] muito menos terrível do que o afirma a Igreja, e pode ser, inclusive, facilmente enganado” (NOGUEIRA, 2002, p. 99). Nesse aspecto, uma peculiaridade do diabo brasileiro é que ele é absolutamente mal, ao contrário da perspectiva europeia, que relata alguns demônios com traços de algo parecido com a bondade (CÂMARA CASCUDO, 2003, p. 194).
O diálogo segue:
O moleiro estremeceu e perguntou: — Conhece a minha vida? Sabe quem eu sou? — Sim, conheço. Sei muitíssimo bem. E faço questão de me colocar a seu serviço, como construtor de moinhos... — Construtor de moinhos? — Sou capaz de construí-los melhores do que os outros que por aqui existem. Se quiser, diga... — Mas eu não tenho dinheiro... – suspirou o moleiro. — Não seja por isso – disse o desconhecido, sorrindo. – Basta que me dê em penhor a sua alma. Se o fizer durante doze anos será bem-sucedido em tudo quanto empreender. Será mais rico e invejado do que todos os seus vizinhos (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 179-180).
Mais uma vez, no alto de um monte, o diabo oferece bens materiais. A narrativa bíblica afirma que Cristo em todas as coisas foi tentado, mas resistiu (Hebreus 4:15). Mas o pobre moleiro não conseguiu resistir.
Analisando este mesmo conto, Salma Ferraz faz uma observação interessante a respeito do riso do diabo ao oferecer riqueza ao moleiro:
Deus não ri. Esse ato é estranho a Deus, a perfeição não admite riso: Deus se bastava a si próprio. Então, ocorre a queda, e o riso é atribuído ao Diabo e a tudo o que é imperfeito. Durante toda a Idade Média o riso foi atribuído ao Diabo, como sendo este o pai da mentira, pai do riso (FERRAZ, 2009, p. 7).
O riso de deboche e de escárnio do diabo precede o anúncio do que ele quer em troca: “[... ] basta que me dê em penhor a sua alma”. A imagem medieval do inferno, que faz parte do imaginário popular cristão tanto na idade média quanto nos dias atuais, cheio de demônios, almas perdidas, enxofre e fogo sequer passa pela mente do moleiro no momento da tentação. Ele apenas imagina como seria não ter que passar por nenhum tipo de privação com sua família, e aqueles supostos doze anos de prosperidade o impressionaram poderosamente (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 180).
Apesar de, nesse momento, ter certeza de que falava com o demônio em pessoa, embora um arrepio tenha lhe percorrido todo o corpo, o moleiro sonhava com “[...] os filhos e a mulher bem nutridos, robustos e corados, vestindo boas roupas, a casa transformada, a mesa farta” (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 180). E a tentação começa a corroer-lhe o bom senso e a desfazer o medo da danação eterna. Então, o moleiro pergunta ao diabo que garantias teria de dar.
O diabo ri novamente. Mas não o sorriso de antes, mas uma gargalhada que ecoou por toda floresta. Sabia que estava prestes a fechar mais um contrato. Segue o diálogo:
— Basta escrever seu nome neste papel. Antes que os galos cantem a primeira vez, o moinho estará pronto. Um moinho como nunca se viu e que girará dia e noite, haja ou não haja vento... — Será um moinho e tanto! Concordou o moleiro. – Mas que é que vou fazer com ele, sem dinheiro para comprar trigo? E, além do mais, como é que tudo isso poderá ser feito no curto espaço de uma noite? (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 180).
Então, o diabo concretiza sua proposta com um golpe certeiro no pouco de apego que o moleiro ainda tinha por sua pobre alma:
— Deixe comigo. Se o moinho não estiver pronto antes que os galos cantem, fica desfeito o nosso trato. E, quanto ao dinheiro para comprar trigo, encontrará nesta bolsa o bastante para um bom começo. Tome-a! O moleiro continuava a tremer, como varas verdes. Mas o tilintar das moedas de ouro era tão fascinante que não resistiu à tentação. E apanhou a bolsa (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 180).
A previsão de conclusão do moinho fica prevista para antes do cantar do galo, antes do despertar da consciência do moleiro e antes que possa se arrepender do trato. O cantar do galo, na narrativa bíblica, representa a negação da subordinação ao divino, quando o discípulo de Cristo, Pedro, o nega pela última vez (Lucas 22:54-61). O galo canta antes do alvorecer, antes que a luz do sol clareie tudo ao seu redor se possa enxergar com maior clareza, mais nitidez. É uma analogia interessante, a parte escura da noite: a inconsciência e a parte clara, após o cantar do galo: a consciência. Quando o galo cantou, Pedro entendeu o que estava fazendo, percebeu que estava negando o filho de Deus. Então, Pedro saiu de onde estava e chorou amargamente (Lucas 22:61).
No caso do moleiro, o galo cantaria, e o moleiro teria certeza que daquele momento em diante, perderia a posse do seu livre arbítrio e de sua alma. Por isso, era importante para o diabo, que o moinho ficasse pronto antes do cantar do galo. O diabo entregaria pronto a sua parte do trato, o galo cantaria seu canto agudo, a consciência do moleiro seria despertada, mas seria tarde demais. Só restaria ao moleiro chorar amargamente por doze anos, quando, então, ele entregaria a sua parte no trato com o diabo.
Na tradição cristã ocidental, católica e protestante, um verdadeiro filho de Deus suporta suas dores e provações, persiste em sua fé e independente da tentação de negá-la, segue reto em seus princípios. Na teologia dogmática, o protótipo bíblico do ser humano fiel diante da tentação é Jó. Elizabeth Roudinesco, comenta a história de Jó:
Herói de uma tradição semítica, Jó, fiel servo de Deus, vivia rico e feliz. Mas Deus permitiu que Satã colocasse sua fidelidade à prova. Subitamente doente e tendo perdido bens e filhos, Jó deita-se no meio dos excrementos, coçando suas chagas e lastimando a injustiça de sua desgraça. Quando três amigos vão até ele, sustentando que seu sofrimento é necessariamente decorrência de seus pecados, ele grita inocência sem compreender por que um Deus justo castiga um inocente. Sem lhe responder, Deus lhe restitui fortuna e saúde. Por essa narrativa, portanto, o homem deve persistir em sua fé, suportar seus sofrimentos, ainda que injustos, e jamais esperar resposta de Deus, pois é independentemente de qualquer súplica que Deus o liberta de sua queda e lhe revela sua transcendência. (ROUDINESCO, 2008, p.14)
Se o moleiro seguisse o exemplo de Jó, suportando seu sofrimento em fortalecimento da sua fé, a tradição cristã nos diz que o tentador não teria êxito, pois uma fé firme em Deus ajuda a resistir às tentações, fazendo com que o diabo fuja (Tiago 4:7). Mas o diabo não fugiu, e “o tilintar das moedas de ouro era tão fascinante que (o moleiro) não resistiu à tentação. E apanhou a bolsa.” O diabo já impaciente com a titubeação do moleiro, ordena: “Agora, vamos com isso! Nada de perder tempo!” (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 180). Aparentemente, o moleiro dá vitória para o diabo, quando mesmo “hesitante, acabou por firmar o nome, em caracteres toscos, mas ainda assim bem legíveis.” Estava selado o compromisso.
O diabo, muito pontual, dá início a seus trabalhos. Mas não sozinho. Convoca ajudantes infernais:
Neste momento, agudo silvo atravessou os ares. A montanha gemeu e de suas entranhas saiu uma porção de seres fantásticos. A noite clareou, iluminada por um luar sinistro. Toda uma multidão lançou-se à obra. Uns talhavam nos penhascos blocos de granito, que iam amontoando uns sobre os outros e ligando com argamassa. Outros cortavam troncos de árvores, num abrir e fechar de olhos, iam transformando em vigas e traves. Tudo isto num infernal vaivém (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 180).
Aos poucos o moinho tomava forma e crescia a agitação dentro do moleiro que nem queria acreditar em seus olhos ao ver o trabalho das hostes infernais. Ele estava ansioso ao perceber que em breve, o diabo cumpriria sua parte no contrato. “Por fim, o moinho parecia pronto. Faltava apenas colocar no devido lugar a enorme mó, já preparada, à beira do precipício.” (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 180- 181) O moleiro sentiu faltar sua força, quase desfaleceu. O galo em breve cantaria e aurora estava prestes a raiar. Então, estaria consumado.
Carlos Roberto F. Nogueira, baseado na Divina Comédia, de Dante Alighieri, descreve o inferno como possuidor de:
lagos de fogo e gelo, bestas formidáveis que se alimentam das almas dos avarentos e dos religiosos infiéis aos seus votos, e pântanos fumegantes repletos de sapos, de serpentes e outros animais hediondos, que somente uma fantasia desenfreada e mórbida poderia conceber (NOGUEIRA, 1986, p. 74).
Essa imagem medieval da eterna danação e perdição pode ter assolado sua mente e feito com que o moleiro, em desespero, tomasse medidas extremas. Podemos dizer que um plot twist estava a caminho, uma grande reviravolta no enredo da história de Andersen.
Tomado de súbito horror da eternidade entre labaredas de fogo e sofrimento eterno, “correu então para a mó e, com a força do desespero, arrancou a cunha que a sustentava. E o pesado bloco de pedra rolou fragorosamente pelas encostas do monte” (ANDERSEN apud MAGALHÃES Jr., 1973, p. 181), para o horror do diabo e operários do inferno. Então:
O construtor de moinhos e seus infernais ajudantes soltaram um grito uníssono e terrível, correndo vertiginosamente atrás da pedra, ao mesmo tempo em que o moleiro, por sua vez, também, corria, na direção oposta, pelo monte abaixo. Já o diabo agarrara a mó e se aprestava a subir, com ela, para colocá-la no moinho, quando os galos começaram a cantar (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 181).
O galo cantou e o moinho ainda não estava pronto. Este é o único momento em que o narrador diz claramente com quem o moleiro estava lidando. O nome do diabo ainda não havia sido pronunciado, embora o leitor tenha tido uma sequência de pistas. O diabo pode estar em qualquer coisa ou em qualquer lugar, segundo Nogueira, ele é o mestre dos disfarces e pode se apresentar ao homem como bem quiser. Seria desastroso aparecer para os homens como ele é, de fato (NOGUEIRA, 1986, p. 61). Isso reduziria as chances de fazer negócios com os seres humanos.
A narrativa revela quem era o desconhecido, e ele estava encolerizado:
Furioso por não ter podido consumar os seus planos, apoderando-se de mais uma alma, o maldito atirou a mó contra o moinho, que se desfez em pedaços, espalhados ao redor, até muito longe. Quem hoje sobe ao monte Ramberg lá encontra apenas uma escura massa de granito, a que o povo ainda dá o nome de Moinho do Diabo (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 181).
Essa fúria por ter perdido um contrato se dá porque:
Ele odiava Deus e todos os seres humanos, concebidos à imagem divina, e ansiava por capturar o maior número possível de almas em seu reino infernal, para despojá-las de sua divina semehança, vingando-se por sua queda: negando os homens a Deus e Deus aos homens (NOGUEIRA, 1986, p. 41).
Esta é a função da tentação na tradição cristã: aumentar a distância entre Deus e a pessoa humana, e levá-la à perdição eterna. E esta habilidade demoníaca de se apresentar conforme lhe convém faz com que a comunidade cristã se veja “submergida em um delírio persecutório” (NOGUEIRA, 1986, p. 62). Por isso, o conselho de Cristo para vigiar e orar é imperativo, vigiar e orar para resistir as tentações do diabo, pois a tentação afasta o cristão de Deus e progressivamente diminui a possibilidade da salvação eterna.
Nas tentações de Santo Antônio, por exemplo, o diabo o tenta com ideias de luxúria, preocupações com o dinheiro e, finalmente, aparecendo sob a forma de uma mulher (NOGUEIRA, 1986, p. 46). O moleiro também tinha uma preocupação financeira, ele não estava visando a sobrevivência, seu desejo era de prosperidade e fartura. E foi neste ponto, que o diabo construiu o laço para enredá-lo.
Mas o moleiro conseguiu livrar-se do pacto firmado num momento de fraqueza, venceu a tentação, venceu o diabo e “voltou para junto da família, disposto a sofrer resignadamente as provações que lhe reservava o destino” (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 181). Mesmo tardiamente, o moleiro acolheu suas dores e provações, assim como Jó, decidido a não ceder as investidas do inimigo. E, como Jó, foi recompensado por sua fidelidade, o moleiro também recebeu uma centelha de graça divina:
Mas logo notou, com alegria, que, crescendo as árvores nas encostas do monte, já os ventos, por elas desviados, faziam girar as pás de seu moinho. A pouco e pouco, conseguiu para si e para os seus uma relativa abastança, preferível à prosperidade resultante de sua condenação ao inferno (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 181).
Como geralmente ocorre nos contos de tradição oral, o valor moral trazido pela narrativa de Andersen é também um valor religioso. A conclusão da narrativa é bem explicita: “Mais valia ser pobre que vender-se ao diabo por todas as riquezas do mundo” (ANDERSEN apud MAGALHÃES JR., 1973, p. 181). Essa lição final evoca as palavras de Jesus, que orienta o fiel a não fugir do sofrimento, antes, a abraçá-lo e tomar sua cruz. Afinal, “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Marcos 8:35-36). O moleiro havia aprendido a lição.
É curioso como neste e em outros relatos de pactos entre o demônio e seres humanos, o diabo se submete às regras do contrato e aceita a derrota sem apelar para o seu poder sobrenatural. Aparentemente, neste conto, o diabo ainda possui uma preocupação em honrar o que foi combinado, como ocorre na narrativa bíblica de Jó, onde ele perde a aposta e respeita os limites pré-acordados com Deus.
De acordo com a cristandade e suas manifestações tradicionais, o diabo é tentador, e trabalha diligentemente para desencaminhar seres humanos do caminho do bem, da justiça e da moral, fazendo com que eles se percam pela eternidade. O texto bíblico afirma que o diabo já está condenado, por isso “está furioso pois sabe que pouco tempo lhe resta” (Apocalipse 12:11), e, na tradição cristã ocidental, ele empenha toda sua energia para levar o máximo de pessoas com ele para a danação eterna.
O conto de Andersen ilustra uma destas tentativas demoníacas de conseguir mais uma alma. O diabo não aparece com chifre, rabo e patas de bode, como costumava ser representado na tradição cristã medieval.2 Essa é uma imagem baseada no deus Pã e nos sátiros, criaturas metade homem, metade bode, com chifres, cascos fendidos, olhos oblíquos e orelhas pontudas, a cujo imaginário cristão acrescentou ainda um elemento importante: as asas de anjo, para lembrar que estão lidando com um anjo caído. Além disso, bodes e carneiros serão separados no dia do juízo final (NOGUEIRA, 1986, p. 67), e cada indivíduo tem a liberdade de estar entre os bodes ou junto ao “cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” – uma descrição bíblica da figura de Jesus Cristo. O conto de Andersen não destaca os aspectos físicos do diabo, mas o seu caráter tentador e enganoso. A narrativa bíblica chama o diabo de “pai da mentira” (João 8:44), e, nessa história da tradição popular, ele age dentro das expectativas, enganando o moleiro.
Curiosamente, na história de Andersen, o diabo aparece como uma pessoa, um desconhecido sentado numa pedra, oferecendo seus serviços de construtor de moinhos. Ele se vale de uma outra habilidade que a figura do diabo adquiriu ao longo do tempo no imaginário cristão: a capacidade de se transfigurar em qualquer coisa, até em anjo de luz (2 Coríntios 11:4) se for necessário: “O maligno se confunde com formas humanas e animais porque é um ser sobrenatural, um anjo bestial, apelando para os instintos animais do homem” (NOGUEIRA, 1986, p. 69). Ele conhece as fraquezas e necessidades humanas, e não poupa esforços para conseguir arrebanhar o máximo de pecadores, “suas mutações constituem um reflexo do Mal, que permanentemente embosca a humanidade, atrás das mais inocentes das aparências” (NOGUEIRA, 1986, p. 69).
A promessa de um moinho construído da noite para o dia no alto de um monte, para um moleiro falido e amargurado pela vida de privações que levava, remonta à tentação, que é particular para cada ser humano, pois o diabo tem um arsenal variado de tentações - tentações personalizadas para cada tipo de pessoa e para cada ocasião da vida humana. Neste conto, ele cumpre bem o papel de tentador, assim como fez com o Cristo no deserto da tentação, oferece alimento e riquezas (Lucas 4:1-13). E mais uma vez, no alto do monte, o diabo foi vencido. Jesus Cristo resistiu e o moleiro também, dando exemplo que mais vale viver uma vida honesta e fiel ao Criador com a promessa de uma santa vida eterna, do que vender-se nesta vida, sendo condenado ao lago de fogo e enxofre.
Ao final da narrativa de Andersen, o diabo destrói o moinho e fica ainda mais furioso por não ter se apoderado de mais uma alma. E é assim que a Bíblia o descreve: rugindo como um leão e procurando a quem devorar (1 Pedro 5:8), mirando a próxima vítima. O diabo é descrito como incansável, o que exige dos fieis sensatez e vigilância constante.
Além de assegurar a possibilidade da vitória sobre o diabo, o conto de Andersen tem um aspecto que a teologia cristã não destaca: a possibilidade de um humano enganar o diabo, como o moleiro fez. No final das contas, ainda que seja enganando e trapaceando, a virtude (o bem) sempre vence. Esse aspecto do conto abre uma grande porta para futuras discussões éticas, filosóficas e teológicas a respeito da interpretação popular desses temas. Apesar do evidente caráter moralizante e religioso aparentemente alinhado à teologia cristã dogmática (católica e protestante), essa história tem um aspecto subversivo ao apresentar o diabo como alguém que pode ser logrado e vencido por humanos.
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[1] Disponível em: https://www.moulins-a-vent.net/Moulins/guerande_cremeur.htm . Acesso: 02 dez. 2018.
[2] Nas artes visuais, o diabo começou a ser ostensivamente representado como um ser monstruoso no contexto cristão ocidental a partir do século XI (LE GOFF; SCHMITT, 2002, p. 319; ECO, 2007, p. 92). Na tradição folclórica medieval, o diabo era representado de maneiras diversificadas, que iam do grotesco e assustador ao cômico, apresentando-o como o senhor das trevas ou como um tolo que podia ser enganado (MATHEWS, 2008, p. 36).