Vozes poéticas na escuta
da fragilidade dos pobres:
contribuições para uma
reflexão teológica sobre a
mística em diálogo com a
poesia de Violeta Parra
Poetic voices in listening to the
fragility of the poor: contributions to a
theological reflection on the mystique in
dialogue with the poetry of Violeta Parra
Ceci Maria Costa Baptista Mariani*
Claudio de Oliveira Ribeiro**
Breno Martins Campos***
*Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (PUCCampinas), Centro de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas
(CCHSA), Programa de PósGraduação Stricto Sensu em
Ciências da Religião. Contato:
cecibmariani@gmail.com
**Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF), Programa
de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Ciência da Religião.
Coordenadoria para mestrados
profissionais da área “Ciências
da Religião e Teologia” da
CAPES. Contato:
cdeoliveiraribeiro@gmail.com
*** Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (PUCCampinas), Centro de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas
(CCHSA), Programa de PósGraduação Stricto Sensu em
Ciências da Religião. Contato:
brenomartinscampos@gmail.com
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Resumo
Este artigo propõe uma análise centrada
no florescimento de uma “mística de olhos
abertos” na América Latina ao longo do século
XX, a chamada espiritualidade da libertação.
Dentre os resultados da pesquisa, estão indicados elementos da mística que se revela
com o sentido de “suspiro dos oprimidos”, conforme a interpretação que faz Rubem Alves
da conhecida expressão de Karl Marx, tecida numa interlocução com a sociologia da religião no Brasil, como fruto de uma
reflexão sobre o retorno do sagrado na sociedade contemporânea. Suspiro, entretanto, que se expressa como desejo de transformação da realidade, tendo no
horizonte a libertação social. Mística como indignação diante da injustiça e como
força de revolução, de empoderamento dos grupos subalternos e de mudança
social. Destaca-se também a mística como canal de expressão da fragilidade
humana, da capacidade de alteridade e do despertamento da dimensão lúdica.
Por meio de metodologia bibliográfica, esta análise oferece elementos para o
debate epistemológico no âmbito dos estudos de mística que se propõem a
escutar a experiência religiosa das vozes reprimidas pelo poder colonial, tendo
como recurso a correspondência de perspectivas teológicas latino-americanas,
especialmente as de Gustavo Gutierrez, Maria Clara Bingemer e Rubem Alves,
com a poesia de Violeta Parra.
Palavras chave:Mística. Decolonialidade. Espiritualidade da libertação. Violeta Parra.
Abstract
This paper proposes an analysis centered on the flourishing of an “open-
-eyed mystique” in Latin America throughout the twentieth century, the so-called
spirituality of liberation. Among the results of the research, there are elements
of the mysticism that reveals itself with the meaning of “sigh of the oppressed”,
according to Rubem Alves’ interpretation of Karl Marx’s well-known expression,
woven into a dialogue with the sociology of religion in Brazil, as the result of a
reflection on the return of the sacred in contemporary society. The sigh, however,
that it expresses itself as a desire for reality transformation, with social liberation
on the horizon. Mystic as indignation in the face of injustice and as a force for
revolution, for the empowerment of subaltern groups and for social change. The
mystic also stands out as a channel for the expression of human frailty, the capacity for alterity and the awakening of the playful dimension. Through bibliographic methodology, this analysis offers elements for the epistemological debate
within the scope of the mystical studies that propose to listen to the religious
experience of voices repressed by the colonial power, having as resource the
correspondence of Latin American theological perspectives, especially those of
Gustavo Gutiérrez, Maria Clara Bingemer and Rubem Alves, with the poetry of
Violeta Parra.
Keywords: Mystic. Decoloniality. Spirituality of liberation. Violeta Parra.
Introdução
Neste artigo, procuramos tratar de vozes que falam a partir da escuta da fragilidade dos pobres, e conseguem – sobretudo, por intermédio da poesia – apontar a beleza da presença do Mistério Santo no seio da realidade de opressão e injustiça vivida pelos marginalizados
Em nossa análise, foram dados quatro passos principais. O primeiro, de caráter mais introdutório e conceitual, mostra o lado ambíguo da religião e como ela pode se manifestar tanto para a manutenção do status quo quanto para a contestação social. É justamente na segunda possibilidade que localizamos a dimensão mística que se conecta com os compromissos sociais de justiça. A tônica é a constatação das possibilidades de empoderamento de vozes subalternas na vida social e o lugar de escuta dessas expressões por parte de determinadas perspectivas teológicas e poéticas.
Nos demais passos, buscamos estabelecer um diálogo entre certas perspectivas teológicas latino-americanas e os escritos de Violeta Parra, ensaiando, assim, uma teologia da cultura. Primeiramente, enfatizamos a sensibilidade para perceber a vida concreta das pessoas pobres, tanto na força e possibilidades delas (conforme nos ensinou o teólogo Gustavo Gutiérrez) quanto em sua fragilidade e vulnerabilidade. Na sequência, buscamos uma correspondência entre a teologia da alteridade (proposta pela teóloga Maria Clara Bingemer) e a poesia de Violeta Parra. Por fim, com ênfase na valorização da dimensão lúdica do fazer teológico, esboçamos uma correspondência entre a teopoética de Rubem Alves e trechos de canções da compositora chilena.
Aspectos conceituais
Peter L. Berger (1985, p. 111) afirma que “a falsa consciência e a má fé, largamente legitimadas por meio da religião, também podem se revelar como tal por meio da religião”. Refere-se à potencialidade alienadora da religião ao esconder do humano seu poder de transformação social, mas também à disposição invertida de trazer à luz os mecanismos próprios de plausibilidade que sustentam a alienação. Por isso mesmo, afirma também que “toda a teia de mistificações religiosas jogada sobre a ordem social pode, em alguns casos, ser drasticamente removida – por meios religiosos – deixando que aquela ordem seja novamente apreendida como apenas um artifício humano” (BERGER, 1985, p. 111-112). De um lado, a religião teve mesmo – como ainda tem – na história a função de manutenção da ordem social, uma vez que a reveste de sacralidade; de outro, tanto “a depreciação radical do mundo empírico em várias tradições místicas quanto a transcendentalização radical de Deus na religião bíblica” têm potencial para abalar o mundo (BERGER, 1985, p. 112).
O termo “mística”, conforme a utilização de Berger, tem como referência a tradição helenística dos escritos filosóficos neoplatônicos – por exemplo, sob a influência de Plotino, que marca o cristianismo e a tradição cristã em diálogo com o helenismo, e confere à mística um sentido de ascese. Segundo a interpretação de Bernard McGinn (2012, p. 82), para Plotino, a filosofia “existe para elevar a alma inferior ou o ser até a consciência de uma identidade mais elevada, o eu transcendente que desfruta da identidade com o Intelecto puro e, através deste, até mesmo com o incognoscível Um”. Assim, a união mística supõe um processo de despojamento que foi muitas vezes interpretado e também vivenciado como desprezo do mundo
A passagem dessa concepção mais clássica de mística, que Jürgen Moltmann (2002) chama de espiritualidade da alma – e critica justamente por ter no seu centro, nos termos de Berger (1985, p. 112), “a depreciação radical do mundo” – para uma compreensão de mística (moderna) como experiência espiritual de encontro direto com o divino, e que se desdobra em compromisso com a vida, implicou num processo de transformação no próprio seio da modernidade. Na perspectiva moderna da primeira Ilustração, a mística foi entendida como fé no milagre, isto é, fé em que o humano está submetido a influência do sobrenatural – o que o levaria necessariamente ao quietismo. Para Immanuel Kant (s.d.), a mística se refere a uma experiência que, não podendo se reduzir à regra da razão, acaba sendo apenas interpretação de certas sensações, conhecimento interpretativo sem aplicação prática.
Apesar disso – ou talvez no confronto com essa crítica, e respondendo aos novos desafios do tempo –, desenvolve-se na contemporaneidade uma compreensão que reflete uma vivência mística que, conservando alguns elementos essenciais, tais como o descentramento e a afirmação apofática da divindade, por meio da dialética da negatividade, enfatiza o envolvimento com o mundo e o compromisso com a transformação da realidade. Na contemporaneidade, fazendo referência às grandes transformações ocorridas ao longo do século XX, até aproximadamente os anos 1980, especialmente no âmbito da tradição cristã que foi capaz de acolher a crítica da segunda Ilustração dos grandes mestres da suspeita (Marx, Freud e Nietzsche) à religião, floresce uma espiritualidade mística, chamada pelo teólogo Johann Baptist Metz (2013) de mística de olhos abertos.
Ao trazer maior sensibilidade para a importância da história, a modernidade impactou a espiritualidade cristã. Uma nova aproximação da Bíblia orientada pelo método histórico-crítico fez ver a face histórica do Cristo da fé, o Jesus de Nazaré, cujo olhar messiânico não se destina aos pecados dos outros, mas aos seus sofrimentos.
Essa sensibilidade messiânica ao sofrimento não tem nada a ver com plangência, com um culto tristonho ao sofrimento, mas tem tudo a ver com uma mística bíblica da justiça: paixão por Deus como empatia pelo sofrimento alheio, como mística prática da compaixão (METZ, 2013, p. 19).
Ainda segundo Metz, na condição de percepção participativa do sofrimento alheio, a compaixão exige a disposição para uma mudança de visão, isto é, para olharmos e avaliarmos o mundo com os olhos dos sofredores e ameaçados pela vulnerabilidade da vida e ausência de direitos. Essa mudança de visão provoca o descentramento. Ao nos deixarmos interromper pelos sofrimentos dos outros, temos nossos desejos e interesses preferencias relativizados – e uma revolução antropológica se opera por essa interrupção. Uma força de oposição que capacita para a interrupção dos contextos terrenos da violência é o que define, para Metz (2013, p. 139), o espírito pentecostal: graça de Deus que ensina “aos corações a arte de parar e dar meia volta, quando o ‘Adão’ natural tenta sempre prosseguir”. Espírito e graça se expressam como força de oposição quando a opressão geral das reproduções sociais exige que tudo continue da maneira como está. Experiência do mistério de Deus revelada em Jesus, a mística se faz de olhos abertos para os sofredores desse mundo, obedecendo a sua autoridade. Nesse sentido, falamos de uma mística que não se restringe a uma tradição religiosa, mas que tem um sentido universal, pois, depois do processo de secularização e da emergência do pluralismo religioso, a autoridade das vítimas é a que deve valer para todos (METZ, 2013).
Em perspectiva decolonial, podemos considerar que o século XX viu florescer na América Latina uma mística de olhos abertos que fundamentou a chamada espiritualidade da libertação. Mística que tem um sentido de suspiro dos oprimidos, conforme a conotação que Rubem Alves (1987) conferiu à conhecida expressão de Marx, tecida em interlocução com a sociologia da religião no Brasil, no que toca ao tema do retorno do sagrado na sociedade moderna. Rubem Alves trata da explicitação de uma espiritualidade da libertação no Brasil do final dos anos 1960 e início dos 1970, na medida em que os estudiosos de religião, retomando enfoques dos movimentos de cultura popular, descobrem as implicações políticas da religiosidade popular. O instrumental sociológico crítico e marxista permitiu ao clero jovem (seminaristas e estudantes ligados às igrejas1 ) enxergar, em meio a contradições políticas, sociais e econômicas do avanço do processo de industrialização e urbanização promovido pela sociedade capitalista de mercado, a força transformadora do gemido do oprimido (ALVES, 1987). No início dos anos 1960, em parte influenciada por esse processo, que se aprofundou nos anos 1970 em forma de reflexão teológica (a teologia da libertação), surgiu uma nova compreensão de cultura e religiosidade populares.
Uma abordagem teológica em diálogo com as ciências sociais passa a afirmar, então, que se descobriu na vivência religiosa popular uma força de resistência à dominação, para além das justificativas sociológicas funcionais. A religiosidade popular passa a ser apreendida como um fenômeno antropologicamente significativo e politicamente fundamental, pois é tomada como expressão de resistência contra uma realidade cultural, econômica e política, imposta de cima para baixo. Podemos entender que o suspiro dos oprimidos, expresso de forma religiosa, guarda em seu interior o mistério da resistência contra as forças de opressão. Mistério percebido como Presença dentre os pobres e que promove naquele que se aproxima dessa realidade e escuta suas narrativas uma compaixão solidária e um desejo profundo de transformação social, tendo em vista a justiça e a paz.
Esse processo implicou em análises das possibilidades de transformação no âmbito da sociedade marcada por contradições das relações de poder impostas pelo modelo econômico capitalista. Em vista disso, houve mudanças nas ciências humanas, especialmente da sociologia da religião, que passa a ter um olhar mais aguçado para a riqueza da cultura popular. Elas também passam a estar atentas às transformações na autocompreensão das instituições religiosas, sobretudo a Igreja Católica, que pelo avanço do processo de secularização têm de enfrentar o conflito com o Estado, e passam a contar com uma ligação mais estreita com o povo comum. Podemos dizer que o fenômeno místico, adquire o sentido de uma paixão pela libertação de viés político. Trata-se de uma mística da libertação, aqui, apoiada no caso brasileiro, mas que abrange uma sensibilidade latino-americana por causa do processo colonial que se estendeu em todo o continente.
A nosso ver, o giro decolonial que promove atenção à cultura popular permite perceber que existe uma experiência do sagrado, ou uma consciência da presença de um Mistério Santo, na escuta do suspiro dos oprimidos, isto é, da gente subalternizada. Aparece na América Latina, então, uma poética mística, com ou sem compromisso confessional, que reflete uma paixão amorosa e que brota da contemplação indignada do sofrimento da vítima inocente. Mística que, na escuta do gemido dos excluídos, contempla a beleza que opera na criatividade de sua resistência em viver num mundo onde reina a injustiça. Tal visão pode ser encontrada na teopoética dos teólogos Gustavo Gutiérrez, Rubem Alves e Maria Clara Bingemer, e também, por correspondência, na arte de Violeta Parra – dentre tantas outras produções teológicas e artísticas que poderíamos citar.
Assumimos como referência a perspectiva dos estudos culturais decoloniais, que ganhou um novo conteúdo crítico em solo latino-americano, a partir das análises, sobretudo, do peruano Anibal Quijano e dos argentinos Enrique Dussel e Walter Mignolo. Trata-se da perspectiva decolonial ou giro decolonial, que se distinguem, como expressões ou categorias, do pós-colonial ou do descolonial, e possuem um sentido estratégico que revela interpelações políticas e epistemológicas de reconstrução de culturas, instituições e relações sociais. Tais interpelações críticas são marcadas por certo caráter propositivo e prático e por ações concretas no âmbito cultural e político. O decolonial indica uma desobediência epistemológica sem a qual “não será possível o desencadeamento epistêmico e, portanto, permaneceremos no domínio da oposição interna aos conceitos modernos e eurocentrados, enraizados nas categorias de conceitos gregos e latinos e nas experiências e subjetividades formadas dessas bases” (MIGNOLO, 2008, p. 288).
A tarefa decolonial consiste em construir a vida a partir de outras categorias de pensamento que estão para além dos pensamentos ocidentais dominadores. Trata-se de uma postura e atitudes permanentes de transgressão e de intervenção no campo político e cultural, na incidência das culturas subalternalizadas e invisibilizadas, nas quais podemos identificar, visibilizar e incentivar lugares de exterioridade e de construções críticas alternativas e plurais. “O paradigma decolonial luta por fomentar a divulgação de outra interpretação que põe em evidência uma visão silenciada dos acontecimentos”, e, ao mesmo tempo, revela “os limites de uma ideologia imperial que se apresenta como a verdadeira e única interpretação” (MIGNOLO, 2007, p. 57). Assim, os canais de valorização da mística que brota do suspiro dos oprimidos podem ser não somente percebidos e terem suas tendências identificadas nas análises, mas podem ser, sobretudo, construídos. É obvio que se trata de tarefa dos próprios grupos religiosos e da interação deles com a sociedade, mas os estudos de religião podem cooperar, oferecendo análises cujas bases sejam sólidas e ao mesmo tempo criativas.
Diante da perspectiva teológica da fé que se articula com compromissos sociais concretos, somados à crítica aos idealismos e simplificações que essa visão pode ocasionar, alinhavamos uma espiritualidade da libertação, de corte não eclesiástico, mas dentro de uma teologia da cultura, feita a partir da correspondência entre os aspectos teológicos da espiritualidade da libertação latino-americana e a poesia de Violeta Parra.
Uma nota metodológica a mais: seguimos o que Antonio Carlos de Melo Magalhães apresenta em sua obra Deus no espelho das palavras, ou seja, o método da correspondência, que discorda da superioridade da teologia em relação à literatura – e vice-versa. Para Magalhães (2000, p. 206), o método da correspondência.
reconhece as diferentes motivações de textos religiosos confessionais e textos literários. Se a alteridade é reconhecida no campo das motivações, ela é relativizada no desdobramento que os textos apresentam independente de suas motivações. Ao acontecer na vida, o texto é sempre algo a se cumprir.
Magalhães (2000) também nos faz lembrar que, especificamente, entre teologia da libertação e literatura não há distanciamentos, desde que, na América Latina, Gustavo Gutiérrez e Pedro Trigo abriram caminhos frutíferos do diálogo entre teologia e literatura. Trigo buscou compreender o papel e a contribuição da literatura no fazer-teológico latino- -americano – para tanto, dentre outras obras e autores, estudou o livro El luto humano, do escritor mexicano José Revueltas. Gutiérrez, por sua vez, buscou aprofundar temas presentes nas obras do romancista peruano José Maria Arguedas (como El zorro de arriba y el zorro de abajo e Todas las sangres). Os textos de Arguedas falam da realidade marcada pelo sofrimento e esperança, e da utopia da fraternidade. “Uma das maiores riquezas de seus romances é a relação entre o itinerário pessoal da vida e a situação do Peru” (MAGALHÃES, 1997, p. 28). A abordagem pioneira de Gustavo Gutierrez e Pedro Trigo é feita dentro do horizonte da teologia da libertação. Por isso mesmo, de acordo com Magalhães, corremos o risco de a literatura ser utilizada para reforçar conceitos já estabelecidos na teologia; para ele, a literatura não pode fazer o papel de apenas concordar com o que já está posto, sem acrescentar, criticar ou duvidar da teologia. O diálogo sempre move as partes para outra condição (MAGALHÃES, 2000). É o que pretendemos realizar em nossa análise ao propor uma correspondência entre a espiritualidade da libertação no contexto latino-americano e a poesia de Violeta Parra.
A fragilidade histórica dos pobres
Em sua obra clássica de espiritualidade – Beber do próprio poço –, Gustavo Gutiérrez (1984) afirma que vivemos na América Latina, da segunda metade da década de 1960 em diante, um kairós, pela descoberta que se fez da presença atuante de Deus no meio dos pobres. Experimentamos um ânimo novo com o olhar voltado para o mundo, como pediam os processos eclesiais – tanto os católicos (como o Concílio Vaticano II) como os protestantes (com os esforços ecumênicos) –, e a entrada em contato com as comunidades pobres pela proposta da organização de comunidades de base e grupos similares, da formação em círculos bíblicos, do envolvimento com as lutas sociais por melhores condições de vida no campo e nas periferias das cidades. No encontro com os pobres acontece o milagre de um novo protagonismo: o pobre ultrapassa a barreira da resignação e alimenta uma confiança elevada na libertação que vem de Deus.
Beber do próprio poço é uma reflexão teológica sobre a experiência da escuta do cântico dos pobres, que na América Latina estão ambientados na percepção das causas da injustiça e nas ações concretas para se livrarem delas (GUTIÉRREZ, 1984). O suspiro dos oprimidos é o lugar teológico de onde brota a água viva, o poço que oferece a água que purifica, retira o cristão da inércia e “fornece o elemento vital necessário” para a fertilização de novas terras (GUTIÉRREZ, 1984, p. 17). O teólogo peruano acredita que essa experiência funda uma espiritualidade que deve impactar a vida cristã para além dos limites de seu contexto próprio.
Gutiérrez (1984) reflete também sobre a experiência espiritual que irrompe da percepção da ação de Deus libertador no meio dos pobres, que começam a tomar consciência da miséria e exploração secular na América Latina, uma realidade de morte física e cultural que atingiu índios, negros, mulheres. Opressão secular promovida por um processo de colonização que faz com que os pobres vivam como estrangeiros em sua própria terra, denunciada pelos bispos católicos reunidos nas Conferências Episcopais em Medellin (1968) e em Puebla (1979). Condição que não é apenas uma “situação social” exterior à mensagem evangélica, mas é uma realidade que contraria o Reino de vida anunciado pelo Senhor, e por isso toca o coração da mensagem evangélica.
O tempo de Deus, que Gutiérrez (1984) celebra como momento propício, apresenta-se como um tempo de solidariedade, em que observamos o crescimento de um movimento em defesa dos direitos humanos. Em vários países da América Latina, “pululam os grupos de organização e solidariedade entre os despojados e para com eles” (GUTIÉRREZ, 1984, p. 32). Tempo que é também de oração, pois, na Igreja da América Latina, não há lugar onde se reze com maior fervor e alegria do que em meio ao sofrimento e à luta diária dos pobres (GUTIÉRREZ, 1984). O compromisso libertador levou a uma valorização da oração. O tempo de Deus, além disso, é de martírio: numerosos foram os que deram suas vidas até a morte para testemunhar a predileção de Deus pelos pobres (GUTIÉRREZ, 1984). Esse tempo é, portanto, o de um novo modo de seguimento de Jesus. Com força de inspiração poética, o teólogo peruano proclama que em terras latino-americanas o fogo da compaixão com o sofrimento dos pobres é o crisol de uma nova espiritualidade.
A adesão dos pobres à mensagem evangélica e a descoberta da força de transformação que nasce dali significam uma conversão que instaura um dinamismo de vida acionado pelo Espírito, e provoca uma saída de si mesmo e uma abertura para Deus e aos outros. O seguimento de Jesus e o compromisso com a construção do Reino tornam- -se centrais. Gutiérrez (1984) ressalta a força histórica dos pobres como sinal que se viveu na América Latina um tempo propício. No entanto, no interior da própria teologia da libertação surgiram elementos críticos que não diminuíram a importância da força mobilizadora dos pobres, mas a aquilataram em seus conteúdos e possibilidades. Por exemplo, Juan Luis Segundo, em diferentes obras,2 reafirmou a necessidade da suspeita como atitude crítico-teológica fundamental, para não permitir a repetição de perguntas que não mais fazem sentido no círculo hermenêutico próprio da teologia da libertação, e não poupou crítica aos reducionismos e idealismos de seus pares.
Em linhas gerais, Segundo questionou o triunfalismo que percebia na supervalorização da força histórica dos pobres. Considerou, por exemplo, que se deveria também analisar, e detidamente, a debilidade histórica dos pobres; além disso, considerava superdimensionada a ênfase na sabedoria dos pobres – por vezes utilizada como retórica, em contradição com o papel do teólogo quando este acrescenta novas interpretações teológicas ao povo. Segundo também questionou a hermenêutica bíblica em algumas obras da teologia da libertação, por considerá-la insuficiente, na medida em que parecia abolir de Jesus a inteligência que vem dos doutos para simplesmente seguir a que vem dos pequenos. Como se sabe, Segundo, como teólogo da libertação, manteve-se compromissado e inspirado pelos pobres, mas procurava descartar uma avaliação mais idealizada deles.
Mesmo considerando o referido debate sobre idealização e realidade dos pobres – ou, em outras palavras, entre a força e a fragilidade deles –, o que destacamos é a sensibilidade com a escuta das pessoas, bem como o aprendizado e a interação dos variados setores sociais e eclesiais com as pessoas, como expressão daquilo que chamamos de mística de olhos abertos. Na perspectiva que traçamos, o seguimento de Jesus deve privilegiar a indignação profética, a compaixão solidária, a reivindicação do protagonismo dos pobres, a comunhão de confiança filial com o Pai, a partilha familiar, a pobreza e a renúncia do servo sofredor, a coragem de carregar a cruz, a atenção à leitura popular da Bíblia, uma vivência eucarística atenta ao sacrifício dos pobres, a ampla abertura ecumênica, a confiança escatológica na instauração do Reino de Deus (CASALDÁLIGA; VIGIL, 1994).
Os poemas de Violeta Parra refletem e correspondem à sensibilidade do Reino. Compositora, cantora e artista plástica chilena, foi uma mulher profundamente identificada com a cultura popular e tocada pelo sofrimento do povo pobre. Sua obra enraizada é fruto de uma proximidade estreitada por anos de pesquisa em que percorreu as regiões pobres do Chile, recolhendo e compilando música folclórica. Sua poesia triste capta e traduz a dor e a aflição estampadas no rosto dos pobres. Violeta capta na escuta do gemido dos pobres uma imagem de Deus que se compadece do sofrimento do povo.
O fruto dessa experiência espiritual é uma práxis libertadora que opera uma mudança no sentido da caridade, que passa a ser mais uma exigência objetiva do que um dever subjetivo. A verdadeira caridade, segundo Gutiérrez (1984, p. 119), “tenta partir das necessidades concretas do outro e não do nosso ‘dever’ de praticar o amor. A caridade é respeitosa do próximo e, por isso, deve partir de uma análise de sua situação concreta e de suas exigências”. Faz parte dessa práxis a busca da eficácia na medida em que se percebe que a luta contra a injustiça exige análise adequada de causas e do eventual tratamento (GUTIÉRREZ, 1984). Sem perdermos a confiança na graça de Deus e a consciência de que o Reino de Deus que vai dando seus sinais é uma realidade escatológica, vimos que são necessárias também as mediações sócio-analíticas, ou seja, saber analisar a sociedade com os recursos críticos que as ciências humanas oferecem.
Espécie de visão ou concepção de mundo que nos remete a Violeta Parra: tendo começado sua carreira como artista folclorista, durante anos interpretou com sua irmã Hilda canções da moda difundidas nas rádios. Em 1952, uma nova experiência deu novo rumo a seu trabalho. Provocada por seu irmão Nicanor, saiu a recolher folclore e encontrou a riqueza no canto dos poetas populares, chegou a recuperar 3000 poesias e canções camponesas (MIRANDA, 2017).
Em sua peregrinação pelo mundo da cultura camponesa, Violeta Parra foi tocada e transformada pelos sábios mestres da Lira Popular. Passou a admirar os versos delicados e primorosos dos pobres que cantam suas dores cheios de fé e esperança, e que pedem mudança. Em sua autobiografia em versos, Violeta Parra (1988, p. 26) escreveu:
Igual que jardín de flores / se ven los campos sembra’os, / de versos tan delica’os / que son perfeutos primores; / ellos cantan los dolores, / llenos de fe y esperanzas; / algotros piden mudanzas / de nuestros amargos males; / fatal entre los fatales / voy siguiendo estas andanzas.
Inundada de compaixão, Violeta Parra assume nova performance; o ano de 1953 marca o início da transformação a revelar outra Violeta. Com um estilo austero, despojado de artifícios e liberado do estereótipo feminino caracterizado por sensualidade sedutora, busca uma comunicação direta com o público. Constrói a partir de si mesma uma nova representação de mulher popular. Privilegiando o simples, renúncia aos artifícios e virtuosismos. Sua poesia, marcada por um tom testemunhal, não serve ao entretenimento. Seu canto deve ser escutado num silêncio religioso, sai de si pelo impulso da compaixão para se reencontrar dando voz ao outro popular, calado ou representado de forma ideológica pelo folclore institucional.
Obra egocéntrica y testimonial, elaborada desde su situación de mujer-madre-jefe de hogar-artista (la impronta del género es aquí evidente), y que, a través de su personal universo simbólico, hará visible y sensible un mundo rechazado con el cual se identificó profundamente. Hablará la lengua del pueblo, su voz será la misma de ellos, su canto será “el canto de todos” (ALVARADO, 2004, p. 63).
Como vemos nas canções de Violeta Parra, a espiritualidade profética fundada numa experiência profunda de compaixão para com os pobres não se limita ao âmbito do cristianismo – ainda mais, daquele explicitamente confessado de forma eclesial. Transborda seus limites e pode ser observada também em ambiente secular. Tal perspectiva, em nossa análise, está em correspondência com a espiritualidade da libertação que marca o cenário teológico latino-americano.
Mística e alteridade
A explosão mística e religiosa vivenciada no final do século XX e na primeira década do XXI, em diferentes continentes e contextos socioculturais, dentre outros aspectos, revela um esgarçamento da razão moderna como doadora de sentido para a humanidade. Décadas atrás, a teóloga Maria Clara Bingemer (1990, p. 5), que sempre deu voz teológica à força transformadora da fragilidade dos pobres na América Latina, havia indicado que:
Insatisfação, vazio, desencanto são sinônimos de vulnerabilidade, fragilidade emocional. E essa vulnerabilidade é terreno fértil para a sedução, que pode vir como sedução do Sagrado. [...] Nossas igrejas, com seu aparato institucional, sua hierarquia solidamente estruturada, seu bem preciso código de ética, suas liturgias pouco ou nada participativas parece que perderam sua capacidade de sedução [...].
A partir do aspecto pneumatológico, Bingemer já estruturara sua reflexão sobre alteridade e diálogo inter-religioso ao integrar um dos marcos desse tema no Brasil, que é o livro Diálogo de Pássaros: nos caminhos do diálogo inter-religioso, organizado por Faustino Teixeira (1993). Nele, a autora indicou “a Pneumatologia como possibilidade de diálogo e missão universais”, ao destacar que a salvação é um dom do Espírito para toda criatura e que a presença do Espírito de Deus dentro dos seres humanos “altera e afeta suas mais profundas e essenciais categorias antropológicas constitutivas, subvertendo radicalmente os fundamentos do seu ser” (BINGEMER, 1993, p. 114).
Uma década depois, ao reforçar a perspectiva trinitária, Bingemer insiste no mistério da revelação e no valor da pluralidade. O primeiro indica, seguindo as trilhas do pensamento agostiniano, “que é impossível entender, captar completamente o Deus Uno e Trino da nossa fé. Mas é possível, sim, conhecê-lo na medida em que ele mesmo revela seu Mistério aos sedentos e amorosos que o buscam” (BINGEMER; FELLER, 2003, p. 14-15). O segundo, a pluralidade, por entender que não se trata de mera questão de diferenciação humana, mas de uma percepção que sistema nenhum pode ter a pretensão das respostas absolutas e que abranjam toda a realidade, pois todo discurso com pretensões à universalização e à totalização é redutor, inadequado e gera indiferença e desencantamento.
A divindade amorosa que busca redimir a humanidade é o balizador ético que impulsiona todos a fazerem o mesmo ato redentor. E daí surgem diferentes desafios e possibilidades. O mais fecundo é o da escuta, de saber ouvir o diferente. Trata-se da
[...] tentativa de nos submeter à verdade onde quer que ela se encontre, aceitando o pluralismo de perspectivas e de nomes, quaisquer que eles sejam e onde quer que pulse o coração da vida. Esta missão é “sair” da violência mimética e redutora da alteridade do outro e entrar numa dinâmica de paz polifacética e plural (BINGEMER, 2001, p. 288).
Ao buscarmos correspondências e paralelos com a poesia de Violeta Parra, encontramos a valorização do outro fragilizado. A bela canção “Arriba quemando el sol”3 narra o impacto que o encontro com mineiros em situação miserável nos pampas chilenos causou em Violeta Parra. A situação de pobreza das famílias, ela canta, custou a ela um impacto de morte: fez com que perdesse a voz.
Cuando fui para la Pampa / llevaba mi corazón / contento como un chirigüe, / pero allá se me murió. / Primero perdí las plumas / y luego perdí la voz. / Y arriba quemando el sol.
Identificada com o sofrimento dessa gente das minas dos pampas chilenos, compôs ela um grito de denúncia. Toda estrofe dessa canção termina num grito forte de quem, apesar da dor, segue firme em frente tendo “acima queimando o sol”. Os versos falam de precárias condições de moradia, de fileiras de casebres e da situação das mulheres frente a um único pilão – “cada uma com seu balde e com sua cara de aflição”.
Cuando vide los mineros / dentro de su habitación / me dije: “mejor habita / en su concha el caracol, / o a la sombra de las leyes / el refinado ladrón”. / Y arriba quemando el sol.
Las hileras de casuchas / Frente a frente, sí, señor / Las hileras de mujeres / Frente al único pilón / Cada una con su balde / Y su cara de aflicción / Y arriba quemando el sol.
Com coragem, Violeta Parra reclama da desigualdade, da escassez de alimento sofrida pelos pobres e do contrabando de garrafas de licor destinadas à mesa dos ricos. Ergue a voz e protesta: “enterraram a justiça”, “enterraram a razão
Fuimos a la pulpería / para comprar la ración, / veinte artículos no cuentan / la rebaja de rigor. / Con la canasta vacía / volvimos a la pensión. / Y arriba quemando el sol. “Zona seca de la Pampa”, / yo leo en un cartelón, / sin embargo, van y vienen / las botellas de licor. / Claro que no son del pobre, / contrabando, qué sé yo. / Y arriba quemando el sol. Paso por un pueblo muerto, / se me nubla el corazón, / aunque donde habita gente / la muerte es mucho mayor. / Enterraron la justicia / enterraron la razón. / Y arriba quemando el sol
No poema intitulado Defensa de Violeta Parra, escrito após a morte dela, seu irmão Nicanor Parra (1988, p. 13) refere-se a Violeta como “un corderillo disfrazado de lobo” – ressalta sua preocupação com os outros e sua dor infinita:
Preocupada siempre de los otros / Cuando no del sobrino de la tía / Cuándo vas a acordarte de ti misma / Viola piadosa. Tu dolor es un círculo infinito / Que no comienza ni termina nunca / Pero tú te sobrepones a todo / Viola admirable. Nicanor Parra (1988, p. 14-15) trata da oposição que as autoridades faziam a Violeta:
Pero los secretarios no te quieren / Y te cierran la puerta de tu casa / Y te declaran la guerra a muerte / Viola doliente.
Porque tú no te vistes de payaso / Porque tú no te compras ni te vendes / Porque hablas la lengua de la tierra / Viola chilensis.
¡Porque tú los aclaras en el acto!
E exalta a maneira vulcânica de Violeta cantar:
¡Nadie puede quejarse cuando tú / Cantas a media voz o cuando gritas / Como si te estuvieran degollando / Viola volcánica! (PARRA, N., 1988, p. 14-15)
A expressão vulcânica da existência humana pode ser traduzida na visão teológica por aquilo que Maria Clara Bingemer (2001, p. 288) chamou de uma visão “mundana do mundo”, na qual a experiência religiosa não se impõe como compreensão unívoca, mas se dirige a uma emancipação do ser humano em relação à religião. Isso se dá de variadas formas, por exemplo, no valor da dimensão humana e histórica no processo de encarnação, no plano das lutas pela justiça e pelos direitos que, mesmo sendo sagradas, são travadas na secularidade, na importância da criação que, embora tenha uma interpretação religiosa, pois é de Deus, possui sua realidade terrena, imanente. Trata-se de uma interpretação positiva dos processos de secularização que veem a emancipação humana não como o crepúsculo de Deus, mas como reforço ao que já está engendrado na revelação bíblica (BINGEMER, 2001).
Em direção semelhante, perguntamos, então, se a emancipação humana não significaria o crepúsculo de Deus, que nos levaria a uma face negativa do que os contextos de modernidade e secularização produziram, uma vez que eles
[...] embora pretendam emancipar-se de toda e qualquer divindade imposta e/ou institucionalizada, criam os seus próprios deuses, diante dos quais é obrigatório curvar-se e a cujas leis se deve obedecer. Alguns desses novos deuses constituem verdadeiras idolatrias que interpelam profundamente a fé trinitária (BINGEMER, 2002, p. 303).
Reside aí a vendabilidade de todas as coisas, pela lógica do deus mercado, bem como o culto à personalidade, o progresso visto como primazia em relação ao humano, o utilitarismo nas relações humanas, e o poder e o prazer desprovidos de alteridade e de sentido. Dessa forma, tanto os processos modernos de emancipação humana como as experiências religiosas podem se encontrar na busca de caminhos frente à vulnerabilidade das pessoas e de grupos diante desses novos deuses e ídolos ou também frente à perplexidade que o novo e complexo quadro religioso apresenta.
A adesão à fé é, sem dúvida, uma escolha livre. Mas essa escolha comanda toda experiência religiosa e toda teologia cristã autêntica. E a fé em Jesus Cristo não é fechada, mas aberta; não é mesquinha, mas possui dimensões cósmicas. A teologia das religiões da humanidade que a fé em Jesus Cristo funda estabelece, na escala do cosmo, uma maravilhosa convergência no mistério do Cristo, de tudo que Deus em seu Espírito, realizou ou continua a realizar na história da humanidade (BINGEMER, 2002, p. 318-319).
Diante dessas e de outras questões, podemos perceber traços de uma sacralidade para os tempos difusos e confusos em que vivemos hoje.
Interpelada por essas múltiplas interfaces, a experiência mística, tal como o Cristianismo a entende, no fundo não é senão a experiência do amor e da caridade que revolve as profundezas da humanidade pela presença e pela sedução da alteridade. Quando a alteridade é a religião do outro, há uma interface a ser explorada e todo um caminho a ser feito em direção a uma comunhão que não suprima as diferenças, enriquecedoras e originais, mas que encontre, na sua inclusão, um “novo” no qual se pode experimentar coisas novas suscitadas e propiciadas pelo mesmo Deus (BINGEMER, 2002, p. 320).
A espiritualidade que perpassa a perspectiva proposta por Bingemer gera abertura e acolhimento do outro. No tocante à teologia, uma visão ecumênica se abre.
A partir dessa face plural, geradora de uma interface plurirreligiosa, a experiência do sagrado realizada dentro do cristianismo, em outras palavras, a mística cristã hoje é interpelada e chamada a aprender das experiências místicas e espirituais de outras religiões. E isso não para deixar de ser cristã, mas para que a experiência de Deus que está no coração de sua identidade dê e alcance toda a sua medida. Assim como há algo que só o outro gênero, o outro sexo, a outra cultura, a outra raça, a outra etnia, podem ensinar sobre mística, há também, sem dúvida, algo que apenas a religião do outro, na sua diferença, pode ensinar, ou enfatizar. Às vezes, trata-se simplesmente de um ponto ou uma dimensão que descobrimos na nossa experiência religiosa, mas do qual ainda não nos havíamos dado conta (BINGEMER, 2002, p. 319).
Remetemo-nos, aqui, à profundidade dos escritos de Violeta Parra, que revestidos de admiração poética captam e traduzem a sacralidade da vida. A poeta chilena continua inspirando um posicionamento crítico diante de uma sociedade em que tudo vai sendo engolido pelo consumo. Violeta traduz em beleza a riqueza contida na raiz da religiosidade popular tradicional. A canção Rin de Angelito4 nos possibilita apreciar a densidade da experiência popular no enfrentamento da morte prematura. Nessa canção, ela percebe o significado profundo escondido na tradição popular de velar as crianças mortas antes dos cinco anos.
De sua aproximação com Dona Rosa Lorca, aristocrata do povo, parteira e “arregladora de angelitos”, pôde conceber uma profunda meditação sobre a morte. Essa senhora, narra Ángel Parra (2018), foi quem trouxe ao mundo a filha mais nova da poeta, falecida durante viagem de Violeta à Europa. Foi ela quem entregou a Violeta os mistérios dos velórios de angelitos, cerimônias populares que consistiam em arrumar um altar na sala de jantar da casa onde sentavam o “anjinho” numa pequena cadeira rodeada de flores de papel colocada sobre uma mesa. Altar composto como um cenário com céu e estrelas prateadas de papel, fazendo parecer que a criança estava viva. Rito em que se entoam cantos, dançam a cueca, mas sem demonstração de alegria ou de tristeza. Cerimônia cheia de força, que transformou a vida de Violeta, afirma seu filho Ángel Parra (2018), e fez com que entrasse na religião.
Os versos da canção Rin de Angelito expressam perplexidade diante da morte, especialmente da morte prematura, ao mesmo tempo que falam da vida da alma que busca seu lugar, seu centro, seu alvo no mistério do mundo que lhe abre a janela. Da escuta da dor dos pobres, presente nessa prática tradicional comunitária, nasce uma poesia que integra a morte na totalidade da vida. Violeta celebra a vida que encontra seu lugar “dentro de uma papoula” ou de um “passarinho”; celebra a alma que busca seu centro “no brilho de uma rosa” ou de um “peixinho novo”, que busca seu alvo “no mistério do mundo que abriu sua janela”:
Ya se va para los cielos / ese querido angelito / a rogar por sus abuelos, / por sus padres y hermanitos. / Cuando se muere en la carne, / el alma busca su sitio / adentro de una amapola / o dentro de un pajarito. La tierra lo está esperando / con su corazón abierto, / por eso es que el angelito / parece que está despierto. / Cuando se muere en la carne, / el alma busca su centro / en el brillo de una rosa / o de un pececito nuevo. En su cunita de tierra / lo arrullará una campana / mientras la lluvia le limpia / su carita en la mañana. / Cuando se muere en la carne, / el alma busca su diana / en los misterios del mundo / que le ha abierto su ventana. Las mariposas alegres / de ver el bello angelito, / alrededor de su cuna / le caminan despacito. / Cuando se muere en la carne, / el alma va derechito / a saludar a la luna / y de paso al lucerito. Adónde se fue su gracia. / Dónde se fue su dulzura. / Por qué se cae su cuerpo / como una fruta madura. / Cuando se muere en la carne / el alma busca en la altura / la explicación de su vida / cortada con tal premura, / la explicación de su muerte / prisionera en una tumba. / Cuando se muere la carne / el alma se qued’a oscura.
Violeta capta na tradição aquilo que vai além do tradicional e institucional, e se abre a uma experiência universal a partir da especificidade de sua experiência de mulher latino-americana, vivendo num contexto social, político e religioso determinado, num cristianismo que passou a ser ideologia fundante de uma ordem de tipo autoritário-hierárquico-privilegiado. Catolicismo hierárquico e controlador que atua na repressão da religião e cultura popular por meio de práticas espirituais/pastorais que inculcam na população camponesa a fidelidade ao patrão como fidelidade a Deus (SALINAS CAMPOS, s.d.). Catolicismo pós-tridentino, que chegou a seu apogeu no século XIX, concedeu importância capital à noção de “Divina Majestade”. Predomina na espiritualidade a “severidade do Monarca” (de poder absoluto e patriarcal) sobre a “brandura do filho” (SALINAS CAMPOS, s.d., p. 278-279). Dissemina-se a crença em que a “Majestade Divina” se manifesta no poder temporal e nos poderosos (no rei, no patrão) que são orientados pelo clero a imitar a “Divina Majestade”, renunciando a avareza e sendo generosos, relacionando-se, portanto, com os subalternos de forma paternalista. Ao contrário da religião oficial que tem como fundamento a rígida vontade do pai que controla a natureza e submete os seus habitantes, Violeta se identifica com a religião popular que tem como referência a sabedoria da mulher camponesa, conhecedora dos mistérios do corpo e da terra, cuidadora dos debilitados, das crianças, enfermos, moribundos (SALINAS CAMPOS, s.d.).
Violeta ousa dizer ao Santo Padre que vive em Roma que na América Latina estão matando o Espírito Santo. Na canção intitulada “¿Que dirá el Santo Padre?”,5 chama a atenção para atuação das autoridades da Igreja Católica que pregam tranquilidade e falam de paraíso enquanto do povo pobre são tiradas a liberdade e a inocência. Pergunta, no refrão, que dirá o Santo Padre que vive em Roma se souber que “estão degolando suas palomas”? No tocante à poesia, Violeta Parra se refere, em sua canção Cantores que reflexionan (de 1966), a dois tipos de cantores ou de artistas, dos que são prisioneiros do prazer e servos da vaidade, e dos que, em sua divina compreensão, tomam consciência de que é preciso cantar ao ser humano em sua dor, em sua miséria, em seu suor e em seu motivo de existir. Também relacionado à escuta do outro fragilizado, lembramos a relação de Violeta com os povos latino-americanos originários. Tendo como referência o canto primitivo dos povos indígenas tradicionais – atacameñas, mapuches e rapanui –, ela concebe, como eles, que a palavra cantada ou recitada é sagrada e nos vincula ao transcendente e espiritual, ao que se realiza num tempo e espaço sagrados fora do tempo e da história (HERRERA, 2014).
Em consonância com essas raízes tradicionais, cuja palavra contém uma responsabilidade social associada à transmissão de uma ética de comportamento, verificamos na obra da artista Violeta uma aspiração à verdade (HERRERA, 2014). Por isso, em seu canto, opõe-se ao artista que se deixa seduzir pela cultura de massa. Identifica-o a satanás (recorrendo aos símbolos do cristianismo tradicional), pois com falso brilho queima a árvore do amor e deixa cinzas ao passar; busca a luz da verdade, mas tem a mentira a seus pés; tem o coração preso pela glória, e a razão deslumbrada pelo holofote artificial. O mal cantor não sabe o que canta. Cego, busca no dinheiro a luz. Na canção Cantores que reflexionan,6 Violeta estabelece a distinção entre os bons e os maus cantores:
¿Es el dinero alguna luz / para los ojos que no ven? / Treinta denarios y una cruz, /– responde el eco de Israel –. ¿De dónde viene tu mentir / y adónde empieza tu verdad? / Parece broma tu mirar, / llanto parece tu reír.
O canto que tem sentido profundo é, para Violeta, o que se faz na relação com o outro que se encontra sufocado. Em seu mergulho ao encontro da alteridade, encontra também raízes profundas que permitem, inclusive, o uso do símbolo religioso com liberdade. “Ao mal cantor responde Israel: ‘Trinta denários e uma cruz’”. Na mesma canção convivem referências à tradição dos povos indígenas e ao catolicismo popular. Como em várias canções, aparece também aqui a força da crítica social. Entretanto, as últimas estrofes não são de condenação, mas um convite aos cantores para uma conversão: a provar do “vinho novo”, que adoça o fel das amarguras, e a fazer do seu canto uma ferramenta, como uma enxada que abre sulcos na terra para o cultivo, que abra o viver para a justiça e dê liberdade a sua voz.
Y su conciencia dijo al fin: / “Cántale al hombre en su dolor, / en su miseria y su sudor / y en su motivo de existir”. Cuando del fondo de su ser / entendimiento así le habló, / un vino nuevo le endulzó / las amarguras de su hiel. Hoy es su canto un azadón / que le abre surcos al vivir, / a la justicia en su raíz / y a los raudales de su voz. En su divina comprensión / luces brotaban del cantor.
Em outra canção El guillantún,7 aparece ainda mais explicitamente a harmonia possível, o encontro de tradições religiosas dentre os pobres que erguem a Deus a sua oração. A valorização da pluralidade religiosa, a recuperação do sentido espiritual da gratuidade, a crítica às formas de fixismo, o interesse e a inclinação para se repensarem categorias filosóficas e teológicas tradicionais, a interface com as ciências e com a espiritualidade, a abertura à sedução gratuita do sagrado como possibilidade amorosa e realizadora, o diálogo com tradições religiosas diferentes formam placas de um caminho que necessita ser reinventado a cada momento. Essa tradição espiritual latino-americana, ao ser retomada, pode inspirar novos grupos e novas gerações.
A experiência lúdica como suspiro dos oprimidos
O teólogo Rubem Alves foi outro que ofereceu uma crítica bastante consistente ao racionalismo presente em setores da teologia latino-americana, reforçando, assim, a sua inspiração espiritual fundamental, sua mística. Ensaiou sua crítica ao racionalismo e ao pragmatismo presentes na teologia quando deu valor à teologia narrativa e à teopoética. Com Variações sobre a vida e a morte: o feitiço erótico-herético da teologia, por exemplo, ele descortinou outras possibilidades de caminhos teológicos. Com Variações sobre a vida e a morte, no início dos anos de 1980, Rubem Alves revela uma etapa nova, uma mudança significativa de seu pensamento: a busca por uma nova linguagem teológica que pudesse responder mais adequadamente às demandas que surgiam com a emergência das subjetividades humanas que afloravam no mundo foi algo a que o teólogo se dedicou. Ele recriou sua linguagem, deu a ela novos poderes de interpretação, valorizou as reticências, os vazios, a incompletude. Daí o destaque que damos a ele em nossas interpretações teológicas de cunho antropológico e às possibilidades de correspondência de sua teopoética com a profundidade da poesia de Violeta Parra.
Com a narrativa associada ao famoso “jogo das contas de vidro” da obra de Hermann Hesse, Rubem Alves realça o caráter lúdico da teologia. Como brinquedo, a teologia transfigura o mundo, faz-nos pensar livremente, faz-nos desnudar dos velhos preceitos e dogmas, e nos fazer ver e recriar a vida em sua multiplicidade de situações. Em especial, pela ótica do lúdico, a teologia nos leva ao encontro de nós mesmos, com o corpo que somos.
Porque a conta de vidro temática é o corpo humano, meu corpo, corpo de todos os homens, corpo de jovens e de velhos, corpos torturados e corpos felizes, corpos mortos e corpos ressuscitados, corpos que matam e corpos abraçados em amor. E a congregação de teólogos e assistentes repete, em uníssono: “Creio na ressurreição do corpo” (ALVES, 1982, p. 31).Imaginação, criatividade, aventura: dimensões importantes da fé, para além dos limites religiosos que nos prendem, e das certezas que não nos deixam arriscar nos mais diferentes contextos da vida. Aí a imaginação emigra da realidade, aliena-se, torna-se estranha ao mundo, recusa o veredito dos fatos, e começa a explorar possibilidades ausentes, a montar fantasias sobre o jardim que poderia existir se o amor e o trabalho transformassem a realidade.
A imaginação voa e o corpo cria. A imaginação são as asas do corpo. O corpo, a força da imaginação. O desejo e o poder se interpenetram para dar à luz a esperança (ALVES, 1982a, p. 45).Rubem Alves e Violeta Parra muito nos fazem pensar. Ele nos diz que a fé é maior do que a existência; como dádiva e presente, ela chega a nós com sua poesia, ressaltando a transcendentalidade do amor apreendida numa vivência corporal. Em Lições de feitiçaria: meditações sobre a poesia, Rubem Alves (2003, p. 55) realça que a poesia tem o poder de falar do grande Mistério que habita nosso corpo, do Silêncio de onde brotam nossas palavras de amor:
“Antes que todas as coisas existissem
havia o silêncio.
E então, repentinamente,
ex nihilo
uma Palavra foi ouvida,
e o mundo começou...”
No vazio, versos,
universos,
[...].
Pássaros selvagens, vindos de regiões esquecidas
– nem mesmo sabiam que eles existiam! –
Bateram asas, penas de cores brilhantes,
Cantando canções desconhecidas,
Possuíram seus corpos,
e eles falaram –
como poetas,
como mágicos,
como amantes,
como teólogos,
porque teologia é a Palavra falada diante do vazio,
como uma invocação do Ausente...Poesia que dá sentido ao nosso viver, complementaria Violeta Parra. Em sua conhecida canção Volver a los 17,8 ela celebra também os elementos próprios de ser criança; integrada em seu disco Las ultimas composiciones de Violeta Parra, de 1966 – obra que pode ser considerada, segundo Herrera (2014), o resultado de todas as suas experiências estéticas e vitais –, ela canta o retorno à infância, aos seus 17 anos de idade ou a 1917, o ano de seu nascimento, depois de viver “um século”. Em seus quase 50 anos de vida, Violeta passou por muitas experiências intensas, o que significa dizer que simbolicamente teria vivido “um século”. Seus versos falam do retorno à fragilidade da criança que decifra a realidade mesmo sem a competência dos sábios, da inspiração que vem, de “um instante fecundo” que acontece na experiência de estar diante do absoluto, “como um menino frente a Deus”. Violeta introduz de forma inegavelmente mística essa canção, que ao lado de outras desse mesmo disco trata do amor como realidade fundamental
Volver a los diecisiete / después de vivir un siglo / es como descifrar signos / sin ser sabio competente; / Volver a ser de repente / tan frágil como un segundo, / volver a sentir profundo / como un niño frente a dios. / Eso es lo que siento yo / en este instante fecundo.
Se va enredando, enredando, / como en el muro la hiedra, / y va brotando, brotando, / como el musguito en la piedra. [Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.]
Mi paso retrocedido / cuando el de ustedes avanza, / el arco de las alianzas / ha penetrado en mi nido / con todo su colorido / se ha paseado por mis venas, / y hasta las duras cadenas / con que nos ata el destino / es como un diamante fino que alumbra mi alma serena.Essa música foi composta, paradoxalmente, no momento em que Violeta vive a perda daquele que foi seu grande amor, o carpinteiro suíço Gilbert Favre,9 e que, de volta ao Chile, depois de ter vivido por anos na França, enfrenta as dificuldades em realizar seu projeto de construir um espaço (La Carpa de la Reina) – que teria por objetivo proporcionar às pessoas, ao público, uma vivência que possibilitasse a proximidade com a cultura popular ancestral, experiência que está na raiz de sua arte. Nos versos de Volver a los 17, o amor é, para ela, sentimento misterioso, que brota pequeno como musgo na pedra, mas tem grande poder transformador:
Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber / Ni el más claro proceder, ni el más ancho pensamiento / Todo lo cambia al momento cual mago condescendiente / Nos aleja dulcemente de rencores y violencias/ Solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes.O amor, canta a poeta chilena, afasta-nos docemente de rancores e violências, e com sua ciência nos faz inocentes. Com sua pureza original, o amor amansa o feroz animal, detém os peregrinos, libera os prisioneiros, faz o velho voltar a ser menino e, com seu carinho, converte aquele que é mau, torna-o puro e sincero.
De par en par la ventana / se abrió como por encanto, / entró el amor con su manto / como una tibia mañana, / al son de su bella diana / hizo brotar el jazmín / volando cual serafín, / al cielo le puso aretes. / Y mis años en diecisiete / los convirtió el querubín.“O amor que entra com seu manto” está em correspondência íntima com a teopoética de Rubem Alves. Ele a intensificou, em especial com a publicação de Creio na ressurreição do corpo, livro em que encontramos “pérolas” escatológicas como esta:
Salvação! Nossos corpos totalmente livres.
Livres de tudo o que faz sofrer.
Livres das correntes, do medo. Os olhos não mais perfurarão, e nenhum irmão terá de esconder do seu irmão nem a nudez da sua alma e nem a nudez do seu corpo.
Livres para a verdade, livres para a beleza, livres para o amor. Insólita política, porque nossos corpos não mais reagirão nem ao olho mau, nem ao gesto mau, nem à palavra má. Possuídos pelo futuro, trataremos de fazer viver, no presente, aquilo que nos foi dado, em esperança. E esta comunidade de visionários, de exilados, de peregrinos, de árvores desenraizadas, servirá ao mundo, na própria vida, em sacramentos do Reino de Deus que se aproxima (ALVES, 1984, p. 75).Em O enigma da religião, Rubem Alves (1975, p. 57) confessa:
Comecei a perseguir a beleza mais que a verdade. É que descobri, tardiamente, através da surpresa de amizades inesperadas, o fascínio da poesia. Que poema será verdade? Que poema será reflexo especular fiel das coisas do nosso mundo? Poemas, invocações de ausências, funduras onde nadam os desejos: é aí que os corpos se preparam para as batalhas [...]. Visitando a mim mesmo e lendo as coisas dos mundos mágicos e dos mundos dos sonhos, aprendi que o corpo não é coisa biológica: poemas que se fizeram carne. Somos moradas de palavras, possessões demoníacas ou o vento indomável do Espírito. Palavras: continuação das mãos. Mas, forma visível das palavras. Há de se buscar a palavra que se transforma em carne: aqui, o segredo do dizer mágico. Não basta o saber; é preciso o sabor. É preciso que as palavras sejam belas, para seduzir.Em correspondência com a visão teopoética de Rubem Alves colocamos a canção Gracias a la vida10 de Violeta Parra, um hino à vida que reflete a tensão entre o lúdico e o trágico, entre o amor e a dor. Foi composta pouco tempo depois da primeira tentativa de suicídio da poeta chilena, e reflete a busca por encontrar equilíbrio entre as forças regeneradoras e a fatalidade (HERRERA, 2014). É uma canção que expressa agradecimento pela vida com tudo o que ela tem, risos e prantos. Integra a perda (o bem-amado que seus olhos distinguem na multidão já não está com ela) no todo da vida e celebra a poesia que possibilita essa integração: agradece o som e as letras, o abecedário com que forma as palavras de seu canto forjado entre suas andanças por “cidades e charcos, praias e desertos, montanhas e planícies”.
Gracias a la vida que me ha dado tanto / me dio dos luceros que cuando los abro / perfecto distingo lo negro del blanco / y en el alto cielo su fondo estrellado / y en las multitudes el hombre que yo amo. Gracias a la vida que me ha dado tanto / me ha dado el oído que en todo su ancho / graba noche y día grillos y canarios / martillos, turbinas, ladridos, chubascos / y la voz tan tierna de mi bien amado. Gracias a la vida que me ha dado tanto / me ha dado el sonido y el abecedario / con él las palabras que pienso y declaro / madre, amigo, hermano y luz alumbrando / la ruta del alma del que estoy amando.A partir de sua vivência particular, ela oferece a todos palavras para cantar a beleza da vida que, com suas alegrias e prantos, fornece o material de seu canto – que não é apenas seu, mas é canto de todos, composto, é certo, na escuta dos fragilizados da América Latina:
Gracias a la vida que me ha dado tanto / me dio el corazón que agita su marco / cuando miro el fruto del cerebro humano / cuando miro el bueno tan lejos del malo / cuando miro el fondo de tus ojos claros.
Gracias a la vida que me ha dado tanto / me ha dado la risa y me ha dado el llanto / así yo distingo dicha de quebranto / los dos materiales que forman mi canto / y el canto de ustedes que es el mismo canto / y el canto de todos que es mi propio canto.Com a correspondência entre a teopoética de Rubem Alves e poesia de Violeta Parra estamos realçando a perspectiva do lúdico, mas, ao mesmo tempo, afirmamos o questionamento à total evasão do mundo como felicidade; o mesmo fazemos em relação à fuga das explicações mais racionais e científicas das vicissitudes da vida. Esse é um aspecto complexo que acrescenta uma série de questionamentos à prática religiosa, por sua vez, já complexa. Como as pessoas não podem fugir totalmente de suas realidades, encará-las, então, é uma difícil tarefa, devido ao elevado grau de sofrimento e degradação da vida humana na atualidade. Assim, a expressão das vozes poéticas na escuta da fragilidade dos pobres tem lugar singular na tarefa teológica e na vivência mística.
Conclusão
De acordo com a sociologia de Berger – também ele um teólogo de formação –, compreendemos que a religião, de um lado, pode atuar como fator de alienação do ser humano diante do social, ao garantir a sacralização do status quo, bem como, por consequência, a convicção de que nada se pode fazer para a transformação das coisas como elas são; de outro lado, a mesma religião pode operar como referencial e motivação para mudanças sociais dentro da ordem vigente.
Ao final de nossas reflexões, estamos convencidos de que na América Latina e, particularmente, no Brasil, com a experiência (teológica e política) da teologia da libertação, deu-se o que podemos chamar, fazendo coro com Metz, de uma mística de olhos abertos. Convencido também de que o suspiro dos oprimidos, associado por Rubem Alves ao grito dos pobres, trouxe a religião do céu à terra, com o pobre (não sua idealização) assumindo a construção de sua própria história. A despeito de circunstâncias de morte – que insistem em sobreviver e ganhar força em nosso continente, o Mistério pôde (como ainda pode) ser percebido como Presença dentre os pobres, a promover naquele que se aproxima dessa espiritualidade da libertação e escuta suas narrativas uma compaixão solidária e um desejo profundo de transformação. Compaixão e transformação que não começam a não ser pelo respeito à alteridade, ou seja, pelo diálogo respeitoso com a voz e a verdade do outro, pelo respeito à pluralidade da vida, conforme nos alerta Maria Clara Bingemer.
De acordo com princípios da epistemologia decolonial, compreende-mos que a mística de olhos abertos e a espiritualidade da libertação não podem ser consideradas uma exclusividade do cristianismo, mas podem e devem ser encontradas também em outras religiões e também fora delas. No canto e nos versos de Violeta Parra, por exemplo, ouvimos o suspiro dos excluídos, daqueles que, segundo Gutiérrez, descem ao mais profundo das águas, para beber do próprio poço.
Referências bibliográficas
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Notas
[1]Também movimentos de leigos católicos e protestantes acabam fugindo ao controle eclesial, alcançando uma dinâmica própria e autônoma (ALVES, 1987).
[2]Por se tratar de um pensamento recorrente num conjunto de suas obras, não faremos citação de nenhum livro específico. Para acessar o debate, cf. Segundo (1983).
[3]Do disco El folklore de Chile según Violeta Parra, de 1962 – letra cotejada e conferida com o texto da poesia publicada em livro (PARRA, 2018, p. 116-117).
[4]Do disco Las últimas composiciones de Violeta Parra de 1966 – letra cotejada e conferida com o texto da poesia publicada em livro (PARRA, 2018, p. 59-60).
[5]Do disco Recordando a Chile (Uma chilena em París) de 1965 – letra cotejada e conferida com o texto da poesia publicada em livro (PARRA, 2018, p. 108).
[6]Do disco Las últimas composiciones de Violeta Parra de 1966 – letra cotejada e conferida com o texto da poesia publicada em livro (PARRA, 2018, p. 43-44).
[7]Do disco Las últimas composiciones de Violeta Parra de 1966.
[8]Letra cotejada e conferida com o texto da poesia publicada em livro (PARRA, 2018, p. 48-49).
[9]A dor dessa perda está registrada na canção “Run-Run se fue pa’l norte”, também do disco Las ultimas composiciones de Violeta Parra de 1966: “Run Run se fue pa´l norte, / qué le vamos a hacer, / así es la vida entonces, espinas de Israel, / amor crucificado, corona del desdén, / los clavos del martirio, / el vinagre y la hiel. / ¡Ayayay de mí!” – letra cotejada e conferida com o texto da poesia publicada em livro (PARRA, 2018, p. 66-68).
[10]Do disco Las últimas composiciones de Violeta Parra de 1966 – letra cotejada e conferida com o texto da poesia publicada em livro (PARRA, 2018, p. 139-143).