O Sublime no Cotidiano: Reescrituras de Cristo na Poesia de Adília Lopes  
The Sublime in Everyday-Life: Rewritings of Christ in Adília Lopes Poetry  

Marcio Cappelli*  
*Doutor em teologia (PucRio); Pós-doutorado em Teologia (FAJE); Professor no Programa de Pósgraduação em Ciências da Religião da UMESP. E-mail: alocappelli@gmail.com

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Resumo:

Adília Lopes é poetisa, tradutora e cronista portuguesa. Sua escrita é povoada de ressonâncias que vão da Bíblia a Pessoa e está eivada de categorias religiosas; no entanto, em sua “arte poética” transforma a poesia em laboratório da experiência religiosa a ponto de metamorfosear artisticamente a herança cristã. Em outras palavras: a poesia adiliana, crítico-criativamente, re-significa elementos da religião e fabrica uma gramática poético- -religiosa que comporta novos sentidos. Para compreender essa aproximação entre o artístico e o religioso, de um modo que recusa os enquadramentos convencionais, pensaremos a poesia da escritora lusitana a partir da dinâmica profranação-sacralização. Num primeiro momento, portanto, refletiremos como ela põe elementos do cristianismo em função de um novo uso, para, posteriormente, observar como isto está ligado à uma valorização do cotidiano. Por fim, ressaltaremos como esse duplo movimento produz reescrituras de Cristo. 

Palavras chave: Adília Lopes; profanação; sacralização; cotidiano; reescrituras de Cristo. Jonas; ironia; sátira 

Abstract

Adília Lopes is a portuguese poet, translator, columnist. Her writing is filled with resonances, from the Bible to Pessoa, and it is riddled with religious categories. However, in her “poetic art”, she turns poetry into a religious experience laboratory, transforming christian heritage artistically. In other words: Adilian poetry, critically-creatively, re-signifies religion elements and produces a poetic-religious grammar that includes new meanings. In order to understand the religious and the artistic approach, rejecting, in a way, the conventional frameworks, we will reason her poetry according to the profanation-sacralization dynamics. At first, we will think about how her poetry combines christianity elements in terms of a new usage. After that, we will observe how such approach is connected to an everyday-life appreciation. Finally, we will emphasize how this double movement produces rewrites of Christ.    

Keywords: Adília Lopes; profanation; sacralization, everyday-life; rewrites of Christ. 


Jésus 
a toujours été 
mon petit ami 
(Adília Lopes) 

Introdução 

Para estabelecer uma leitura percuciente dos poemas de Adília Lopes, acreditamos ser necessária a consideração do aspecto religioso que perpassa a sua obra. Tal característica, julgamos importante sublinhar, ainda não foi refletida de maneira mais sistemática pela fortuna crítica em torno aos textos da autora1. Deste modo, é imprescindível a explicitação das condições que oferecerão sustentação à esta análise, que busca salientar a dicção religiosa adiliana. Portanto, pensaremos, em primeiro lugar, ainda que de maneira breve, na constituição de algumas precauções metodológicas que nos auxiliarão a afinar o instrumento crítico. Evidentemente, sabemos que esse cuidado, por mais indispensável que seja, não substitui a formulação de hipóteses advindas da experiência estética fruto do contato ostensivo com a obra. 

Uma das questões fundamentais em que a abordagem que procura decifrar aspectos religiosos em um texto literário pode tropeçar é a associação imediata com ideias postas em uma determinada tradição, no caso específico de Adília Lopes, o cristianismo de extração católica. Um equívoco básico de certas leituras é não respeitar a autonomia dos textos literários, como se eles fossem meros receptáculos ou resíduos de algo externo. Logo, ainda que a poeta em questão assuma deliberadamente uma ligação com o catolicismo, nosso intuito não é sobrepor compreensões doutrinárias e poesia. Nesse sentido, parece-nos interessante a designação de José Augusto Mourão a propósito da leitura de uma antologia da poesia de Anthony Burgess. O crítico destaca uma insistência de Burgess em distinguir uma poesia devocional de uma autenticamente religiosa. Para Mourão, a distinção residiria justamente entre uma poesia que se baseia numa aquiescência inconteste à determinadas crenças e outra de inspiração temática que não corresponde à “ortodoxia” alguma (MOURÃO, 1992, pp. 12-13). Todavia, poderíamos ir adiante e pensar se, de fato, a poesia caracterizada como devocional cumpriria o seu papel como poesia. António Ramos Rosa, poeta e ensaísta português, em Poesia, Liberdade livre (1962, p. 17), coloca exatamente a exigência de a poesia situar-se ao nível de um movimento libertador, “antidogmático por excelência”, tornando qualquer tentativa de adjetivá-la supérflua. Ou seja, categorias religiosas, no jogo poético, deveriam seguir o impulso de uma “espontaneidade criadora”. Octavio Paz também dá uma contribuição importante a esse debate, ao apontar que a “missão prometeica da poesia” na modernidade consiste justamente na “deliberada intenção de criar um “novo sagrado”, diferente do sagrado institucionalizado pelas religiões (PAZ, 2012, p.124). Neste viés, buscaremos assinalar o agenciamento de elementos pertencentes ao imaginário religioso, sem “batizarmos os poemas” adilianos. 

Além disso, no que tange o conjunto de precauções metodológicas, salientamos que gostaríamos de evitar: a) um biografismo que enxerga o texto como uma projeção límpida das intenções do autor; e b) um consequencialismo que encara a produção literária como uma representação direta das condições sociais de um dado momento histórico. Não desconsideramos que o contexto relacionado à produção pode fornecer caminhos para entendermos certos aspectos de um texto, no entanto, explicá-lo apenas pelo ambiente de sua produção ou pela biografia de um autor é “encurtar” demasiadamente a atribuição de sentidos que pode advir do corpo a corpo com os poemas. 

Diante disso, procuraremos considerar os poemas de acordo com os princípios que eles parecem estabelecer para si mesmos (DURÃO, 2016, p. 16). Entretanto, não cremos ser um caminho promissor analisar os textos adilianos como se sua linguagem fosse estritamente intransitiva e irredutivelmente metalinguística, ou seja, sem levar em conta as relações com outros textos e as consequências do “funcionamento” dessa expressão poética no mundo das vivências concretas dos leitores. Nesse sentido, recorremos ao que Tzvetan Todorov (2016, p. 76) sinalizou em A literatura em perigo: tratar a literatura apenas como um discurso autônomo – como um fim em si mesmo – é torná-la inofensiva ou, no máximo, objeto de um diletantismo desinteressado. 

Face à obra poética de Adília Lopes, portanto, esperamos: a) evitar a pretensão mediúnica de conversar com a consciência da poeta; b) fugir de fechar o sentido dos poemas apelando à uma espécie de mecanismo de causa e consequência como se eles fossem fruto apenas de um contexto determinado; c) escapar de um exercício interpretativo que, ao final, só possa dizer algo sobre as estruturas e mecanismos do próprio texto. Desse modo, nossa tentativa será direcionada, antes de tudo, pelo respeito à autonomia da poesia adiliana – ou seja, gostaríamos de estabelecer um diálogo com os poemas de tal forma que a relação crítica não seja a aplicação de um problema geral, mas a escuta na condição de uma abertura que possa nos obrigar a repensar as imagens seguras que temos de nós, do mundo e do Cristo. Sendo assim, para não cairmos em aproximações ora frouxas e ora bruscas entre a religião e a literatura, se faz necessário entender alguns aspectos da poesia adiliana – como a profanação e a sacralização que parecem operar nela – para, posteriormente, evidenciar o que chamamos de reescrituras de Cristo em três poemas. 

1. Profanação na poesia adiliana

Adília/ lê/ treslê/ a Bíblia (LOPES, 2014, p. 636).  

Os versos que servem de epígrafe para esse primeiro tópico aparecem como uma provocação. Por que tresler e não reler? Em estado de dicionário, reler é fazer nova leitura ou interpretação, enquanto tresler é: ler às avessas; ler ao contrário; ficar doido, supostamente, por ler demais (cf. DICIONÁRIO CALDAS AULETE). Nesse sentido, o que já entrevemos na expressão do eu-lírico adiliano é uma apropriação dos elementos religiosos fora dos eixos da racionalidade doutrinária e engendrada a partir um certo delírio profanador. Vejamos como isto se confirma. 

Adília Lopes, Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, é lisboeta, nascida em 1960. É poeta, tradutora, cronista. Publicou seu primeiro livro em 1985. Entre outras publicações, destacamos a segunda edição de Dobra, sua poesia reunida com os livros publicados até 2014 – Um jogo bastante perigoso (1985), O poeta de Pondichéry (1987), A pão e água de Colónia (seguido de uma autobiografia sumária) (1987), O Marquês de Chamilly (Kabale und Liebe) (1987), O Decote da Dama de Espadas (1988), Os 5 Livros de Versos Salvaram o Tio (1991), Maria Cristina Martins (1992), O Peixe na Água (1993), A Continuação do Fim do Mundo (1995), A Bela Acordada (1997), Clube da Poetisa Morta (1997), Sete rios entre campos (1999), Versos Verdes (2000), Irmã Barata, Irmã Batata (2000), A Mulher-a-Dias (2002), César a César (2003), Poemas Novos (2004), Le Virail La Nuit - A Árvore Cortada (2006), Caderno (2007), Os namorados pobres (2007), Apanhar ar (2010), Café e Caracol (2011), Andar a pé (2013), Variety is the spice of life (2014) – , além de Manhã (2015), livro de memórias, Bandolim (2016) e Estar em casa (2018). Sua escrita está repleta de ressonâncias da Bíblia e de outras como Camões, Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen, etc. 

Para Adília Lopes, “escrever um poema/ é como apanhar um peixe/ com as mãos” (LOPES, 2014, p. 12) como pode ser lido no livro de estreia. Na luta corporal com o peixe, o desejo por apanhá-lo – de fazer poesia – é força motriz vital. A poesia é a construção do próprio cotidiano num ciclo onde as certezas são fugazes: “Perco-me/ no labirinto/ dos dias// Ganho-me/ no labirinto/ dos dias// A poesia/ é o perde-ganha// E o labirinto/ dos dias/ é o labirinto/ dos dias” (LOPES, 2014, p. 581). “Nasci em Portugal/ não me chamo Adília/ Sou uma personagem/ de ficção científica/ escrevo para me casar” (LOPES, 2014, p. 291), expõe em outro momento, corroborando a hipótese de que a poesia é uma espécie de exercício para estender os limites da vida. Desse modo, podemos dizer que a poeta constrói um “eu-mundo” imaginário na voz do eu-lírico que se sustenta a partir de uma “indecibilidade” fundamental. “A minha sombra/ não é minha /O meu olhar não é meu/ Quem me roubou/ o meu eu/ senão eu?” (LOPES, 2014, p. 576). Portanto, não nos interessa a distinção entre a experiência religiosa-real e a experiência religiosa-poética; nos ateremos aos poemas. 

A religiosidade marca a poesia de Adília ao ponto de o sujeito lírico se autodenominar: “freira poetisa barroca” (LOPES, 2014, p. 318). Contudo, também diz: “Sou freira/ à minha maneira” (LOPES, 2014, p. 470). Esta oscilação perpassa boa parte da obra poética adiliana: “Deus é um boomerang/ e eu sou sua filha pródiga” e “Acredito mais/ na existência/ de Deus /do que na minha” (LOPES, 2014, p. 338; 474), afirma. As imagens desses versos justapostos mostram uma complexa posição; um entre-topos onde a poeta esgarçada, crítico-criativamente resignifica a experiência religiosa2 . Isto fica ainda mais evidente quando ela afirma: “Vontade/ de dar pulos até Deus/ Vontade de me afundar/ até ao Diabo” (LOPES, 2014, p. 580-581). Dessa forma, Adília fabrica uma gramática religiosa que comporta contradições e com isso se afasta de uma arquitetura tradicional do cristianismo de extração católica. 

Outro exemplo é o poema Deus é a nossa mulher-a-dias: 

Deus é a nossa 
mulher-a-dias 
que nos dá prendas 
que deitamos fora 
como a fé 
porque achamos 
que é pirosa 
(LOPES, 2014, p. 378) 

Ressaltamos a figuração feminina de Deus e, posteriormente, seu predicado como mulher-a-dias3 , que já dá o que pensar como um deslocamento da imagem divina masculina mais sedimentada no imaginário cristão ocidental. Entretanto, mais do que isso: o poema desvela o horizonte da ambígua relação da fé que é tanto recebida como dádiva, e descartada como algo que não presta; o que, de certo modo, representa o entre-lugar do eu-lírico em relação à religião institucional, numa espécie de “torturante vaivém” (LOPES, 2014, p. 438). 

Os poemas podem ser lidos do ângulo de uma tradição religiosa, porém, borram-na e rasuram-na. Ou seja, reaproximam o artístico do religioso, mas de um modo que recusam os limites convencionais; nesse sentido, seu expediente parece ser o da desestabilização e da profanação, isto é, as palavras e as imagens estão organizados em função de um novo uso. Com o auxílio de Agamben, podemos dizer que: “consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens” (AGAMBEN, 2007, p. 65). De tal modo que, se não há religião sem separação e esta é regulada pelo sacrifício, aquilo que foi separado e pertence à esfera do sagrado pode ser restituído por meio da profanação. O jogo, de acordo com o filósofo italiano, é um órgão privilegiado de profanação (e.g.: o pião era usado nos rituais de adivinhação); não só os jogos que deslocam o rito do seu contexto, mas os jogos de palavras que operam o deslocamento do mito. Assim, é possível afirmar que através de retomadas das imagens tidas como sagradas, Adília Lopes realiza uma arte poética que reúne aquilo que aparentemente é oposto; recusa as demarcações claras entre o sagrado e o profano, transgredindo com sua pena a indisponibilidade do que pertence à religião. Em outras palavras: produz um jogo profanatório com as palavras. Trazendo ao uso comum o que foi segregado por certo poder religioso, abre caminho para sacralizar o cotidiano. Afinal, como sublinha Selvino Assman ao comentar a obra de Agamben: “Profanar é assumir a vida como jogo, jogo que nos tira da esfera do sagrado, sendo uma espécie de inversão do mesmo” (ASSMAN, 2007, p. 13).

Esta característica pode ser percebida nos versos: “Cair do cavalo/ cair da escada/ cair em mim/ o rés-do-chão é tão bonito/ o chão é tão bom/ [...] é a libertação da queda/ de Adão e Eva/ é Adão que me estende a mão” (LOPES, 2014, p. 346). O capítulo três do livro de Gênesis é revisitado, mas agora é subvertido de maneira que a “queda” de Adão e Eva – que, diga-se de passagem, na teologia foi interpretada nos termos de um “pecado original” por Agostino e com tantas consequências para antropologia ocidental – torna-se uma virtude. Através dela, Adília torna- -se capaz de perceber a beleza do rés-do-chão. Ora, a elevação do chão só se torna possível por meio da queda. Assim, a poeta brinca com os referenciais cardinais religiosos e, desse modo, transforma o mais rasteiro em algo nobre. 

2. A sacralização do cotidiano

Acreditamos que seja da maior importância redescobrir 
toda uma mitologia, se não uma teologia, escondida na 
vida mais ‘banal’ de um homem moderno: dependerá dele 
subir novamente a correnteza e redescobrir o significado 
profundo de todas essas imagens envelhecidas e de 
todos os mitos degradados (ELIADE, 1991, p.15).
 

Esta outra epígrafe exprime, em certa medida, o movimento que podemos apreender na poesia adiliana: uma sensibilidade pelas coisas mais comezinhas do cotidiano que, de maneira alguma, se confunde com uma entonação religiosa doutrinária. Numa nota, a poeta conta que depois de escrever a obra Mulher-a-dias, sentia-se impelida a dar o título de Rés-do-chão ao seu próximo livro. No entanto, pouco antes da publicação, outro poeta, João Luís Barreto Guimarães, batizou seu livro com o mesmo nome e dissuadiu a escritora, levando-a a colocar seus novos poemas sob a epígrafe de César a César. Mais do que o episódio, interessa-nos saber que o rés-do-chão é símbolo do que é mais comum, do cotidiano, e torna-se uma chave para a compreensão da poesia adiliana. 

Em uma entrevista à Célia Pedrosa e publicada na revista Inimigo Rumor de 2007, ao ser perguntada sobre se definir como uma poeta pop, Adília fala do valor das coisas banais: 

Isso de ser pop é no sentido de achar que o quotidiano é sagrado. Porque o que eu vejo na arte pop, o que eu gosto na pop-arte é um quadro em que se vê uma lata de coca-cola, por exemplo. Acho isso bom porque traz para o lugar de alto privilégio da arte aquilo que faz parte do dia-a-dia de muita gente. Acho isso bem (LOPES, 2007, p. 102).

Mas como essa sacralidade do cotidiano se evidencia na poesia de Adília? O que Arrigucci Jr afirma sobre o modernismo de Manoel Bandeira, pode também ser usado para descrever a poesia adiliana: “a inspiração repentina se dá no chão do mais “humilde cotidiano”, de onde o poético, como um sublime oculto, pode ser desentranhado [...], por força da depuração e da condensação da linguagem” (ARRIGUCCI JUNIOR, 1990, p. 128-129). Isto parece se confirmar quando lemos os versos: “quanto mais prosaico/ mais poético” (LOPES, 2014, p. 592). 

O cotidiano: tempo-espaço é, portanto, pela “revelação poética”, transfigurado em sublime e, nesse aspecto, a poesia adiliana parece representar bem, por exemplo, a aspiração baudelairiana que joga com o binômio sagrado-profano (cf. PEDROSA, 2007): a tarefa da modernidade poética de extrair da fraqueza do instante a sua eternidade (BAUDELAIRE, 1988, p. 175). É possível perceber isso nos versos: “Vivo/ no instante/ casa/ da eternidade”; “O tempo/ é sagrado// O tempo/ é templo” (LOPES, 2014, p. 592; 541). 

Aqui, a categoria da inspiração nos parece ser fundamental. Em uma entrevista, a poeta diz: “as pessoas hoje acham piroso chamar-lhe inspiração, mas há inspiração. É a musa” (LOPES in: SANTOS, 2015, s/p). É por meio dela que o mundo é “imantado” e todos os seres e objetos passam a estar cheios de sentido. Na concepção de Octavio Paz – que procura ir além dos discursos teológicos de um lado e do tratamento que entende essa experiência como mera superstição de outro –, a inspiração é uma manifestação do que chama de “outridade”. Não é algo que pertence ao fundo da consciência do poeta, mas não está em “algum lugar” e não é “algo” como uma substância; não coincide com algo que vem puramente de fora e nem com a interioridade do poeta. Aliás, na compreensão de Paz: “não há exterior nem interior, como não há mundo à nossa frente: desde que somos, somos no mundo e o mundo é um dos constituintes do nosso ser” (PAZ, 2012, p. 185). A inspiração é, deste modo, um movimento que faz com que o poeta seja sujeito criador e objeto criado de sua própria arte poética. Desse modo, pela inspiração, o cotidiano torna-se imprevisível e até mesmo uma aranha a fazer sua teia “salta aos olhos”: “Penélope/ é uma aranha/ que faz/ uma teia/ a teia é a Odisséia/ da Penélope [...]/ Penélope casa-se/ com Homero/ Ulisses fica a ver/ navios” (LOPES, 2014, p. 367). Em outra ocasião, no poema Louvor do lixo Adília escreve: 

É preciso desentropiar 
a casa 
todos os dias 
para adiar o Kaos 
a poetisa é a mulher-a-dias 
arruma o poema 
como arruma a casa 
que o terramoto ameaça 
a entropia de cada dia 
nos dai hoje 
o pó e o amor 
como o poema 
são feitos 
no dia a dia [...] (LOPES, 2014, p. 445).

A casa e o dia a dia formam o espaço-tempo da criação poética. Assim como a mulher-a-dias que luta contra o caos da rotina, arruma-se o poema; contudo, sua construção não está preocupada com as ordens consagradas onde tudo já tem seu lugar previamente determinado; a liberdade instaurada na dialética profanação-elevação permite colocar num mesmo nível a sujeira e o amor, trocar o “pão” esperado – numa alusão à oração do Pai Nosso – pela “entropia”, envolvendo o leitor num discurso que deseja deslocar as camadas sedimentadas da tradição. A poeta junta polos antagônicos – o chão e o céu, a elevação e a queda, o vegetal (natural) e o artificial: “Pelo chão/ rolam os céus/ (os nenúfares/ os açúcares)” (LOPES, 2014, p. 638). 

3. As reescrituras de Cristo em três poemas adilianos  

Jesus é um momento de significação ininterrupta (LEMINSKI, 1984, p. 84)

 Até aqui procuramos evidenciar como o texto poético adiliano elabora categorias da religião, não necessariamente como reafirmação de códigos simbólicos, isto é, sem necessariamente visar a manutenção de uma piedade devocional. Agora, indicaremos, precisamente, como o duplo-movimento profanação-sacralização na poesia de Adília Lopes realiza o aforismo de Leminski, levando o próprio Cristo a novas significações. 

Uma espécie de fascinação pela figura de Jesus transparece, especialmente em Mulher-a-dias (2002), obra em que a poeta coloca sob o título Cristo-osga toda a segunda parte. Além disso, é curiosa a epígrafe – tomada de Nuno Bragança – que complementa a abertura do livro: “não há acasos no encontro e desencontro das pessoas. (...) o tecido desse encontro e desencontro existe e serve para alguma coisa” (BRAGANÇA apud LOPES, 2014, p.465). Arriscaríamos dizer que esse tecido é constituído pelos próprios poemas onde se vislumbram as reescrituras de Cristo, fruto dos encontros e desencontros. Observemos, portanto, os aspectos dessas reescrituras em três textos. 

Um primeiro exemplo encontra-se nos versos: 

Cristo é esta osga 
que está 
antes de eu chegar 
na parede 
da minha cozinha 
e só agora 
eu dou por ela 
mas ela 
deu por mim 
antes de eu 
dar por ela 
(deu por mim 
antigamente) (LOPES, 2014, p. 466). 

Primeiro, o poema parece se inserir na tradição da mística cristã. A experiência da primeira mirada, tão importante, sintetizada na fala de Santa Teresa no Livro da Vida: “Se puder, que se ocupe em ver que Ele o olha [...]” (V, 13,22), parece ser vivenciada pelo eu-lírico; no entanto, de outra maneira: não evoca uma presença espiritual, mas uma espécie de antiguidade da osga que o precede, corroborada pelos últimos dois versos entre parênteses. Depois, o Cristo que pertence à esfera sagrada, que se manifesta em carne humana, segundo a compreensão cristã, sofre na poesia adiliana um segundo “esvaziamento”: se torna uma espécie de lagartixa; retorna ao nível mais comum dos seres que chegam a ser, para muitos, repugnantes. Nas palavras escolhidas, reside um detalhe que pode soar escandaloso: Cristo não é como a osga; ela não é metáfora nem símbolo; ela é Cristo. A osga é sacramentum. No “rito poético” adiliano, a fisicalidade da lagartixa sugere a presença de Cristo. Comparece, assim, no olhar do eu-lírico o reconhecimento de um “tu”, presença prévia: Cristo metamorfoseado em osga. Desse modo, Adília continua a borrar a linha demarcatória que separa o prosaísmo cotidiano e o sagrado. 

O segundo exemplo de reescritura de Cristo pode ser visto no poema O cheiro de Jesus: 

Jesus cheira 
a morto 
a alboroto 
a aborto 
a arroto 
a quadro de Rothko 
Jesus cheira 
a madeira 
a freira 
a campo 
a Platero e eu 
Sem eira 
nem beira (sem telhado/ com telha) 
cheira a Jesus (LOPES, 2014, p. 475). 

A reescritura de Jesus nesse poema passa por uma intertextualidade com Mateus 25,31-464 , parábola que encerra o sermão apocalíptico de Jesus iniciado no capítulo 24. Ali, elucida-se o parâmetro do julgamento final: as obras de caridade. Os recursos parabólicos (o pastor, as ovelhas, os bodes) são organizados em função da exortação a uma vida ética. Na estrutura narrativa da passagem bíblica, o “Filho do Homem” é questionado: “Senhor, quando é que te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso e não te socorremos?” (Mt 25,45); e na resposta identifica-se com os “mais pequeninos” (Mt 25,46), ou seja, com os “sem eira nem beira”. Mas, o processo de reescritura se intensifica. Através do ritmo, a voz lírica relaciona Jesus ao que, para muitos fiéis, pode soar imoral ou impuro. Apelando a um cruzamento do sentido olfativo com a memória visual, o poema traz à baila comparações inusitadas. Jesus até cheira a quadro de Rothko – conhecido pintor do pós-guerra de origem letã e judaica, radicado nos EUA, que já teve obras vendidas por mais de 40 milhões de dólares. Cheira também a freira – ou seja, ao que é religioso. Mas cheira a “Platero e eu”, a narrativa da vida de um burro, criada pelo escritor Juan Ramón Jiménez. Mais do que uma referência à obra em si, o eu-lírico faz um jogo que nos remete a correlação de Jesus com ele e com o animal5 . Dessa maneira, parece que a lírica adiliana inclui aquilo que foi objetado pela arquitetura tradicional do catolicismo português. Seu Cristo não passa por uma assepsia teológico-filosófica, mas mistura-se ao que não é considerado sagrado. Vale lembrar, ainda, especialmente nesse poema, a preferência pela utilização do nome Jesus e não pelo título “Cristo”. Essa escolha já indica a ênfase na humanidade de Jesus, muitas vezes esquecida pelas arquiteturas conceituais metafísico-teológicas6 . O corpo de Jesus e seu cheiro, o contingente, a vida-corpórea-no-cotidiano, é o que interessa. É a partir daí que o eu-lírico pode, inclusive, experimentar a proximidade como indica o último verso da primeira estrofe. A dicotomização – materialidade e imaterialidade – parece ser superada na arte poética adiliana. Essa superação desliza, inclusive, para outros versos e poemas: “Cristo é pão e vinho/ fruto da videira/ e da seara/ do trabalho da mulher/ e do homem [...]” (LOPES, 2014, p. 477-78). 

Em outra ocasião, a poeta parece querer tirar o leitor de uma zona de conforto por meio do mesmo movimento, num diálogo intertextual com Alberto Caeiro e a Bíblia. Se o Cristo de O Guardador de Rebanhos: Limpa o nariz ao braço direito,/ Chapinha nas poças de água,/ Colhe as flores e gosta delas e esquece-as./ Atira pedras aos burros,/ Rouba fruta dos pomares/ E foge a chorar e gritar dos cães” (CAEIRO, 2005, p. 28); o de Irmã barata, irmã batata: “não gostava de cães. Gostava de crianças, que atiram pedras aos cães” (LOPES, 2014, p. 403). O texto adiliano parece brincar com os versos de Caeiro; coloca Cristo junto àqueles que atiram pedras aos cães. Contudo, a abertura de sentido da poesia de Adília Lopes se torna mais profunda quando chegamos aos versos seguintes: “Aos cães todos atiram pedras, mesmo se os cães não pecaram nem pecam. Os cães são os que morrem de fome ao pé da mesa do banquete” (LOPES, 2014, p. 403). Duas passagens bíblicas surgem como pano de fundo: João 8, 1-11; Mateus 15, 21- 28. O cão é comparado à mulher chamada adúltera do evangelho de João; contudo, se a mulher não é condenada porque todos os seus detratores reconheceram que não eram inocentes a partir da interpelação de Jesus – “Quem nunca pecou que atire a primeira pedra!” –, os cães, mesmo sem pecado, são apedrejados. Assim, o cão, símbolo daquilo que é mais cotidiano e rejeitado, passa a ser central. Se a mulher foi acolhida por Cristo, nem isso resta aos cães. A alusão ao texto do evangelho de Mateus deixa essa marginalização ainda mais nítida. Ainda que Jesus não se solidarize com a mulher cananeia num primeiro momento como é possível verificar na sua fala: “Não fui enviado a não ser para as ovelhas perdidas de Israel. Não é conveniente tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorros” (Mt 15, 24.26)7 ; após ela argumentar: “É verdade, Senhor, mas também os cachorros comem das migalhas que caem da mesa de seus donos!” (Mt 15,27), ele se sensibiliza. Ao contrário, nos versos adilianos, os cães morrem de fome. Evidentemente, há um aceno à importância de um agir ético que considere os animais, entretanto, isso decorre da sacralização daquilo que é marginal. No caso, quem não peca são os cães. O movimento lúdico da profanação-elevação está mantido e configura a reescritura de Jesus moldada por uma inversão de papéis: agora, o que vemos são cães-Cristos sem pecados e rejeitados. 

Considerações finais

A obra de Adília Lopes é extensa e sugere uma gama incontável de interpretações. Neste trabalho nos afixamos, especialmente ao aspecto religioso presente na sua poesia; não para classificá-la como uma espécie de devoção inconteste, mas para pensar o contato ostensivo com categorias religiosas nas formas poéticas adilianas. Talvez, num momento posterior, de maior fôlego, seja necessário nos perguntarmos de maneira mais metódica quais formas literárias dão expressão à tais categorias religiosas – como, por exemplo, a oscilação entre a concisão (o gosto por versos curtos) e a poesia em prosa. Contudo, por ora, para concluir o percurso argumentativo, grifamos em concordância com Celia Pedrosa (2007b, p. 96) que “a ambição de abalar limites, ultrapassar dicotomias e colocar em circulação, juntas, em seu inacabamento, as coisas do mundo, e da literatura”, pode ser considerada a força motriz da escrita da poeta portuguesa. Afinal, como ela mesma diz: “Acabou/ o tempo/ das rupturas/ Quero ser/ reparadora /de brechas” (LOPES, 2014, p. 572-573). Portanto, esgarçando fronteiras, borrando as demarcações, reunindo o sagrado e o profano, a poesia adiliana indica uma experiência de metamorfose artística da religião. Neste viés, o que justifica o estudo dos poemas de Adília Lopes da perspectiva assinalada há pouco é precisamente a relevância do procedimento literário fundado em grande medida no diálogo crítico com os elementos da religião numa dinâmica dupla de profanação-sacralização. É isto justamente que promove as reescrituras de Cristo assinaladas.  

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. 

ARRIGUCCI JUNIOR, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 

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Notas

[1]  Para uma lista da bibliografia em torno a obra de Adília Lopes ver: BALTRUSH, 2019. 

[2]  Acreditamos que a experiência poética adiliana pode ser lida nos termos de uma modernidade marcada tanto pelo vaticínio do fim da religião ou de seu futuro problemático, quanto pela onda de novas crenças de caráter pessoal engendradas pelo próprio processo de secularização, ao menos vistas com mais força a partir da segunda metade do século XX. Tudo isso contribui para o surgimento de “novos amálgamas espirituais” (KUSCHEL, 1999, p. 215), próprios dos escritores em cuja poesia de Adília Lopes se insere e desenvolve-se, diga-se, de maneira própria, ao procurar revelar o sentido da experiência do sujeito moderno a partir de categorias religiosas. 

[3] Expressão que em Portugal denota o trabalho das “diaristas”. 

[4] As citações textuais foram retiradas de: BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2004. 

[5] Os animais são, inclusive, uma referência constante na poesia de Adília Lopes e indicam a relação com o prosaismo do cotidiano. 

[6] Evidentemente, poderíamos afirmar que diversas reflexões no campo teológico, como por exemplo, na América Latina, as de Leonardo Boff (1972) e Jon Sobrino (1994), e mais recentemente, na Europa, as de José Maria Castillo (2015) e José Antonio Pagola (2014), procuraram valorizar a humanidade de Jesus . No entanto, não sem sofrer medidas repressivas dos mecanismos eclesiásticos.       

[7] Os estrangeiros eram chamados de “cães” ou “porcos” (cf. Mt 7,6).