José de Paiva dos Santos*
*Professor Associado de Literaturas de Lingua Inglesa na Faculadde de Letras da UFMG. E-mail: jdsantos35@yahoo.com
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Resumo:
Este artigo tem como objetivo fazer uma análise de Amada, de Toni Morrison, com foco especial nos elementos intertextuais bíblicos acerca de Jesus e seu ministério. Usando como pano de fundo as reflexões da teologia da libertação negra, argumenta que em Amada Morrison investe seus personagens de características cristológicas com o propósito principal de interrogar formas eurocêntricas de se fazer teologia, ou seja, um teologizar insensível aos anseios, necessidades e sofrimentos das comunidades negras afetadas pelo racismo e opressão fruto da supremacia branca. No romance, Morrison privilegia uma reflexão que abraça princípios, símbolos e elementos da fé cristã, mas que os coloca no contexto da espiritualidade e cultura das comunidades afrodescendentes. Assim, surge um teologizar mais contextual, que valoriza formas e expressões locais de se pensar a relação com a Alteridade.
Palavras chave: cristianismo, literatura afroestadunidense, Morrison, religião, teologia
Abstract
This article aims to analyze Beloved, by Toni Morrison, focusing especially on the intertextual biblical elements about Jesus and his ministry. Against the backdrop of black liberation theology, this article argues that in Beloved Morrison imbues her characters with Christological features to interrogate Eurocentric forms of doing theology, namely, a form of theology which pays little attention to the goals, needs and suffering of black communities victims of racism and oppression. In the novel, Morrison privileges a form of spirituality that embraces principles, symbols and elements of the Christian faith, but places them in the context of African American culture and spirituality. The result is a contextual theology which valorizes local sensitivities about the human’s relation with Alterity.
Keywords: Christianity; African-American Literature; Morrison; Religion; Theology
As obras de Toni Morrison se destacam pelo tom revisionista de seus enredos, principalmente no que se refere à experiência de homens, mulheres e crianças negras nos Estados Unidos.1 Seus romances mergulham na vida de personagens que lutam por sobrevivência e autonomia em ambientes tomados pelo racismo, segregação e violência, tanto de natureza física quanto epistemológica. É com esse pano de fundo que suas narrativas tematizam os traumas individuais e coletivos de gerações afetadas pelo racismo estrutural e linchamento social em uma sociedade que escravizou, segregou e ainda exclui pessoas com base em suas origens raciais. Assim, ao revisitar o passado, seus romances trazem à tona aspectos da experiência negra afroestadunidense que foram suprimidos, distorcidos ou simplesmente tratados com indiferença pelas narrativas oficiais. Entre seus romances, Amada se sobressai nesse aspecto por examinar, de uma perspectiva negra, temas ligados à memória, à violência, bem como aos traumas geracionais frutos da exclusão e demonização do sujeito negro.
Amada começa in media res narrando os eventos que se passam ora em Cincinnati, Ohio, em 1873, onde a história está ambientada, ora no Kentucky, numa fazenda onde Sethe, seu esposo Halle e seus filhos viveram antes de Sethe, sozinha, conseguir escapar e se refugiar na casa de sua sogra, Baby Suggs. No presente, Sethe vive com sua filha de dezoito anos no endereço 124 Blue Road, isolada da comunidade. Sua sogra já é falecida e seus dois filhos, Howard e Buglar não moram mais em casa. Sethe acredita que fugiram devido à presença de um espírito que ronda a casa dia e noite, o qual ela crê ser de sua filha, da qual tira a vida num momento de desespero há quase vinte anos. É a inesperada chegada de Paul D, um amigo com quem trabalhou no Kentucky, que a faz rememorar os eventos que a levaram à fuga da fazenda ironicamente chamada de “Sweet Home” – Doce Lar –, e se refugiar em casa de Baby Suggs. É aqui que ela comete, vinte e oito dias após sua chegada, o ato que chocou a comunidade negra onde vivia – matar sua própria filha que ainda mal engatinhava.
Em uma narrativa fragmentada e permeada de vaivéns e flashbacks, o leitor vai gradualmente ficando a par dos principais acontecimentos que levaram Baby Suggs à loucura e a morte prematura, Sethe a cometer infanticídio e a comunidade a isolar Sethe e sua família. Ao rememorar o passado, Sethe fala do dia no qual, após um banquete dado por Baby Suggs aos vizinhos e moradores dos arredores, seu ex-dono, o professor, aparece de repente, acompanhado de seus capangas e xerife, para levá-la de volta ao cativeiro juntamente com seus filhos. Por meio de flashbacks, o leitor descobre que Sethe preferiu matá-los a ter que entregá-los ao cativeiro. Seu acesso de loucura foi interrompido a tempo por um amigo da família, Stamp Paid, não antes, porém, de ela conseguir cortar com um serrote o pescoço da filha que ainda engatinhava. Presa e condenada por infanticídio, após ser solta, Sethe enfrenta não apenas o desprezo de sua comunidade, como também a presença do espírito que assombra a casa, espírito este que acredita ser da filha morta. Mais tarde, a chegada de uma moça que diz se chamar Amada, o mesmo nome que Sethe deu, postumamente, à filha que matou, complica ainda mais a situação já precária de Sethe e Denver. Sethe, no intuito de expiar pelos erros do passado, acaba tornando-se psicologicamente refém de Amada, crendo ser esta a encarnação do espírito de sua filha. Amada, por sua vez, absorve igualmente todas suas forças físicas e psicológicas, numa relação doentia que só não acaba em tragédia – Sethe para de trabalhar e ao deixar de comer corre o risco de morrer de inanição – devido à intervenção da comunidade, que avisada por Denver do que está se passando, reúnem-se em frente da casa de Sethe e numa espécie de exorcismo coletivo expulsam Amada da comunidade.
Se o infanticídio cometido por Sethe, bem como os traumas pessoais e comunais dele decorrentes, formam o centro temático do romance, não menos significativo é o modo como Morrison embarca, em Amada, numa “reflexão profunda das práticas e experiências religiosas dos escravos norte-americanos e de seus descendentes afro-americanos” (JESSEE, 2006, p. 133)2 . Dessa forma, Morrison incorpora ao romance elementos oriundos de tradições religiosas africanas e da religiosidade popular das comunidades negras, colocando-os em paralelo ou até mesmo mesclando-os com elementos da religião cristã. No caso de Amada, percebe-se especialmente a influência das narrativas neotestamentárias a respeito de Jesus, as quais no romance ganham matizes e nuances típicas da cosmovisão e imaginário popular das comunidades negras. Mais que isso, a vida de Cristo no romance, como bem observa Carolyn A. Mitchell, serve como “um modelo de liberação espiritual com contínuas implicações para entender a história Afro-Americana e o impacto desta história na experiência negra contemporânea” (1991, p. 28). Esta influência bíblica é perceptível não só na forma de Morrison construir as personagens principais, mas também no uso da simbologia cristã na composição e desenvolvimento do enredo.
Este artigo argumenta que, em Amada, ao dialogar com as narrativas cristológicas bíblicas, Morrison articula uma teologia negra da libertação que contesta formas eurocêntricas de se pensar a relação de um indivíduo com outro e com o divino. É um teologizar que brota das experiências e vivências das comunidades negras oprimidas, objetivando interrogar visões patriarcais e racistas de instituições e práticas cristãs. Para tal, a análise examinará o triângulo formado por Baby Suggs, Sethe e Amada, concentrando-se na forma como o romance articula uma teologia negra voltada não apenas para o fortalecimento espiritual, mas, sobretudo, para o empoderamento social, cultural e político do sujeito negro. Com isso, Morrison sublinha o potencial redentor da fé cristã na cura de traumas individuais, coletivos e geracionais, quando articulada no contexto e a partir dos anseios e sofrimentos das comunidades negras.
Na narrativa, Baby Suggs ganha um destaque importante como uma figura que veio para fortalecer uma comunidade, que como tantas outras, luta por sobrevivência em meio ao racismo e à exclusão social. A comunidade na qual Baby Suggs mora e atua como guia espiritual é constituída, em sua maioria, de homens e mulheres fugitivos das fazendas dos estados do sul estadunidense. Uns poucos são alforriados como é o caso de Baby Suggs. Porém, independente de serem negros fugitivos ou alforriados, alfabetizados ou iletrados, a condição social é a mesma diante da sociedade supremacista branca. Como bem observa Stamp Paid, “Os brancos acreditavam que, fossem quais fossem as maneiras do indivíduo, sob cada pele escura existia uma selva. Águas turbulentas e não navegáveis, macacos aos gritos pendurados nas árvores...” (1989, p. 232). Desta forma, a missão de Baby Suggs, desde que chega à Cincinnati, é atuar, nas palavras de Matthew Smalley, na “cura e nutrimento de outros corações” (2018, p. 33); isto é, sua missão é ajudar uma comunidade ferida física e espiritualmente a se curar e para isso abre sua casa e, principalmente, seu coração.
A vinda de Baby Suggs para a comunidade em Ohio é descrita como uma espécie de chamado para admoestar, nutrir, aconselhar e curar. Ela comenta com o Sr. Garner, seu condutor e agora ex-dono, que a está levando para sua nova morada em Ohio: “Meu coração está batendo” (1989, p. 167). Essa observação retira gargalhadas do Sr. Garner, que não entende o que Baby Suggs vê em algo tão óbvio para ele como as batidas cardíacas. Para ela, no entanto, é muito significativo, pois pela primeira vez percebe que é livre e tem um corpo que é seu, que lhe pertence. Ao respirar o ar da liberdade, a primeira sensação que experimenta é que tem um coração palpitando dentro de si, algo do qual parecia não ter consciência antes; a sensação de estar viva faz de sua experiência da liberdade parecer um novo nascimento. A escravidão, agora para trás, serve de estímulo para sua missão: “Como a vida de escravidão lhe estourara as pernas, costas, cabeça, olhos, mãos, rins, ventre e língua, ao chegar a Cincinnati concluíra que não lhe restara nada com que pudesse ganhar a vida a não ser seu coração, e passou a trabalhar com ele imediatamente” (1989, p. 105). Com essa visão em mente, assim que chega à comunidade, seu primeiro trabalho é abrir sua casa, a qual logo passa a servir de abrigo onde “forasteiros descansavam”, onde “não uma, mas duas panelas ferviam no fogão; onde o lampião queimava a noite toda” e onde “como uma santa, amava, aconselhava, alimentava, castigava e consolava” (1989, p. 105). É importante ressaltar aqui as qualidades de santa, conselheira e admoestadora a ela atribuídas, traços estes que remetem à figura e ministério de Jesus, como confirmam os evangelhos. Esses paralelos são importantes para se compreender os princípios que regem a espiritualidade e ministério de Baby Suggs. Num movimento teológico com acentuado viés político, o romance contextualiza, já de início, a teologia cristã ao trazê-la, através de Baby Suggs, para o seio da comunidade, e ao coloca-la a serviço dos oprimidos e destituídos.
Nesse aspecto o romance ecoa James H. Cone, o qual na esteira dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos desafiava na década de sessenta o fazer teológico branco e eurocêntrico cujo foco, segundo ele, consistia em um estudo racional de Deus e Jesus Cristo, fora de sintonia com a realidade e o sofrimento de milhares de pessoas negras legalmente segregadas pelas leis Jim Crow. Defendeu, ao contrário, uma visão teológica libertadora na qual Cristo não é “evento abstrato, desincorporado”, mas sim um agente trabalhando dentro e em prol da comunidade (2010, p. 3-5). Cone via o racismo e discriminação como forças demoníacas que precisavam ser confrontadas pelo cristianismo. Ele via como infeliz a trajetória teológica do ocidente que cada vez mais distanciava o Cristo oprimido e sofredor daqueles com os quais ele passou mais tempo durante seu ministério. Por isso, em sua reflexão teológica Cone procura, como observou Hopkins, usar o evangelho como ferramenta para “empoderar o povo negro oprimido, um poder que seria usado para eliminar opressão racista e fomentar a liberdade dos Afro-Americanos” (1999, p. 55). O aspecto social do teologizar de Cone é evidente. Embora a libertação espiritual esteja, é claro, presente em suas reflexões, sua ênfase é no Cristo como uma figura que luta em favor dos explorados pelo poder vigente. Em Amada, como as passagens citadas sugerem, Morrison privilegia essa visão cristológica ao fazer de Baby Suggs um Cristo enegrecido que se identifica e usa os princípios do evangelho como ferramenta de empoderamento dos explorados e destituídos. Diferente dos pregadores que mostravam um Jesus distante da causa negra, atuante mais como juiz do que libertador, ela incorpora o papel do Jesus que acolhe, alimenta, cura e alivia as dores de seus próximos. Esse viés cristológico negro do ministério de Baby Suggs na comunidade fica ainda mais evidente em dois episódios significativos trabalhados no romance: o banquete no qual ela alimentou vizinhos e amigos e que gerou uma mistura de admiração e revolta; e seus sermões na Clareira, onde reunia a comunidade para ensinar, cantar, dançar, amar, admoestar e celebrar a negritude. Em relação ao banquete, destacam--se os aspectos simbólicos que este ganha ao longo do relato, o que enfatiza a migração para o universo negro de símbolos e tropos bíblicos, o que Henry Louis Gates Jr. chama de significar com uma diferença, isto é, dar uma roupagem diferente a um conceito tradicional e hegemônico (1988, p. 80-82).
Quanto ao banquete, tudo começa quando Stamp Paid, que ajudou Sethe a cruzar o rio Ohio em segurança, resolve celebrar o fato de Sethe e seus filhos conseguirem se reunir com sua sogra. Para a celebração, Stamp Paid não mede esforços para buscar entre espinhos e vespas amoras pretas “tão doces e saborosas que comê-las era como estar na igreja. Bastava comer uma e a pessoa se sentia ungida. ...[eram] amoras dignas do paraíso” (1989, p. 161). Ao chegar com os baldes cheios, vestimentas rasgadas e pele ferida, arrancou gargalhadas de Baby Suggs, porém ninguém resistiu e passaram a comer as frutas. Em seguida Baby Suggs decidiu preparar algumas tortas e Sethe se incumbiu de assar alguns frangos. Stamp Paid por sua vez foi pescar alguns bagres e percas. A comunidade toda compareceu para a festa. O que chama mais a atenção nesse relato não é apenas o fato de noventa pessoas terem se alimentado até se fartar, mas sim o modo como a comida se multiplicou. Ao longo da preparação, as três tortas se multiplicaram em dez ou doze, os frangos que Sethe preparara já não eram mais frangos e sim perus enormes que saciou a todos. Até o gelo, algo escasso na comunidade, aumentou de modo a gelar ponche de morango para matar a sede de todos. Assim, conta o relato, “O que começara com o brilho nos olhinhos de Denver terminou numa festa para noventa pessoas. A 124 tremeu com o vozerio noite adentro” (1989, p. 162).
Semelhante a Jesus que miraculosamente multiplica cinco pães e dois peixes para alimentar a multidão faminta que o seguia (Mt 14: 13- 21; Mc 6: 31-44; Lc 9: 10-17; João 6:1-13), Baby Suggs transforma o pouco que ela, Sethe e Stamp Paid possuem em uma abundância sem precedentes para uma mulher negra e pobre que até pouco tempo era escrava. O paralelismo intertextual com a Bíblia é bastante evidente na transformação das amoras pretas em suco, uma alusão ao vinho que na Bíblia simboliza o sangue de Cristo, fonte de libertação; na multiplicação das tortas e dos dois frangos, uma alusão ao milagre da multiplicação dos pães e peixes. Até mesmo na inveja que muitos sentiram ao vê-la tão cheia de poder, cobiça esta que levou a comunidade a traí-la e não avisá-la que o ex-dono de Sethe estava a sua procura para levá-la de novo ao cativeiro: “...isso era inaceitável”, começaram a murmurar, pois “O poder de multiplicar pães e peixes era só Dele. Não podia pertencer a uma ex-escrava...” (1989, p. 162). No relato bíblico, Jesus foi traído por um de seus seguidores, Judas Iscariotes, que o entregou aos inimigos. Assim, através desse exercício intertextual com a Bíblia, Morrison enfatiza mais uma vez um Cristo que age entre os pobres e a serviço deles. E ao estabelecer aqui paralelos entre Baby Suggs e o Cristo bíblico, Morrison abraça, mas também critica os dogmas da fé cristã, ou seja, interroga noções abstratas de Cristo que o distanciam das comunidades carentes.
Já em relação ao seu ministério como pregadora itinerante, ganham destaque não apenas os paralelos bíblicos, mas também um modo de teologizar que resgata elementos do imaginário negro. A narrativa relata que sempre que aparece uma oportunidade e um púlpito, ela prega sermões que vêm do seu coração: “Desprezando qualquer título honorífico diante de seu nome, mas permitindo uma pequena carícia depois dele, tornou-se uma pregadora sem igreja, que visitava púlpitos e abria o enorme coração para aqueles que pudessem fazer uso dele” (1989, p. 105). O texto não deixa claro o que de fato ela prega em púlpitos metodistas, batistas, fundamentalistas ou quacres. O que se depreende da narrativa é que Baby Suggs prega uma mensagem que valoriza a cura do corpo por inteiro e não apenas a alma; prioriza a experiência da escravidão na criação de uma perspectiva própria da relação com Deus; faz uso da tradição oral para exprimir os anseios e forjar mecanismos de libertação e cura individual e comunal.
Esta teologia que valoriza a cultura, corpo e mente do indivíduo negro é vista mais claramente nos sermões que ela prega durante o verão na Clareira, uma espécie de templo a céu aberto no meio da floresta onde Baby Suggs leva os que se interessam por sua mensagem. O culto de libertação que ali acontece tem paralelos em muitos aspectos com o sermão da montanha onde Jesus passou uma série de ensinamentos a seus discípulos. Semelhante a Jesus, ela se assenta no meio da clareira, sobre um tronco, e reúne as pessoas a seu redor para admoestá-los e abençoá-los com suas palavras. Porém, diferente do sermão registrado na Bíblia, onde o foco é a exaltação de virtudes universais como paciência, amor, serviço e obediência, no sermão de Baby Suggs esses ensinamentos são teologizados no contexto da experiência negra de subjugação. Por exemplo, a virtude de amar ao próximo como a si mesmo é ensinada no contexto da demonização do corpo negro por teologias supremacistas brancas. Na liturgia de Baby Suggs o convite é para amar seus corpos: “Lá fora eles não amam nossa carne. Eles a desprezam. Nem amam nossos olhos; só querem arrancá-los. Muito menos amam a pele em nossas costas. Lá fora eles a açoitam. E, meu povo, eles não amam nossas mãos. Essas eles apenas usam, amarram, prendem, cortam fora e deixam vazias” (1989, p. 106). É preciso amar cada parte do corpo – braços, pescoço, fígado e principalmente o coração. Segundo Baby Suggs, “este é o prêmio” (1989, p. 107). O “amar a si mesmo” do famoso ensinamento de Cristo – “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo” – ganha um novo significado na pregação Baby Suggs. Cone observa que é necessário “destruir a definição de negritude do opressor desvelando novos significados em velhas narrativas a fim de que o passado possa surgir como instrumento de libertação negra” (2010, p. 14). Em seus sermões, ela convoca seus ouvintes não só a amarem a seus corpos, mas, como urge Cone, a redefini-los, a reformularem suas identidades com base numa visão de Cristo que se identifica com suas dores e sofrimentos no contexto opressivo no qual estão inseridos
Expandindo os conceitos desenvolvidos por Cone, o teólogo Gayraud conta o repertório de crenças populares, bem como os elementos das religiões tradicionais da África que permaneceram no ethos das comunidades negras. Ele observa: “A teologia negra seminal dos escravos africanos nas plantações do novo mundo existia antes da existência da igreja negra como tal. Seus primeiros teólogos não eram professores teologicamente treinados, mas pregadores-conjuradores” (1974, p. 214). Segundo Wilmore, para compreender o que ele chama de pensamento religioso negro, é preciso ir além da teologia euro-americana ou documentos que registram a história da igreja negra. Faz-se necessário perscrutar a tradição oral, a mitologia e o folclore presente no imaginário negro e expresso “... na prática de artesanato, na preparação de alimentos, remédios caseiros, e poções mágicas e encantos, na padronização de rituais de nascimento, casamento, e morte, na criação de jogos de palavras e paródia, na expressão de estilos de cantar, música instrumental e dança...” (1998, p. 222). É preciso explorar, resgatar o que o historiador Charles H. Long denomina de espiritualidade “grassroots”, de base, que “brota do chão da comunidade” (apud HOPKINS, 1999, p. 77).
Em sintonia com essa visão teológica, os sermões de Baby Suggs sincretizam elementos do cristianismo com expressões culturais da comunidade tais como, por exemplo, os “ring shouts” – rituais religiosos extáticos e performáticos, de matriz africana, dançados em forma de círculo e batendo os pés no chão. A narrativa diz que após seu momento particular com Deus sentada em um tronco de árvore, ela começa a cerimônia chamando as crianças para o centro da clareira: “Que venham as crianças!... Riam alto para que suas mães ouçam”; depois chama os homens adultos: “Que venham os homens!... Dancem para que suas mulheres e seus filhos vejam” e então, diz o texto, “os bichinhos da terra estremeciam sob seus pés” (1989, p. 106). Numa invocação de Eclesiastes onde há tempo para plantar e para colher, rir e para chorar, ela convoca as mulheres a chorarem: “Chorem... Pelos vivos e pelos mortos. Apenas chorem” (1989, p. 106). Essa performance de ritos e expressões se misturam, conclamando a comunidade a experimentar e imaginar a graça que lhes foi negada, mas que sempre esteve ao alcance de todos. Ela prega preceitos bíblicos, mas pede que a comunidade os experimente de forma visceral, sem restrições culturais.
Importa destacar aqui ainda a importância da música de raiz negra como fonte de teologização e libertação comunitária. Roxane R. Reed corretamente observa que em cerimônias como essas o som funciona como um discurso que remete a heranças africanas e práticas ancestrais de contar histórias onde som e palavra se fundem. No sermão de Baby Suggs, Reed acrescenta, “a música se torna o veículo de restauração comunal” e “Baby Suggs a mãe comunal” (2007, p. 57-58). Como instrumento de libertação, a música de raiz, aliada à dança e performance desempenham, sim, um papel libertador, catártico, pois liberam emoções sufocadas e desejos de liberdade. São componentes importantes no processo de cura e acesso ao transcendente. No entanto, percebe-se que mais que uma mãe comunal, Baby Suggs dá uma face feminina negra a Jesus Cristo, num gesto subversivo de deslocamento epistemológico e teológico do centro para a margem, num movimento que admite a voz da alteridade na formulação de uma teologia cristã mais inclusiva.
Semelhante a Baby Suggs, a narrativa envolvendo Amada também está centrada em processos de cura e regeneração de traumas individuais, geracionais e coletivos. Porém, aqui o que se sobressai não é a apropriação subversiva do sermão protestante para fins culturais, políticos e estéticos, o que Smalley chama de “pregação literária” (2018, p. 30), mas o uso por parte de Morrison do rico simbolismo da figura do cordeiro pascal, elemento chave da alegoria cristã da salvação. Entre os vários episódios relembrados dos tempos em Sweet Home, Sethe comenta sobre um escravo por nome Sixo, que foi chicoteado porque apresentou uma justificativa plausível, bem argumentada, por ter roubado comida da fazenda para consumo próprio. O professor, seu dono, se impressionou com seu raciocínio, mas o surrou mesmo assim para mostrar que “as definições pertenciam aos definidores – não aos definidos” (1989, p. 223). Ao fazer de Amada um símbolo pascal de redenção e reconciliação, Morrison questiona essa dicotomia definidor versus definido ao colocar a comunidade negra como participante na história e construção da hermenêutica da salvação. Se, como observa Charles H. Long, a conquista linguística, de efeitos mais duradouros e tão maléficos quanto à conquista militar (1986, p. 106), relegou o sujeito negro à condição de mero observador da hermenêutica da fé, em Amada Morrison o apresenta como partícipe, como sujeito definidor e não objeto definido.
A figura do cordeiro pascal está no centro de uma importante celebração religiosa tanto judaica quanto cristã: a Páscoa. Na tradição judaica, conforme o registro em Êxodo 12, na noite que antecede a saída do povo de Israel do Egito, Deus instrui os israelitas, através de Moisés, a matarem um cordeiro e espargir o sangue nos umbrais e soleiras das portas. A razão é que Deus enviaria a décima praga para punir o Egito e seu faraó, matando todos os primogênitos, tanto pessoas como animais. Porém, o anjo destruidor passaria e pouparia as casas cujos umbrais e soleiras das portas mostrassem as marcas de sangue do cordeiro. Deus também os instruiu a continuarem a fazer essa cerimônia religiosa quando entrassem na terra prometida, como lembrança do salvamento e libertação escravidão egípcia (Êxodo 12, 25-27). Esse última ceia no Egito e a posterior repetição do ritual no futuro se tornariam símbolos de como Deus se lembrou de seu povo, os retirou da escravidão e os poupou do anjo destruidor. No Egito, o cordeiro pascal e seu sangue substituiriam o primogênito que seria morto. A Páscoa, no imaginário do povo de Israel e tal qual celebrada cada ano, se tornaria então “o rito fundador”, a celebração da “passagem da servidão para o serviço de Deus, da morte para a vida” (ULLOA; GRACIANI, 2014, p. 387).
A Páscoa cristã tem como pano de fundo essa festividade religiosa, porém aqui ao invés de um animal sacrificado como ritual de lembrança de um evento passado, Jesus torna-se o cordeiro sacrificado que aponta para o futuro, para a libertação e redenção dos pecados da humanidade. Várias passagens bíblicas mostram essa interpretação da morte de Jesus como o sacrifício pascal para a redenção dos pecados da humanidade. O evangelista João descreve o momento quando João Batista vê Jesus se aproximar para ser batizado e diz; “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (1, 29). Porém, o evento mais emblemático registrado nos evangelhos sinópticos é a noite na qual Jesus participou de sua última páscoa judaica com seus discípulos. Nessa noite, ele falou que estava angustiado e que seria traído e entregue aos seus inimigos. O evangelista Mateus registra Jesus se intitulando o cordeiro pascal, naquele momento simbolizado pelo pão que iriam comer e pelo vinho que iriam beber: “Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo-o abençoado, partiu-o e, distribuindo aos discípulos, disse: ‘Tomai e comei, isto é o meu corpo’. Depois, tomou um cálice e, dando graças, deu-o a eles dizendo: ‘Bebei dele todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para remissão dos pecados’” (26, 26-28). Assim, se na páscoa judaica era celebrada a libertação do povo de Israel da escravidão terrena, na páscoa cristã, o que viria a ser celebrado seria o livramento e redenção da humanidade através do cordeiro pascal, Jesus Cristo pregado na cruz. No mundo cristão, a eucaristia ou santa ceia celebrada pelos cristãos é o ritual que lembra esse sacrifício expiatório até os dias de hoje.
Vários momentos durante a trama mostram, por parte de Morrison, essa apropriação e adaptação ao contexto da experiência negra, dos aspectos salvíficos presentes na figura do cordeiro pascal. Uma análise inicial já mostra paralelos entre o modo como Morrison retrata Amada e o modo como a Bíblia descreve o cordeiro pascal. Um destes paralelos é a morte do bebê Amada por derramamento de sangue, o qual ganha conotações de um sacrifício feito por uma causa maior. Para Sethe, embora soubesse que o ato que iria cometer ia contra todos os princípios morais que conhecia, a instituição da escravidão desafiava esses princípios e exigia esse sacrifício. Desta forma, como bem observa Nancy Berkowitz Bate, “o sacrifício de Amada é assim comparável ao sacrifício de Jesus Cristo nos Evangelhos e o sacrifício do cordeiro pascal Israelita” (2006, p. 45). É esse sacrifício, aliás, que impede o professor e seus algozes de levá-la juntamente com seus filhos de volta a escravidão; torna-se um ritual de sobrevivência e libertação (TRACE, 1991, p. 20). Podemos acrescentar aqui o fato de que o bebê foi sacrificado no dia após Baby Suggs oferecer um grande banquete, reunião da qual muitos saíram saciados, porém tomados de inveja a ponto de trair Baby Suggs ao não avisá-la que o professor estava nas redondezas a procura de Sethe e seus filhos. É possível ver aqui um paralelo com a última ceia de Jesus e a consequente traição que sofreu ao ser entregue aos seus inimigos.
Outro paralelo é a chegada do bebê Amada, encarnado em forma de uma moça adulta, saindo da água: “Uma mulher completamente vestida saiu da água. Passou ali um dia e uma noite, a cabeça apoiada no tronco, numa posição de abandono, chegando a rachar a aba do chapéu de palha” (1989, p. 65). A água tem uma importante função simbólica na narrativa bíblica – a purificação. O ritual do batismo nas águas é associado à noção de arrependimento e purificação de um indivíduo. Cristo cumpriu esse ritual ao ser batizado por João Batista e os evangelhos relatam que ao sair da água uma voz celestial o confirmou como o filho amado. Assim, o fato de Amada, adulta, sair da água e se dirigir a casa de Sethe é bastante significativo, pois estabelece um paralelo com Cristo e seu ministério salvífico, já que foi após seu batismo que Jesus iniciou seu ministério de ensino, cura e libertação. Como um Cristo, Amada, adulta e ressurreta, volta com a missão de resgatar Sethe do abismo espiritual causado pela culpa que a consome.
Assim, é com essa missão de resgate e libertação que Amada se instala na casa e volta toda sua atenção a Sethe. Se há momentos em que a relação entre mãe e filha parece estar pautada na vingança, como bem observa Denver, o que se sobressai é a dedicação de Amada em auxiliar Sethe a se reconciliar com seu passado e, principalmente, consigo mesma e o crime que cometeu. Se um dos propósitos da mensagem de Cristo foi trazer alívio aos cansados e oprimidos, na narrativa, Amada cumpre também essa função ao procurar resgatar Sethe do fundo do abismo no qual se encontra. Esse resgate se dá principalmente quando Amada faz com que Sethe confronte suas memórias, com o aparente objetivo de purgá-la dos efeitos maléficos do passado: “Amada aproveitava todas as oportunidades para fazer alguma pergunta esquisita e incentivar Sethe a prosseguir em seus relatos” (1989, p. 79). Como bem recorda Sethe, não havia nada em seu passado que não a machucasse, mas mesmo assim Sethe prosseguia. Sethe, inclusive, se surpreende com “com a vontade súbita de continuar, gostando de recordar” (1989, p. 74). Ela então começa a abrir o baú de memórias, com Amada aproveitando toda e qualquer oportunidade para fazer Sethe narrar sua infância, seus sofrimentos e esperanças. De seu passado, o que mais a machuca é a história de sua mãe, que além de ser afastada dela pelo dono da fazenda, acabo morrendo enforcada. Veio-lhe à memória, inclusive, o fato de “que usava palavras diferentes” que na época “entendia, mas que depois não conseguira mais lembrar nem repetir” (1989, p. 78). Vem à sua mente também histórias que ouvira da mulher que a amamentara, por nome de Nan, falando das tragédias do tráfico de negros para a América. Sethe precisa da cura dos traumas desse abrupto rompimento maternal, linguístico e cultural que a impossibilita de seguir adiante e Amada, ao conduzi-la pelos labirintos de seu passado sofrido, abre o caminho que tal regeneração aconteça.
Contudo, se a cura dos traumas familiares e culturais é importante para a libertação espiritual de Sethe, mais vital ainda é enfrentar o maior mal que a aflige: o fato de ter matado sua filha, mesmo que com a intenção de livrá-la do cativeiro. Esse é o maior fantasma que atormenta Sethe e como bem observa Linda Krumholz, “a ressureição de Amada exuma [este] passado que Sethe enterrou bem no fundo de seu ser” (1999, p. 117). Deste modo, além de trazer à tona o passado, Amada precisa ajudar Sethe a se livrar da culpa. Esse ritual de cura e regeneração ocorre diariamente num processo que a princípio parece ser vingança por parte de Amada, já que ela faz com que Sethe aparentemente sofra por seus atos; Sethe passa a servi-la como se quisesse compensar algo, privando-se até de comer para favorecer Amada: “Mas a coisa ficou insuportável quando a comida começou a escassear e Denver viu Sethe se privar dela, pegando migalhas na mesa e no fogão, raspando a canjica presa no fundo da panela, comendo crostas e cascas das coisas” (1989, p. 283). Porém, durante este período algo inusitado começa a ocorrer: Sethe começa a diminuir em tamanho enquanto Amada começa a ficar maior. Chega um ponto em que os papéis se invertem e Amada é a mãe e Sethe a filha: “Denver percebeu que a troca se completara: Amada era a mãe que se preocupava com a filha, Sethe, cujos dentes começavam a nascer e que ficava quieta na cadeira quanto não era solicitada” (1989, p. 292). Sethe aqui se torna a filha abandonada que precisa de perdão e Amada a mãe que a acolhe.
O ritual expiatório final, no entanto, se desenrola quando as mulheres da comunidade resolvem, por iniciativa de Ella, que já havia passado da hora de resgatar Sethe das mãos da “filha morta”, “... a que tivera o pescoço cortado, [e que] voltara para acertar as contas com ela” (1989, p. 298-299). Essa, pelo menos, é a percepção da comunidade ao saber do que estava se passando em casa de Sethe. Para a missão de resgate, um grupo de trinta mulheres se dirige a casa “levando o que podiam e o que acreditavam que iria funcionar”, numa tarde de sexta-feira às três horas da tarde (1988, p. 302-303). Sethe, ao ouvir as orações e cantos do grupo, sai da casa acompanhada de Amada. A narrativa diz que nesse momento, ao ver as mulheres ali reunidas, ela experimenta uma volta ao passado, revivendo os momentos na Clareira onde Baby Suggs exortava e confortava o seus ouvintes. Nesse momento, a memória a leva a um momento de purificação e livramento: “[A Clareira] estourou sobre Sethe, que estremeceu como um ser batizado afundando no banho da purificação” (1988, p. 305). O que se passa em seguida é uma evocação dos acontecimentos do dia em que Sethe matou sua filha. Ao ver Edward Bodwin se aproximar da casa, imagina que este é seu antigo dono vindo buscá-la juntamente com as crianças. Porém, diferente de sua atitude no passado, agora ela avança em direção ao homem com um picador de gelo e só não o mata porque Denver a segura. Dessa vez, ataca o homem branco e não seus filhos.
É nessa reconstrução da cena do trauma, como bem observa Krumholz, que se completa o ritual de purificação psicológica tão necessária para que Sethe possa dar continuidade a sua vida (1999, p. 119). Esse ritual de purificação só é possível porque Amada, como o cordeiro pascal, faz com que Sethe experimente o livramento ao reviver o passado, por mais duro que este seja. Como destaca Bate, essa rememoração literal do passado ganha contornos de uma cerimônia eucarística onde “o passado precisa ser lembrado para que seja transcendido” e “Amada ressurreta é a encarnação da memória”, com poder de cura e libertação dos traumas passados (2006, p. 56). No final, como o bode expiatório descrito na narrativa bíblica em Levíticos, Amada é lançada para fora da comunidade e nunca mais é vista. Nesse ritual de expiação, Amada simboliza tanto o animal sacrificado, cujo sangue tem poder redentor, quanto o animal solto fora da comunidade carregando os pecados individuais e da comunidade.
Se com Baby Suggs Morrison apresenta a figura de Cristo pregando entre os oprimidos e destituídos da terra, em Amada, ela reforça esse aspecto focando na figura do Cristo ressurreto, numa sugestão de que, nas palavras de Cone, o “Jesus da história não é simplesmente uma figura do passado mas o Cristo de hoje como interpretado pelo significado teológico do evento morte-ressurreição” (2010, p. 124). Em outras palavras, ela sugere a importância de se refletir sobre a relevância da mensagem cristã para a comunidade negra hoje. Em Amada, a mensagem presente no evento da ressurreição é de libertação das amarras não só espirituais, mas também sociais que impedem o sujeito negro de alcançar seu potencial como ser humano. Cone também relembra que “é a comunidade oprimida em situação de liberação que determina o significado e escopo de Jesus” (2010, p. 126). Ao fazer de Amada uma representação do cordeiro pascal, ela faz das comunidades negras intérpretes do evento salvífico, resgatando não apenas o Cristo histórico que trabalhou e lutou em favor dos oprimidos, mas também o mistério do Cristo ressurreto, cujo simbolismo e mensagem transcendem taxonomias étnico-raciais.
Em Amada, Morrison desafia visões reducionistas da história ao engendrar uma narrativa que confronta seus leitores e leitoras a todo o momento, fazendo com que revisem cada leitura, pois, como o texto mesmo sugere no capítulo final, a história de Sethe “não era uma história para se passar adiante” (1989, p. 320), de tão horrenda e traumatizante que foi3 . Porém, mesmo assim a história é passada adiante, num desafio aos mecanismos que insistem em calar a voz dos oprimidos. Ao fazer de Baby Suggs e Amada antítipos de Cristo no contexto das lutas pela libertação do sujeito negro, Morrison questiona hermenêuticas etnocêntricas que ao longo dos séculos cooptaram e utilizaram a narrativa bíblica como ferramenta de opressão dos negros tanto durante o período da escravidão como na sociedade moderna. Mostra também o potencial criativo das comunidades negras que souberam destilar da mensagem bíblica elementos cruciais para a libertação e empoderamento do sujeito negro, apesar dos esforços e argumentos da teologia branca em demonizá-lo e excluí-lo da mensagem de redenção. Morrison vai mais adiante. Além de resgatar o aspecto teológico de libertação presente na narrativa bíblica, mostra que existem outras espiritualidades e formas de comunicação com o transcendente. Em Amada, Baby Suggs e Sethe, Morrison resgata formas alternativas de se comunicar com o divino, nesse caso, sensibilidades de matriz africana, demonstrando que teologizar é estar aberto para outras maneiras de se buscar e de compreender a Alteridade e sua revelação para a humanidade.
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[1] Suas tramas protagonizam majoritariamente personagens femininas, com exceção de Canção de Salomão onde o personagem central é um homem. Crianças também fazem parte de seu repertório temático, como, por exemplo, O Olho mais Azul (1970), seu primeiro romance, e Deus Ajude Essa Criança (2015) seu último.
[2] Traduções da bibliografia crítica em inglês citada ao longo do artigo são minhas.
[3] É importante lembrar que Amada é um romance inspirado na história verídica de Margaret Garner, que escapou com sua família da escravidão no Kentucky, em 1856, e foi morar em Ohio. Quando as autoridades policiais foram prender sua família, com base na lei Ato do Escravo Fugitivo (Fugitive Slave Act), Margaret Garner preferiu assassinar sua filha a vê-la ser escravizada de novo.