A ambivalência da morte: reflexões escatológicas a partir do personagem de Judas do teatro da Paixão de Jesus em Nova Jerusalém – PE
The ambivalence of death: scholological reflections from the character of Judas of the theater of the Passion of Jesus in Nova Jerusalém - PE

Alzirinha Souza*
* doutora em Teologia pela Université catholique de Louvain e pós-doutora em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco, onde é professora e pesquisadora do Programa de PósGraduação em Teologia (PPGTEO). Contato: alzirinharsouza@gmail.com
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Resumo
As artes são também formas reflexivas para pensar as questões mais profundas que tocam o ser humano. Neste texto, temos por objetivo refletir sobre dois significados antagônicos para a morte humana: o primeiro, dado por Plínio Pacheco através do personagem de Judas, em sua peça Jesus, da encenação da Paixão de Jesus Cristo de Nova Jerusalém em Pernambuco – Brasil, e o segundo, da morte de Cristo na cruz a partir do pensamento do teólogo espanhol Juan Luis Ruiz de la Peña. Para tanto, iniciamos nossa reflexão pela relação cultura-religião no Nordeste brasileiro, passando à apresentação do texto das cenas de Judas na peça teatral para chegarmos à reflexão sobre a escatologia cristã à luz do pensamento de Ruiz de la Peña.

Palavras chave:Teatro, Morte, Jesus, Judas, Escatologia.

 

Abstract
The arts are also reflective ways of thinking about the deeper questions that touch the human being. In this text, we aim to reflect two antagonistic meanings for human death. The first given by Plínio Pacheco through the character of Judas, in his play Jesus, of the staging of the Passion of Jesus Christ of New Jerusalem in Pernambuco – Brazil and the second of the cross death of Christ from the thought of the Spanish theologian Juan Luis Ruiz de la Peña. To this end, we began our reflection on the culture-religion relationship in the northeast of Brazil, passing to the presentation of the text of Judas scenes in the play, to arrive at the reflection of the Christian eschatology in the light of the thought of Ruiz de la Peña.

Keywords:Theatre, Death, Jesus, Judas, Eschatology.

Introdução

Muito se tem voltado a falar sobre o morrer e o viver em tempos atuais. De fato, a liberdade do viver trazida pelo Iluminismo, que levou a razão à independência do elemento religioso, revelou dois aspectos. De um lado, o desvelar de duas de nossas três principais características: a de pensar e a de sermos livres ou, em última instância, sermos constituídos, isto é, a nossa essência está na capacidade de pensar livremente. A priori, o pensar livremente não contradiz o elemento transcendente. De outro lado, o excesso de liberdade do pensar desvelou um distanciamento tal do transcendente que nos atirou a uma razão existencialista pura, ao niilismo dos sentidos e hoje, como diria Z. Bauman, a uma liquidez que não conseguimos abarcar. Contraditoriamente, a liberdade de pensar nos tirou nossa terceira característica principal: a capacidade de inferir sentido a quem somos e como vivemos e morremos.

Nesse contexto, poderíamos igualmente nos perguntar como o religioso contribui para o nosso sentido de viver e morrer. Aparentemente, a desconexão entre razão e transcendência, trazida do século XVIII, solidificou-se no século XXI com nova roupagem. A atual forma de viver

Nesse contexto, poderíamos igualmente nos perguntar como o religioso contribui para o nosso sentido de viver e morrer. Aparentemente, a desconexão entre razão e transcendência, trazida do século XVIII, solidificou-se no século XXI com nova roupagem. A atual forma de viver e morrer é marcada pela subjetividade extrema que se estabelece na relação com o transcendente. Nunca se falou tanto em religiões (cristãs e não cristãs) como nos tempos atuais e nunca se teve tanta liberdade de transitar entre elas na busca de uma experiência pessoal; contudo, para que se guardasse uma subjetividade exacerbada, nunca o transcendente foi tão pouco determinante na formação do sentido humano. Não queremos afirmar que o sentido vem unicamente dessa relação; ao contrário, queremos inferir que a dificuldade do estabelecimento de sentido é, antes de tudo, um elemento antropológico, que pode e deve ser pensado pelo prisma de diversas ciências e expressões de arte e cultura.

Por isso, neste texto, propomos a reflexão sobre a essência do sentido humano, do viver e do morrer, conjugando teatro e teologia. Fá-loemos através da análise do personagem de Judas, descrito na peça Jesus – Paixão em dois atos, encenada no espetáculo da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, no Agreste pernambucano. Nosso texto tem por objetivo apresentar de que maneira elementos essenciais ao humano e muito presentes atualmente, a exemplo da angústia e do desencanto, são determinantes para o personagem em sua relação com Deus.

Para tanto, estruturamos nosso artigo em três partes. A primeira trata da apresentação da peça teatral; a segunda, da análise dos elementos de sentido teológico desvelados pelo personagem de Judas, e a terceira, da relação com os elementos escatológicos da teologia cristã.

A Paixão de Jesus como expressão do Nordeste brasileiro

A expressão popular do Nordeste pernambucano é uma de suas grandes riquezas. Nesse contexto, cultura e religião estão intrinsecamente ligadas. Poderíamos dizer que a maioria das expressões culturais pernambucanas nasce de uma expressão religiosa ou incorporou algum elemento religioso a partir das experiências vividas de suas comunidades. E quanto mais adentramos o interior do estado, mais verificamos

essa mescla tão rica de expressão de sentimentos e de valores que são também – em última instância – fundamentados pela experiência de uma vida sacrificada, resultante de uma formação social colonialista aliada às penosas condições climáticas.

De fato, a história dos “interiores nordestinos” foi constituída e continua sendo marcada por um forte desequilíbrio social, expressado numa estratificação social visível que insiste em manter o status quo de cada grupo. Os diferentes climas dessa região acentuaram essas marcas. A vida no litoral oferece uma infinidade de possibilidades que vão se diluindo pela Zona da Mata, rareando no Agreste e desaparecendo no Sertão. Não é por acaso que a música traduz: “Sertanejo é forte, supera a miséria sem fim; sertanejo homem forte, dizia o poeta assim”. (OLIVEIRA; QUINTANILHA,1976).

Diante das dificuldades avassaladoras da história e do clima, restou ao sertanejo ser forte e religioso. Na ausência de estruturas sociais, políticas e econômicas que lhes pudessem oferecer uma vida mais digna, restaram às pequenas comunidades isoladas do Agreste e do Sertão as devoções populares tão presentes até hoje. Não por acaso, São José é o maior santo de devoção do interior. Chover em 19 de março, no “dia do santo”, significa colheita farta do milho para a festa de outro santo não menos celebrado: São João, em junho. A vida do pernambucano do interior foi sendo marcada ao ritmo das duras penas impostas pelas estruturas suportadas e, ao mesmo tempo, amenizada pela esperança em Deus. Efetivamente, o povo do interior revela, a partir de sua experiência pessoal, o que é nato de todo cristão: ser homem e mulher de esperança.

E essa esperança é igualmente renovada a cada ano com a realização do teatro da Paixão de Jesus Cristo de Nova Jerusalém. O espetáculo teve sua origem nas encenações do drama do Calvário, realizadas nas ruas da vila de Fazenda Nova, Pernambuco, no período de 1951 a 1962, graças à iniciativa do patriarca da família Mendonça, o comerciante e líder político local Epaminondas Mendonça.

Depois de ter lido numa revista de variedades como os habitantes da cidade de Oberammergau, na Baviera alemã, encenavam a Paixão de Cristo, Mendonça teve a ideia de realizar um evento semelhante durante a Semana Santa a fim de atrair turistas e, assim, movimentar o comércio do lugar. As primeiras encenações na pequena vila contavam com a participação apenas de familiares e amigos dos Mendonças.

Depois de ter lido numa revista de variedades como os habitantes da cidade de Oberammergau, na Baviera alemã, encenavam a Paixão de Cristo, Mendonça teve a ideia de realizar um evento semelhante durante a Semana Santa a fim de atrair turistas e, assim, movimentar o comércio do lugar. As primeiras encenações na pequena vila contavam com a participação apenas de familiares e amigos dos Mendonças.

A ideia de construir um teatro que fosse como a réplica da cidade de Jerusalém, para que nela ocorressem as encenações da Paixão, foi de Plínio Pacheco, que chegou a Fazenda Nova em 1956. Poucos anos depois, casado com Diva Mendonça, assumiu a coordenação-geral do espetáculo, que era então dirigido artisticamente por Clênio Wanderley e tinha em seu elenco diversos atores e atrizes do movimento teatral de Recife, juntamente com os integrantes da família Mendonça e a comunidade local. Mas o plano só veio a se concretizar em 1968, quando foi realizado o primeiro espetáculo na cidade-teatro de Nova Jerusalém.

Em 1961, o espetáculo foi renovado e passou a utilizar outro texto, dessa vez escrito por um dos atores da Paixão, José Pimentel, e que se intitulava Jesus, o mártir do Calvário. A direção artística continuava com Clênio Wanderley e o espetáculo seguia o modelo dos anos anteriores, com três atos apresentados na sequência da Semana Santa.

No ano seguinte, Plínio Pacheco resolveu suspender as encenações nas ruas da vila e fundou o movimento da Paixão de Cristo, denominado Sociedade Teatral de Fazenda Nova. A partir de então, o autor, conduzido à presidência da nova sociedade, iniciou a jornada que o levaria à construção do “maior teatro a céu aberto do mundo”, com 100 mil metros quadrados, o que equivale a um terço da área murada da Jerusalém original, onde Jesus viveu seus últimos dias. A cidade-teatro, onde atuam 55 artistas a cada espetáculo, é cercada por uma muralha de pedras de quatro metros de altura e 70 torres de sete metros cada uma. No seu interior, nove palcos-plateia reproduzem cenários naturais, arruados e palácios, além do Templo de Jerusalém, constituindo obras monumentais, concebidas por vários arquitetos e cenógrafos nordestinos, e pelo gênio do seu fundador, Plínio Pacheco.

Quanto ao espetáculo, dois elementos são importantes a considerar. O primeiro refere-se à dinâmica do espetáculo, que, diante da grandeza de seus palcos e cenários, realiza uma inversão de posições entre público e atores. Ao contrário do teatro tradicional, não são os atores que se movimentam no palco nem os espectadores que esperam. Em Nova Jerusalém, atores e público acompanham a caminhada do ressuscitado e caminham literalmente com ele, desde sua vida adulta marcada por seu diálogo com João e Pedro até o ápice de sua ressurreição. Aqueles que fazem tal experiência se sentem parte integrante da cena. O segundo elemento, decorrente do primeiro em minha opinião, é que o texto é uma peça teatral inspirada na vida de Jesus. A dinâmica do espetáculo e a fé das pessoas que dele participam, dando por conhecidos os textos bíblicos, muitas vezes não permitem perceber que o texto de Plínio Pacheco não é exatamente uma cópia dos textos bíblicos. Trata-se de uma releitura baseada na vida de Jesus e realizada a partir de elementos demasiado humanos.

Na lógica ricœuriana, diríamos que o texto bíblico foi entregue a seu leitor, que vai necessariamente reinterpretá-lo e recebê-lo a partir de sua leitura. Ele não pertence mais ao autor original (RICŒUR, 1983). Assim o fez Plínio Pacheco, sem que a maioria das pessoas que ali participam – por técnica teatral, emoção ou fé – percebesse.

É nessa liberdade literária que se encontra a beleza da peça de Plínio Pacheco, revelando a carga antropológica de seus personagens, que desvelam e projetam elementos eminentemente humanos em personagens que muitas vezes nos acostumamos a divinizar por estarem numa história divina. Os personagens do autor são vivos e revelam as grandezas e as misérias humanas através da beleza teatral.

A estrutura da peça teatral

Foi em 1967 que Plínio Pacheco escreveu o texto Jesus, peça em dois atos (PACHECO, 2001), que foi encenada pela primeira vez em 1968, em dois atos: o primeiro na quinta-feira e o segundo na sexta-feira santa. A partir de 1969, José Pimentel assume a direção cênica e, com a finalidade de abreviar o tempo total do espetáculo, realiza vários cortes ao texto original, o que viria a se repetir no ano de 1970. Em 1989, concluída a renovação cenográfica pela qual passou Nova Jerusalém, o texto mais uma vez sofreu cortes e modificações para se adaptar à nova “geografia” dos cenários da cidade-teatro.

Neste artigo, vamos trabalhar com o texto original. Ele é composto de dois atos, compostos – por sua vez – de um total de 58 cenas1 . O primeiro contém 31: Prólogo, Tentação, O messias, Os discípulos, O sermão, Deixai as crianças virem a mim, Cura da hemorroíssa, Cura dos cegos, A embaixada de João Batista, A oração, O caminho da Judeia, Entrada de Jesus em Jerusalém, Expulsão dos vendilhões, Discussões no Templo, Moeda do tributo, A violação do sábado, A luz do mundo, O Filho de Deus, Cura do cego de nascença, Sinal de contradição, A adúltera, Anátema aos fariseus, Profecia contra Jerusalém, O sinédrio, A traição, A última ceia, A agonia no Horto, A segunda tentação, O beijo de Judas, A prisão, Perante Caifás, A negação de Pedro e Primeiros ultrajes. O segundo compõe-se de 27: Jesus perante Pilatos, Perante Herodes, Volta Pilatos, Jesus ou Barrabás, A flagelação, A coroa de espinhos, Outros ultrajes, Eis o homem, Pilatos solta Barrabás, O poder da morte, Pilatos lava as mãos, O cortejo da morte, O caminho da cruz, Lamentação das mulheres, Verônica, O cireneu, A morte de Judas, A crucificação, A subida da cruz, A partilha das vestes, Derradeiros ultrajes, A morte na cruz, A descida da cruz, Mater dolorosa, A Ressurreição e A vida nova. O conjunto de cenas totaliza, segundo o olhar de Plínio Pacheco, a expressão dos principais momentos da vida e paixão de Jesus.

O personagem de Judas

Para o que propomos nesta análise, deter-nos-emos especialmente em cinco cenas nas quais aparece o personagem de Judas. No primeiro ato, temos: 25 (A traição), 26 (A última ceia), 28 (A segunda tentação) e 29 (O beijo de Judas); no segundo ato: 17 (A morte de Judas).

Para esse conjunto de cenas, é importante perceber que a aparição do personagem em cada uma delas cria um fio condutor que o vai revelando ao longo do espetáculo. É marcante perceber, por exemplo, que na cena 25 do primeiro ato, ao ser questionado por Nicodemos por que entregaria seu mestre, a resposta contundente de Judas é: “Porque o desencanto entrou no meu coração” (PACHECO, 2001, 85); na cena 17 do segundo ato, o personagem reafirmará: “Só desencanto em meu coração” (PACHECO, 2001, 193).

A beleza do personagem de Judas na composição do texto se dá por sua coerência dentro do enredo. Judas conjuga em si suas convicções e sentimentos tão humanos como angústia, medo, desilusão, desencantos, que geralmente não são expostos por nós. Ele revela as misérias humanas que cada um de nós traz consigo em maior ou menor grau e que muitas vezes, tal como acontece com esse personagem, a relação com o transcendente não nos permite superar.

Ato I – Cena 25: A traição

A cena denominada A traição (PACHECO, 2001, p.82-85) discorre sobre o diálogo de Judas com o Conselho de Judeus. Ainda que no cenário estejam presentes diversos atores figurantes, a cena é centrada nas falas dos personagens de Anás, Caifás, Arimateia, Nicodemos e um príncipe.

Judas entra abruptamente na Sala do Conselho e, após ser repreendido por Caifás, diz sobre o que quer falar e se apresenta: “É sobre o Nazareno. Eu sou Judas de Keriot, seu discípulo. É sobre o Nazareno. Sei que quereis prendê-lo” (PACHECO, 2001, p. 82). Na sequência, Judas negocia: “Quanto me dais… Quanto me dais para eu vos entregar Jesus?” (PACHECO, 2001, p. 83). Nicodemos, atônito, lhe pergunta: “Vais trair Jesus de Nazaré?”. Então, de acordo com o valor proposto de 30 siclos de prata, Judas concorda de maneira inusitada: “Bem, se achais que é justo, dai-me a recompensa; senão, não penseis mais nisso…”. Diante das informações sobre o local e a hora de encontrar Jesus, Arimateia exclama: “Judas, pelo preço de um vil escravo entregas teu mestre!”. Nicodemos segue: “Judas, teus pés correm para o mal e se apressam em derramar sangue. Por quê?” (PACHECO, 2001, p. 85), ao que Judas responde: “Porque o desencanto entrou no meu coração”. E ele sai de cena pela escadaria lateral.

Para Pacheco, o espanto de seus interlocutores, Arimateia e Nicodemos, ao questionarem Judas sobre a entrega do mestre pelo valor de um escravo, não os deixou perceber que a questão não era o valor. O texto revela que Judas entregaria seu mestre mesmo sem a recompensa, pois a razão não era o valor proposto em si, mas o desencanto que entrou em seu coração, o que não lhe permitiria mais segui-lo

Ato I – Cena 26: A última ceia

A cena A última ceia (PACHECO, 2001, p. 86-94) é uma das mais marcantes e belas de todo o espetáculo pelo conteúdo da celebração da partilha do pão e do vinho, pela revelação daquele que haveria de trair Jesus e pelo final em que todos os atores que compõem a mesa com Jesus, estáticos, “formam” a pintura A última ceia, de Leonardo da Vinci.

No desenrolar da cena, Judas entra por último e sorrateiramente pela arcada lateral, sentando-se à frente da mesa. O diálogo de Jesus com os demais continua sobre aquele que iria traí-lo. É significativa a fala de Tomé: “Aqui onde há somente amor por ti, não poderá estar o fel do traidor” (PACHECO, 2001, p. 87). E Jesus segue descrevendo seu traidor: aquele cuja “[…] mão que me há de entregar está à mesa comigo” (PACHECO, 2001, p. 88), “um de vós que mete comigo a mão no prato…”, aquele a quem “mais valeria […] não ter nascido” (PACHECO, 2001, p. 89) e, finalmente, “[…] aquele a quem eu der um pedaço de pão molhado” (PACHECO, 2001, p. 89).

Em seguida, Jesus serve a todos o pão seco e todos “comem de cabeça baixa em silêncio” (PACHECO, 2001, p. 90). Ao anunciar que “isto é meu corpo”, Jesus vai levando um pedaço de pão à boca, desvia o gesto e o passa a Judas, que vai levando a mão ao prato. Jesus, com a mão livre e com o mesmo gesto, toma o jarro de vinho à frente de Judas e enche a taça. Após esse gesto, Judas pergunta: “Sou eu, porventura?”. Jesus responde: “Tu o disseste. Tu o deves saber. O que tens de fazer, faze-o depressa”. E segue a cena da instituição da Eucaristia.

Interessante observar o momento em que o autor do espetáculo coloca a confirmação do traidor de Jesus: exatamente no meio da instituição do pão e do vinho como corpo e sangue de Jesus. Por ocasião e no entorno da Eucaristia estamos todos nós, que podemos ser os traidores de Jesus, mas que, ao mesmo tempo, teremos sempre a possibilidade de não o fazer. O texto não nos revela se concretamente Judas tomou o pão molhado; contudo, seu diálogo com Jesus revela a possibilidade dada a ele de voltar atrás. Ao dizer “tu o disseste, tu o sabes” e por não haver reação contrária de Judas, Jesus lhe recomenda fazer depressa o que era seu propósito.

Outro elemento importante desta cena é a fala de Tomé: “Aqui onde há somente amor por ti, não poderá estar o fel do traidor” (PACHECO, 2001, p. 87). Justo aquele a quem os textos bíblicos revelarão como o que “duvida” da ressurreição de Jesus, vai afirmar o amor incondicional por ele. Tomé e Judas revelam ao expectador que o “amor incondicional por Jesus” é uma exigência que supera os limites humanos.

Nossa capacidade de amar não está na mesma categoria de entrega e incondicionalidade da capacidade de amar de Deus. Ampliando o escopo, encontraremos outros personagens como Simão Pedro, que o nega três vezes, revelando essa mesma dinâmica. A bem dizer, se tomarmos a descrição da paixão do evangelista João, o único discípulo que continuava aos pés da cruz, ou seja, até o final, era este o discípulo a quem Jesus amava (Jo 18,25) e que a tradição atribuiu a João Evangelista, mas que pode ser também cada um de nós que somos desafiados não à prática do amor incondicional, mas à prática do aperfeiçoamento da forma de amar à medida que superamos nossas limitações humanas.

Ato I – Cena 28: A segunda tentação – e Cena 29: O beijo de Judas

Posterior à Agonia do horto, a cena A segunda tentação (PACHECO, 2001, p. 96-99) é diretamente ligada à cena 29 – O beijo de Judas (PACHECO, 2001, p.100). A cena 26 começa quando Jesus questiona a Deus e, simultaneamente, aceita fazer Sua vontade ao beber Seu cálice. De maneira significativa, Judas surge na cena, incitando ao mesmo tempo que põe em dúvida a fidelidade de Jesus ao Pai ao afirmar: “Tu não beberás, se esta for a tua vontade. Tu só beberás, se esta for a tua vontade” (PACHECO, 2001, p. 96). O jogo de palavras para o sim ou para o não coloca sobre Jesus a única decisão de realizar a vontade de Deus. A vontade é de Deus, mas a liberdade é de Jesus. Ao final, Judas deseja colocar em dúvida a grandeza de Jesus e questiona ao expectador: “Porventura é este aquele homem que pôs a terra em confusão e fez estremecer os reinos?” (PACHECO, 2001, p. 96).

E volta a questionar Jesus, revelando ao mesmo tempo as razões de seu desencanto: “Foste longe demais como homem, provocaste os fortes e poderosos, ficaste perto demais de Deus, desiludiste os fracos e escravizados. Os que te odeiam levantaram a cabeça e conspiram contra ti. Um tropel de poderosos atenta contra tua vida” (PACHECO, 2001, p. 97). A forte fala de Judas demonstra que a passagem de Jesus não mudou em nada a vida das pessoas Para cada colocação de seu interlocutor, Jesus responde com as expressões do texto de Mateus 5: os bem- -aventurados serão justiçados, saciados, possuirão a terra, consolados, serão chamados filhos de Deus e finalmente verão a Deus.

Em contraponto, as falas de Judas são contundentes ao demonstrarem que não houve mudanças: “Continua esquecido o humilde e frustrada a confiança dos infelizes. Os famintos roem ervas no deserto e, ladrando como cães, percorrem as cidades em busca de comer, uivando quando não se fartam” (PACHECO, 2001, p. 97). “Os órfãos são violentados, despojados os pobres e roubadas as viúvas. Acaso levantaste do pó o desvalido?” (PACHECO, 2001, p. 98). “Não tiveste força para derrubar os que estão nos tronos. Deste aos homens amor e palavras, quando eles pediam ódio e pão. Fizeste sonhar com a utopia do céu no coração, quando na boca eles têm o travo da terra” (PACHECO, 2001, p. 98).

A certeza de Judas na incapacidade de transformação de Jesus é expressa com violência e imenso desprezo: “Como um homem morrerás e cairás como um príncipe qualquer. Ai de ti, Jesus, Carpinteiro de Nazaré! Porque nem do Oriente, nem do Ocidente, nem do deserto, nem dos montes, te virá auxílio! Ai de ti! Homem ferido por Deus e humilhado!” (PACHECO, 2001, p. 99). Judas julga a Jesus pelas mesmas limitações que percebe em si mesmo, que expressará no diálogo com seu alter ego.

Finalmente, Judas declara mais uma vez a razão de seu desencanto: “Jesus de Nazaré! Tu não beberás! Basta que dês aos homens o que eles querem. Dá-lhes ódio, em vez de amor, dá-lhes guerra em vez de paz, dá-lhes terra em vez de céu!” (PACHECO, 2001, p. 99). Não se pode afirmar que Jesus não atendeu à expectativa humana; todavia, revela-se que não atendeu a nenhuma expectativa contida no coração de Judas. A cena se encerra com duas compreensões de vontade afirmadas na mesma frase por Jesus e Judas: “Seja feita a tua vontade” (PACHECO, 2001, p. 100).

A seguinte cena de número 29, intitulada O beijo de Judas, inicia- -se pela afirmação de Jesus, ao ouvir os passos que se aproximavam dele: “Eis que se aproxima o que me há de entregar” (PACHECO, 2001, p. 100). Jesus pergunta a Judas: “Amigo, a que vieste? Judas, com um beijo atraiçoas o Filho do Homem!” (PACHECO, 2001, p. 100), e segue a cena do diálogo de Jesus com os templários até ele sair preso.

Mais uma vez, mostra-se a contraposição na forma e na intenção de relação entre os dois personagens: Jesus trata por “amigo” aquele que o vai entregar a seus algozes.

Ato II – Cena 27: A morte de Judas

A cena 27 (PACHECO, 2001, p. 187-195) revela o ápice do personagem de Judas, que veio sendo construído durante todo o decorrer do espetáculo e que, como vimos anteriormente, desvela sua frustração ou, no seu dizer, seu desencanto em relação a Jesus.

Longa e impressionante, a cena revela o diálogo de Judas com o personagem do denominado Diabo, mas que poderíamos inferir ser um alter ego ou mesmo a sua consciência. O texto é construído com vários paralelos ao personagem de Jesus e passagens bíblicas, o que lhes dá um novo significado ou ao menos coloca em dúvida muitos dos sentidos já estabelecidos pelo expectador mais atento

A primeira fala de Judas a seu interlocutor é apresentar-se: “Aqui está um homem: eu, Judas. Eu mesmo, quando me recordo, me assombro e estremece toda minha carne” (PACHECO, 2001, p. 187). Isso revela o horror que ele tem em pensar na sua própria condição. Pilatos especifica Jesus como “Eis o Homem” (Jo 19,5), ao passo que Judas se refere a si mesmo com “um homem”, com as limitações de qualquer homem.

Segue Judas perguntando com ironia: “Onde ides com tanta pressa? Ver um deus morrer? (Deus escrito com letra minúscula mesmo). Eu traí um, sabíeis? Eis que seu Pai, o Deus dos Exércitos, me disse: ‘Judas traidor, tu és o símbolo do mal!’” (PACHECO, 2001, p. 188).

Judas aceita ser o traidor, mas advoga a favor de si, lembrando a Deus que ele é sua obra: “Mas lembra-te também que Judas, que é tudo isso, é teu filho e tua obra. Pai traidor! Por que me fizeste mau? Por que não pudeste me fazer bom?” (PACHECO, 2001, p. 189). Para Judas, Deus é o Deus da morte, ao passo que o de Jesus é o da vida, e vida em abundância. Afirmará Judas: “Oh! Basta de viver na morte! Basta de viver dos mortos! Por que se dá vida aos amargurados de ânimo?” (PACHECO, 2001, p. 189).

Entra em cena o demônio, que se apresenta e se identifica com a condição de Judas: “Quem és?”. “Teu irmão de amargura”, responde ele. “Teu irmão de amargura, não ouviste?” (PACHECO, 2001, p. 190). A essa frase Judas responde: “Então não tem nada a dizer-me”. Certo das razões de suas angústias, Judas procurava um interlocutor que pudesse fazê-lo compreender e experienciar o sentimento oposto a elas.

Na sequência do diálogo, o Demônio insiste em compreender por que Judas traiu Jesus. Interessante observar que as expressões para o personagem que devem traduzir a cena são: desvairado, frio e marcante, denunciante e horrorizado, revoltado, e gritando com ódio. Judas revela ao final como eram na origem o seu ser e a sua compreensão de vida, ao perguntar ao Demônio: “Dize-me: tu poderias viver assim? Sem ódio e sem vingança, sem pecado e sem remorso, sem o que justifique a vida?” (PACHECO, 2001, p. 191), ao que o este responde: “Não estamos falando do mim…”. Judas rebate: “Nem de mim” (PACHECO, 2001, p. 191). Como se não quisesse aceitar sua condição ou sua incapacidade de mudança, ou mesmo como se quisesse revelar ao expectador que ainda havia algo de humano em si mesmo, Judas expressa numa grande crise: “De repente, tudo ficou vazio. Não sei onde estão o começo e o fim. Nem o porquê das coisas. Apenas um imenso cansaço, que me escorre como água pelo corpo e se injeta como óleo pelos ossos” (PACHECO, 2001, p. 193).

Nesse momento, vem a primeira oferta do Demônio: “Vem comigo… Terás descanso para teu corpo…” (PACHECO, 2001, p. 191). É a primeira vez que o Demônio faz referência à entrega do corpo, ao passo que Judas rebate, fazendo referência à alma: “É inútil. É a alma também… Um mar de amargura entrou-me pela boca e afoga-me o coração”.

Não adiantaria descansar apenas o corpo se a alma (consciência) continuasse viva. A concepção de Judas era do todo do ser humano, enquanto que a do Demônio era parcial. Ainda assim, este insiste com o convite: “Vem. É para o descanso absoluto. Mas, antes, destrói o teu Deus! Liberta-te!” (PACHECO, 2001, p. 192). Segundo o Demônio, a razão da dor de Judas era a prisão na qual Deus o havia colocado, ao passo que o Deus de Jesus era o da liberdade, da verdade e da vida (Jo 14,6).

Judas responde: “Não é fácil destruir um deus (letra minúscula). Tão difícil quanto construir um outro. Não tens alternativa. E qual é o teu descanso absoluto?”. Responde o Demônio: “O que a morte dá” (PACHECO, 2001, p. 192).

O Demônio oferece a Judas a mesma morte que ele próprio via no Deus de Jesus, que ele afirma ter visto no início da cena e recusa três vezes: “Não! Morte não! Não à morte!” (PACHECO, 2001, p. 193). Ao mesmo tempo, conclui que clamar ou calar não aplacará a dor que traz consigo, uma vez que “[…] não há mais risos nestes lábios, nem canções nestes ouvidos, nem mais pranto nos meus olhos. Só desencanto em meu coração!” (PACHECO, 2001, p. 193).

Com o mesmo gesto que Judas fez com Jesus, o Demônio coloca a mão em seu ombro e lhe beija a face. Afirma: “Vem, meu irmão no desespero. Vem para a grande noite do homem, onde tudo se apaga. Onde nada verás, nada ouvirás, nada sentirás. Nada: nem ódio, nem amor! Sempre nada – nem pecado, nem perdão. Apenas nada” (PACHECO, 2001, p. 194). Judas: “Acabou-se a minha fé e ela está banida de minha boca”. Demônio: “Deus não está mais contigo”.

Judas luta até o fim contra a morte, embora sucumba a ela sem forças. É emblemático que a experiência última de Jesus tenha sido a mesma de Judas, ou seja, a de abandono, diferenciando-se na entrega. O primeiro entrega o Espírito a Deus, e segundo, o corpo ao Diabo.

Elementos de escatologia cristã

Em nossa leitura, o grande diferencial entre a morte de Jesus e a de Judas, segundo Plínio Pacheco, encontra-se no elemento da entrega e no desejo de entrega. Jesus entrega o Espírito ao Pai, de forma livre, após aceitar Sua vontade (Jo 19,29). Judas entrega seu corpo contra a própria vontade, sabedor de que ela não mataria sua alma e a continuaria atormentando

Ambos têm consciência dos gestos que realizam e os gestos de cada um marcam o final de uma etapa com expectativas diferentes de futuro. Jesus confia em Deus e a Deus todo o seu Ser, apesar do sofrimento da vida, da expectativa da experiência de morte e da não certeza da ressurreição. Judas, ao entregar o seu corpo ao Demônio, acredita na oferta que lhe é dada: “Vem, meu irmão no desespero. Vem para a grande noite do homem, onde tudo se apaga. Onde nada verás, nada ouvirás, nada sentirás. Nada: nem ódio, nem amor! Sempre nada – nem pecado, nem perdão. Apenas nada” (PACHECO, 2001, p. 194).

A morte experienciada pela corda dada a Judas leva ao Nada, ao passo que é pela experiência da cruz de Jesus que cristãos e cristãs veem a possibilidade de uma vida nova que se dá pela descontinuidade de qualidade na continuidade da pessoa. Esses elementos centrais da escatologia cristã são postos à reflexão pelo texto de Plínio Pacheco. A perspectiva niilista de Judas se opõe à de esperança de Jesus, que será desvelada a cada um que fará a experiência futura com o Ressuscitado. A cruz torna-se símbolo (que, de imediato, é símbolo de escândalo para alguns), torna-se experiência de transformação.

A morte de Cristo: possibilidade de Salvação

Contudo, a significação da morte de Jesus é antagônica à sartriana. Ela é sinal de esperança. Neste texto, vamos analisá-la a partir do pensamento do teólogo espanhol Juan Luis Ruiz de la Peña. A particularidade desse autor foi a sua obra maior sobre o tema da escatologia, denominada La pascua de la creación4 (2002), que se destacou por ter sido escrita durante o processo de sua própria morte. Ruiz de la Peña faleceu em 1996, aos 69 anos, depois de um longa luta contra um câncer. Essa obra tornou-se um clássico e, ao mesmo tempo, um livro póstumo que consumou o tema que ele pesquisou durante toda a vida. Neste texto, utilizaremos especialmente La pascua de la creación, sem excluir outros textos do autor.

Para Ruiz de la Peña, a morte, antes de ser um problema escatológico, é um problema antropológico e um dos mais cruciais para a hermenêutica da condição humana, como contempla o Concílio Vaticano II: “Ante la muerte, el enigma de la condición humana alcanza su culmen. El hombre no sólo es atormentado por el dolor y la progresiva disolución del cuerpo, sino también y aún más, por el temor de la extinción perpetua” (GS, 18).

É a preocupação antropológica que abre a perspectiva ao desenvolvimento teológico, já que na morte se encontra a possibilidade de o homem não ir à extinção perpétua. Nela, segundo Ruiz de la Peña, começa o eschatón de cada ser humano, em que se dão todas as possibilidades de salvação. Dito de outra forma: para participar da salvação de Deus, é imprescindível que haja a morte. Ela assume então um sentido de esperança de realização, e não simplesmente de fim. Considerando tal perspectiva, nosso autor realiza um estudo do pensamento escatológico em duas vertentes: através da análise dos textos bíblicos e através do pensamento da tradição da Igreja.

Em relação ao estudo bíblico, podem-se destacar duas séries de textos: a primeira demonstra que na morte termina o tempo de decisão e que a sorte da pessoa depende das opções realizadas em sua existência histórica que se finaliza no evento mortal, e a segunda trata a morte como começo do estado definitivo em continuidade e confirmação à primeira, como exposto a seguir:

1 – A morte como termo de prova – O Antigo Testamento apresenta a doutrina da retribuição, em que as obras realizadas no tempo de vida determinam o mérito ou o demérito da pessoa. Aos habitantes do Sheol, o lugar dos mortos, não é permitido qualquer tipo de atividade decisória. As decisões ultramundanas de Deus em relação ao ser humano são sempre respostas da justiça divina às decisões adotadas durante a vida (Sb 2, 5). Em consonância com o livro da Sabedoria, o Novo Testamento, desde a perspectiva do juízo, considera como obras ligadas a seu tempo: Mt 13,37ss; 24,34ss; Jo 3,17ss; 5,29; 2,47. Para nosso autor, os textos bíblicos que melhor refletem essa ideia no sentido de irrepetibilidade e decisão na vida que culmina na morte, são dois da teologia paulina: 2Cor 5,10 – “porque es necessário que todos seamos puestos al descubierto ante el tribunal de Cristo, para que cada cual reciba conforme a lo que hizo durante su vida mortal, el bien o el mal” – e Hb 9,27 – “está establecido que los hombres mueran una sola vez (hápax), y luego (metá toúto) el juicio” (RUIZ DE LA PEÑA, 2002, p. 249).

2 – O começo do estado definitivo – Apresenta-se a ideia da morte, que introduz o ser humano no estado definitivo de vida ou morte eterna. Isso é provavelmente desconhecido no Antigo Testamento, pois nenhum judeu esperava a salvação antes do fim dos tempos, já que a esperança escatológica de Israel estava na expectação do Reino de Deus como magnitude estritamente futura da salvação, que era a promessa não cumprida até a chega do Messias, levando a história à sua consumação (RUIZ DE LA PEÑA, 1973, p. 293). Em contrapartida, no Novo Testamento, há um deslocamento do enfoque temporal da expectação: do futuro ao presente. A análise do texto referente ao diálogo de Jesus com o bom ladrão (Lc 24,42ss) sintetiza a expectativa da salvação judia pendente da instauração messiânica do Reino de Deus. Mediante a resposta de Jesus – “hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 24,43) –, a salvação definitiva, para os que optam pela comunhão com ele, é transformada de uma realidade meramente escatológica para a atual. O evangelista pensa em Cristo como o já da salvação. A morte é mais do que aguardar uma simples salvação: pela morte de Cristo, as portas do paraíso se abrem para que o cristão possa entrar na vida eterna. Afirma Ruiz de la Peña: “El cumplimiento de la esperanza mesiánica no se demora hasta el éscathon: es realidad operante desde hoy del sacrificio de Cristo. […] el éscathon portador de la salvación ha entrado ya en la historia a partir de la hora nona del Calvario; […] el hoy de nuestro texto apunta al ‘desde ahora’ del cumplimiento frente al ‘algún día’ de la promesa” (RUIZ DE LA PEÑA, 2002, p. 251).

Na escatologia paulina, dois textos são considerados clássicos para este tema: 2 Coríntios 5,8, que indica que o importante é sair do corpo que não é soma, mas corpo inteiro espaço-temporal, para estar junto ao Senhor, sendo a comunhão imediata com Cristo o ponto culminante do futuro salvífico desejado pelos cristãos; e Filipenses 21-23, que é essencial para entender o pensamento paulino sobre esse tema, em que Paulo expressa o seu desejo e o destino subsequente à morte. Por ela é revalidada e confirmada a comunhão vital com Cristo. No Novo Testamento, surge um dado novo que acelerará o processo de evolução das ideias sobre o destino pós-mortal do homem: o evento Jesus de Nazaré, que consagra a forma ultraterrena do Antigo Testamento e proporciona a certeza de que a salvação pode ser já. A promessa passa a ser real para os vivos e assim há de ser para os mortos (Rm 8,38ss).

Na época patrística, apresenta-se a morte martirial de Cristo como meio de proximidade com ele. Essa ideia está refletida em diversos autores: 1 – Inácio de Antioquia vê em sua morte um novo nascimento e a possibilidade de vida verdadeira na união estreita com Cristo; 2 – Clemente Romano se refere a Pedro e Paulo como os que já estão em lugar de glória; 3 – Policarpo afirma que vários mártires e apóstolos estão no lugar que lhes é devido junto ao Senhor; 4 – Justino afirma que as almas dos piedosos permanecem num lugar privilegiado; 5 – Santo Agostinho se inclina a pensar que a retribuição não terá lugar até a ressurreição, e 6 – São Cipriano sustenta que todos os justos, imediatamente depois da sua morte, são introduzidos na bem-aventurança celestial. Discute-se, enfim, se ver a Deus pode demorar e em que tempo se dará, se somente se verá a Deus na parusia ou se isso será imediato na ressurreição. No conjunto das teses dos padres, expressa-se a possibilidade dos dois tipos de reconhecimento, ou seja, de uma retribuição imediata e da dilatação de tempo para esse fato. Essas diferenças costumam ser explicadas pelas dificuldades a ideia de retribuição imediata impõe, através do problema antropológico de não conceber o ser humano de forma unitária, e, por outro lado, pelo problema teológico acerca do juízo e da ressurreição tão repetida nas Escrituras. Procedendo ao que considera uma leitura do ponto de vista de quem crê, nosso autor afirma que todas as perguntas filosóficas e teológicas somente encontram resposta para a morte se considerarem a fé na ressurreição e na vida eterna. O ser humano de humanidade e natureza pecadora está submetido, segundo as Escrituras, a uma morte como pena do pecado (como a teologia tem sustentado), e não apenas como um dado biológico contra o qual não pode rebelar-se. No entanto, Cristo Jesus morreu a morte humana de outro modo: como supremo ato de liberdade e liberalidade pelos demais, com a certeza da fé em Deus vivo, na esperança da ressurreição e na caridade para com os irmãos. A morte, desde então, muda de sentido: já não é visibilidade de culpa ou pena de pecado, mas um ato de amor livre, de fé e de esperança. Essa mudança de sentido se dá em Cristo, que morreu para ressuscitar. A ideia de ser-para-a-morte é substituída pelo desejo original de Deus de que o ser humano seja um ser-para-a-vida. O cristão, assim como Cristo, não morre para o nada, mas para estar vivo em Deus.

A morte cristã, então, segundo Ruiz de la Peña, “no es fin, sino tránsito; no es término, sino pascua, paso de la forma de existencia provisional a la forma de existencia definitiva” (RUIZ DE LA PEÑA, 2002, p. 266). É, como afirma Paulo, a possibilidade única da existência. O cristão é aquele que reproduz na carne o mistério de Cristo: assim como a morte de Cristo foi um ato supremo de sua história temporal, também o será a dos cristãos, vivida desde o Batismo, quando foram insertados na morte mesma de Cristo. O batizado já não vê na morte o fim de uma existência, mas a vê, por configuração em Cristo, como entrega livre e amorosa na esperança, alentada pela fé na ressurreição. Afirma Ruiz de la Peña: “La muerte para él no es pena, sino un conmorir con Cristo para conresucitar con él” (RUIZ DE LA PEÑA, 2002, p. 266).

A morte há que ser vivida pelo cristão de forma diária desde o Batismo, na expectativa ativa e livre das paixões inerentes à condição humana, na participação da Eucaristia (memorial da morte do Senhor), que, por ser sacramento eficaz, realiza no cristão a apropriação da morte tal e como se deu em Cristo. Por esse caminho, o cristão vive sacramentalmente a antecipação da entrega completa. Dessa forma, a morte cristã é a morte-ação, e não passividade ante o castigo; é a morte aceita e querida livremente no processo da existência. Nesse sentido, a Unção dos Enfermos sela esse morrer no Senhor com a consagração da enfermidade mortal e como signo eficaz de saúde do ser humano inteiro na ressurreição. As virtudes teologais complementan como fator decisivo nesse processo. Segundo Ruiz de la Peña: “Sólo la fe puede alumbrar un comienzo en lo que aparenta ser el fin; sólo la esperanza permite desplazar ante él la angustia para dar paso a la serena confianza, y sólo la caridad otorga el impulso preciso para la entrega total” (RUIZ DE LA PEÑA, 2002, p. 267)

A ação de morrer é um ato que totaliza e consuma a vida. Não pode ser um ato religiosamente neutro. Sempre será um ato teologal porque aí, onde a morte é vivida como trânsito, é onde opera a graça de Deus. É também a morte espaço livre e privilegiado da confissão do ser humano no Deus vivo, pois nela se reconhece que a vida teve significado, já que o sentido da morte é aquele que cumpre a vida. Ao reconhecer-se como criatura obediente nos próprios limites (não como Adão, que queria ser como Deus), como aquele que se identifica na condição de contingente dependente da ação de Deus, o ser humano reconhece a Deus mesmo. Ruiz de la Peña afirma: “Y esto sucede, también en su nivel más radical, cuando se acepta la muerte, con todo lo que ella conlleva de límite infranqueable y de revelación de la finitud del yo humano” (RUIZ DE LA PEÑA, 2002, p. 268). A morte do cristão se complementa com a ideia da morte-ação, isto é, da consciência da finitude que nos faz tomar postura frente a ela. Com efeito, à medida que o tempo transcorre, o ser humano vai realizando opções ao longo da vida, e quando o futuro se esgotar, ele se encontrará com o acúmulo de realizações que não mais poderão ser mudadas. Estas serão, segundo o referido autor, “el yo llegado a sí mismo” (RUIZ DE LA PEÑA, 2002, p. 269).

Ou seja, a morte do ser humano não é um evento pontual, mas um ir fazendo-se ao longo da vida, numa sucessão de atos de construção de seu ser pessoal, até culminar nela. Na estrutura humana, é imanente a possibilidade de que um dia chegue a consumação da vida: é essa consumação que dá ao ser humano a possibilidade da salvação e é aí que a mensagem bíblica assume a característica de ser o que é: salvação. Nesse sentido, Deus criou o ser humano para a salvação e, portanto, com capacidade de ser criatura ontologicamente ativa e capaz de uma opção definitiva, habilitado para chegar ao fim de forma consciente, ainda que o eu humano esteja sempre inacabado. A salvação oferecida por Deus completa o sentido da morte como aquilo que dá ao ser humano a possibilidade de permanecer durante a eternidade no que ele quis ser durante o tempo de vida.

Em outras palavras: com seu amor, Deus completa o ser humano, que se abre a Ele naquilo que não conseguiu ser durante a vida temporal, de modo a que possa sê-lo na eternidade.2 Ruiz de la Peña acrescenta: “Si la vida tiene sentido, y no es el juego absurdo que pensaba Sartre, la muerte debe dar al hombre el permanecer durante la eternidad en lo que quiso ser durante el tiempo; y ello no en virtud de una postrera y aislada decisión […], que evacuaría irremediablemente al vida misma, sino en cuanto suma totalizante de las actitudes vividas y acumulación sin futuro del entero pasado, convertido ya, de forma irreversible, en presente eterno” (RUIZ DE LA PEÑA, 2002, p. 270).

São as divergências de posições acerca do viver e do morrer apresentadas neste texto que guardam a sua riqueza. De visões diametralmente opostas, ainda que o personagem de Judas desvele toda a dureza dos sentimentos humanos, para os cristãos é o significado da passagem pela experiência de morte realizada por Cristo que nos abre a possibilidade de ressignificar nossa compreensão de viver e morrer.

Contudo, é importante ressaltar que, ao final, a morte se apresenta como uma solução para ambos. Para Judas, é um ponto de chegada e da finalização de uma dor insuportável, ao passo que para Jesus é como um ponto de início de uma vida nova. O primeiro não supera as limitações humanas para encontrar um sentido maior para sua existência. Já o segundo é confortado pela confiança que o leva à entrega de seu espírito a Deus.

Em Jesus, a morte perde seu caráter existencialista e assume uma positividade que, embora não elimine a dor da perda, abre em nós a esperança na ressurreição realizada primeiramente por Deus na pessoa de Jesus. Com ela, podemos visualizar a possibilidade de que a vida não foi em vão e o peso da construção de nossa história pessoal não é unicamente para este espaço histórico. A morte de Jesus nos coloca frente a uma continuidade descontinuada de realizarmos outra experiência no espaço meta-histórico, a experiência de estarmos de forma plenificada em Deus.

Referências

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Temas actuales de escatología. Madrid: Libros Palabra, 2003.

CONSTITUIÇÃO PASTORAL GAUDIUM ET SPES. Sobre a Igreja no mundo atual. Disponível em: www.vatican.va. Acesso em 09 de maio de 2020.

OLIVEIRA, S; QUINTANILHA, J. Os sertões. Letra do samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Em Cima da Hora, Rio de Janeiro, 1976.

PACHECO, Plínio. Jesus. Peça em dois atos. Recife: ED-micro, 2001.

RICŒUR, Paul. Temps et récit I. Paris: Éditions Seuil, 1983.

SARTRE, J. P. L’être et néant. Paris: Gallimard, 1948.

SARTRE, J. P. L’existentialisme est un humanisme. Paris: Gallimard, 1946.

SARTRE, J. P. La nausée. Paris: Gallimard, 1938.

RUIZ DE LA PEÑA, Juan L. El hombre y su muerte. Antropología teológica actual. Burgos: Aldecoa, 1971.

RUIZ DE LA PEÑA, Juan L. El último sentido. Madrid: Marova, 1980.

RUIZ DE LA PEÑA, Juan L. La muerte, destino humano y esperanza cristiana. Madrid: Fundación Santa María, 1980.

RUIZ DE LA PEÑA, Juan L. La otra dimensión. Escatología cristiana. Santander: Sal Terrae, 1986.

RUIZ DE LA PEÑA, Juan L. La pascua de la creación. Escatología. Madrid: BAC, 2002.

RUIZ DE LA PEÑA, Juan L. El esquema alma-cuerpo y la doctrina de la retribución. Reflexiones sobre los datos bíblicos del problema. Revista Española de Teología, RET, 973, p. 293-338.

Notas

[1]As grafias utilizadas referentes à peça serão copiadas aqui tal como os originais do texto da peça teatral.

[2]Em Congregação para a Doutrina da Fé, Temas actuales de escatología, p. 86, afirma-se sobre a salvação de si próprio: “[…] su principal error consiste en la negación de la soteriología cristiana, que el alma pueda salvarse por su esfuerzo propio. Afirmar eso es mantener una soteriología autoredentora, completamente opuesta a la soteriología héteroredentora cristiana”.