Entre a Mística e a Filosofia:
a leitura e a escrita na vida e
na obra de Francisco Rivat
Between Mystique and Philosophy:
reading and writing in the life
and work of Francisco Rivat
Fabiano Incerti*
*Doutorado em Filosofia
pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
Professor do Programa
em Pós-Graduação em
Filosofia e diretor do
Instituto Ciência e Fé
da PUCPR. Contato:
fabiano.incerti@yahoo.com
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Resumo
O objetivo deste artigo é mostrar como
o Irmão Francisco Rivat, primeiro superior
geral da Congregação dos Irmãos Maristas,
a despeito de certa imagem de ingenuidade
espiritual e moral, desenvolveu um sofisticado modelo de vida espiritual, que, ancorado numa sólida tradição “místico-ascética”
de exercícios e práticas de constituição de
si mesmo, em especial a leitura e a escrita,
transformou-se numa “arte de viver”, abarcando toda a sua existência. As suas mais de cinco mil páginas escritas, distribuídas em vinte
e dois carnets, que contém desde notas espirituais até receitas de cerveja, revelam uma
personalidade que, ao mesmo tempo em que
crescia na fama de santidade se revelava frágil diante o desafio de levar à frente uma obra
que crescia vertiginosamente. Se as recentes
pesquisas têm revelado que podemos tê-lo, a
partir de seus textos místicos ao lado de João da Cruz e Tereza D’Avila, a novidade talvez esteja, ao olharmos para seu modo
de vida, em podermos colocá-lo ao lado de Epicuro, Sêneca, Marco Aurélio,
entre outros.
Palavras chave:Exercícios espirituais; mística-cristã; filosofia antiga; Ir. Francisco Rivat.
Abstract
The purpose of this article is to show how Brother Francisco Rivat, the first
Superior General of the Marist Brothers Congregation, despite a certain image
of spiritual and moral ingenuity, developed a sophisticated model of spiritual life,
which, grounded in a solid “mystical-ascetical” tradition of exercises and practices of one’s constitution, especially reading and writing, has become an art of
living”, encompassing its entire existence. His more than five thousand written
pages, distributed in twenty-two carnets, containing from spiritual notes to beer
recipes, reveal a personality that, while growing in the fame of sanctity, was fragile in facing the challenge of advancing work that grew dramatically. If recent
research has revealed that we can have him, based on his mystic texts, alongside João da Cruz and Tereza D’Avila, the novelty may be, when looking at his
way of life, in being able to put him beside by Epicurus, Seneh, Marco Aurelio,
among others.
Keywords:Spiritual exercises; mystical Christian; ancient philosophy; Brother Francisco Rivat.
Introdução
O personagem principal deste artigo é Gabriel Rivat. Religioso da Congregação dos Irmãos Maristas, ele nasceu em 12 de março de 1808, no pequeno povoado de Maisonettes, no Departamento de Loire (França). Aos 11 anos de idade ingressa na instituição que a pouco tempo havia sido fundada pelo padre francês Marcelino Champagnat, com objetivo de oferecer educação e catequese a meninos e jovens do ambiente rural, numa França devastada após a Revolução. Em 1819, o adolescente emite seus primeiros votos religiosos e assume o nome de Irmão Francisco, desempenhando uma série de funções, entre elas a de secretário de Champagnat. Um pouco antes da morte deste em 1840, é eleito diretor geral e mais tarde superior geral, permanecendo no cargo por vinte anos. Morre na conhecida como casa-mãe de Notre Dame de l’Hermitage1 em 22 de janeiro de 1881.
Um olhar sobre sua biografia mostra que mesmo cumprindo com regularidade sua tarefa, foi um superior pouco apreciado por seus irmãos de vida religiosa, tornando-se inclusive, por conta das responsabilidades administrativas de uma congregação que se desenvolvia vertiginosamente, um doente crônico. Contudo, concomitantemente, crescia sua reputação de santidade. De personalidade introspectiva, era reconhecido como o “discípulo fiel” do fundador, sendo continuador do projeto originário nascido na pequena cidade de LaValla e que aos poucos se expandia por toda a França. Se a história não lhe garantiu uma imagem de líder, em especial do ponto de vista da gestão quando comparado com outros superiores gerais maristas, tem-se descoberto, gradualmente, que o Ir. Francisco carregava consigo os traços de um místico. E a partir de que elementos podemos afirmar isso?
Obcecado tanto pelo silêncio como pela escrita, sabe-se que ele deixou mais de cinco mil páginas distribuídas em 22 volumes conhecidos como Carnets2 , que contém, entre outras coisas, diários espirituais, notas de retiros, esquemas para palestras, explanações de estudos religiosos, anotações de pesquisas científicas etc. Com textos que datam de desde seus 12 anos de idade e se estendendo por toda a vida, os Carnets mostram um homem com conhecimento, ao mesmo tempo autodidata e enciclopédico, transitando entre as obras mais densas de autores místicos da Igreja até saborosas receitas de cerveja, passando por diferentes infusões de chás para toda ordem de enfermidades, já que ocupou, entre outros ofícios, a de enfermeiro na comunidade de l’Hermitage.
Levando em conta tal contexto, o objetivo deste artigo é mostrar como o Ir. Francisco, a despeito de certa imagem de ingenuidade espiritual e moral, construída na maioria de suas biografias e comum a muitos religiosos de sua época, desenvolveu um sofisticado modelo de vida espiritual, que, ancorado numa sólida tradição “místico-ascética” de exercícios e práticas de constituição de si mesmo, em especial a leitura e a escrita, transformou-se numa “arte de viver” que abarcou toda a sua existência. Com isso, sustentamos que se pode parecer normal, na medida em que seus textos místicos vão sendo estudados, tê-lo ao lado de João da Cruz e Tereza D’Avila, a novidade talvez esteja em podemos colocá-lo ao lado de Epicuro, Sêneca, Marco Aurélio, entre outros.
Dado o volume de escritos deixados pelo Ir. Francisco, teremos como base para este artigo o Carnet 303, já que contém um conjunto de temas bastante significativos em relação aos objetivos que propomos para este trabalho. Começando a escrevê-lo em 1831, ou seja, com 23 anos, suas anotações se estendem nessas páginas até 1850, que além de abordar aspectos de teologia mística ou vida espiritual, trazem uma série de resoluções pessoais e notas sobre seu sofrimento sejam as doenças de que padecia, como dores de cabeça ou estomacais, sejam os sentimentos de incapacidade para governar um instituto religioso que começava a se tornar relevante para a Igreja e para a sociedade.
É importante considerar ainda que algumas noções contidas no pensamento de Pierre Hadot, em especial suas obras Exercícios espirituais e filosofia antiga, de 1981 e O que é filosofia antiga? de 1995 e outras presentes no curso de Michel Foucault intitulado a Hermenêutica do sujeito, pronunciado no Collège de France em 1982 são, para nós, ferramentas teóricas indispensáveis para compreender o Ir. Francisco como herdeiro de uma longa tradição filosófico-teológica iniciada nas escolas pagãs greco-romanas, ou seja, 18 séculos antes do surgimento dos Exercitia spiritualia propostos por Inácio de Loyola.
Da espiritualidade pagã à espiritualidade cristã
Um olhar mais analítico sobre os escritos do Ir. Francisco nos exige compreender com mais profundidade a noção de “exercícios espirituais”, amplamente estudada por Pierre Hadot, em especial nas obras que citamos anteriormente. Tendo como fonte a filosofia pagã greco-romana, o pensador francês se utiliza tanto das ideias de “exercícios” como de “espiritualidade” para mostrar como a filosofia não se traduzia, nas escolas filosóficas da antiguidade, somente em princípios morais, mas, sobretudo, eram práticas efetivas de vida, ou seja, um modo de existir que implicava uma transformação integral do indivíduo. Nesse sentido, várias práticas ascéticas foram sendo desenvolvidas e aperfeiçoadas, das quais podemos destacar a vigilância (prosochè), a reserva no uso da linguagem, o silêncio, a leitura, a escrita, a escuta, a obediência, a premeditação dos males (praemeditatio malorum) a meditação sobre morte (meléte thanátou), o exame de consciência, bem como uma série de atitudes corporais, como a prostração, a dietética, entre outros.
Em relação à ideia de exercício, Hadot começa por distinguir “exercícios morais” de “exercícios espirituais”, compreendendo que estes últimos, diferentemente dos primeiros, não operam somente num nível gramatical ou metafísico. Pelo contrário, eles exigem um árduo e rigoroso trabalho sobre si mesmo, onde a filosofia antiga, como recorda Arnold I. Davidson “é exercício espiritual porque ela é um modo de vida, uma forma de vida, uma escolha de vida” (HADOT, 2015, p. 9). Dessa forma, não está jogo um produto puramente intelectual, tampouco somente um código externo de boas condutas, mas exercícios, que qualificados pelo “espiritual” englobam o pensamento, a sensibilidade, a imaginação e a vontade e que comprometem todo o espírito e sua forma de ser e de existir no mundo (HADOT, 2015, p. 9). Como ele mesmo nos afirma:
A palavra “espiritual” permite entender bem que esses exercícios são obra não somente do pensamento, mas de todo o psiquismo do indivíduo e, sobretudo, ela revela as verdadeiras dimensões desse exercício: graças e eles, o indivíduo se eleva à vida do Espírito objetivo, isto é, recoloca-se na perspectiva do todo (“Eternizar-se ultrapassando-se”) (2015, p. 20).
O que o pensador francês sustenta com a ideia de “exercícios espirituais” é que a filosofia na antiguidade implicava uma “conversão”, que longe de se resumir a uma teoria abstrata ou a exegese de textos, “subverte toda a vida e muda o ser daquele que a realiza” (2015, p. 22). Por isso mesmo, não cabe separar ou opor discurso filosófico e a filosofia como um modo de vida. Um está necessariamente implicado no outro, uma vez que o discurso participa do modo de vida e este, por sua vez, determina o discurso. A parresía, por exemplo, como dizer-verdadeiro exige que aquele que a diga, seja, antes de mais nada, um sujeito da verdade.
A despeito de toda originalidade própria do cristianismo, sabemos que este, provavelmente começando com os apologistas no século II, recepcionou e incorporou em seu interior uma série dos exercícios espirituais pagãos. A decorrência direta desse fenômeno foi o esforço por cristianizar tais aportes vindos da filosofia, inclusive buscando nos textos da escritura referências que pudessem justificar sua utilização. Se em sua raiz grega a filosofia era considerada, pelos filósofos cristãos, como bárbara e dispersa, no bojo da cultura nascente ela torna-se “a Filosofia”, tendo como base a noção de logos.
Embora os gregos possuíssem uma parcela do logos, os filósofos cristãos acreditavam possuir sua totalidade, encarnada em Jesus Cristo. Esse logos divino transformou-se, então, na plenitude do princípio filosófico grego, de viver em conformidade com a lei da Razão (INCERTI, p. 2017, p. 143).
A partir do século III será abundante a identificação do cristianismo como a Filosofia verdadeira, a começar pelos escritos de Clemente de Alexandria, mas também nos ensinamentos de Orígenes e de seus discípulos, principalmente entre os capadócios, como Basílio de Cesareia, Gregório Nazianzeano, Gregório de Nissa e João Crisóstomo. Hadot sustenta que grande parte dessa tradição é herdada de Filon de Alexandria, um pensador judeu do primeiro século, que apresentava o judaísmo como uma patrios philosophia. Alguns séculos mais tarde, o cristianismo se concretiza como Filosofia e a vida monástica se mostra como a realização da perfeição cristã, como vemos no século IV em Evágrio Pôntico e, no século V, em Teodereto de Ciro. Os terapeutas do deserto são considerados igualmente filósofos, na medida em que vivem na solidão meditando a Lei e devotando-se à contemplação.
Ir. Francisco e a leitura como exercício espiritual
Não sabemos o quanto o Ir. Francisco lia. Se levamos em conta somente o estilo de vida dos religiosos maristas na época, de característica mais prática e com dedicação integral às escolas às quais eram destinados e nas quais desempenhavam múltiplas funções, poderíamos intuir que ele não tinha muito tempo para essa atividade, mesmo sabendo que muitos deles, apesar disso, tenham se tornado eruditos. Entretanto, o seu perfil mais introspectivo, a qualidade de sua biblioteca, a quantidade de páginas que deixou escritas e o fato de desde muito cedo ter ocupado cargos “mais administrativos”, talvez sejam fatores que testemunhem que ele incorporou em sua rotina momentos significativos de leitura, compreendendo-a como parte fundamental de sua autoformação humana e religiosa.
Independente dessa dúvida, de saber quanto tempo o Ir. Francisco votava à leitura, o que sabemos, com base em seus escritos, é que ele a considerava um exercício espiritual. Primeiramente, porque destina algumas linhas para afirmá-la em tal condição. Ainda que poucas, veremos mais tarde que há passagens onde ele destaca a importância de se ler bons livros e como estes são alimento para a alma. Em segundo lugar, é praticamente impossível não notar, lendo os carnets, como ele faz um esforço por incorporar em sua vida o que lia, relacionando assim o conteúdo das obras à sua experiência.
Mas se sustentamos nesse artigo que o Ir. Francisco é herdeiro dessa tradição filosófica dos exercícios espirituais, hoje sabemos, que não o é diretamente por meio da filosofia. Sua biblioteca pessoal e mesmo a biblioteca da casa de l’Hermitage não continha sequer um livro sobre esse assunto, o que nos leva a concluir que ele jamais leu ou mesmo estudou diretamente alguma teoria filosófica. Contudo, em seus carnets curiosamente encontramos citações esparsas de filósofos e literatos, ora dos que foram, de alguma maneira cristianizados, como Sêneca ou Quilon de Esparta ora de iluministas que poderiam ser considerados ateus ou anticristãos. Tal aspecto nos leva a uma confirmação e a uma hipótese. No primeiro caso, o fato do Ir. Francisco desconhecer o impacto, por exemplo, que os pensamentos de Rousseau ou Voltaire têm para o cristianismo confirmam que ele realmente não tinha conhecimento de teorias filosóficas. Já a hipótese, é que tais citações são recolhidas de livros de religiosidade ou espiritualidade escritos por jesuítas, dos quais ele foi um ardente leitor, e que se aproveitavam de excertos descontextualizados para confirmar ou contrapor algumas de suas teorias religiosas. Nesse sentido, poderíamos supor que ele teve contato disperso e indireto – e, bastante cristianizado – com os filósofos e seus pensamentos.
Mas podemos nos perguntar então: como o Ir. Francisco “bebeu” de tais fontes filosófico-místicas dos exercícios espirituais? Duas possibilidades nos parecem plausíveis. A primeira delas é que o religioso marista pode ser considerado um típico representante da mística cristã de seu século, ou seja, viu nascer na religiosidade francesa uma fecunda e extraordinária literatura mística (LANFREY, 2015, p. 43). A religião com fortes traços jansenistas – escrupulosa, dogmática e piedosa – vai cedendo lugar a um “cristianismo do coração”, com fortes traços sentimentalistas e românticos, sem dúvida, muito influenciada por autores não-cristãos. Há uma atmosfera de renovação intelectual e espiritual, na qual as crenças e as experiências cristãs são permeadas pelo labor e pela vida do espírito. Além disso, em busca de uma sólida e autêntica doutrina, a espiritualidade desta época se alimenta, sobretudo, da reedição de antigos textos de autores clássicos, como São João da Cruz, Santa Tereza d’Ávila e Jean-Joseph Surin. Obras estas, presentes na biblioteca do religioso marista.
A segunda possibilidade e, para nós, bastante decisiva em nossa hipótese, está no fato de que o Ir. Francisco foi assíduo leitor3 do livro Les Vies des Pères des Déserts d’Orient, escrito pelo padre da ordem dos Mínimos de Michel-Ange Marin, publicado originalmente em nove volumes entre 1761 e 1764. Na biblioteca pessoal do religioso marista constava a edição editada em dez volumes em 1824. Esta obra mostra como os exercícios espirituais pagãos foram assumidos e ressignificados no mundo cristão a partir da experiência dos Padres do Deserto.
Na introdução do primeiro volume, ao explicar a origem do estado de vida monástico, Marin recorda que “sem dúvida, esses devotos cristãos estavam entre os chamados ascetas, ou seja, exercitadores ou combatentes, por causa de seu ardor em exercer o combate da vida espiritual”. Temos, então, nessa pequena citação, certamente conhecida pelo Ir. Francisco, a síntese conceitual de um modelo de existência que exigia muito mais do que a simples compreensão cognitiva. Pelo contrário, com a imagem dos “ascetas”, dos “exercitadores” e dos “combatentes”, temos a expressão real dos monges solitários do deserto, que a exemplo dos antigos ascetas pagãos, considerados “atletas espirituais”, consagravam sua vida a um conjunto de práticas, como viver longe das cidades, quase sempre em cavernas, as restrições alimentares e materiais, a contemplação, o rigor na leitura das escrituras, o silêncio e a prática constante do exame de consciência.
Numa citação um pouco mais longa, Marin nos ajuda a ver como a forma de vida do Padres do Deserto implicava, a exemplo das antigas escolas filosóficas pagãs, exercícios que comprometiam a totalidade do indivíduo:
Todos ocupados com o cuidado de sua alma, eles se separaram de tudo o que poderia distraí-los. Eles só trabalharam para purificar seus pecados pela contrição e penitência; para lutar contra suas paixões pela “violência evangélica”; adquirir o hábito de virtudes pela prática contínua. Eles renunciaram às riquezas, honras, confortos da vida; eles se esforçaram incessantemente para purificar seu coração dos afetos vãos da terra; eles tendiam a Deus através de todo o ardor de seus desejos; eles somaram-no pela meditação quase contínua sobre as verdades que ele revelou, e a contemplação de suas perfeições adoráveis[...] (MARIN, 1824, p. IX-X)
Em seus escritos, o Ir. Francisco nos oferece exemplos significativos de como sua leitura dos Padres do Deserto, por meio de Marin, foi fundamental para sua espiritualidade como um modo de vida. Nesse sentido, um dos casos mais emblemáticos é o de Doroteu de Gaza, que foi monge no século VI e teve um número considerado de suas instruções conservadas e publicadas numa obra conhecida como Ensinamentos Espirituais. Além da ideia da “justa medida” entre o excesso e a carência, ao modelo aristotélico, o abade sustenta o papel da consciência pessoal e da centelha divina que se faz presente em todos os seres humanos.
O religioso marista começa a ter interesse por Doroteu no breve período em que foi formador, que se inicia no ano de 1829, onde certamente os ensinamentos do abade serviram de modelo educativo para a missão que ele acabava de assumir. Ao julgar pelo número de citações que podemos identificar no conjunto de suas anotações, tal interesse se manteve por toda vida. No que se refere ao carnet 303, lemos uma citação que merece nossa atenção:
É Deus quem governa e dirige os menores eventos que nos afetam. As humilhações são os remédios próprios para curar a afetação do nosso amor-próprio. Devemos olhar aqueles que nos contrariam como verdadeiros médicos, e orar por eles.
Esta menção a Doroteu, colhida pelo Ir. Francisco do livro de Marin é interessante, tendo em vista que faz referência à metáfora médica, comum à espiritualidade pagã. É importante recordarmos, por exemplo, que as escolas de filosofia para Epicteto carregam consigo esse pleno sentido de salvação. Seu objetivo, por meio da leitura de textos clássicos e dos comentários dos mestres é levar o discípulo à percepção da própria debilidade e incapacidade a respeito do que lhe é necessário.
Antes de qualquer coisa o aluno deve procurar a escola reconhecendo sua patologia; como um doente que precisa de médico. Admitir-se doente significava o primeiro passo em direção à cura. É preciso assumir certo estado de passividade em relação às doenças da alma, como naturalmente acontece com as doenças do corpo, para se reconhecer necessitado de ajuda e de medicação. Não basta aceitar-se ignorante ou malformado, mas alguém que padece de alguns males e que deve entregar esse cuidado a um profissional. Epicteto relembra que o princípio da filosofia é o reconhecimento dos próprios limites. Dar-se conta dessa limitação é, para ele, a verdadeira e única forma de filosofia. “O princípio da filosofia, pelo menos entre quem a alcança como se deve e pela porta, é a percepção da própria debilidade e incapacidade em respeito ao necessário.” (EPICTETO. 1993, p. 188).
Não é difícil encontrarmos nas leituras que o Ir. Francisco realizava de seus autores preferidos, referências a essa condição de doente, tão primordial, no interior dessa tradição filosófico-mística, para o reconhecimento das próprias limitações. Vale recordar, como já dissemos anteriormente, que ele mesmo se tornou um doente crônico, com seguidas dores de cabeça e problemas estomacais. Três exemplos citados por ele no carnet 303 nos parecem significativos. A primeira delas é o conselho que São Francisco de Salles dá a uma pessoa doente, quando diz que é melhor estar na cruz de Cristo do que olhar apenas para ela. As doenças são boas escolas de caridade misericordiosa para aqueles que servem os doentes e de paciência amorosa para aqueles que as sofrem (AFM 5101.303, p. 313). A segunda vem do abade Isaías, contida na obra de Marin, onde é possível ler que não se deve ceder à depressão e tristeza quando Deus envia alguma doença. Em vez disso, é preciso considerar isso como um efeito de sua misericórdia para a utilidade da própria alma e devolver isso a Deus em ação de graças (AFM 5101.303, p. 574). Por fim, destacamos uma citação na qual o religioso marista não menciona o autor, por isso, podemos supor que ela se trate de algo mais pessoal, onde ele afirma que tem “uma doença física e moral no estômago, que é o pai adotivo do corpo; na cabeça, que é a sede dos poderes da alma; na garganta, que é o órgão do discurso; e no braço, que é a sede de força e ação” (AFM 5101.303, p. 574).
Alternando leituras de autores da antiguidade e de autores modernos – característica própria dos místicos do século XIX –, sabemos que uma fonte de inspiração para o Ir. Francisco foi o livro L’Ecole des moeurs ou Réflexions morales et historiques sur les maximes de la sagesse do educador Jean-Baptiste Blanchard. Especialmente dirigida aos jovens, com orientações de como governar a si mesmo, trata-se, certamente, de uma leitura espiritual obrigatória, mas também, podemos presumir, de uma leitura também filosófica, pelo menos indireta, já que este padre jesuíta do século XVIII foi um dos principais opositores às ideias de Rousseau, em especial ao Emílio. Dentre as várias opiniões recolhidas pelo religioso marista do L’Ecole des moeurs no carnet 303, temos recomendações sobre a leitura como exercício espiritual: “ler menos livros e lê-los bem. Para se formar o espírito, não se deve ler muitos livros, mas ler somente o mesmo livro” (AFM 5101.303, p. 786). E continua:
A leitura está para o espírito assim como o alimento está para o corpo. Há livros que são como o alimento; eles melhoram ou deterioram a saúde da alma segundo sua qualidade, como faz a comida com a saúde do corpo, de maneira que se pode dizer: Diga-me o que lês e eu te direi quem és (AFM 5101.303, p.786).
Tais conselhos de Blanchard nos remetem diretamente à conhecida pergunta de Sêneca, “[...] para que servem inumeráveis livros e bibliotecas cujo proprietário apenas consegue em sua vida ler as etiquetas?” (SÊNECA. 2014, IX,). Para o Ir. Francisco, possivelmente a resposta a esta pergunta estava no fato de que sua biblioteca não era grande, mas continha obras que para ele eram essenciais do ponto de vista humano e espiritual. Lanfrey (2015, 44-45) recorda que entre os textos aos quais o religioso marista mais se dedicou e que, por isso, se tornaram mais inspiradores foram o dos jesuítas Afonso Rodríguez (1538-1616) A perfeição cristã, de J. B. Saint Jure (1588-1657), o Conhecimento e amor a Jesus Cristo. Além disso, leu numerosos jesuítas menos conhecidos como Crasset, Croiset, Bourdaloue, Surin. Seu conhecimento da escola francesa de espiritualidade se deu por de Jean-Jacques Olier (1608- 1657) e Henri-Marie Boudon (1624-1702) e se aprofundou em outros textos místicos como A imitação de Cristo, livro-manifesto da Devoção Moderna, de Tomás de Kempis e as obras de Santa Teresa de Ávila. Ele também se dedicou à vida dos santos, como Inácio de Loyola, Maria Madalena de Pazzi (1566-1607), Vicente de Paulo e era um leitor dedicado da Bíblia. Com isso, podemos concluir que “Francisco é bom conhecedor da tradição espiritual cristã, no que ela tem de mais profundo” (LANFREY, 2015, 45).
A julgar pelo volume e pela diversidade de autores presentes nas anotações dos carnets, em especial no que se refere às cópias de citações, talvez não seja exagero afirmar que o Ir. Francisco se tornou um leitor ávido, reservando parte de seu tempo, a despeito, como dissemos, do estilo pragmático da vida comunitária e religiosa marista, a essa atividade. Ademais, ao conhecermos sua vida, concluímos que as leituras têm por objetivo alimentar todo um projeto de interioridade, que ganha sua materialização num modo de vida pautado por exercícios espirituais.
A escrita como modo de vida
Em seu curso de 1982, a Hermenêutica do Sujeito, Foucault recorda do valor dos hypomnématas como exercício espiritual antigo, na medida em que estes “são anotações de lembranças com que precisamente poderemos, graças à leitura ou a exercícios de memória, rememorar as coisas ditas” (2004, p. 433). Eles são, igualmente, notas e reflexões pessoais tomadas no dia a dia, como forma de incorporação do discurso verdadeiro, fazendo com que este alcance a alma. Um bom exemplo encontramos nos textos de Epicteto, que foram conservados por um de seus ouvintes, conhecido como Arrianus. Este escutava os colóquios, fazia as anotações (hypomnémata), e posteriormente os tornava públicos. Na introdução aos Diálogos, ele afirma que “quanto a tudo que ouvi deste homem enquanto ele falava, esforcei-me, tendo-o escrito” (EPICTETO. 1993, p. 14).
Nas cartas dirigidas a Lucílio, Sêneca elogia quem carrega consigo um bloco de notas (Sêneca, 2004, p. 403), em especial com aqueles que “ (...)entusiasmam-se com as máximas sublimes, ficam mesmo inflamados, de rosto e de espírito, de paixão pelos oradores, (...) que ficam fora de si como se por ordem divina” (Sêneca, 2004 p. 592). O mesmo encontramos em Plutarco, que respondendo a Paccius, que lhe pede conselhos urgentes, escreve:
Demasiado tarde recebi tua carta, pela qual me solicitava a escrever-te algo sobre a paz [...]. E como não tinha tempo como eu havia desejado para deter-me no que querias e nem podia suportar que este homem, retornando daqui se apresentasse a ti com as mãos absolutamente vazias, reuni uma coleção de notas (hypomnemáton) que havia tomado sobre a paz da alma para meu uso pessoal[...] (PLUTARCO, 1995, p. 61).
Em tal contexto poderíamos nos perguntar: são os carnets do Ir. Francisco hypomnématas? Nossa hipótese é que sim, principalmente pelo fato de que o volume, a forma e o conteúdo dos escritos, exprimidos de ponta-a-ponta em páginas de 10 cm x 12 cm, comprovam a importância da anotação como uma prática constante de seu modo de vida. Ora toma nota de pequenas citações ora de textos maiores. Da Bíblia, por vezes, podem ser de trechos inteiros. Entre uma cópia e outra, não é incomum encontrar pequenos extratos de conclusões pessoais, ao modelo de um diário, mas não tão literal. Quase sempre é preciso interpretação. Tem por costume separar seus escritos por data, sendo que raramente se encontram em dias subsequentes; a maioria tem intervalos de meses, como no caso dos Carnets de Retraits. Rigorosamente organizadas, é normal se deparar com ideias elencadas ao modelo de tópicos, das mais simples, como uma receita de medicine spirituelle até complexas passagens de tratados morais. Por um pequeno detalhe de mudança na cor da tinta, hoje podemos concluir que acrescentou notas posteriores em algumas páginas, indicando que os carnets, com o decorrer dos anos, não se davam por encerrado, mas traziam em seu interior temas que constantemente eram relidos.
Não por acaso, os personagens citados, quase todos eles santos, quando não a própria sagrada família, são, naturalmente, melhores do que ele. Sente-se o menor de todos; o mais indigno, o mais vulnerável. No carnet 303 temos o caso curioso das menções feitas a São José. A maioria de suas aparições se dá, de acordo com o próprio índice temático formulado pelo Ir. Francisco, relacionado a orações e a invocações a Jesus e à Maria. Contudo, uma delas nos chama a atenção, na medida em que nos ajuda a compreender o sentimento de fragilidade do religioso marista, ao mesmo tempo que nos indica como as linhas escritas por ele, de fato, são uma expressão de sua vida e de seus sentimentos.
A citação copiada por ele, ao que tudo indica tomada da obra de Saint Jure, o Conhecimento e amor a Jesus Cristo, recordam que foi por meio de sonho que o anjo se dirige a José para fazer conhecer a vontade de Deus. Mas, enfim, o que o torna digno de tais planos celestiais? Seria ele maior que Jesus e Maria em santidade ou em sabedoria para ter uma ligação tão direta com Deus? Certamente não! Ele é, segundo o texto, o “chefe da família” e, portanto, o representante de Deus. Por isso, é muito apropriado que as ordens que vem do céu passem primeiramente por ele, antes de chegar a Maria, que as levará até Jesus. É preciso, então, imitar a simplicidade, a presteza, a generosidade e o abandono com os quais ele cumpre as ordens que vem de Deus.
Em meio aos escritos, essa poderia ser somente mais uma menção a São José, importante em seu contexto devocional, se não fosse o fato de que ela se situa exatamente nas anotações do retiro de 1839. Este é o ano que o Ir. Francisco assume como diretor geral do Instituto e nesse caso, o contexto é bastante relevante. Champagnat está doente e não tem mais forças para guiar sua congregação. Por isso, convoca um capítulo geral, o primeiro, no qual será escolhido seu sucessor. Francisco Rivat, naquele momento com 31 anos, é seu discípulo fiel e os irmãos veem nele o continuador da obra iniciada pelo fundador. É então eleito pela grande maioria dos presentes.
O elemento literário-espiritual desta passagem se mostra óbvio. O Ir. Francisco se identifica com São José, na medida em que este é, naturalmente, dentro do projeto de salvação, o menos santo, o menos sábio, o menos digno, ou seja, o mais humano; mas, por outro lado, é aquele a qual a vontade divina escolhe como “chefe”. Frente à missão que lhe é confiada, de dirigir a congregação, ele se sente o coadjuvante, como é também o pai “terreno” de Jesus. Dessa forma, esse pequeno trecho escolhido e copiado, exatamente para essa ocasião, carrega consigo uma enorme marca de confissão, na medida que é a expressão de um sentimento misto: por um lado a incapacidade – comum em quase todo carnet – e, por outro, a responsabilidade, pelo cargo que agora ele deve assumir. Ademais, as poucas linhas desse texto confirmam o caracter de hypomnémata, pois carregam consigo uma verdade lida e que deve ser interiorizada.
Na medida em que entendemos que os hypomnématas se referem a um rigoroso e exigente trabalho de seleção de frases de sabedoria, que, depois de organizadas, ficam à disposição para serem novamente lidas e servirem de apoio nos momentos mais difíceis da vida, temos mais uma evidência do Ir. Francisco como continuador de uma tradição ascético-espiritual que remonta à filosofia pagã. Como nos recorda Lanfrey, hoje sabemos que ele legou às gerações posteriores mais fontes espirituais que o próprio fundador, com o cuidado de indicar, com bastante precisão, quais eram suas inspirações teóricas. Além do mais, tomou os últimos anos de sua vida para estabelecer uma espécie de índice, onde indica por carnet, os principais temas e seus lugares de aparição, facilitando a agilizando a operação de procura de algo que lhe interessasse, caso fosse necessário.
Há ainda um aspecto que devemos considerar. As anotações do Ir. Francisco como hypomnématas nos levam a outro importante exercício espiritual, que ganha muito destaque na vida monástica cristã: a meditatio. Sendo composta pela leitura silenciosa, pela anotação dos trechos mais significativos e pela memorização do que foi escrito, ela permite a recitação ininterrupta do que se leu e do que se anotou, de forma a ser possível rezar enquanto se realizam as atividades do cotidiano. Tal prática sintetiza o hibridismo entre trabalho e vida e dá sentido a todo o esforço espiritual de leitura e de anotação, que tem por finalidade sincronizar o tempo externo com o tempo interno.
Talvez seja muito difícil concluirmos se o Ir. Francisco desejava ou não que seus escritos fossem conhecidos pelas gerações posteriores. Podemos intuir, ainda que eles estejam longe de se caracterizarem como diários, que sua utilização se restringia, inicialmente, para seu pessoal. Tomava a escrita, antes de tudo, como trabalho ascético-espiritual. Quando esteve em Roma, por meses, buscando a aprovação canônica do instituto, diante da lentidão da Cúria, ele empregou seu tempo livre para escrever centenas de páginas sobre o Antigo Testamento. Nesse sentido, vale considerarmos que o século XIX legou ao mundo uma série de místicos que ficaram mais conhecidos por suas obras de caridade do que por sua profundida mística. Dessa forma, o religioso marista responde bem ao espírito de uma época.
Considerações finais
Nosso objetivo com este artigo foi mostrar como os escritos e a biografia do Ir. Francisco Rivat, primeiro superior geral do Instituto Marista, revelam uma personalidade singular, que além de ser um típico representante de seu tempo, o século XIX, se constituiu também como herdeiro de uma tradição filosófico-mística, composta por um conjunto de práticas e exercícios rigorosos e sofisticados. Nesse sentido, pudemos ver como as técnicas de ler e de escrever, que junto a uma série de outras técnicas ascéticas, se tornaram exercícios espirituais essenciais para um trabalho que o religioso marista realizou sobre si mesmo, certamente em busca de uma conexão maior com Deus e em busca da sabedoria.
O volume de carnets deixados por ele e seus conteúdos nos atestam um homem com uma grande profundidade espiritual, que o aproxima, certamente, dos mais importantes místicos da Igreja. Contudo, quisemos mostrar também como tais práticas o aproximam de grandes pensadores da história ocidental, que na antiguidade também se dedicavam a elaborar cadernos com notas de sabedoria, que eram copiados, por vezes de livros por vezes de colóquios, para enfim serem incorporados pelo sujeito e se tornarem um modo de viver. Nesse sentido, temos todo um esforço, primeiramente surgido na antiguidade e depois adotado pelo cristianismo, de constituição de um mecanismo interno, a paraskéue, que será um conjunto de movimentos gerais, elementares e necessários que permitem ser mais forte do que tudo o que possa acontecer em sua existência.
Há muito para se pesquisar sobre essa figura singular e um pouco esquecida. Estudos aprofundados sobre seus escritos e sua vida descobrirão, junto com as angústias e fragilidades de alguém que se sentia incapaz frente aos desafios da gestão uma instituição nascente, constituiu um poderoso arcabouço para uma espiritualidade do cotidiano, que podem ser inspiradores para um modo de viver na atualidade.
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Referências
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Notas
[1]Casa construída entre os anos de 1824 e 1825 pelas mãos do próprio fundador e que serviu de Casa Geral do Instituto até 1858, quando a administração foi transferida para Saint-Genis-Laval.
[2]Escritos originalmente em francês, tais manuscritos estão depositados no Arquivo dos Irmãos Maristas (AFM) na Casa Geral em Roma e estão organizados da seguinte forma: 22 cadernos com anotações pessoais sobre diversos assuntos (AFM 5101.301 a 501.322), dois volumes de cartas pessoais, diversos cadernos com cartas administrativas e as circulares dirigidas aos membros do Instituto Marista. A exceção destas últimas, o restante do material permanece inédito. A tradução dos trechos utilizados neste artigo é nossa.
[3] Algumas páginas atestam a importância dessa obra para a formação espiritual do Ir. Francisco quando olhamos o conjunto de seus escritos. Por exemplo, só para termos uma ideia, nas cadernetas 301 e 302, por exemplo, ele é citado 47 vezes, nas 307 e 308, 12 vezes, e na 312, que se refere a um catálogo de notas e citações, outras 70.