Marcio Cappelli*
Paulo Nogueira**
*Professor no Programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.
**Professor no Programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
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“Jesus é um momento de significação ininterrupta: um signo de leitura infinita”, afirmou Paulo Leminski (1984, p. 84). De alguma maneira, o dossiê que ora o leitor tem diante de si, desenvolve em direções variadas a expressão do escritor curitibano. É claro que podemos dizer que as Reescrituras de Jesus apareceram em diversos formatos e com finalidades distintas. Mesmo representações antigas, os ícones e a arte das catacumbas, por exemplo, podem ser vistas como parte do processo hermenêutico do cristianismo. Não só isso, mas o sentido escatológico atribuído às escrituras cristãs não deixa de ser uma tentativa de atualização da mensagem de Cristo. Se quisermos estender a discussão, poderíamos ainda pensar os próprios evangelhos canônicos como reescrituras, obviamente, se admitirmos que toda textualização é também, em algum grau, uma re-textualização, isto é, uma tessitura que surge da combinação de muitas variáveis e uma composição que “reduz” a realidade por meio de uma linguagem específica.
Evidentemente, muitas transformações históricas e sociais proporcionaram condições para que os artistas se aproximassem de Jesus com maior liberdade, sem ter que corresponder às formulações doutrinárias. O longo processo de emancipação da arte em relação à religião produziu uma irredutível afirmação da autonomia das duas esferas. No entanto, se a independência da arte é o mote da discussão em um autor como Lukács (1967, pp. 423-474), a ideia de uma proximidade entre a poesia e a religião, ainda que conformada à beligerância que procura criar um novo sagrado face às religiões institucionais, pertence às elaborações de Octávio Paz (2012, p. 124). Isto significa que, se, por um lado, uma leitura dogmática da figura de Jesus passa a ser recusada a partir do anúncio do futuro duvidoso da religião no âmbito do que seria uma sociedade secularizada; por outro lado, se não com uma onda de “reencantamento”, ao menos com a transformação significativa que configurou “novos amálgamas espirituais” (KUSCHEL, 1999, p. 215), o signo Jesus passa a ser “relido”.
A lista de obras, autores e autoras que empreenderam uma reescritura de Jesus é infindável. Fiquemos apenas com alguns exemplos contemporâneos que propuseram ressignificações e, por isso mesmo, ganharam notoriedade. Na literatura: O Mestre e a Margarida, de Mikhail Bulgakov, A tentação de Cristo, de Níkos Kazantzákis, o Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, O Evangelho segundo o Filho, de Norman Mailer. No cinema: Ordet, de Carl Dreyer, o Evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, A vida de Brian, de Terry Jones/Monty Python. No teatro: Godspell, de Stephen Schwartz e JohnMichael Tebelak, Jesus Cristo Superstar, de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice. Além dessas, poderíamos mencionar muitas outras, como as mais recentes produções do grupo Porta dos Fundos e o samba-enredo da Mangueira (apresentado no carnaval de 2020).
No contexto acadêmico, a valorização desse tipo de representação se dá a partir do aporte de várias teorias que ampliam o leque de possibilidades interpretativas. A leitura dos próprios textos bíblicos nos estudos literários, nas ciências da religião e na teologia, se desenvolve também na esteira: a) da problematização do cânon, o que contribuiu para uma aproximação aos apócrifos; b) de uma perspectiva não necessariamente religiosa (Bíblia como literatura); c) da relativização de um sentido único segundo discussões da hermenêutica literária que privilegiam a dinâmica da recepção; c) da construção de um campo interdisciplinar que poderíamos chamar de teopoética.
Dessa forma, de pontos de vista teórico-metodológicos diferentes, os artigos procuram analisar, em uma variedade de expressões, as diversas significações que o símbolo Jesus adquire; concentram-se em questões basilares como a sua configuração nos Evangelhos canônicos e nos textos apócrifos, mas também no agenciamento literário singular desta figura nos textos de Toni Morrison, Adília Lopes, Clarice Lispector, Julio Cortázar, Fiodor M. Dostoiévski, Carlos Nejar, François Cavanna.
O artigo que abre o dossiê, La Pasión Según J.C., de Lucas Adur, evidencia como é possível entrever uma reescritura de Jesus no conto El Perseguidor. As iniciais J.C. constituem uma referência tripla: ao escritor Julio Cortázar, ao protagonista da narrativa, Johnny Carter, e ao próprio Jesus Cristo. O texto do autor argentino, publicado pela primeira vez em 1959, na coletânea As armas secretas, desenvolve-se, segundo Adur, numa intensa intertextualidade com a Bíblia. No entanto, a partir da explicitação do caráter testemunhal do relato do narrador Bruno, que se considera um verdadeiro evangelista, podemos perceber outras camadas da recriação de Cristo. Portanto, estes aspectos clarificam as figurações critológicas, sobretudo no protagonista Johnny Carter.
Em “Nuvens são Pássaros”, Kenner Terra procura salientar a dimensão religiosa da poesia de Carlos Nejar. Aborda especialmente a segunda parte da obra Os Viventes, Arca da Aliança e sublinha nela a reescritura de personagens do cânon bíblico como artifício para tratar dos dilemas humanos. Com cuidado teórico, no seu percurso argumentativo, o artigo reconhece a íntima relação entre literatura e Bíblia e analisa a maneira como o “vivente Jesus”, citado ao lado de outros, é reinterpretado pelo poeta, o que possibilita apresentá-lo em chave de ruptura, solidariedade e senhorio cósmico, de figuração cuja criação é a expressão poética da palavra.
Em Via Crucis, as autoras Rosina Bezerra de Mello Santos Rocha e Teresinha Vania Zimbrão da Silva chamam a atenção para a importância da interdisciplinaridade que coloca em diálogo Teologia e Literatura, a fim de potencializar a atribuição de sentidos. Nesse viés, buscam especificar a correlação entre os símbolos judaico-cristãos, expressos na narrativa do nascimento e morte de Jesus Cristo, tal como descrita nas páginas da Bíblia, e a linguagem paródica usada por Clarice Lispector para narrar a sua versão da estória. Dessa forma, a ironia empregada pela escritora, é lida no artigo, mais do que como escárnio, mas como dispositivo que engendra uma releitura do evento judaico-cristão com ênfase na questão existencial ligada ao sofrimento, à maternidade e às experiências dolorosas.
No artigo O Cristo Morto, de Dostoiévski, Luana Martins Golin mostra como é possível fazer surgir do cruzamento entre as artes visuais e a literatura novas interpretações de uma obra já bastante explorada. Desse modo, o quadro “Cristo Morto” é tomado como chave de leitura interessante para o romance O Idiota. A autora observa que o contato das personagens Míchkin e Hippolit e a experiência que o próprio Dostoiévski teve diante do quadro, da imagem do cadáver de Cristo, possibilita uma releitura mais humana de Cristo. Em outras palavras, a experiência estética, advinda do contato com a pintura, inscreve na prosa dostoievskiana uma consciência trágica incontornável.
O quinto artigo: O Sublime no Cotidiano, de Marcio Cappelli, grifa a dialética profanação-sacralização na poesia da escritora portuguesa Adília Lopes. A partir de uma discussão que propõe algumas distinções e precauções metodológicas, o autor procura demonstrar o peculiar da lírica adiliana: um tresler enquanto apropriação de categorias religiosas em função de um olhar que valoriza o cotidiano. Esse duplo movimento é o que produz, de acordo com o autor, reescrituras de Cristo, que são explicitadas em três poemas. Neles, Jesus é alargado pelo cruzamento de diversos elementos, o que corrobora uma superação dos limites e das dicotomias, isto é, uma experiência de metamorfose artística da religião na poesia.
No artigo seguinte, Douglas Rodrigues da Conceição, utilizando-se dos utensílios conceituais fornecidos por Gerárd Genette, propõe uma aproximação à Les aventures du petit Jésus, obra que foi escrita pelo jornalista e chargista François Cavanna, um dos fundadores do jornal francês Charlie Hebdo. O foco do texto recai sobre a personagem central tanto dos Evangelhos quanto da obra de François Cavanna: Jesus. Outrossim, podemos dizer que, de acordo com conceitos bem definidos, a paratextualidade e hipertextualidade tal como aparecem na obra Palimpsestes (1982), de Genette, iluminam interfaces da obra do escritor francês com Evangelhos.
A notável escrita de Toni Morrison se reveste de uma importância teológica na perspectiva de José de Paiva Santos que, em seu artigo, faz uma análise de Amada, chamando a atenção do leitor para elementos intertextuais bíblicos que investem os personagens de características cristológicas. No romance analisado, Morrison privilegiaria, então, uma reflexão acerca dos símbolos cristãos, mas na codificação plasmada na espiritualidade e cultura das comunidades afrodescendentes que, de modo significativo, passam a ser uma reserva de sentido que preside o agir. Consequentemente, vislumbraríamos assim um teologizar contextual e intimamente ligado à ética.
O texto de Paulo Nogueira assume um tom provocativo e propõe o desguarnecimento das fronteiras entre estudos bíblicos e estudos de recepção, entre fontes originais e recriações literárias; fronteiras estas que, se pensadas de maneiras fixas, garantiriam à exegese o status de detentora de um privilégio diante dos textos bíblicos. O argumento desenvolvido pelo autor, ao longo do artigo, propõe que, mesmo os Evangelhos mais antigos, já seriam compostos por narrativas que configuram articulações de memórias sobre Jesus. Dessa maneira, através de uma discussão que perpassa textos canônicos e apócrifos, Nogueira destaca o dinamismo dos processos criativos de produção de reescrituras do Cristo já em expressões consideradas como “originais”.
O artigo de Mathias Grenzer e Francisca Antonia de Farias Grenzer também se debruça sobre textos bíblicos para enfatizar o que, segundo os autores defendem, pode ser considerado, do ponto de vista dos Evangelhos canônicos, o primeiro texto escrito sobre Jesus. A intenção, portanto, do artigo é reler de forma linguístico-literária e histórico-teológica, o que, conforme as narrativas dos quatro Evangelhos, se encontrava escrito na epígrafe no letreiro fixado na cruz de Jesus.
O último artigo do dossiê, de André Luís Araújo, faz uma leitura atenta da obra de Paul Beauchamp, L’un et l’autre Testament (1976), ressaltando a dinamicidade do ato da leitura por meio de Cristo, que poderia ser considerado uma espécie de princípio hermenêutico unificador, ou seja, o elo entre um testamento e outro. Isto é, se os dois testamentos bíblicos possuem certa autonomia, também podem ao mesmo tempo ganhar novos sentidos a partir de Cristo. Dito de outra maneira, do ponto de vista do cristianismo, Jesus cumpre o papel de um gonzo literário que no ato da leitura catalisa novos sentidos.
Sublinhamos ainda a pluralidade do dossiê, que concentra pesquisadores de diversas instituições: PUC-Campinas, UMESP, PUC-SP, UFMG, UNICAP, UFJF, UEPA, Universidade de Buenos Aires, Faculdade Unida de Vitória; a variedade de gêneros entre os/as que escreveram e entre os/as autores/as abordados/as; a diversidade de nacionalidades dos/as autores/as analisados/as: brasileira, estadunidense, portuguesa, francesa, argentina; além da multiplicidade de expressões literárias estudadas: conto, romance, poesia, narrativas bíblicas, entre outras. Desejamos uma boa leitura!
KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. São Paulo: Loyola, 1999.
LEMINSKI, Paulo. Jesus a.c. São Paulo: Brasiliense, 1984. LUKÁCS, György. Alegoria y símbolo. In: _____. Estética I. México: Grijalbo, 1967, pp.423-474.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
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