Prefácio 

Antonio Manzatto*
Jefferson Zeferino**
*Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Editor de Teoliterária 

**Bolsista de PósDoutorado na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Editor Associado de Teoliterária.
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Jesus é a figura central do cristianismo e, por isso, a arte nunca deixou de a ele se referir. Pinturas, esculturas, teatro, músicas, narrativas e, mais recentemente, cinema, televisão e outros procedimentos artísticos o fizeram sua referência. Cada uma dessas expressões artísticas, mais ou menos fiéis às doutrinas das igrejas, fazem uma releitura da figura de Jesus. 

As forças de sentido presentes no clássico cristão da pessoa e evento de Jesus se multiplicam tanto quanto cresce o número de seus leitores e leitoras. A pluralidade artística de apreensão cultural desse fenômeno produz novos sentidos capazes, inclusive, de aprofundar as hermenêuticas daqueles e daquelas que se compreendem como destinatários originários dos relatos evangélicos. Ademais, desde a concepção de que “a dimensão empírica do evento que é testemunhado é somente um dos componentes de evento que transcende a ordem dos eventos históricos comuns” (GEFFRÉ, 1989, p. 114), também as passagens bíblicas se configuram em releituras e reescrituras de Jesus1 . Nesse contexto, cabe evocar a noção tracyana de clássico para se pensar as hermenêuticas do Cristo. Um clássico pode ser qualquer coisa que sempre que revisitada me comunica algo da minha humanidade. O Jesus humano, poderíamos dizer assim, não raro foi mais bem captado pelas artes do que pelas formulações doutrinárias. Tracy afirma que 

em bases intracristãs, há um evento clássico e uma pessoa clássica que normativamente julga e molda todos os demais clássicos cristãos e que também serve como enfoque cristão clássico para compreender Deus, eu, os outros, sociedade, história, natureza e o todo de modo cristão: o evento e a pessoa de Jesus Cristo (TRACY, 2006, p. 300).

Jesus Cristo, que para o teólogo jesuíta é o clássico religioso cristão por excelência, enquanto evento e pessoa abertos a interpretações e reinterpretações, pode ajudar a pensar a vida na atualidade. Não por último, em tempos de pandemia, com base em autores como Dietrich Bonhoeffer (2003), Jürgen Moltmann (2011), Jon Sobrino (1994), Ignacio Ellacuría (1990), Andrés Torres Queiruga (2010) e Paul Ricoeur (2006), se pode desenvolver a imagem de um Deus crucificado na humanidade exposta por Jesus na cruz que se comunica com quem sofre, fala da humanidade das pessoas crucificadas hoje de tantas formas distintas, revela algozes, denuncia injustiças e desvela novos sentidos na experiência humana. 

A pergunta de Teoliterária é não apenas pelas releituras feitas, mas por suas reescrituras. Assim, o presente número traz o dossiê Reescrituras de Jesus, que foi dirigido e organizado por Márcio Cappelli e Paulo Nogueira, a quem agradecemos o trabalho e a dedicação. Eles mesmos apresentam, a seguir, os textos que figuram no dossiê. 

 Além de tais textos, publicamos também, nesse número, alguns outros trabalhos que versam sobre temáticas variadas, de forma livre. Assim, Marcial Maçaneiro nos traz seu estudo “Deus como “luz” no Cristianismo e no Islã: literatura comparada e teologia da Revelação”. A compreensão do nome de Deus, de seu ser, não precisa ser causa de disputa entre as religiões, defende o autor, mas pode levar a um diálogo e entendimento maior entre as grandes religiões, no caso, o islamismo e o cristianismo. 

Outro estudo que se consagra a perceber ideias religiosas em textos literários é o trabalho apresentado por Rodrigo Portella e Vinícius Lara da Costa, intitulado “Letras imortais: a presença das ideias espíritas / espiritualistas na obra de autores clássicos da literatura americana e europeia do século XIX”, no qual alguns clássicos de literatura são lidos com a percepção da presença e da veiculação de ideias espíritas. 

Na sequência, Marcelo Ramos Saldanha nos traz seu trabalho “O Progresso do Peregrino e a ética da conversão individualista” no qual, através da obra de John Bunyan, pretende destacar um comportamento peregrino em busca de salvação em sentido individualista ainda presente em formas de religiosidades conversionistas na atualidade. 

Por fim, Victor Hugo Pereira de Oliveira nos traz novo estudo sobre Dostoiévski, em seu trabalho intitulado “O Desespero do Nada, o Niilismo Completo e Supremo: A Fenomenologia do Mal n’Os Demônios de Fiódor Dostoiévski”, percebendo ali como o autor russo apresenta a problemática do mal, sempre a desafiar a compreensão humana. 

Tempos de pandemia não são os mais agradáveis de se viver e trazem inúmeras consequências para a vida coletiva e pessoal. Por conta da situação enfrentada, globalmente, em razão do coronavirus, a Alalite houve por bem transferir seu Congresso continental, previsto para outubro, para a mesma data em 2021. Ele vai acontecer no Chile com a temática “La salvación y sus rostros: teopoéticas del mal y la redención”, e conta com a participação de estudiosos e pesquisadores da área. 

Não deixa de ser emblemático que Teoliterária apresente para o público seu número 20, já em seu volume 10. Representa o esforço de muita gente que trabalha relacionando teologia e literatura, arte e religião. Agradecemos a confiança de todos quantos colaboraram para a realização desse número e de toda a caminhada de Teoliterária, e esperamos continuar contando com a mesma confiança. Por isso desejamos boa leitura a todos! 

Referências

BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão. Cartas e anotações escritas na prisão. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2003.

ELLACURÍA, Ignacio. El pueblo crucificado. In: ELLACURÍA, Ignacio; SOBRINO, Jon. (Orgs.). Mysterium Liberationis: Conceptos fundamentales de la teología de la liberación. Tomo II. Madrid: Editorial Trotta, p. 189-216.

GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989.

MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: a cruz de Cristo como a base e crítica da teologia cristã. Santo André: Academia Cristã, 2011.

RICOEUR, Paul. A memória do sofrimento. In: RICOEUR, Paul, A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006, p. 239-243.

SOBRINO, Jon. Jesus the Liberator: A Historical-Theological Reading of Jesus of Nazareth. New York/London: Orbis Books/Burns & Oates, 1994.

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a revelação: a revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas, 2010.

TRACY, David. A imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2006.

Notas

[1]  Sobre este tema ver o texto de Paulo Nogueira neste número