Literatura e literalidade: a cristoforia hagiográfica em São Julião Hospitaleiro, de Flaubert e São Cristóvão, de Eça de Queiroz
Literature and literality: the hagiographic cristoforia in São Julião Hospitaleiro, by Flaubert and São Cristóvão, by Eça de Queiroz

Regis Mikail Abud Filho*
* Doutoramento em Literatura francesa (2017) pela Université Paris-Sorbonne (ParisIV). Mestrado em Literatura geral e comparada (Allgemeine und Vergleichende Literaturwissenschaft) pela Freie Universität Berlin (2011). Contato: regismikail@gmail.com
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Resumo
Nossa proposta é investigar a representação da cristoforia em duas narrativas do século 19: a Lenda de São Julião Hospitaleiro, de Gustave Flaubert, e São Cristóvão, de Eça de Queiroz. Por “cristoforia” entendemos o significado etimológico e literal do transporte do Cristo. Ambas lendas hagiográficas reescritas ganham novas implicações de ordem semântica e estética. A imitatio Christi se desdobra tanto no âmbito literário quanto no âmbito moral: lançar, transportar, transladar a palavra do Cristo, em narrativas nas quais o santo por vezes ganha traços de personagem de ficção a partir da “forma simples” que é a lenda. De que maneira tal retomada da narrativa exemplar consistiria em uma subversão da própria vida dos santos? Partimos de dois topoï (os elementos pagãos e diabólicos bem como o transporte do Cristo e a ascensão ao céu) para indagarmos se, do ponto de vista analítico, a narrativa hagiográfica – cujo objetivo é transmitir um modelo exemplar ao leitor – passa por uma subversão literal e literária através da transferência da lenda à narrativa de ficção.

Palavras chave:cristoforia, Flaubert, Eça de Queiro

 

Abstract
This article aims to investigate how cristophory is represented in two narratives of the 19th Century : the Legend of Saint Julian the Hospitaller, by Gustave Flaubert and Saint Christopher, by Eça de Queirós. Under « christophory » the etimological and literal meaning of the transportation of Christ is understood. Both hagiographical legends, rewritten by its authors, absorb new definitions in semantical and aesthetical aspects. The imitatio Christi unfolds in the literary domain as well as in the moral domain : setting, transporting and translading the word of Christ, in narratives where the saint acquires traits of fiction characters from the « simple form » which is the legend. How does the resuming of an exemplary narrative consist in a subversion of saints’ vitae ? We chose two topoï (pagan and diabolical elements in both narratives as well as the transportation of Christ and ascension to heaven) in order to ask, from an analytical point of view, if the hagiographical narrative, whose goal is to transmit an exemplary model to the reader – would be subjected to literal and literary subversion in these transfers from legend to fiction narrative.

Keywords:Cristoforia, Flaubert, Eça de Queiro

Introdução: Palavra e palavras no percurso simbólico e literário

Ilustrando com palavras e com imagens no seio da tradição católica a propagação da palavra de Cristo, as lendas hagiográficas de São Cristóvão e de São Julião Hospitaleiro evocam a mitologia do cristianismo. Por “mitos” decerto entendem-se aqui as origens da religião, seus mártires e seus santos, mas sobretudo há de se notar um dentre os vários significados do verbo mutheomai: a fala descompromissada sobre fatos não verificáveis, uma conversação, uma palavra no sentido de fala despretensiosa em oposição ao logos retórico-filosófico.

As neo-hagiografias aqui tratadas – São Cristóvão, de Eça de Queirós, e A Legenda de São Julião Hospitaleiro, de Flaubert, narram, com a cor maravilhosa e característica das lendas, as vidas e os milagres desses dois santos propagadores da mitologia cristã, verdadeiros carregadores da fé em Cristo. Reconfigurada em estilo literário, Eça e Flaubert dão à luz cientificista do século XIX novas imagens da santidade e das lendas que os envolvem opondo ao positivismo sustentado por ideais burgueses (ou vice-versa) daquele século a narrativa maravilhosa cristã. Historicamente, sob a lupa do positivismo que, em nome do real científico, bane o maravilhoso de cunho religioso – bem como de outras manifestações suas –, a veracidade das vitae de Cristóvão e de Julião é objeto de dúvidas, dos céticos aos crentes. Porém não se trata nessas lendas literárias propriamente de edificação moral, pelo menos não mais do que da maneira de narrar tal edificação. O muthos sobrepõe-se ao logos.

Em São Cristóvão e na Legenda de São Julião Hospitaleiro, a cristoforia –transporte do Cristo – consiste em um deslocamento literal e simbólico das representações da imagética católica. Nos primórdios do cristianismo, christophorus era inclusive sinônimo de christianus, antiga designação honrosa aos primeiros seguidores dos ensinamentos de Jesus Cristo (GRUMEL, 1938, p.466). Tal denominação corrobora o aspecto comum e mundano do culto cristão e da própria narrativa hagiográfica. Investigaremos aqui as implicações desse transporte em sua acepção conotativa no contexto da literatura finissecular do século XIX, notadamente o relacionamento entre ficção lendária e hagiografia exemplar. Analisaremos, por meio de exemplos figurativos levando em conta a interseção entre cristianismo e paganismo, bem como a representação do deslocamento da palavra-parábola, as implicações espirituais e literária da cristoforia nesses textos1

São Julião Hospitaleiro e São Cristóvão, cada qual em seu respectivo contexto nacional específico de um século XIX, são escritos em um momento desafiador para a Igreja Católica enfraquecida pela ameaça da política laica e pelas expulsões de ordens religiosas, tanto em Portugal quanto na França. No entanto, sobretudo as artes na França assistirão a um momento de renovação e de questionamento artístico fecundo, uma proposta de um novo olhar para o cristianismo do ponto de vista estético.

Os elementos semânticos e estilísticos das lendas hagiográficas revelam uma reescrita em palimpsesto. Uma nova leitura de Vidas dos santos é evocada com novos episódios e novos elementos semânticos e lexicais escritos por cima de uma base textual um tanto ou quanto apagada, mas visível. Reconfiguradas as lendas medievais, sobre as quais Victor Hugo e Alexandre Herculano, por exemplo, já haviam escrito, a narrativa literária a partir da lenda é reescrita a partir da dilatação textual e semântica, em que aspectos histórico e maravilhoso coexistem entrelaçados na nebulosidade opaca da lenda.

Neste campo cinzento que explicaremos adiante, coloca-se em questão uma sutil dicotomia entre cristianismo e paganismo, entre Deus e o diabo, entre o gênero literário do conto e da novela no século XIX e as narrativas das Vidas dos santos, de modo que a subversão passa – voluntária ou involuntariamente, pouco importa – a adentrar a hagiografia, oscilando entre exemplaridade e contra-exemplaridade, entre fatos históricos e confabulações de ordem sobrenatural-taumatúrgica. Segundo Rainer Warning, o signo linguístico desaparece na literatura de ficção como “verniz sobre o quadro”. A literatura de ficção visa uma “espessura poética e uma opacidade” (WARNING, 2009, p. 25). Neste caso, a carga semântica do signo é tão compactada em imagens concretas, que a Palavra divina por detrás delas se torna simplesmente palavra perdida na rede de significados.

As lendas hagiográficas, narrativas exemplares e de estruturas pré-moldadas, destinavam-se ao uso litúrgico e à diversão popular, principalmente de cunho oral, para um auditório católico majoritariamente iletrado. Seu objetivo era o de edificar o ouvinte através de uma aproximação das Vidas dos santos como imitação do modelo de Cristo a ser seguido, sobretudo na pobreza, elemento fundamental da imitatio Christi, conceito explanado no livro homônimo do século XV atribuído a Thomas de Kempis. Tal imitação das releituras das lendas do século XIX encontrará desdobramentos tanto no âmbito literário quanto no moral: lança-se, transporta-se, translada-se a palavra do Cristo com liberdade, mas nem sempre com a destreza estilística de Eça e Flaubert.

Ao adquirir por vezes traços de personagem de ficção, percebem- -se nos santos-personagens os signos verbais feitos opacos, concretos em sua polissemia poética e semântica, de modo que do campo simbólico católica original produzem-se sutis símbolos ortodoxos. Ambos os santos-personagens, que se revelam peculiares dentro da própria tradição hagiográfica por sua riqueza de variantes, aproximam-se sob as plumas de Eça e Flaubert de personagens literárias. Por personagens entende-se aqui não personagens-santas, como será o caso de certas personagens dos romances de Léon Bloy ou de George Bernanos, por exemplo, em que na ficção romanesca tais personagens revelam características de santidade e percursos hagiográficos.

Se no texto canônico, o signo linguístico origina-se em princípio da Palavra divina, na hagiografia, a palavra se concretiza na experiência humana. E na empreitada artístico-estética de Eça e Flaubert, a reescrita hagiográfica desdobra a unicidade divina na multiplicidade da experiência humana de Cristo. Os santos, a partir do modelo de Cristo, situam- -se entre o divino e o humano, representam a pluralidade semiológica da manifestação divina. Perguntamo-nos então: estaria a hagiografia fadada a transformar-se em literatura e a perder seu potencial exemplar didático?

Considerando as observações a respeito da reescrita bíblica distintamente da reescrita hagiográfica, sob quais aspectos consistiria a retomada da narrativa exemplar, transposta ao gênero literário do conto lendário do século XIX, em uma subversão da própria vida dos santos? De que maneira as novas representações, embora ancoradas no modelo lendário, não implicariam uma subversão do próprio modelo hipotextual? Seria possível identificar um potencial doutrinário no texto literário? Do ponto de vista da recepção do texto, poderíamos pressupor que os objetivos da narrativa hagiográfica – transmitir um modelo exemplar ao leitor – passam por uma subversão nesta transferência da lenda à narrativa de ficção?

Das formas simples à ficção: elementos de narração hagiográfica

A investigação da lenda hagiográfica como forma literária revela expressão explícita de uma consciência sobre a própria composição palimpséstica do texto; na lenda como “forma simples”, segundo a definição de André Jolles e como forma primitiva de ficção, encontram-se também as perspectivas de uma faceta da literatura do século XIX, principalmente nos gêneros novelescos e romanescos inspirados pelas Vidas de santos. Jolles entende por “forma simples”:

Penso naquelas formas que não se deixam explicar, nem pela estilística, nem pela retórica, nem pela poética, talvez nem mesmo pela ‘escrita’, que não se tornam obras de verdade, embora façam parte da arte, que não constituem poemas embora sejam poesia, em suma, naquelas formas que se costuma chamar de Lenda, Gesta Mito, Charada, Locução, Caso, Memorável, Conto ou Piada (JOLLES, 1972, p.17 trad. nossa).

A lenda e mito são dotados de uma porosidade que lhes é característica, permitindo que a transformação de detalhes traga modificações importantes à narrativa lendária, ao ser adaptada a cada contexto cultural. Tais narrativas do século XIX, inseridas na própria tradição lendária, consistem em uma reconstituição de um mundo, fantástico e alegórico. A exemplaridade embasa o texto, embora tal tratamento religioso seja sutilmente estendido a novas configurações da estética literária do final do século XIX. Assim, elementos da imagética pia, por exemplo, são indicados nas narrativas de Eça e Flaubert. Há, sobretudo, uma imitatio – não de ordem moral, mas literária – , na qual a edificação não é objetivo, mas um detalhe que se revela, enfim, transparente e literal: Cristóvão carrega o Cristo nas costas e Julião leva dentro de sua barca o Cristo transfigurado em leproso para ascender, por fim, ao céu abraçado a ele. Ao carregar o Cristo, ambos levam adiante a doutrina cristã.

No caso de Eça, a atemporalidade observada por Ana Siqueira (SIQUEIRA, 2013, p. 195), característica da lenda como “forma simples” embora igualmente aplicável a Flaubert, consiste em uma técnica de contraposição ao individualismo do século XIX. Se, de fato, Cristóvão e Julião estão pouco envolvidos em causas sócio-religiosas nas hagiografias (assim como como seus novos hagiógrafos não são alheios aos acontecimentos históricos de sua época), trata-se contudo, não somente em São Cristóvão, mas também na Legenda de São Julião Hospitaleiro, de uma contraposição ao personagem romanesco em voga no século positivo-naturalista. Entretanto, não se pode dizer que Eça e Flaubert, assim como J.-K. Huysmans, não se tenham valido de certas técnicas literárias dessas escolas, em um empréstimo de tipo mais formal do que conceitual2.

A atemporalidade característica de muitas lendas embora não seja necessariamente uma premissa, parece conduzir o olhar do leitor, que ignora a época precisa em que se passam as histórias, a uma visão geral de sua época. No caso do século XIX, leva-o a enxergar aspectos sociais, políticos e religiosos daquele momento de maneira direta. Característica de muitas hagiografias tradicionais, observa-se uma mesma autoridade narrativa. O narrador das Vidas de Santos de Eça oculta- -se muito mais do que o de Flaubert em São Julião, pois toda a neutralidade deste desmorona ao fim da narrativa quando o narrador-Flaubert conclui revelando a origem e a inspiração da própria narrativa: “E eis a história de São Julião Hospitaleiro, aproximadamente tal qual se encontra em um vitral de igreja, em minha terra” (FLAUBERT, 1910, p. 126).

Dentre a pletora de hipotextos lendários, ressalta-se a lenda de São Cristóvão conforme a Legenda Aurea de Tiago de Voragine. Essa parece ter servido de inspiração tanto para Eça quanto para Flaubert. Se na Legenda de São Julião Hospitaleiro estão marcados o gosto enciclopédico e a lendária obsessão de Flaubert pela pesquisa, que consiste na consulta de pilhas de volumes para a redação de uma simples frase, o gosto de Eça pela pesquisa é, embora presente, mais moderado, e suas motivações são outras. Jaime Cortesão observa que dificuldades financeiras levaram Eça a trabalhar sob penúria, nos últimos anos de sua vida sobre volumes enciclopédicos (CORTESÃO, 2001, p. 24). Efetivamente, a sucessão de descrições da fauna e da flora permeia o texto de ambos autores, o que confere à legenda ao mesmo tempo uma contribuição à construção do contexto maravilhoso e ao efeito de real barthesiano, conforme descrito como característico do realismo do século XIX.

São Cristóvão data de meados de 1890, mas só será publicada postumamente em 1912. A lenda primordial de Cristóvão origina-se a partir da narrativa gnóstica dos Atos de São Bartolomeu. Segundo essa lenda gnóstica, Deus envia em ajuda a São Bartolomeu e a Santo Andre um gigante antropófago e quinocéfalo – o motivo da cabeça de cão é, aliás, mais comum na tradição hagiográfica oriental. Seu nome é Maldito. Batizado por um anjo, ele passa a se chamar Christianus. Em outra fonte, a Passio Christophori, a estrutura narrativa é análoga à dos Atos de São Bartolomeu: um gigante, também quinocéfalo e antropófago chamado Reprobus passa a se chamar Christophorus3 . O tema exemplar aqui é o da vida indestrutível e da superação de todos os suplícios até a decapitação final no martírio do santo. Posteriormente, o culto de Cristóvão, muito difundido no Oriente, chegará na Itália, França, Alemanha e Península Ibérica a partir do século VIII, as mesmas regiões onde São Julião teve um culto importante.

De acordo com o Calendário dos Santos, a festa de São Cristóvão em 25 de julho coincide com a de outro santo peregrino: Santiago de Compostela.

Eça, inteirado da hagiografia portuguesa, apelida suas três Vidas de Santos (São Cristóvão, Santo Onofre e São Frei Gil) de “neoflós-santorismo”, em referência às Flos sanctorum de 1869, coletânea seminal da tradição literária hagiográfica ibérica previamente difundida no século XVII pelo Padre Ribadaneira e cujas versões de lendas devem bastante às da Legenda aurea. Em São Cristóvão, Eça representa o caminho de um santo errante, de enormes proporções que serviu ricos e empunhou revoltas populares. Simplório, assim como a Félicité de Um coração simples – a simploriedade é elemento central nos retratos de santidade – Eça descreve Cristóvão perplexo com um livro que narra a vida de um Jesus que, apesar de ele ignorar quem seja, ama:

Eram linhas negras que não compreendia: mas uma emoção tomou-o diante de imagens cheias de cor. Parecia ser uma história – e começava por uma criancinha, que num curral, entre uma vaca e uma jumenta, sorria, tocada de estrelas, nos joelhos duma mulher pálida (QUEIRÓS, 2002, p.46).

Se São Cristóvão desvia da hagiografia por um tratamento novelesco que privilegia o aspecto humano deste santo-personagem, que até o fim da narrativa ignorava transportar o Cristo, histórias mais antigas do santo não o representavam como porta-Cristo. Segundo Rosenfeld, trata-se de uma Wortillustration: “ilustração da palavra pela imagem (ROSENFELD, in GRUMEL, 1938, p.468)”. O santo será visto graficamente pelos fieis levando o Cristo para que possa ser identificado pelos espectadores com seu nome – Cristo-phorus.

O recurso literário do narrador latente, ainda que este venha a se revelar no fim, opera não como garantia para a atemporalidade e amplitude da palavra de Cristo que supostamente transmitiria, mas como resultado de uma estrutura narrativa que embora lance o olhar do leitor ao coletivo, mantém ao mesmo tempo uma individualidade acentuada por um Eu, latente ou explícito, no texto, no controle das escolhas estruturais e lexicais.

Subversão original, subversão literal?

Ambas histórias distinguem-se da reescrita de cunho bíblico que tanto Eça quanto Flaubert empreenderam. A proposta flaubertiana de modificar esteticamente um episódio bíblico neotestamentar em Hérodias equivale a desviá-lo de seu sentido original, consistindo em uma subversão sutil ; tão sutil quanto a que é praticada na Legenda de São Julião Hospitaleiro dentro do contexto lendário-hagiográfico. Eça também manifesta interesse na reescrita bíblica, aqui no âmbito veterotestamentar do Gênesis em seu Adão e Eva, embora traços explicitamente neotestamentares e hagiográficos coexistam com a tradição franciscana em sua obra:

Muitas são as páginas de Eça de Queirós que fazem referência a S. Francisco de Assis, principalmente a partir da Correspondência de Fradique Mendes. Quando em 1889 delineia o necrológio de D. Luís, S. Francisco surge-lhe como o protótipo da “bondade heróica.” Daí por diante nenhum outro santo aparece com tanta frequência na sua literatura. No escrito Um Santo Moderno S. Francisco é tido como um dos três santos “mais puros da Cristandade”, e logo depois, em Positivismo e Idealismo, chama-lhe “santo incomparável (SIQUEIRA, 2013, p. 185).

Há forte presença do campo estético dos Fioretti franciscanos em São Cristóvão, sobretudo na relação do santo com a natureza e com a humildade.

Dadas as devidas distinções, o discurso literário de ambas narrativas, bem como o discurso bíblico ou lendário que serve de palimpsesto, é eterno. Flaubert inclusive observa: “Nenhum grande gênio concluiu e nenhum grande livro conclui, porque a própria humanidade está caminhando e ela não conclui. Homero não conclui, nem Shakespeare, nem Goethe, nem a própria Bíblia (FLAUBERT, 1857, p. 340).”

Assim como os grandes livros não concluem, a interpretação simbólica é, se não infinita, ao menos multifacetada. Na Legenda de São Julião Hospitaleiro abundam as representações literais da cristoforia em imagens banais e concretas da simbologia cristã. Por exemplo, quando menino, Julião aprendia as letras literalmente “nas alturas”, do alto de uma torre, com um velho monge, e encantava-se com as ilustrações: “Um velho monge muito erudito ensinou-lhe a Sagrada Escritura, os números árabes, as letras latinas e a fazer pinturas graciosas sobre pergaminho. Trabalhavam juntos, no alto de um torreão, longe do barulho.” (FLAUBERT, 1910, p.82 4)

Mas tais acréscimos semânticos nos símbolos não seriam, antes de serem subversões hagiográficas, características da própria (re) escrita legendária e da porosidade do gênero? Citemos como exemplo a ascensão de Julião em todo seu sugestivo potencial imagético:

O leproso gemia. Os cantos de sua boca deixavam os dentes à mostra, um estertor acelerado sacudia-lhe o peito, e seu ventre, a cada expiração, afundava-se até as vértebras. Depois ele fechou as pálpebras. — É como se tivesse gelo nos ossos! Vem para junto de mim! E Julião, afastando a lona, deitou-se sobre as folhas mortas, junto a ele, lado a lado. O leproso voltou-se. — Despe-te para que eu tenha o calor do teu corpo! Julião tirou suas vestes; em seguida, nu como no dia de seu nascimento, voltou à cama; e sentia contra sua coxa a pele do leproso, mais fria que uma serpente e áspera como uma lima (FLAUBERT, 1910, pp.123-124).

Nos Três contos, é recorrente a kenose paulina, ação de desnudar-se e de desprover-se, uma negação em certo sentido. Vislumbra-se um Deus incapaz de manifestar-se, o que encerra um paradoxo importante : o da impotência divina e consequentemente sua manifestação em imagens concretas e muitas vezes banais. No caso de Julião, ela se revela na ascensão do santo recém-feito ao céu, após ter transportado e abrigado o leproso ignorando se tratar de Cristo transfigurado. A Legenda de São Julião Hospitaleiro corresponderia, talvez, demasiado ao pé da letra, ao transporte do Cristo mencionado por Voragine na Lenda de São Cristóvao da Legenda Aurea: transportar o cristo « em seu corpo por meio da maceração.” (VORAGINE, 2004, p. 537).

Tal ascensão que sucede a série de macerações manifesta uma negação do sujeito; a imitação de Cristo, ponto de partida rumo à experiência mística, compreende no caso do texto de Flaubert, a negação de si mesmo e não a salvação esperada pelo cristianismo tal qual se observa, por exemplo, na mística de um Berulle ou de um Blanc de Saint-Bonnet, que também consideram a dor como meio à experiência mística. Esta, em Flaubert, é de outra ordem. Trata-se de uma “mística ateia”, revelada não apenas em sua obra ficcional, mas também em sua correspondência, onde expressa um certo desprezo pelo catolicismo (BIASI, 1986, p. 75). Pouco surpreende aqui que a estética textual se torne um ideal e suplante a fé cristã. Fazendo de uma curiosa releitura dos pilares da Poética de Aristóteles a sua própria poética, Flaubert pressupõe decerto o Belo e o Bem como condições do Verdadeiro. Tais categorias, contudo, se opõem radicalmente às acepções classicistas: para Flaubert, o Belo e o Bem podem estar mascarados, como no caso de Julião, em categorias opostas, como as que compõe o leproso, disfarce de Cristo. Para Flaubert, a função do artista é mostrar a Beleza e a Verdade da existência e transmitir tal verdade através da palavra –, ainda que tal palavra seja feita opaca pelos artifícios do escritor e venha a ser revelada em sua concretude inabitual. Flaubert confessa em sua correspondência que “[ess]a preocupação com a Beleza exterior que a senhora me censura é para mim um método. Quando descubro uma má assonância ou uma repetição em alguma de minhas frases, estou certo de estar pisando no Falso.” (FLAUBERT, 1884, p. 279.) Para Flaubert, a busca do Belo e do Bem nasce de um certo desapego – ponto em comum da mística cristã e da escrita flaubertiana ao mesmo tempo –, “um desinteresse do eu através de uma fuga de si mesmo”, como observado por De Biasi. Comungam-se mística e estética em um fusão na qual experiência artística e religiosa se aliam por meio da dor, a exemplo das provações vividas por Julião.

Nas lendas hagiográficas, é providencial que a palavra de Cristo se encontre no centro dessas narrativas, sejam essas lendas reescritas literárias ou destinadas à edificação moral. As técnicas de composição, a exemplo da narrativa em “mosaicos” conforme o vitral da Catedral de Rouen na Lenda de São Julião remetem não só às lendas hagiográficas como aparato didático de doutrinação e exemplaridade católica, mas também a uma escrita literária e de gosto popular, repleta de elementos provenientes do folclore e do conto maravilhoso. Flaubert e Eça bem sabem dispor tais elementos mantendo alguns e subvertendo outros. Para eles, a intenção de transportar e transmitir a palavra de Cristo, é apenas um elemento da composição, um elemento estético que se sobrepõe ao cunho religioso da hagiografia exemplar.

A cristoforia em São Julião, afastada da imitatio Christi hagiográfica, é um trajeto peculiar. Eça de Queiroz, ao contrário, aproxima seu Cristóvão de um imitador de Cristo, que, néscio e naturalmente bom apesar de sua aparência de gigante monstruoso, é um verdadeiro combatente na luta social das classes oprimidas. Por isso, em sua análise, Claudia Pinto atenta à relativização do aspecto reacionário na obra de Eça. Apesar da temática católica-hagiográfica de São Cristóvão, de fato não há muito de reacionário nesse texto. Pode-se afirmar que mesmo se aplica ao autor da Legenda de São Julião Hospitaleiro. Há em ambos autores principalmente um desdém à burguesia, que no caso de Eça, estende-se à nobreza a ao clero, se recorrermos por exemplo a seu texto “O Bock ideal”. Eça, apoiando-se no cristianismo primitivo e no aspecto sócio-espiritual franciscano, critica o clero em São Cristóvão como fez em outras narrativas utilizando a própria hagiografia de Cristóvão para criticar o clero português:

E para quem ia todo o fruto de seu trabalho? [...] Para que o Senhor tivesse armas, ele não tinha lume, e tremia de frio. Para que o Bispo tivesse banquetes, ele não tinha pão, e empalidecia de fome. Para que o Intendente vivesse em casas cobertas, ele vivia em tocas que suas mãos cavavam na terra (QUEIRÓS, 2002, p. 82).

Se Julião e Cristóvão participarão de lutas, Eça e Flaubert ressaltam também a solidão e o ascetismo, de modo que ambos os santos retomam inclusive um aspecto místico e pré-adâmico, presente tanto no gigante parvo quanto no parricida arrependido. Julião também é um combatente em busca de expiação de seus pecados, motivo particularmente acentuado nas hagiografias do século XIX retomado por Flaubert. Esse motivo vai ao encontro de uma técnica das hagiografias que visam atrair a atenção do público fiel:

Os exercícios ascéticos, as penitências e as macerações dos santos, sua caridade ardente, sua abnegação heroica, não poderiam ter cativado por si sós um auditório frívolo e leviano, que só aspirava batalhas, amores, brasões, torneios e aventuras; ademais nem sempre a verdade histórica presidia nesses contos devotos, e a pia fraude do narrador, para dar algum charme às verdades úteis que ele desejava que fossem escutadas, imaginava em homenagem aos santos uma alta genealogia, perigosas viagens, brilhantes feitos d’armas em meio a combates ou grandes golpes de espada de encontro a diabos, e mil ficções maravilhosas que não o fariam ceder aos gestos mais poéticos dos semideuses da fábula, se essas tivessem sido cantadas por um Homero, um Virgílio, um Hesíodo ou um Sófocles (NEEFS, 1982, p.133, trad. nossa).

As vidas de Cristóvão e Julião, desde sua gênese, são pouco ortodoxas, já não tão usadas para fins litúrgicos pela Igreja e pelos fiéis católicos. Tal problema deve-se às transformações que suas histórias sofreram ao longo do tempo. No âmbito literário da narrativa de cunho católico reescrita por autores não confessionais, há uma motivação de palingênese do tão relegado espírito cristão-primitivo dentro daquele contexto social burguês do século XIX e de laicização, que reemerge sob novos traços e que se permite liberdades.

Os hipotextos consultados por Flaubert são mais tradicionais, do ponto de vista narrativo hagiográfico, do que a sua Legenda de São Julião Hospitaleiro, pois aqueles ressaltam com insistência intermitente as virtudes do santo e a palavra do Cristo. Entretanto, a pobreza como meio de ascensão divina e como acesso ao Cristo, que tanto Julião quanto Cristóvão transportarão em suas renúncias de bens materiais em prol da contemplação em Deus, está presente, notadamente em um contexto cortês que os dois santos fazem parte. No caso de Cristóvão, o caráter social é ainda mais acentuado, e a narrativa se relaciona mais diretamente a um contexto histórico revolucionário do século XIX do que a narrativa de Flaubert. A crítica à opulência, clara e direcionada em São Cristóvão, é um elemento constitutivo da natureza ambígua de Julião (riqueza/pobreza; vida mundana/vida religiosa; impiedade/piedade), que será superada em sua vida ascética.

Dois topoï

A seguir serão aqui tratados dois topoï recorrentes em ambas narrativas: a natureza relacionada ao paganismo e o próprio transporte de Cristo. Veremos como a reescrita hagiográfica não se limita à adulteração subversiva da hagiografia; é uma concretização simbólica, literal e dilatada.

Representações diabólicas e pagãs: anti-exemplos

As primeiras vitae de São Cristóvão e São Julião provém de elementos alheios ao cristianismo. A versão antiga de Cristóvão quinocéfalo indica uma derivação do deus egípcio Anúbis, e a lenda medieval de Robert le Diable, que nasce de uma mãe que o concebera por intermédio de uma invocação a Satã e que trará consequências em sua vida adulta. Posteriormente, esse guerreiro sanguinário será convertido ao cristianismo. A partir de suas conversão e ascese, os ensinamentos edificantes em suas hagiografias são instrumentos para consolidação da fé católica em fieis. Ademais, em um possível cruzamento de elementos, a lenda de Julião, principalmente a versão da Legenda aurea, pode ter fornecido influências para a composição das lendas sobre Cristóvão e vice-versa.

A trajetória de Reprobus, que após a conversão passará a ser chamado de Cristóvão, constitui uma travessia espiritual do paganismo ao cristianismo. Reprobus queria a princípio servir a quem detivesse o poder. Começa então servindo a um rei, mas o deixa em seguida pelo diabo ao saber que o rei teme o diabo. Ao saber que o diabo teme a Cristo, encontra finalmente a fé cristã. Na versão de Tiago de Voragine, lê-se que Cristóvão, perfeito na fé cristã, foi capaz de levar “quarenta e oito mil homens do erro do paganismo rumo a observância da fé cristã” (VORAGINE, 2004, p. 544, tradução nossa).

Julião atravessa igualmente uma travessia até sua ascensão celeste. Durante uma caçada, o ávido e sanguinário anti-herói flecha um cervo em cujas galhadas vê o Cristo crucificado, envolto em luz, e que lhe prevê uma desgraça. Julião assassinará seus próprios pais. Quanto a Cristóvão, após sua conversão ele ainda passará pelas provas diabólicas em sua retirada eremita, até concluir a travessia da experiência da santidade:

Aos eremitas que vinham esfomeados, os diabos ofereciam longas mesas, cobertas de flores, onde os pavões assados arqueavam as penas entre os montes de frutas e os blocos de gelo; aos que tinham sido cavaleiros, mostravam montes de ouro, armas invencíveis, longos exércitos para ir conquistar reinos e saquear cidades ricas; aos velhos faziam ofertas de mitras, que lhes dariam entre os homens a suprema autoridade das coisas santas; - e a todos a tentação suprema, a Beleza, a Mulher, ora magnífica, desenrolando as tranças, erguendo uma túnica de gaze, ora delicada, escondendo com os braços o peito nu, e sorrindo fragilmente. (QUEIROS, 2002, p. 68)

Se a descrição da natureza de fato evoca a presença do paganismo em ambas as narrativas, essa mesma natureza e a simbiose do santo com ela não podem ser simplesmente consideradas como uma presença um tanto subversiva do paganismo nas lendas hagiográfica. A presença de elementos pagãos é necessária, pois dela parte a conversão, explicando-se assim a transição e a superioridade cristã nas hagiografias. Eça traça Cristóvão como “um ogro disforme dos contos de fadas” (QUEIROS, 2002, p.115) e como um santo profundamente comungado com a natureza. Entretanto, o cerne de tal envolvimento não é de todo pagão; o Cristóvão eciano parece evocar sobretudo modelos franciscanos de santidade, modelo esse que era caro a Eça, sobretudo no amor aos animais, na simplicidade e na pobreza:

Nunca mais ninguém, é certo, tendo fixo sobre si o olho rutilante e irônico da ciência, ousará acreditar que, das feridas que o cilício abria sobre o corpo de S. Francisco de Assis, brotavam rosas de divina fragrância. Mas também, nunca mais ninguém, com medo da ciência e das repreensões da fisiologia, duvidará em ir respirar, pela imaginação, e se for possível colher, as rosas brotadas do sangue do santo incomparável. E isto é para nós, fazedores de prosa ou de verso, um positivo lucro e um grande alívio (QUEIRÓS, 1951b, p. 267).

A descrição de uma natureza rica, cujas flora e fauna referem-se claramente ao espaço português é um elemento problemático por ser ambíguo, sendo perceptível a indicação de uns certos laivos pagãos. Trata-se de uma narrativa mais literária do que hagiográfica, na qual o santo futuro não apenas comunga com a natureza; ele é também diretamente associado à própria natureza desde seu nascimento:

Dormindo, a sua respiração era mais que uma brisa entre ramos; ao acordar os seus gritos abalavam a cabana; e na sua voracidade, sem parar, secava o leite da mãe, chupava através de um pano largos pedaços de mel silvestre, e ficava trincando com impaciência o dedo que, para o consolar, o pai lhe metia entre as gengivas, mais duras que pedras. E, no entanto, aquela monstruosidade, que o assemelhava a uma grossa e negra raiz, compunha em formas familiares de um corpo grosseiro, mas humano. A pele, perdida a aspereza negra, era lisa e vermelha como uma casca de maçã […] (QUEIROS, 2002, pp. 22-23).

As longas passagens descritivas do gigante, que por vezes é associado aos reinos animal, vegetal e até mineral, corroboram o franciscanismo, se a essas descrições o leitor associar as passagens de cunho sociopolíticos em São Cristóvão e em “O Bock ideal”. Afinal, a riqueza e o luxo dos senhores feudais são denunciados pelo narrador como oposição à santidade: a presença franciscana garante ao mesmo tempo a espiritualidade do poverello de Assis que por sua vez se baseia no cristianismo primitivo e a crítica social.

Outro traço supostamente pagão de Cristóvão é seu hirsutismo, embora esse não sugira menos aproximação a Pã do que a uma vertente hagiopictórica de santos representados como selvagens e animalescos, conforme as pinturas dos primeiros anacoretas do cristianismo oriental os figuram. Sua representação imagética se estende até a Baixa Idade Média e adentrará o espaço europeu5 . Inclusive é exatamente esse o retrato hagiográfico que Eça pinta em outra Vida de santo: a de Santo Onofre, em conformidade à hagiografia pictórica do eremita. Segundo Piva, “[o] monstruoso [em Cristóvão] é signo do divino” (PIVA, 1970, p.290), característica que também ressoa tanto em um Julião sedento de sangue quanto em um Cristo-leproso abjeto.

A primeira publicação de a Legenda de São Julião Hospitaleiro data de 1877, ano do movimento ultramontano na França, quando os legitimistas, valendo-se da mística, fazem da religião o estandarte de sua política reacionária. Donde o caráter subversivo da publicação de Flaubert e a sutil problematização acerca da mística e da santidade.

Julião não é servo como Cristóvão, e sim nobre de nascença. Por toda a narrativa destaca-se um mundo ora rico ora pobre, ora cristão ora pagão, ora divino ora diabólico. No início da Legenda de São Julião Hospitaleiro, por exemplo o heliótropo e manjericão já anunciam respectivamente a representação de bem e mal, de profano e sagrado, presente no bestiário demoníaco e divino das caçadas de Julião:

As lajes do pátio eram limpas como o ladrilho de uma igreja. Calhas compridas, figurando dragões de goela para baixo, cuspiam a água das chuvas para a cisterna; e no beiral das janelas, em todos os andares, num vaso de cerâmica pintada, um manjericão ou um heliotrópio florescia (FLAUBERT, 1910, p.78).

Sedento de sangue, Julião depara-se com um cervo. Este profetiza que Julião assassinará seus pais por engano, e a profecia se realiza. Culpado, o parricida “part[e], mendigando sua vida pelo mundo” (FLAUBERT, 1910, p.78), tornando-se por fim eremita, recolhido à beira de um rio, orando, macerando-se e transportando passageiros em seu barco. A narrativa de Flaubert diverge aqui da versão de Tiago de Voragine e da de Lecointre-Dupont, do século XIX: nelas Julião não está sozinho como o eremita que é na narrativa de Flaubert, mas mora com sua mulher.

Observa-se na versão de Lecointre-Dupont a mistura entre pesquisa folclórica e lenda literária, rica diversos elementos românticos, a exemplo do gosto acentuado por descrições locais e paisagens, como se observa na passagem em que o autor descreve a tempestade antes do encontro com o leproso, em uma descrição ausente na Legenda aurea:

Tendo acendido a lanterna, Julião saiu da cabana. Uma tempestade furiosa tomava a noite. As trevas eram profundas, aqui e ali rasgadas pela brancura das ondas que se erguiam. Após um minuto de hesitação, Julião desatou a amarra. A água de repente ficou tranquila, o barco deslizou e tocou a outra margem, onde um homem esperava (FLAUBERT, 1910, pp.120-121).

A coexistência do mundo secular e do mundo religioso em Lecointre-Dupont, também presente em São Cristóvão, é um traço fantasista, ainda virgem de certo positivismo, e marcado pela ideia de que “as santas legendas encantavam os lazeres do palacete feudal” (G. Lecointre-Dupont, 1839, p. 3, trad. nossa)

Nas ficções hagiográficas de Eça e Flaubert, não se trata de combater o paganismo através da exemplaridade, que, aliás, sequer existe ali; tampouco se trata de exaltar sutilmente o paganismo. A palavra de conversão, que nas narrativas edificantes passa do paganismo ao cristianismo é desprovida de valor doutrinário: Eça e Flaubert, escritores de ficção, transportam aquelas narrativas servindo-se das mesmas palavras, justapostas a outros signos verbais, a uma condição textual em que a palavra parece adquirir valor autárquico, rica em polissemias, em que a própria busca estética e artística confere ao texto um tratamento distinto daquele que a hagiografia tradicional faz da palavra. O signo verbal hagiográfico deixa de ser símbolo exclusivo e uno para desdobrar-se em uma pluralidade semântica de metáforas, em que a estética se prevalece da edificação para fins estéticos. Qualquer menção ao paganismo opera como etapa a ser superada, no caso da hagiografia tradicional, para o encontro final com a verdadeira fé cristã ou, no texto literário, como elemento oposto que construirá no texto solidez não espiritual, mas estética à narrativa.

Transporte e ascensão

Tanto o conto de Flaubert quanto a novela de Eça encerram-se com o translado de Cristo: Cristóvão transporta um belo menino que lhe pede passagem (nos primeiros textos medievais, Cristóvão transporta um homem de barba). Cristóvão sonhara com essa imagem, “[...] criança tão linda, tão nobre com seus cabelos de ouro” (QUEIRÓS, 2002, p. 87). Julião, ouve a voz de um leproso que lhe solicita travessia e a quem o parricida, prestes a tornar-se santo, dá abrigo em uma comunhão literal:

Julião estendeu-se por cima completamente, boca na boca, peito no peito. Então o leproso abraçou-o; e seus olhos subitamente ganharam uma claridade de estrelas; seus cabelos alongaram-se como raios de sol; o sopro de suas narinas tinha a suavidade das rosas; uma nuvem de incenso elevou-se do fogo, as águas cantavam. (FLAUBERT, 1910, p.124)

O transporte literal do Cristo executado por Julião e Cristóvão estende-se do contexto hagiográfico-literário do texto à própria composição de tais narrativas. Os autores Eça e Flaubert transportam por sua vez as narrativas, representando um reposicionamento da Palavra de Cristo em homens que vivem à sua imagem, os santos. Um translado, tanto no sentido de uma imitatio Christi quanto de movimento, inserido na própria tradição material hagiográfica – translatio – , em que as relíquias do santo são transportadas de um lugar como o túmulo a outro para que sejam veneradas, por exemplo, em uma Igreja. Nesse deslocamento os objetos santos, concretos, são acrescidos de valores e de histórias, assim como são os elementos que representam a cristoforia.

A reescrita hagiográfica consiste em uma escolha formal. Não é conversão, nem ato de fé, tampouco militância por parte dos autores. Flaubert define-se como um “místico ateu” e Eça não demonstra vocação religiosa. Este, em semelhança a Flaubert, menciona um “renascimento espiritual” (PINTO, 2008, s/p) muito próximo ao “sentimento religioso” que fascina autor dos Três contos. Esse “renascimento espiritual” para Eça seria “benéfico — benéfico como todos os nevoeiros, repassados de fecundo orvalho e donde as flores emergem com mais viço, mais cor, mais graça” (QUEIRÓS, 1979, 2, p. 1500, in PINTO, 2008, s/p) e associado ao trabalho. Ambos autores padeciam de um mal literário, uma obsessão de escrita, quando escreviam e também quando não escreviam. É o profundo tédio que atravessa correspondência de Flaubert, o mesmo “tédio do ócio” que Antônio Sérgio (SÉRGIO, 1946, p. 150, in PINTO, ibid) descreve em Eça. Temos aqui dois autores narrando experiências ascéticas sendo ascetas da literatura, embora esse epíteto não deva ser empregado sem comedimento.

A versão da Legenda de São Julião Hospitaleiro de Langlois (LANGLOIS, 1823) à qual recorreu Flaubert também evidencia a cristoforia do santo na passagem – inclusive no sentido literal e narrativo do termo – da mesma tempestade descrita por Lecointre-Dupont, onde o narrador atribui a Julien a designação de “passeur” de um leproso que se revelará enfim o Cristo, em conformidade à Legenda aurea. O já mencionado motivo da tempestade, no tratamento de Flaubert, constitui um “toque” romântico ao texto, um gosto medieval romântico revisitado.

Em São Cristóvão, Eça representa a ponte entre o divino e o humano de nova maneira no contexto de sua obra entre 1880 a 1900. Segundo Piva, “uma frase bela agrada [aos portugueses] mais do que uma noção exata”. É a mesma busca de Flaubert, a da frase perfeita de um escritor e deleitado com a própria reescrita da lenda em si. Contrariamente ao espírito dos compatriotas franceses contemporâneos de Flaubert, em Eça a “[...] a fantasia e a eloquência [que] serão [para os portugueses] a marca do homem superior” é lembrada por Piva (PIVA, 1979, p.283).

No desfecho de São Julião, a simbologia da travessia do santo difere daquela do Cristóvão de Eça. O leproso, transportado, alimentado e aquecido pelo próprio Julião é o Cristo. A cena de Julião, santificado, em ascensão ao céu remete à estética das imagens pias do século XIX; o kitsch das pequenas imagens e estatuetas pias do século XIX sucede ao abjeto, a doença se transforma em salvação. Desfazse o paradoxo da lepra que, na Idade Média, representava impureza e pecado. Concretizado em imagens, artisticamente re-significado e re- -simbolizado, os paradoxos sujeira/pureza, pecado/graça esclarecem-se na luminosidade dos termos que descrevem a subida – “uma nuvem de incenso elevou-se da chaminé, as ondas cantavam” (FLAUBERT, 1910, p.124), em uma união do homem com o divino que é em Flaubert carnal e espiritual. O trabalho de reescrita hagiográfica consiste, portanto, em uma releitura dos lugares comuns e dos catálogos de motivos das lendas, preservados e mantidos, engessados e pintados, aquarelados, antigos e contemporâneos.

Em São Cristóvão, a cristoforia reside na oposição do gigante monstruoso que transporta o belo menino Jesus, ao passo que na Legenda de São Julião Hospitaleiro, o próprio Deus, de leproso, transforma-se em Cristo, o que revela um quiasma estético entre as narrativas e, portanto, um caráter mais literário do que exemplar. As oposições de dois santos cristóforos, de trajetórias semelhantes, aponta para a liberdade que a reescrita ficcional e literária da hagiografia prossegue com a própria vida-útil da lenda mutante em suas sucessivas versões e adaptações a contextos socioculturais específicos ao longo da história.

Como observa Biasi, o aquecimento do leproso na solidão de Julião penitente ganha em Flaubert, se compararmos sua narrativa às reescritas românticas, maior potência dramática:

[...] é quase certo que Flaubert escolheu deliberadamente, no texto bastante teatralizado de Langlois, tomar emprestado as evocações e as expressões que lhe pareciam mais fortemente marcadas pelo estilo hiperbólico dos anos 1830 (BIASI, 1986, p.92, trad. nossa).

Flaubert não se apossa simplesmente de uma estrutura simbólica lendária encerrada nas Escrituras tomando para si certas “liberdades”. A ficção flaubertiana contém sem dúvida elementos bíblicos e hagiográficos, mas nela – assim como as descrições de feudos e das jacqueries em São Cristóvão – encontra-se ao lado de elementos orientalistas típicos do século, uma descrição cotidiana e laica da vida em uma Idade Média feudal, que em Flaubert é mais acentuada do que nos outros hipotextos pelo tom pitoresco. Flaubert manifesta empolgação a respeito tais detalhes estéticos em sua correspondência, mais do que a respeito do próprio caráter espiritual da lenda: “Encontro detalhes sublimes, e novos; acredito que possa fazer uma cor divertida. – O que você me diz de “um paté de porco-espinho e de um fromenté6 de esquilos?” (FLAUBERT, 1980, pp. 613-614).

Conclusão

As existências de Cristóvão e Julião consistem em longos percursos. Os santos transportam o Cristo, sua principal motivação e modelo, que por sua vez os conduz à santidade. O transporte literal e literário da carga divina, que em ambas narrativas é descrito como árduo:

E ele, num esforço enorme, os braços esticados ao alto e todo a tremer, sustentando o menino, arrojava o peito para a frente, com gemidos que eram mais fortes que o vento. Duas vezes os seus joelhos fraquejaram, ia cair sob a força da torrente; duas vezes, com esforço sobre- -humano, se manteve firme, erguendo ao alto o menino. A água já lhe chegava pela barba, e a espuma das vagas umedecia-lhe os olhos. E, sempre arquejando, rompia, com as mãos a tremer todas do peso imenso do menino (QUEIROS, 2002, p.122).

Na Legenda de São Julião Hospitaleiro, além da visão desagradável do leproso de “hálito espesso como um nevoeiro e nauseabundo” (FLAUBERT, 1910, p.122), o Cristo disfarçado também pesa e dificulta a travessia do rio: “Tão logo entrou, o barco afundou prodigiosamente, esmagado pelo peso; reergueu-se num solavanco; e Julião pôs-se a remar.” (FLAUBERT, 1910, p.121).

O fardo do Cristo torna-se enfim um alívio extático quando Cristóvão e Julião ascendem ao céu, passagens narradas por Eça e Flaubert com especial dramaticidade narrativa, e de maior potência dramática e visual do que nos hipotextos hagiográficos. A travessia de ambas narrativas se apresenta de maneira densa, em um estilo copioso, repleto de frases assindéticas e de sugestões imagéticas. A estrutura também se constrói sobre justaposições, divididas em quadros, os scénarios flaubertianos. Garante-se pela vertigem o aspecto maravilhoso das lendas: o gigante Cristóvão é uma hipérbole e o sobrenatural abunda em Julião. Ambas reescritas usufruem da porosidade da lenda hagiográfica, possibilitando sua reescrita e adaptações a novos públicos e a novos momentos históricos, absorvendo nessa conformidade tradição folclórica e laica, religiosa e literária.

Se o maravilhoso, aceite e subentendido no horizonte de expectativa do leitor e o cumprimento de milagres são independentes entre si na hagiografia, as reescritas de Eça e Flaubert contém hipérboles de traços romanescos, quase realistas. Os santos são representados de maneira fiel, se por “fiel entendermos “visibilidade”, “concretude”, que conciliam realismo e maravilhoso. Uma escrita, portanto, mais fiel do que propriamente de fé, tampouco hagiográfica em termos religiosos. O estilo trabalhado constrói um paradoxo credível e convida a refletir sobre a própria reescrita. Tal reflexão meta-referencial se encontra, por exemplo, nas alusões a livros e a histórias de santos dentro das próprias narrativas, sobretudo em São Cristóvão.

O paganismo, decerto presente nos dois textos, não é (apenas) uma subversão das hagiografias, à maneira, por exemplo, das vanguardas do século XX. Ela simboliza, em conformidade com a própria lenda dos respectivos santos, a passagem fundamental ao cristianismo em seu potencial de conversão, o que é suspenso pelos autores ao suprimirem as explicações de exemplaridade e ao se colocarem por detrás do texto, como marca d’água que lhes identifica ao mesmo tempo em que os dissipa.

São Cristóvão e a Legenda de São Julião Hospitaleiro são narrativas pouco ortodoxas, não apenas do ponto de vista formal hagiográfico, mas do ponto de vista literário. Vão além das fronteiras temáticas e formais das obras de cada autor e confrontam o positivismo cientificista do século XX. Afinal, como atestar a veracidade dos milagres e a existência de ambos santos? Não pela ciência pura, nem pela ciência da religião como queriam os bolandistas em busca de comprovação de milagres. É a reescrita que repassará adiante a fé, uma reescrita literária. Dilatam-se os detalhes – quem conta uma Vida de santo aumenta um ponto; – as imagens e os símbolos cristãos mantém sua polissemia e carga poética, representados em formas concretas.

Eça e Flaubert buscam a representação do sentimento religioso através do viés estético. E a cristoforia é uma ponte para que os autores representem suas próprias imaginárias e o duplo sentido do termo. A imaginária é sólida, sólida como a imaginária no sentido de estatuária hagiográfica da fabricação de imagens santas. O modo de narrar, portanto, não corresponde ao modo de transportar. A translatio percorre tanto os Três contos de Flaubert quanto as Vidas de Santos de Eça. Subjacente a tais narrativas e à representação de uma santidade que não prescinde à ingenuidade das personagens santas está o projeto literário a partir do palimpsesto. A simbologia de ambas narrativas, cuidadosamente construída pelos autores, por exemplo, no que diz respeito a elementos do paganismo e do cristianismo, será revelada pela própria literalidade da cristoforia: carregar o Cristo, transportar o Cristo é transportar a mensagem católica, procedimento que é feito de maneira exemplar na lenda hagiográfica e de maneira estetizante em Eça e Flaubert.

Nas hagiografias tradicionais, o caráter fictício e ficcional do mito se funde no discurso expositivo do logos para fins de edificação religiosa. Nelas a palavra, signo verbal, desdobra-se ainda em outro sentido de “conversa” do predicador com os fiéis. O Verbum bíblico coexiste com a parábola (o verbete “palavra” em latim vulgar), como técnica narrativa referente à parábola: um discurso alegórico. Do mito de criação do santo, da matéria bruta bíblica, assim fabricam-se as Vidas e as lendas de santos.

Referências

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Notas

[1]Tal transporte literal permeia todos os Três contos de Flaubert. Neles encontram-se representações, bastante concretas do ponto de vista semiológico, desse transporte. Assim, em Um coração simples, existe na personagem Félicité uma clara alusão à cristoforia, por exemplo, quando ela carrega os filhos da patroa na garupa como um animal em toda a sua simplicidade e bêtise: a animalidade e a simploriedade que evocam nesta personagem humana traços dos santos, dentre os quais o próprio Cristóvão de Eça. Ela possui um papagaio, que no texto opera como alegoria de um Espírito Santo, diversa da figuração tradicional do pombo, um tanto heterodoxa. Quanto a Julião, “passeur” que transporta o Cristo, indicaremos adiante traços de cristoforia que se assemelham aos de Ioakanaan (São João Batista) em Hérodias, que por sua vez também parece parcialmente fundamentado na Legenda aurea de Jacobo de Voragine. Os guardas de Herodes Antipas carregam a cabeça de Ioakanaan, posta na bandeja, de maneira alternada, pois é “pesada”, assim como o é a palavra do filho de Deus. Ioakanaan dizia, parafraseando os Evangelhos que era preciso que ele diminuísse para que Cristo crescesse.

[2]Cláudia Pinto (PINTO, 2008, p. 13) observa que a transformação da obra de Eça foi muito mais formal do que temática. Portanto, assim como para Flaubert, não se trata de autores que se converteram, tampouco se trata de uma manifestação pela fé, e sim de um exercício formal. Tal exercício espiritual em um sentido mais literário do que religioso, parece, portanto, centrado na própria escrita literária.

[3] Vide o terceiro capítulo de Der heilige Christophorus, seine Verehrung und seine Legende, de Hans-Friedrich Rosenfeld.

[4]Foi consultada a versão citada, embora para fins práticos tenhamos recorrido à tradução de Milton Hatoum e Samuel Titan Jr. A versão digital da tradução consultada não possui numeração de páginas.

[5]Vide: POUVREAU, Florent. Du poil et de la bête. Iconographie du corps sauvage en Occident à la fin du Moyen Age (XIIIe-XVIe siècle), CTHS, 2015.

[6]Prato medieval da Europa Ocidental, cuja base é trigo moído fervido.