Escrita de si em Etty Hillesum: da condição feminina à experiência mística
Self-writing in Etty Hillesum: from the feminine condition to mystic experience

Tânia Zimmermann*
Cristiano Anderson Bahia**
*Professora do curso de História e do mestrado em Educação e pós-doutora pela Universidade Federal do Paraná. Contato: taniazimmermann@gmail.com
**Doutorando em Ciências da Religião na PUCMG e professor dessa instituicão. Contato: bahia.ca@gmail.com
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Resumo
Este artigo objetiva inquirir os escritos de Etty Hillesum, a partir de uma perspectiva de sua condição humana e de sua privação de liberdade em um campo de concentração nazista. Desse espaço, ela questiona a si e à sua situação de ser mulher, sujeito de desejos para um processo interior de mudança. Para tal encontra, no diário e nas cartas, a voz necessária para acalentar o “eu” e se ancora fortemente na espiritualidade. Aliados a uma pesquisa bibliográfica, perscrutamos seu diário e cartas para estudar as suas diversas experiências e o sentido ético por ela construído. Ao viver dualidades diversas, demonstra certa capacidade para uma ação criada e propiciada por relações concretas e historicamente configuradas. Ela também questiona o feminino e o feminismo e alerta que as mulheres devem resistir à ordem dominante masculina, subvertendo significados a partir de suas mais diferentes possibilidades, incluindo uma retórica emocional e espiritual.

Palavras chave:Feminino, mística, diário, campos nazistas.

 

Abstract
This article aims to investigate the writings of Etty Hillesum from a perspective of his human condition and his deprivation of liberty in a Nazi concentration camp. From this space she begins to question herself and her condition as a woman, subject of desires for an inner process of change. To this end, he finds in the diary and letters the voice necessary to nurture the condition of I and is strongly anchored in spirituality. Combined with a bibliographic research, we scrutinized her diary and letters to study her diverse experiences and the ethical sense she built. By living different dualities, he demonstrates a certain capacity for an action created and propitiated by concrete and historically configured relations. She also questions the feminine and feminism and warns that women must resist the dominant male order, subverting meanings from their most different possibilities, including emotional and spiritual rhetoric.

Keywords:Feminine, mystical, diary, Nazi camps.

Introdução

Virginia Woolf (1822-1941), em tempos recuados, observava a crescente presença da escritura feminina1 a partir do século XIX. Ora, quais eram os sinais dessas mudanças? Estas eram tributárias não mais apenas do desejo de descrever a si próprias numa perspectiva da biografia. Primavam elas agora que seu próprio sofrimento transcendesse outras causas pelas quais lutar, imputando-lhes novos sentidos. Eis a mudança fundamental: desejo imperioso pela escrita delas e não mais pela representação do masculino. Destarte, começaram a escrever mais do que nunca. Muitas dessas mulheres escritoras incitaram explorar também o mundo das mulheres em escalas e gêneros literários variáveis. Então afloraram conexões, fluxos, cruzamentos e circuitos com as intersubjetividades, cujos amálgamas elevavam seus escritos dignos de memoração. Nesse ínterim, eis que apostamos na escritura de Etty Hillesum.

Em “Ruídos da Memória” (1995) Marina Maluf observou que o lugar e o espaço têm grande influência para a escrita. quer seja de si ou sobre a produção de outro gênero de relato. Nesse sentido, a memória individual aduz a recortes da memória coletiva. Então essa reconstituição individual percebida no texto memorialístico, quer seja por cartas e diários, pauta-se registro no qual o/a autor/a é também um/a leitor/a. Etty Hillesum perpassa e amplia essa perspectiva da memória, na qual o passado adentra o presente. Seus escritos coadunam com um tempo de incertezas fascistizantes cuja palavra não é mais efêmera. Hillesum alça a esperança para aqueles e aquelas cujas vidas não importam para o Estado autoritário.

Teria a escritura feminina contornos específicos em relação à memória masculina? Ora, Perrot insiste que sim: (...) “os modos de registro das mulheres estão ligados à sua condição, ao seu lugar na família e na sociedade. O mesmo ocorre com o seu modo de rememoração, da montagem propriamente dita do teatro da memória” (PERROT, 1989, p. 18). Teriam as mulheres uma outra centralidade na memória e em suas práticas cotidianas? Faustino Teixeira entende que muitas mulheres místicas fizeram experiências singulares e ousadas na sua condição feminina, mas

Não há como enquadrar a experiência mística como feminina ou masculina; ela transcende e ao mesmo tempo envolve essas categorizações. Diria que é uma experiência que integra, em reciprocidade fundamental, as dimensões de anima (feminilidade) e animus (masculinidade) que habitam cada pessoa humana. (2001, s.p.)

A epistemologia feminista (HARDING, 1993) teve destaque ao desenvolver interrogações sobre a vida das mulheres, sobretudo as obscuras, como Hillesum até pouco tempo. Como torná-las visíveis e trazer seus escritos para os lugares da memória histórica? Diante desse processo de escritura feminina observa-se a dificuldade de muitas mulheres para expressarem sobre suas ações nos acontecimentos públicos, nas resistências, sobretudo para falarem de si, de dizerem “eu”2 devido à educação que inculcou nelas o esquecimento de si para doarem-se principalmente ao mundo masculino e dos cuidados (ZIMMERMANN; MEDEIROS, 2004).

Tentemos então ancorar Hillesum numa inencontrável natureza biologizante? Ou então percebê-la nas práticas socioculturais presentes na tripla operação que constitui a memória – acumulação primitiva, rememoração e ordenamento da narrativa – as quais estão imbricadas nas relações masculinas/femininas reais e na tentativa de transcender essa operação discursiva. Nesse processo, reforçamos que as mulheres têm um aporte específico na construção da cultura e da linguagem devido às diferenças de gênero3 construídas social e culturalmente (BURKE, 2000). Rago também analisa que:

[...] a inserção social e cultural específicas tem levado as mulheres a exercerem práticas sociais diferenciadas das dos homens, elas constroem uma memória e uma relação com a vida sexualmente muito diferenciadas. E, se bem que as diferenças de gênero não respondem por todas as diferenciações que marcam os processos mnemônicos de mulheres e homens, é visível que cada gênero se organiza e se inscreve socialmente à sua maneira, redesenhando e ressignificando seu próprio passado, configurando seu próprio discurso e construindo a sua própria autoimagem. (RAGO, 2001, p. 23)

Hillesum, com seu olhar atento aos detalhes, aos pequenos acontecimentos, faz uma experiência daquele inferno histórico e diz: “vou ter de achar uma linguagem nova” em relação aos afetos e aos desejos anelantes e, por fim, à experiência mística. Grande parte das reflexões de Etty foram produzidas quando os acontecimentos eram vividos nos campos de concentração. Sua formação racionalista traz uma narração sólida e estruturada, analisando atentamente a manifestação microscópica dos poderes no movimento de militarização da vida pelo fascismo.

A partir de um estudo do discurso de Etty sob uma perspectiva de gênero buscamos através de seus escritos compreender a produção de uma mística feminina. Outrossim, intentamos articular a espiritualidade com a sua condição de mulher e judia num contexto de grandes privações durante o nazifascismo.

Etty Hillesum: uma operação discursiva em cartas e diário

(Ester) Etty Hillesum, judia, nasceu em 15/01/1914, em Middelburg, cidade da Holanda. Filha de um casal judeu, urbano, sem vínculos com a religião, neta de um rabino. O pai, Louis Hillesum, foi professor de línguas clássicas e sua mãe, Rebeca Hillesum-Bernstein, emigrante russa (foragida de um pogrom4 ). Tinha dois irmãos, Jaap, que se destacou no campo das ciências médicas e Mischa, o caçula da família, que se afirmou como um dos pianistas de referência na Holanda, cuja vida foi marcada por crises psicológicas. Ela teve uma infância marcada por itinerâncias.

Etty era licenciada em Direito, mas não dava muita importância a esta formação. Em março de 1932 sai de casa para estudar em Amsterdam. Um dos seus horizontes intelectuais era o mundo da literatura. Atraída pela língua eslava e pela literatura russa leu Dostoievski, Tolstói, Lermontov, Púchkin. Também se dedicou a ler a Sagrada Escritura, Santo Agostinho, Hegel, Soren Kierkegaard e Rainer Maria Rilke. Do ponto de vista social teve uma vida marcada pelos círculos socialistas e libertários de Amsterdam sem vínculo partidário.

Em março de 1937, com 23 anos de idade, aluga um quarto na rua Gabriel Mestsu, número 6, vivendo distante dos pais. É contratada para ser governanta na casa de Hans Wegerif (pai Há, no Diário), um contabilista aposentado, viúvo, com quem manteve uma relação sentimental. Vivem na casa o filho mais novo de Hans Wegerif, a cozinheira Käthe e mais dois hóspedes: Berbad e Maria.

É através de Berbard que Etty vai se aproximar de Julius Spier5 , um judeu de Frankurt que mora em Amsterdam. Ele, discípulo de Jung, trabalhava com quirologia. Etty conhece Spier no dia 03 de fevereiro de 1941. A partir desta data começam a trocar cartas e confidências. Ele será uma grande paixão de sua vida.

José Tolentino Mendonça,6 no prefácio do Diário escrito por Etty, editado em Portugal, advoga que é possível tecer uma aproximação entre duas mulheres que viveram no mesmo período histórico desenhado pela tragédia do nazismo, a saber Etty e Simone Weil7 . Ambas contemporâneas e judias, tentam dar conta da existência através de escritos cujo horizonte figura-se na aventura espiritual. Ambas padecem em 1943! Weil morre num hospício inglês e Etty num campo de concentração, para o qual é levada num vagão e, durante este trajeto, vai cantando.

Ainda no prefácio do Diário, Mendonça aufere um olhar sobre Weil, Hillesum e Beauvoir:

Mas há uma diferença na iconografia. Simone de Beauvoir conta que Weil se vestia como quem traja uma farda, cancelando, num opção moral implacável, os sinais que a pudessem distinguir a ela, (...) Etty são de uma mulher bem diferente: elegante, feminina, com um toque de mundaneidade, e de uma inteligência física. (...) Simone era disciplinada, ascética, rigorosista: tinha precisão de um diamante, mas que não tinha corpo. Etty era imprecisa, sensual, dispersa: e é isso que ela vai trabalhar, nas altíssimas temperaturas, até tudo se tornar corpo, para depois se tornar chama. (HILLESUM, 2009, p,13)

Foram oito cadernos de papel quadriculado que segundo José Tolentino Mendonça se tornaram uma das “aventuras literárias e espirituais mais significativas do século.” Sobre a escrita de si, Hillesum reflete:

Uma grande inibição, uma falta de coragem para fazer revelações, deixar que as coisas saiam cá para fora livremente e, no entanto, assim terá que ser, se é que quero com o decorrer do tempo que a vida tenha um fim razoável e satisfatório. É exatamente como quando nas relações sexuais o último grito libertador fica timidamente contido no peito. Eroticamente sou refinada, e quase diria suficientemente experiente para figurar entre o número das boas amantes, e realmente o amor do essencial parece ser perfeito, permanece, contudo, um jogo. (HILLESUM, 2009, p. 59)

No dia 09 março de 1941 inicia seu Diário e troca cartas com pessoas amigas. A partir do momento em que percebe a fatalidade de seu destino deixa as cartas com alguém de confiança visando um lugar de memória. Seu diário privado torna-se público apenas em 1981. Muito recentemente seus escritos foram reconhecidos no meio acadêmico.

Para teóricas como Sandra Harding, o feminismo teve destaque ao desenvolver interrogações sobre a memória de mulheres que ficaram à margem da história, porém observa:

Quando começamos a pesquisar as experiências femininas em lugar das masculinas, logo nos deparamos com fenômenos - tais como a relação emocional com o trabalho ou os aspectos “relacionais” positivos da estrutura da personalidade -, cuja visibilidade fica obscurecida nas categorias e conceitos teóricos tradicionais. O reconhecimento desses fenômenos abafa a legitimidade das estruturas analíticas centrais das teorias, levando-nos a indagar se também nós não estaríamos ‘distorcendo a análise das vidas de mulheres e homens com as extensões e reinterpretações que fizemos. Além disso, o próprio fato de nos utilizarmos dessas teorias traz, muitas vezes, a lamentável consequência de desviar nossas energias para infindáveis polêmicas com suas defensoras não-feministas: acabamos por dialogar não com outras mulheres, mas com patriarcas. (HARDING, 1993, p. 2)

Para tornar algumas experiências femininas visíveis foi preciso anotar dados, instituir lugares de memória e na falta de testemunhos escritos, as novas abordagens e fontes (documentários e história oral) foram de certo modo uma grande revanche para as mulheres. Perrot (1989) observa também a dificuldade das mulheres expressarem suas ações nos acontecimentos públicos, suas resistências e, sobretudo de falarem de si, de subjetivarem devido ao processo pedagógico que as fez não falar de si para o público, para doarem-se, principalmente ao universo do privado. Eis a importância de revelar as memórias de Etty.

Ela morre em um campo de concentração após intensa atividade religiosa8 . Uma das primeiras questões sobre Etty refere-se à sua trajetória, sobretudo mística nesse campo nazista. Embora de família judia, não professou a religião judaica. Não tinha nenhuma filiação religiosa. Nesse sentido, suas vivências relatadas nos diários e cartas perpassam o lugar da mulher, do feminino dentro de uma prática religiosa sem religião, a busca de sentido para sua vida atribulada por diversas experiências afetivas, paixões e depressão atravessada por uma busca radical de espiritualidade e de sentido ético. Sobre a experiência que constitui os sujeitos Scott propõe este olhar:

Quando a experiência é considerada como a origem do conhecimento, a visão do sujeito individual (a pessoa que teve a experiência ou o/a historiador/a que a relata torna-se o alicerce da evidência sobre o qual se ergue a explicação). Questões acerca da natureza construída da experiência, acerca de como os sujeitos são, desde o início, construídos de maneiras diferentes, acerca de como a visão de um sujeito é estruturada - acerca da linguagem (ou discurso) e história - são postas de lado. A evidência da experiência, então, torna-se evidência do fato da diferença, ao invés de uma maneira de explorar como se estabelece a diferença, como ela opera, como e de que forma ela constitui sujeitos que veem e agem no mundo (SCOTT, 1999, p. 4).

Nas suas experiências, Etty é constituída pela espiritualidade em seus escritos, pois a mesma é atravessada por um discurso compartilhado. A experiência de si não ocorre fora de significados estabelecidos, mas sem confinamentos de gênero, por exemplo. A experiência perpassa a história do sujeito e a linguagem em Etty é o local onde a história é encenada tanto individual como coletivamente.

Espiritualidade e mística feminina em Hillesum

Na operação discursiva de Etty, observamos o seu sentido a partir das premissas de Foucault, ou seja, o discurso é um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos; conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação; é assim que se pode falar do discurso clínico, do discurso econômico, do discurso religioso, do discurso da história natural e do discurso psiquiátrico (2000, p. 124). As práticas discursivas são determinadas no tempo e no espaço que definiriam, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa (2000, p. 136). Então, o discurso se faz por meio da produção de significados.

Daí a importância em pensar uma nova compreensão da espiritualidade na operação discursiva de Etty. Temos que alargar este conceito”, pois este vai além da tradição do cristianismo ou do mundo cristão. A história da espiritualidade dentro da tradição cristã é muito rica com centenas de testemunhos e relatos, seja pelos/as religiosos/as seja pelos/ as leigos/as. Sua mística secularizada vai contra a mística tradicional, pois não tem visões. Segundo Teixeira, podemos prescindir da religião, mas não da espiritualidade, pois esta se traduz num modo de ser que é essencial na vida cotidiana de cada ser humano. Também expressa uma dimensão profunda da condição humana tornando-se uma energia comum a todos. Teixeira assim observa a espiritualidade:

[...] enquanto “dimensão constitutiva humana” (COMISIÓN, 2014; CORBÍ, 2014, p. 690). Trata-se de uma dimensão que antecede as formas de inscrição das religiões e que perdura no tempo, atuando mesmo fora da dinâmica religiosa. Como indica o Documento da Comissão da EATWOTT, “podemos prescindir das religiões, mas não podemos prescindir da dimensão da transcendência do ser humano” (FAUSTINO, 2015, p. 368).

Neste sentido, a espiritualidade é processo, uma postura existencial que nos faz passar de um estado de uma centralidade no “eu” para se colocar no lugar do outro, numa perspectiva de alteridade. Portanto, Etty está propriamente dentro do diálogo inter-religioso, ou seja, numa perspectiva de valorização e reconhecimento pleno da nossa humanidade que envolve o homem e a mulher em sua totalidade.

Hoje, podemos pensar e afirmar que a espiritualidade baseada nas relações de gênero deve nos levar a valorizar a dimensão do corpo, pois segundo Henrique de Lima Vaz (1992) somos, corpo, alma e espírito. Etty é portadora de uma singularidade e deve ser vista como uma mulher que mergulhou na existência da condição humana, não se afastando da experiência do vazio e da recusa da nossa humanidade. Faz-se necessário considerar a questão da afetividade e mesmo erótica da vida do caminho da intimidade com o Mistério. Nesta perspectiva, Etty vai somar com o caminho espiritual ético e estético numa perspectiva de sustentar e testemunhar o Absoluto como Mistério de Amor e de Paixão. Esta será sua experiência mística. Mas qual é o sentido atribuído a esta experiência? Teixeira pondera sobre:

A experiência mística faculta a possibilidade de uma presença que é proximidade que fala e que desloca o sujeito de sua inserção superficial. São janelas que se abrem, permitindo um novo respiro, no lugar mesmo onde o sujeito se situa. Algo decisivo acontece, indissociado de um lugar, de um encontro, de uma leitura, que transfigura o coração, redimensiona a visão e transforma a vida. Trata-se de uma experiência iluminadora, mas, sobretudo, portadora de uma liberdade essencial, que transporta o sujeito para além dos limites indizíveis que rompem o cerco dos textos e instituições ortodoxas, podendo ocorrer também fora das crenças. (2013, s. p.)

Etty encarna bem esta realidade, pois nos últimos anos viverá esta experiência mística com toda intensidade, seja na relação com seus companheiros sem compromisso estável, seja na busca do transcendente, expressando isso em seu Diário: “Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares” (HILLESUM, 2009, p. 22). Seus escritos deixam claro a nossa condição humana, paradoxal e da nossa insuficiência. Por outro lado, a transparência de Etty para descrever seu estado é algo surpreendente. Faz um esforço para falar de si mesma, pois vai ser um “mármore que será trabalhado” do ponto de vista das suas relações afetivas e sexuais com seus parceiros como também da sua busca espiritual. Ela busca as palavras apropriadas para contar estas realidades. “Não há remédio, terei que resolver meus próprios problemas e na medida que resolvo para mim estarei resolvendo para outras mulheres” (HILLESUM, 2009, p. 99).

Hillesum sonhou ser escritora e de fato se tornou, pois, seu diário tem mais de 700 páginas. Ela confiou sua força numa folha de papel, mas fez questão de dizer que era muito difícil chegar ao “centro das coisas pelas palavras”. Também arrazoava que era extenuante colocar no papel todo o seu sentimento, portanto, a maior parte de seus pensamentos ficaram presos dentro de si, seja por inibição ou por dificuldade. “E por isso devo ‘explicar-me’ tudo. Mas a vida é bastante difícil e, sobretudo, quando não se consegue achar as palavras” (HILLESUM, 2009, p. 99).

Sua escrita praticamente era diária pois, nesta ascese busca uma melhor performance ou a sua identidade como mística. Seu diário era uma forma de ultrapassar seu corpo físico, portanto, uma maneira de transcender aquela realidade inóspita na imanência, uma forma de projetar o seu eu desconhecido. Nessa perspectiva Teixeira acrescenta sobre a experiência mística:

Ela acontece na experiência real, mas revela também a “visita” de “algo não natural” que irrompe e quebra a mesmidade do sujeito, arrancando-o de sua egoicidade, desvelando-lhe novos horizontes. Tem uma dimensão visível, mas que aporta a algo de misterioso e inefável, produzindo estupefação. (2013, s.p.)

O autoconhecimento em Etty era um grande desafio indo na contramão da história ocidental hegemônica que aponta valores e movimentos centrípetos como a competitividade, a produtividade, o consumismo e a centralidade no mundo egoico. Ela fará um movimento que contempla a sua subjetividade em três dimensões, a saber, o corpo, a psique e o espírito. Quando falamos aqui em corpo queremos dizer este espaço que intencionamos a vida. Sobre as subjetividades infere-se que:

A subjetividade é fruto de vários elementos sociais e assumida e vivida pelos indivíduos em suas existências particulares. Para Foucault, a palavra pode ser entendida como a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo. (MOTA, 2004, p. 236).

Assim sendo, o sujeito torna-se experiência histórica, porém em Etty sem a possibilidade imediata de colocar em xeque as condições de seu destino, seu ser e estar na história num contexto de reclusão em um campo de concentração. O que expõe no diário são atitudes-experimentais como a força de criação ou produção de si mesma capaz de impactar na memória histórica e a modificar a si mesma.

Nesse processo se observa a dimensão reativa de Etty, pois é através dela que reagia diante dos acontecimentos históricos. A partir da dimensão psíquica que se abria ao mundo interior e pela dimensão do espírito que Etty constrói o seu caminho em direção a si e ao outro. Em seu processo de humanização faz o movimento centrífugo, cujo movimento pressupõe a busca e a vivência da liberdade, bem como do amor e da fé. Para Teixeira é possível observar as seguintes características dessa experiência mística:

[...] valores essenciais como o amor desinteressado, a compaixão, a atenção, a hospitalidade, o cuidado, a delicadeza, a paciência e a abertura ao outro. O cultivo da espiritualidade, entendida como movimento e caminho para a experiência do Real, exige do sujeito uma dinâmica particular de despojamento e interiorização. Há que romper com um modo habitual e rotineiro de ser e deixar-se tocar pelos apelos da profundidade. Não se trata de uma viagem tranquila, mas uma “saída” para dentro de si mesmo, e um retornar ao tempo transformado. (2013, s. p.)

É neste contexto de privação de liberdade que Etty faz também uma experiência de liberdade, a qual teceu em seus diários para fortalecer o ânimo de si e abrir-se para o amor. Este tema segundo Teixeira é central para muitas místicas:

O tema central é o do amor, que se insere no coração mesmo da divindade, entendida como Minne. Trata-se da força divina que invade e escorre por todo o universo, que flui gratuitamente para todo canto. Ou então, como em Marguerite Porete, a Dame-amour, que confere uma nova configuração de gênero à deidade. Essa tradição mística nupcial ganha vitalidade e também inusitada riqueza simbólica na experiência de outra grande mística do século XVI, Teresa de Ávila. Pode-se ainda lembrar as presenças mais modernas de Edith Stein, Simone Weil e Etty Hillesum. (2011, s.p)

Este tema do amor era antes por ela evitado por se perceber muito pretenciosa, mas a partir de certo momento passa a vivê-lo na prática. Sobre isso escreve em 4 de agosto de 1944:

Ele diz que o amor a todos é mais belo que o amor a uma pessoa. Porque o amor a uma só pessoa é, na realidade, somente amor a si mesmo. Ele um homem maduro de 54 anos e encontra-se o estádio do amor a todos, depois de incialmente ter amado uma vida inteira a muitos alguns. Eu sou uma mulherzinha de 27 anos e também carrego intensamente comigo o amor a toda a humanidade, mas ainda assim pergunto-me se não irei andar para sempre à procura de um determinado homem... (ainda não estou pronta para a síntese) talvez seja por este motivo que há tão poucas mulheres nas ciências e nas artes, porque a mulher está sempre à procura do tal homem ao qual pode transmitir todo o seu conhecimento e calor e amor e poder criador. Ela procura um homem e não a humanidade (2009, p. 97).

Etty observa no excerto acima a tensão entre o amor romântico e o amor espirituoso e místico. A maioria das mulheres ocupa-se com o primeiro e, por isso, a feminilidade impõe diversos padrões hegemônicos como, por exemplo, a beleza e os comportamentos submissos em relação aos homens, cuja existência é reduzida a um objeto e não a um sujeito político. Sobre isso ela pondera:

Às vezes, quando vou na rua e vejo uma mulher bonita, cuidada, completamente feminina, um pouco pateta, fico vacilante. Então sinto o meu cérebro, as minhas lutas, o meu sofrimento, como coisas que oprimem, algo de feio pouco feminino, e nesses momentos queria ser bonita e tola, um brinquedo desejado por um homem. Coisa curiosa, querer ser-se sempre desejada por um homem, se isso para nós o mais alto padrão de afirmação de que somos mulheres, embora isso seja, vendo bem, muito primitivo.... (...) talvez a genuína, interior emancipação feminina ainda tenha de começar. Ainda não somos verdadeiramente indivíduos, somos fêmeas. Continuamos atadas e agrilhoadas por tradições seculares, ainda precisamos de nascer com (com ou como?) indivíduos, eis aqui uma tarefa importante para a mulher (2009, p. 98)

Os olhares de Etty sobre a exclusão implicam na percepção que existe um disciplinamento obrigatório e destino comum para todas as mulheres, ou seja, um padrão de beleza, a submissão, o recato, a docilidade e a resignação, sobretudo, no casamento. Esta autora tece uma leitura do social na qual a natureza naturalizante constitui-se numa ética disciplinatória. Etty entende que há uma identidade fixa e bruta para as mulheres enquanto um ideal normativo que se estabelece para toda a vida como uma essência.

Em relação a esse feminino descrito por Etty, percebe-se que no cotidiano quer seja nas ruas, publicidade, literatura, cinema, televisão, é normatizado e os demais comportamentos não esperados para o corpo feminino geralmente são punidos. No entanto, são estes comportamentos desviantes que podem colocar em xeque o ideal normativo hegemônico e sua suposta natureza a qual prescreve um dever implícito. Assim, os mandatos sociais que recaem sobre o corpo feminino soam muito mais intensos do que sobre o dos homens, pois a construção de disciplinamentos encobre a noção de natureza, a qual não passa de uma construção, um mandato, uma prescrição que implica em uma escala de valores de acordo com a estrutura social de uma época (BUTLER, 2003). Hillesum, em sua experiência mística, rompe com esses ideais normativos.

Para muitas mulheres, a literatura e a poesia são possibilidades de busca e compreensão das fissuras e brechas da existência de si, ali também Etty busca um aprofundamento pessoal. Ela faz questão de silenciar para poder dar abertura a outro ritmo. Como se a poesia pudesse lhe dar condições de ver na vida umas fagulhas de beleza que coexistem com o horror. Portanto, usa essa beleza dos gregos para dar conta do trágico. Podemos perceber claramente, já no início do diário, que ao começar a falar de si revela uma mulher insegura, perturbada e sexualmente caótica lutando contra uma vida interior

Em um dos primeiros relatos do diário com relação ao seu terapeuta Julius Spier, escreve: “Senti fortes desejos eróticos por ti e uma profunda aversão ao mesmo tempo” fazendo referência aos seus momentos de profunda solidão, medo, insegurança e confusão com relação a Spier que muitas vezes ela entendia como pai, terapeuta e amante.

Se por um lado Etty tinha um ponto forte, a saber o seu intelecto, por outro tinha uma vida marcada por insegurança e medo ao se deparar com Spier, conforme escreve em seu diário:

Durante toda minha vida tive o sentimento de que, apesar de toda a minha aparente autoconfiança, se alguém se aproximasse de mim, me tomasse pela mão e se preocupasse comigo, eu aceitaria com ânsia e de muito bom grado abandonar-me ao seu cuidado. E ali estava ele, aquele estranho total, aquele S. com seu rosto tão complexo. (HILLESUM, 2009, p. 3)

Etty viveu o paradoxo de uma experiência de humanidade, ou seja, sua relação com Spier e da violência advinda com as medidas nazistas em relação aos judeus. Esta trama vai ter lugar na sua tessitura existencial e mística. Da parte de Spier, feita de afetos e humanidade e, por outro lado, a esmagadora pressão nazista a fez traçar seu caminho interior.

Enquanto um testemunho da possibilidade de mudança de si, Hillesum reafirma metanoia grega para trilhar outra história aceitando primeiramente sua própria transformação, ou seja, trabalhando sua alma, em grego psique, cujo significado é alma e borboleta perfumada. Sua vivência pode ser assim pensada, nas palavras de Teixeira:

Assim como a crisálida, eles devem passar por certa “morte do eu”, por uma “fecunda destruição”, de modo a facultar um espaço garantido e especial para a hospedagem de um outro. Trata-se, na verdade, de uma “morte” vicejante, que suscita criação e vida. Não se trata de um abandono da realidade, como muitos pensam, mas de um adentrar-se em sua espessura. (2013, s p.)

Essa personagem faz essa transformação vicejante atravessando os umbrais da vida em um contexto de privação de liberdade e de violência, cujo amor pela totalidade foi mais forte e voraz.

Considerações Finais

Em Etty parece difícil relatar a si própria dado o contexto de violência, mas com os escritos ocupa-se em mantê-los como um lugar de memória para futuras gerações. No entanto, busca via narratividade um entendimento ético do ser humano questionando também sua posição de gênero bem como da atuação do feminismo. Fica notório que o indivíduo autônomo para o feminino está distante ainda de um novo sentido para nós mesmas. “Continuamos atadas e agrilhoadas por tradições seculares, ainda precisamos de nascer como indivíduos, eis aqui uma tarefa importante para a mulher” (2009, p. 98). Beauvoir também escreve sobre esta questão:

Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência a sente como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito, que se põe sempre como o essencial, e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial. Como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina? (BEAUVOIR, 1980, p. 23).

Havia para ela uma cegueira a respeito da humanidade, da condição feminina, questionando inclusive as ações do feminismo. Isso significa que não toma para si um sujeito autocognoscente e coerente, mas que pelas vias da espiritualidade é possível mudanças nas relações consigo e com os outros, mesmo que de forma incompleta. Ela busca por esses mecanismos num mundo social mais amplo, pois a partir da espiritualidade vislumbra-se uma vivência que produza transformações no interior humano levando a integração de si com os outros e o mundo. Vivência essa que não põe em oposição o material, mundano, corpóreo, ao mundo natural e sim os assume, encarnando-os na vida numa elevação sublime.

A busca de um novo sentido ético a fez questionar as normas, a autocensura e o autoconhecimento. Seria preciso reformular a ética? Para tal seria necessário subverter, criticar, buscar fissuras daquilo que fez de si, como normas guiavam suas ações em busca de uma ética da vulnerabilidade, da humildade e da responsabilidade. Em Butler (2017) encontramos a noção de vulnerabilidade dos corpos à linguagem, precariedade, repetição e ressignificação, despossessão e opacidade para a constituição do sujeito-em-processo. Ao escrever o diário e intentando um lugar de memória Etty, ao expor-se ao outro, ela postula uma reivindicação ética. Ora a vida em contextos extremos não cabe em nenhum escrito, mas ela transcendia essa ordem das coisas por um processo de transformação de si. Em Etty também se sai do narcisismo para compreender a importância de lidar com a interpelação do outro percebendo o desconhecimento, a divergência, o desfazimento daquilo que não se é. Ao ser desfeita pela angústia, pela dúvida, sobretudo em suas relações de afeto, ela moveu-se a agir interpelando a si cuja experiência mística fermentou esse processo.

Etty enquanto entusiasta da interpelação de si via, na experiência mística aquiescida pela violência extrema, a possibilidade de refletir e a sentir a necessidade de contar uma história sobre si de transformação. Ora seu diário e cartas produziram efeitos e envergaduras que não cessam de produzir sentidos e significados possíveis para inquietações que ainda reverberam. Marcas de si em uma memória do feminino, eis um legado por construir

Referências bibliográficas

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Notas

[1] Esta escritura está relacionada a visibilidade de mulheres narradoras engajadas em conceitualizar a si e ao mundo através da escrita. Veja-se SCHMIDT, R. T. Em busca da história não contada ou: o que acontece quando o objeto começa a falar? In: INDURSKY, Freda e CAMPOS, Maria do Carmo. (Orgs.). Discurso, memória, identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000.

[2]O uso do ‘eu” refere-se a escrita autobiográfica e as cartas e diários constituem esse tipo de escrita do “eu”. Veja-se Perrot, 2008.

[3]Gênero e aqui entendido como o conjunto de relações de poder relacionais e assimétricas entre mulheres e homens. Veja-se SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade, vol. 16, no 2, Porto Alegre, jul./dez. 1990.

[4]Pogrom, palavra russa para designar violentos ataques as pessoas, bem como a destruição de seus pertences.

[5]Julius Spier (1887-1942): psicólogo e quirologista judeu alemão. Em Zurique conhece Carl Gustav Jung. Se especializa em análise clínica e treina por dois anos. Jung lhe pediu que fizesse da “psicoquirologia” o seu trabalho, tendo em conta o seu dom de ler nas linhas das mãos as aptidões e o caráter do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, onde se especializou em estabelecer diagnósticos médicos a partir da morfologia e linhas da mão. Depois do divórcio de sua primeira esposa (com quem teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas perseguições nazistas, emigra para Amsterdam onde conhece Etty

[6]Cardeal, poeta e teólogo português. É arquivista do Arquivo apostólico do Vaticano. Segundo Tolentino, Etty terá três grandes encontros amorosos em sua vida.

[7] Simone Weil (1909-1943) nasceu em Paris e é de origem judaica. Seu pai era um médico da Alsácia e sua mãe originária da Rússia. Seu irmão era um precoce matemático. Weil formou-se em filosofia pela Sorbonne e foi a primeira mulher catedrática da França. Era a discípula predileta do filósofo Alain, formada em agnosticismo e apaixonada pelo tema da condição humana no mundo do trabalho.

[8]Martírio significa testemunho. Do ponto de vista cristão é testemunhar Cristo a ponto de morrer é tornar-se um com aquele que tornou a viver. O martírio cristão é uma experiência mística, a primeira atestada na história da Igreja. Ela é registrada bem no início pelo exemplo de Estêvão, o protomártir nos Atos dos Apóstolos capítulo 7.