Religião e linguagem: reflexões a partir de Gianni Vattimo e Rubem Alves    
Religion and language: reflections from Gianni Vattimo and Rubem Alves 

Danilo Mendes* 
*Doutorando em Ciências da Religião- bolsista Capes. Contato: danilo. smendes@hotmail.com 

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Resumo:

Neste trabalho dialogamos a partir de Vattimo e Rubem Alves sobre as relações e mútuas contribuições entre os conceitos de religião e de linguagem para dar respostas a problemática de como eles se relacionam para além da noção de linguagem religiosa. Para isso, indicamos, primeiramente, como a área de linguagens da religião pensa a relação entre religião e linguagem. Prosseguimos pensando como o conceito de religião contribui para o conceito de linguagem e vice- -versa. Por fim, apresentamos uma discussão sobre como nossas reflexões interagem com as teorias da religião e, por isso, com a epistemologia da ciência da religião.   

Palavras chave: Religião; Linguagem; Teoria da religião; Linguagem religiosa; Epistemologia da Ciência da Religião.   

Abstract

In this work we discuss from Vattimo and Rubem Alves on the relations and mutual contributions between the concepts of religion and language giving answers to the problematic of how they relate beyond the notion of religious language. We first indicate how the area of religion languages, in Brazil, thinks the relation between religion and language. We continue to think about how the concept of religion contributes to the concept of language and vice versa. Finally, we present a discussion about how our reflections interact with the theories of religion and, therefore, with the epistemology of the religious studies.   

Keywords: Religion; Language; Theory of religion; Religious language; Religious studies epistemology 

Introdução 

É crescente o número de estudos no Brasil que relacionam religião e linguagem. Prova disto é o dossiê publicado em 2016 no volume 14, número 42 da revista Horizonte intitulado Narrativas Sagradas e Linguagens Religiosas, coordenado pelo professor Paulo Nogueira. Todavia, dos onze artigos que o compõe, apenas um busca refletir sobre a relação entre religião e linguagem de modo mais concreto. Os outros artigos parecem dá-la por estabelecida. O mesmo movimento se repete em outros estudos e agrupamentos em torno deste tema como, por exemplo, em Religião e linguagem (2015), Linguagens da religião (2012), obras também organizadas pelo Prof. Nogueira, ou a seção Ciências das linguagens religiosas no Compêndio de ciência da religião (PASSOS; USARSKI, 2013, p. 439-569). 

Não queremos, ao indicar esse movimento, denunciar como equívoca uma série de estudos acadêmicos, mas alertar para uma necessidade: a relação entre religião e linguagem não deve ser tomada como óbvia e evidente. É preciso pensar seus fundamentos, articulações e consequências. Este artigo se propõe a refletir a partir de Gianni Vattimo e Rubem Alves sobre o problema de como religião e linguagem se relacionam para além da noção de linguagem religiosa. Essa noção não somente indica que existe uma linguagem que é, de fato, religiosa. Aqui, ela relaciona religião e linguagem a partir de uma perspectiva redutora, como se a segunda fosse apenas veículo de expressão da primeira. 

Lidamos com essa problemática a partir da hipótese de que a relação entre religião e linguagem deve, também, ser pensada sob a perspectiva da teoria da religião. Aqui, assumimos que nossas reflexões não são excludentes com o trabalho que vem sendo realizado na égide de linguagens da religião, mas lhe é paralela. Não há tentativa alguma de superar tais estudos, mas de demonstrar que outras relações devem ser estabelecidas e afirmadas. Nesse sentido, indicamos que somar linguagem e religião não é o suficiente para que se encerre a relação entre elas, mas é preciso perceber como, de um lado, a linguagem afeta o conceito de religião e, por outro lado, a religião afeta o conceito de linguagem. 

Para desenvolver nossas reflexões sobre estas relações é preciso dar os seguintes passos: 1) analisar as recentes relações estabelecidas entre religião e linguagem no Brasil enfatizando a concepção de linguagem religiosa; 2) considerar as mútuas contribuições da relação entre religião e linguagem; 3) refletir sobre os ganhos e limites deste estudo sob a perspectiva da teoria da religião e da epistemologia da ciência da religião. Dessa forma, esse artigo se insere na discussão epistemológica das linguagens da religião dando a ela um passo anterior por não aceitar sua relação fundamental como evidente, mas a questiona. 

1. As linguagens da religião no Brasil

Cada vez mais os estudos de linguagens da religião avançam na formação de um campo específico dentro da ciência da religião. Somase às já citadas obras e ao dossiê o Grupo de Trabalho “Religião como texto: linguagens e produção de sentido” que se reuniu no VI congresso da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em teologia e ciências da religião (2017), e contou com a apresentação de vinte e oito trabalhos em apenas dois dias de evento. Na medida em que está se torna uma área com grande número de produção e acurada pesquisa, convém analisar suas bases. 

Nossa leitura sobre este movimento é que o conceito de religião implícito a sua pesquisa considera a relação entre religião e linguagem de um modo muito restrito: a religião é um fenômeno composto por linguagens (mitos, ritos, gestos, símbolos etc.) que comunicam a experiência religiosa. Essa interpretação se baseia, primeiramente, na leitura das introduções aos textos supracitados, onde os organizadores além de apresentares os textos também refletem brevemente sobre o tema. Em Linguagens da religião (2012), Paulo Nogueira afirma partir do pressuposto 

de que a religião não tem apenas seus conteúdos expressos pela linguagem, mas que ela mesma se estrutura por meio da linguagem. Temos a ambição de demonstrar que a religião se constitui em uma espécie de linguagem segunda, linguagem da cultura, linguagem das narrativas sobre Deus e sobre o mundo do sagrado e do profano, através de estruturas próprias, da construção de símbolos religiosos que geram sentido de modo ilimitado. Pensar a religião como linguagem, como sistema de comunicação e de geração de sentido, é, em nossa opinião, uma forma complementar, ainda que fundamental, de conceber o fenômeno religioso (NOGUEIRA, 2012, p. 9).

Dessa afirmação podemos sublinhar quatro tópicos a serem discutidos: a) a religião utiliza de certas linguagens para se comunicar; b) a religião é estruturada por linguagens; c) por isso, ela é uma linguagem segunda; d) essa perspectiva desemboca em uma forma complementar de estudo da religião. A partir dessas considerações poderemos indicar o modo como a relação entre religião e linguagem está estabelecida e, assim, quais as consequências que tal percepção gera para os estudos da área. 

Primeiramente, devemos considerar a afirmação de que a religião expressa seus conteúdos por meio de linguagens. Ao afirmá-lo, Nogueira diferencia a definição de religião do tópico a e do tópico b: enquanto no primeiro a religião é anterior à linguagem, no segundo ela lhe é posterior. Para melhor entender essa diferenciação, adotamos a expressão “experiência religiosa” para tratar do tópico a. Sequencialmente, podemos entender que: 1) ocorre a experiência religiosa; 2) ela é expressa por meio de diferentes linguagens (tópico a); 3) essas linguagens estruturam a religião (tópico b). Nossa interpretação se baseia na própria estrutura das obras que tratam das linguagens da religião: após uma introdução parcialmente metodológica, elas se dividem em capítulos ligados às linguagens que são expressão da experiência religiosa. Encontramos: mitos, ritos, símbolos, doutrinas, cultura visual, gestos, literatura, linguagem midiática, metáfora, grotesco e artes (NOGUEIRA, 2012; 2015; 2016; PASSOS, USARSKI, 2013, p. 439-569). Ao expressarem experiências religiosas, essas linguagens tornam-se também religiosas, passando a estruturar a religião. 

Ênio José da Costa Brito, em sua introdução à seção que coordena no Compêndio de Ciência da Religião, faz um adendo a essa primeira relação: “a linguagem humana é incapaz de traduzir de modo pleno o que ocorre na experiência religiosa” (BRITO, 2013, p. 439). Esta afirmação indica que na passagem entre a experiência religiosa e as diferentes linguagens que a expressam, algo se perde. Aqui, não está pressuposta somente a identificação entre comunicação e linguagem, mas a tentativa de tradução de algo que parece fugir à linguagem mesma. De todo modo, os autores parecem concordar nesta primeira passagem entre experiência e linguagem religiosa. 

Nesse ponto, a religião seria um agrupamento ordenado de diversas linguagens que expressam experiências anteriores. Para o autor, estas linguagens, que são o centro desta área de estudos, “se empenham em narrar e representar coisas díspares, impossíveis e excludentes. Elas tentam dar sentido a um mundo percebido como regido pela morte e pelo caos” (NOGUEIRA, 2016, p. 253) Isso significa que ao se expressarem, as linguagens religiosas tentam ordenar e dar sentido ao mundo. Tal atividade só se dá, entretanto, na organização racional dessas linguagens, uma vez que ela representa o esforço por encaixar e adequar perspectivas excludentes. A ação de dar sentido ao mundo cabe, portanto, à religião enquanto conjunto de linguagens. 

O terceiro tópico que a citação de Nogueira nos traz é a afirmação de que a religião, enquanto este conjunto, é também uma linguagem. Todavia, como é já constituída por outras linguagens, a religião seria uma espécie de linguagem secundária, cultural e historicamente estabelecida. Ela não é a narrativa sobre a experiência religiosa, mas é a linguagem que reúne essas narrativas. Essa denominação de linguagem segunda corrobora com a diferenciação que fizemos entre experiência religiosa e religião, pois trata de como a constituição da segunda não é direta, mas mediada por diversas linguagens. Tratar a religião como linguagem segunda indica uma identificação das linguagens religiosas (as que constituem a religião) como linguagem primeira e, consequentemente, conceituam a experiência religiosa como um momento que não possui linguagem alguma. 

A perspectiva de Ênio Brito é novamente coincidente com a de Nogueira, especialmente no que diz respeito à tarefa da ciência da religião diante dessa estrutura básica de relação entre experiência, linguagem e religião. Diz ele que “a ciência da religião está desafiada a confrontar-se com os usos lingüísticos das diversas religiões e da História das Religiões. Desafiada, ainda, a perscrutar como as linguagens estruturam as religiões” (BRITO, 2013, p. 439). Ao colocar esse desafio à nossa ciência, Brito reduz, tal qual Nogueira, a relação entre religião e linguagem à comunicação e forma de expressão. Aqui também a religião é uma linguagem segunda. 

O quarto tópico a comentarmos da citação de Nogueira diz respeito, justamente, à tarefa da área dentro da Ciência da Religião diante do quadro instaurado. Se as linguagens, mesmo que anteriores à religião, são posteriores à experiência religiosa, o trabalho empreendido nessa área é secundário e complementar. Para Nogueira, esse fato não torna as pesquisas menos interessantes e importantes, mas relega-as a um segundo plano. Do primeiro plano podemos interpretar que seja o estudo diretamente focado nas experiências religiosas mais primitivas, isto é, mais peculiares. Nesse quadro, antes ainda de pensar as consequências para a ciência da religião, devemos considerar a forma como religião e linguagem são relacionadas. 

A religião, em um primeiro momento, parece circundar a linguagem: está antes dela, enquanto experiência, e depois dela, enquanto conjunto de linguagens. Na sequência que delineamos acima, a linguagem só teria protagonismo na segunda parte, enquanto a religião a teria, de modos diferentes, na primeira e na terceira. Entretanto, a relação se mostra ainda mais complexa quando observamos que a religião também se encontra na segunda parte e a linguagem na terceira. Isso está posto do seguinte modo: no momento 2, a linguagem só se coloca como linguagem religiosa, que tenta traduzir uma experiência religiosa; no momento 3, a religião é uma linguagem segunda, que é composta por diferentes linguagens. A relação entre religião e linguagem, apesar dessas complicações, não deve ser interpretada como complexa: os conceitos de religião e linguagem não são alterados substancialmente por causa de sua relação, mas se mantém iguais em uma justaposição. Em outras palavras, percebemos que há apenas uma soma entre os conceitos sem que eles sejam modificados de algum modo. Isso acontece na medida em que a religião é interpretada como uma linguagem composta por uma soma de linguagens. Aqui, a religião não é mais que uma forma de comunicação que é composta por diversas expressões. Pensar a religião como uma linguagem, aqui, não fornece outros sentidos que não este de comunicação e expressão. 

É essa a questão que parece perpassar a área de linguagens da religião no Brasil: reduz-se a relação entre religião e linguagem a uma forma de comunicação de algo mais fundamental, a experiência. Duas são suas conclusões, a priori: a) a religião é uma linguagem ineficiente; b) e, consequentemente, falsa. Na medida em que sua função é traduzir uma experiência por meio de mitos, ritos, gestos, imagens etc. e não consegue, (conforme Brito, 2013, p. 439), ela é ineficiente: falha em sua atividade mais fundamental. Assim, ela demonstra ser falsa, no limite, porque não diz respeito ao que aparenta, mas é linguagem segunda que não expressa a mensagem que lhe é anterior. 

2. Quando a religião contribui para o conceito de linguagem

Para pensar como o conceito de religião pode contribuir na definição do que seja a linguagem, convém analisar alguns pontos da obra de Gianni Vattimo, filósofo italiano. Os dois temas são fundamentais em sua obra, seja no pensamento de uma hermenêutica niilista, caminho para a filosofia na contemporaneidade, ou para a formulação de uma ontologia da atualidade, que remete a kênosis cristã. 

Em Vattimo, a religião é uma linguagem por ser, primeiramente, uma transmissão histórico-cultural. A linguagem, enquanto uma rede ininterrupta de mensagens que recebemos de nossos antepassados e de nossos contemporâneos, constitui o horizonte pelo qual o ser humano interpreta o mundo e a vida. A religião é uma linguagem, nesse sentido, na medida em que se constitui como uma dessas redes. Exemplo dessa relação no pensamento de Vattimo é o modo como, para ele, a Kenosis (o mito do enfraquecimento e encarnação de Deus em Jesus) ressoa até a secularização moderna. Como faz parte de uma linguagem, essa mensagem religiosa é transmitida de tal modo que será determinante para acontecimentos históricos posteriores. No pensamento de Vattimo, a religião é uma linguagem porque se transmite historicamente e delimita um horizonte. Podemos partir da Kenosis para entender a questão em seu pensamento.  

Diz Vattimo que “o niilismo ‘se assemelha’ demasiado à Kenosis para se poder ver em tal semelhança apenas uma coincidência, uma associação de ideias” (1999, p. 80). Dessa forma, a ideia cristã de encarnação que abre a possibilidade de enfraquecimento do ser, adiantadamente, inaugura o que seria o fim da modernidade1 . Assim, para ele, há dois movimentos históricos que culminam num terceiro: primeiramente, surge a ideia de Kenosis, isto é, o auto-esvaziamento divino de Deus em Jesus da tradição cristã; em segundo lugar, a sociedade secularizada graças ao niilismo encontrado no anúncio da morte de Deus de Nietzsche e à conceituação de ser como evento (Ereignis) de Heidegger; e o retorno da religião como possibilidade de linguagem não-metafísica2

O platonismo, aqui, é superado pelo cristianismo3 pois esse “é a condição que prepara a dissolução da metafísica” (VATTIMO, 2004, p. 134). Desta forma, Vattimo faz coincidir diversos conceitos fundamentais entre filosofia e religião: para ele, a morte de Deus, o fim da metafísica, a Kenosis e a morte de Jesus apontam na mesma direção, a saber, o enfraquecimento das concepções de estruturas fortes do ser4 . Por isto ele afirma que o fenômeno da secularização é dependente da religião: as ideias cristãs estão presentes no destino do Ocidente pelas suas forças. Nesse sentido, Vattimo vai além das noções usuais de retorno da religião: afinal, quem estabelece as possibilidades para ele é a própria religião. Isto é, o modelo de pensamento que enfraquece o ser e permite o retorno foi dado anteriormente pela religião que, numa sociedade secularizada, teve sua ideia também secularizada no anúncio da morte de Deus. 

A partir daí, Vattimo percebe que essa condição de possibilidade que liga a secularização à Kenosis se dá nos termos da linguagem - que também é, sempre, condição de possibilidade. Dessa forma, ele concebe que a religião, no caso específico, o cristianismo, é um modo de linguagem que possibilitou o acontecimento da secularização5 . Assim, nos termos de sua percepção de linguagem, podemos afirmar que a secularização só se deu porque o Ocidente filosófico habita na linguagem judaico-cristã. Aqui é de grande importância retomar a noção de fundamento hermenêutico, já que ela está na base desta relação entre secularização e Kenosis. A mensagem cristã do enfraquecimento de Deus, em Vattimo, é determinante para a secularização na medida em que se constitui como um horizonte hermenêutico que possibilita sua realização. Nesse sentido, a secularização se dá diante de uma linguagem, cristã, que está como fundamento para ela. 

Seria incoerente da parte de Vattimo estabelecer uma relação que se desse diretamente entre os dois termos, pois ela seria uma relação religiosa. Sem a mediação desta noção de linguagem cristã, enquanto doadora histórica de sentidos e símbolos, a secularização poderia ser percebida como fenômeno no qual Deus, depois de esvaziar a si mesmo, esvaziaria, ativamente, a sociedade da presença de instituições religiosas. Na medida em que se insere o cristianismo como linguagem, fica claro que a Kenosis é determinante enquanto horizonte constituído que acaba por ser condição de possibilidade para o acontecimento da secularização. Essa mediação, portanto, é essencial para entender corretamente a noção de secularização em Vattimo e, assim, a religião como linguagem. 

Para Vattimo, essa linguagem, já dada na filosofia ocidental para além de condição de possibilidade, pode ser entendida como linguagem na qual o pensamento fraco, ontologia possível depois da dissolução da metafísica, deve acontecer. Por isso Vattimo adota diversos termos que remetem a essa tradição como conceitos-chave em sua filosofia. Além de Kenosis, predomina em seu pensamento a noção de caritas. Todavia, adotar essa linguagem específica não é parte de um plano que vai contra a secularização e suas consequências, mas, pelo contrário, entende a “secularização como um caminho positivo de desenvolvimento do cristianismo na história” (VATTIMO, 2018, p. 43)6

Para entender o que seja essa leitura da secularização como algo positivo para o cristianismo devemos recorrer à argumentação que o próprio autor traça, dizendo que 

secularização como fato positivo significa que a dissolução das estruturas sagradas da sociedade cristã, a passagem a uma ética da autonomia, à laicidade do Estado, a uma literalidade menos rígida na interpretação dos dogmas e preceitos, não deve ser entendida como desaparecimento ou despedida do cristianismo, mas como realização mais plena de sua verdade, que é, lembremos, a kenosis, o abaixamento de Deus, a desmentida dos traços ‘naturais’ da divindade (VATTIMO, 2018, p. 41-42).

Pelo menos três aspectos podem ser realçados na colocação de Vattimo: a) a secularização não implica no fim da religião, no sentido positivista do termo, mas na dissolução da sacralidade das estruturas, portanto, uma queda de seu domínio jurídico; b) a tradição interpretativa do cristianismo que constituiu as estruturas, dissolvidas a partir da secularização, é contraposta a uma interpretação mais plena indicada por Vattimo, a saber, a de que a dissolução é o caminho indicado pelo próprio Deus; c) esta mesma tradição não só afirma uma realização menos plena da verdade do cristianismo, mas, justamente, nega-a ao afirmar os traços naturais (no sentido girardiano) e, portanto, violentos contra os quais o cristianismo se estabelece. A ideia de que a secularização é um fato positivo para a história do cristianismo, por fim, estabelece paralelos com seu conceito de superação, a Verwindung7 , a partir da qual não se pretende avançar para superar, mas dar um passo atrás e distorcer o que está dado. 

Assim, podemos perceber que a religião é uma linguagem no pensamento Vattimo. E, enquanto linguagem é condição de possibilidade para certa configuração epocal do ser. Isso é perceptível, também, na relação entre encarnação e secularização, termos essenciais no pensamento deste autor. Para ele, somente na linguagem judaico-cristã o enfraquecimento do ser pôde de fato acontecer. Apenas por meio de uma linguagem que carrega em si a radicalidade da Kenosis, o Ocidente pode presenciar a dissolução da metafísica e, consequentemente, da violência de suas estruturas fortes8 . Isso fica ainda mais claro quando Vattimo afirma que “o cristianismo é um estímulo, uma mensagem que coloca em movimento uma tradição de pensamento que se liberta, enfim, da metafísica” 9 (VATTIMO, 2007, p. 35). 

Essa identificação entre secularização e dissolução, baseada numa ideia de religião como linguagem, é tão estreita que, para Vattimo, a própria filosofia hermenêutica, que acabou por se tornar uma base comum na contemporaneidade, é devedora dela. Diz ele que “a hermenêutica só pode ser o que é – uma filosofia não metafísica do caráter essencialmente interpretativo da verdade, e, portanto, uma ontologia niilista - enquanto herdeira do mito cristão da encarnação de Deus” (VATTIMO, 1999, p. 82). Isso significa que, o enfraquecimento de Deus (Kenosis) que é possibilidade para a secularização, por meio da noção de linguagem como transmissão, é também a herança da qual a hermenêutica deve se apropriar para se afirmar. 

Ao conceituar a religião como transmissão histórico-cultural, Vattimo precisa repensar o próprio conceito de linguagem por dois motivos: a) se a religião é uma linguagem, ela deve também ser percebida como condição de possibilidade da experiência humana no mundo; b) se ela envia mensagens aos contemporâneos, também influencia as diversas linguagens da atualidade (como é o caso da Kenosis). Isso indica que reconhecendo a religião como linguagem, e não somente como instituição histórica, Vattimo é impelido a inseri-la como constituinte do horizonte hermenêutico humano. Em outras palavras, a religião está presente no modo como o ser humano interpreta seu mundo e vive sua vida. O conceito de linguagem, aqui, não se resume a modo de comunicação ou usos pragmáticos da língua, mas inclui mensagens que são transmitidas através da história – inclusive religiosas. É desse modo que o conceito de religião, em Vattimo, contribui para um novo conceito de linguagem. 

3. Quando a linguagem contribui para o conceito de religião

Se primeiramente optamos por refletir a partir de Vattimo, delineando as relações entre religião e linguagem, sobretudo como aquela contribui para a conceituação dessa, partimos agora de Rubem Alves para o movimento oposto. Tema que é transversal a sua obra, a religião, para Alves, é uma linguagem como um jeito de abordar e construir o mundo. Por isso, ao pensarmos a partir desse autor, devemos primeiro entender o que é a linguagem para, então, começarmos a entender o que é a religião. Em uma obra sua, o autor começa essa discussão com uma poesia: 

Sabia que a religião é uma linguagem? 
Um jeito de falar sobre o mundo... 
Em tudo, a presença da esperança e do sentido... 
Religião é tapeçaria que a esperança constrói com palavras. 
E sobre estas redes as pessoas se deitam. 
É. Deitam-se sobre as palavras amarradas umas nas outras. 
Como é que as palavras se amarram? 
É simples. 
Com o desejo. 
Só que, às vezes, as redes de amor viram mortalhas de medo. 
Redes que podem falar de vida e podem falar de morte. 
E tudo se faz com as palavras e o desejo. 
Por isto, para se entender a religião, é necessário entender o caminho da linguagem 
(ALVES, 1999, p. 5).

Nesse poema podemos encontrar não só o ponto de partida de Alves do ensaio intitulado “A rede das palavras” (1999, p. 5-30), mas também o fim deste: entender a importância da linguagem na filosofia contemporânea para, então, perceber de que modo a religião se mostra como linguagem nestes sentidos apontados. Esse pequeno poema demonstra as várias possibilidades de se entender o que é linguagem para o autor. A religião é um modo de comunicar, de falar sobre o mundo, mas também é modo de interpretá-lo – a partir do sentido. Ela é composta por palavras, tem suas próprias linguagens, mas também é rede na qual se pode deitar e achar conforto. É condição de possibilidade para se interpretar o mundo como aberto ou fechado. Por isso, o primeiro passo para entender a religião é entender a linguagem. 

Para Alves, a linguagem “é a memória coletiva da sociedade” (1999, p. 15). Aqui, tanto Vattimo como Alves concordam que esta rede da linguagem é, também, um conjunto de memórias e tradições em que o humano é jogado. Isso significa que a linguagem fornece as categorias que serão usadas pela sociedade para a interpretação e construção do mundo. Podemos dela dizer que, sendo memória coletiva, é mecanismo fundamental para a humanidade neste processo de instrumentalização do mundo. Nesse sentido, a função da humanidade não é apenas mediar uma relação humano-mundo, mas possibilitar o modo como o próprio humano quer estabelecer esta relação. Dessa forma, mais do que comunicação ou mediação, a função da linguagem aqui é possibilidade de relação. 

Passando, então, a analisar a estrutura da linguagem, Rubem Alves diz que “o homem é um construtor de mundos” (1999, p. 18) e a linguagem é uma ferramenta que o ajuda nesta tarefa de construção. Aqui, a linguagem “não é uma cópia do real, mas antes uma organização do mesmo. Na realidade, para o homem, o real é aquilo que ele organiza” (1999, p. 18). Desse modo, a definição tradicional de linguagem parece ser menos fundamental em Rubem Alves: para além de forma de comunicar externamente o que se passa interno ao humano, a linguagem é a estrutura que constrói o mundo de acordo com os valores humanos.Assim, “o mundo, como cosmovisão, como espaço e tempo humanos, não poderia existir, se não fosse a linguagem” (ALVES, 1999, p. 20). Para Alves, é essencial perceber que a linguagem tem função primordial no exercício do humano como construtor de mundos, mas também é condição de possibilidade para que neste construir o humano realize sua atividade humanizadora. 

A definição de mundo, por sua vez, também deve ser analisada, já que Alves não o trata somente como ordem natural que se encontra para além do sujeito, isto é, uma realidade factual. Para ele, mundo é uma totalidade significativa constituída individual e socialmente de acordo com os valores históricos. Neste sentido, ele segue a interpretação de Berger, para quem esta noção o mundo é uma construção humana que organiza o que está dado a partir de si mesmo (BERGER, 1985, p. 15-41). Esta é, portanto, uma visão fenomenológica de mundo, no sentido de que não considera somente o externo como fato, mas como uma relação entre a consciência do sujeito que constrói (aqui, através da linguagem) e as coisas que com ele interagem.10 

Percebe-se aqui uma importante dialética no pensamento de Rubem Alves: não só o humano constrói o mundo, como também é construído por ele. Esta dialética se dá em reciprocidade, por isso não é, necessariamente, hierárquica em nenhum aspecto. É na mesma medida que um constrói o outro, já que a linguagem é tanto uma rede de referências externas e passadas, quanto a organização das coisas presentes. Na atitude valorativa, implicada pela vontade de humanização da natureza, o humano constrói o mundo de acordo com sua posição nele. Desse modo, não há uma estrutura de partida e contrapartida, mas dupla relação, já que não há humano sem mundo, nem mundo sem humano. 

É dessa função essencial da linguagem que surge o discernimento humano quanto à natureza e, posteriormente, ao mundo. Diz Alves, “o homem vê o mundo através de uma atitude valorativa, isto é, atitude que pergunta à realidade acerca de sua significação para o seu problema fundamental” (1999, p. 27). Pode-se dizer, a partir deste autor, que o problema fundamental do humano é a existência. Por isso, é ela que vai servir de fundamento e critério para esta atitude valorativa. De acordo com as demandas da existência é que serão atribuídos valores aos fenômenos, e é por meio destes valores que a linguagem estabelece a sociedade e funda mundos. 

Em Alves a atitude valorativa é irracional, no sentido de que é anterior à razão. Essa seria, então, uma função organizadora de tais valores. Isso remete à questão da verdade e da mentira: como adequação do enunciado ao objeto “em si”, a verdade não poderia ser alcançada. A verdade só poderia ser percebida, então, como adequação do enunciado aos valores que estão na base da racionalização. A linguagem, aqui, está aquém da racionalização, ainda. É ela que revela os valores mais íntimos da existência. Diz, aqui, Alves que “a palavra, portanto, é uma nota de rodapé à existência. Só pode ser compreendida por referência a ela” (1999, p. 29). Isso significa que, do mesmo modo que a racionalização só é entendida diante do processo de valoração, a linguagem se encontra em relação à vida. A afirmação de Alves não implica, necessariamente, dizer que a linguagem é uma atitude segunda em relação à existência. Antes, parece ser uma justaposição: ela não pode ser retirada da história e do âmbito mais próximo ao cotidiano humano. 

Concluímos, primeiramente, que a linguagem se mostra como essencial para o humano enquanto construtor de mundos. É na linguagem que o humano conhece o mundo, relaciona-se com ele e o constrói. É por meio da linguagem que o humano constrói os valores que regem a sociedade e, no limite, regem o próprio humano. É com a linguagem que o humano cria, encontra a racionalidade e a palavra que o faz comunicar. Rubem Alves percebe que esta rede, a linguagem, envolve e permeia toda a atividade humana. Mais: é ela que possibilita qualquer atividade. O humano, para Alves, é aquele que é disposto pela linguagem a construir seu mundo e dispõe dela para torná-lo um acordo. A linguagem é a rede em que o humano se deita, mas ele também a pode balançar. 

A tomada do pressuposto da religião como uma linguagem é tão radical em Alves que os seus desenvolvimentos parecem apontar para além do pensamento do próprio Wittgenstein – autor inúmeras vezes citado por Alves11. Isso é aparente quando, ao tratar a religião a partir da noção de imaginação, sobretudo em Feuerbach e Freud (ALVES, 1999, p. 37-50; 77-88), Rubem Alves se coloca contra a ideia moderna da consciência como reduplicação do fato bruto da natureza, afirmando que a experiência do humano com o mundo não é abstrata como o modelo científico pretende, mas emocional. E é, justamente, a emoção que rege esta experiência entre homem e mundo. Dessa forma, afirma ele, é essa experiência “que determina a nossa maneira de ser no mundo” (ALVES, 1984, p. 25). 

Neste ponto insere-se a radicalidade do pensamento alvesiano: se a consciência não é pura reduplicação da natureza, se ela é sempre comprometida, partidária e dependente das emoções, entender o que rege estas emoções é primordial para entender como o humano é no mundo. Desse modo, conclui Alves, “Se o coração da consciência é emoção e valor, a consciência é radicalmente religiosa. [...] Em outras palavras, aquilo a que denominamos realidade é uma construção da matriz religiosa da consciência” (1984, p. 26). Em certa medida, podemos afirmar que esta é uma chave de leitura para entender as obras de Alves sobre a religião: a consciência do humano é religiosa por ser determinada pelas aspirações mais profundas deste em relação à natureza na qual se encontra inserido. 

Isso implica que as linguagens que constituem o modo de o humano ser no mundo sejam sempre linguagens religiosas, visto que é, justamente, a religião quem determina a atitude emocional-valorativa que constitui a relação humano-mundo. O sentido de religião aqui é ampliado: não se trata somente de um conjunto de ideias e práticas, mas uma postura frente à existência, um modo do humano lidar com seu mundo. É neste sentido que Rubem Alves poderá afirmar que “Estamos condenados à religião” (1984, p. 31): não se foge da religião porque a consciência da relação na qual o humano vive é consciência religiosa. Desta forma, a noção de religião como linguagem se estabelece como primordial para o estudo das ideias de Rubem Alves, bem como a percepção de que esta linguagem determina os modos de o humano construir seu mundo. 

Rubem Alves atribui à religião uma função primordial no humano, que o constitui como tal. Por isso ele chega à noção radical de que a religião é uma linguagem: ela funda não só o ponto de vista do humano sobre o mundo, mas o próprio modo como o humano habita e constrói este mundo. É nesse sentido que o autor poderá, por exemplo, ao descrever o tipo ideal do protestantismo de reta doutrina (em Religião e Repressão), tratar sobre “Como o protestantismo constrói e conhece a realidade” (2005, p. 101-154) e sobre “O mundo que os protestantes habitam” (2005, p. 155-200)12. Estes dois capítulos são baseados na ideia de que a religião é uma linguagem e, somente como tal, pode estruturar um mundo a partir de uma realidade. 

Nesse ponto percebemos que, em Alves, o conceito de linguagem contribui para a formulação de um conceito de religião que dependa dela. Assim como em Vattimo, a religião é aqui uma linguagem, mas não é somente transmissão histórica, é, antes, condição da atitude de valoração do ser humano diante do mundo. Ao afirmar que a consciência já é religiosa, Alves declara que toda construção de mundo está embebida da linguagem humana mais fundamental, da qual não se pode escapar. A noção de linguagem enquanto ferramenta de construção contribui para o conceito de religião em Rubem Alves na medida em que esse autor estabelece uma ligação entre mundo, linguagem e religião, afirmando que entre eles, a religião é o mais fundamental. 

4. Um diálogo em meio às perspectivas

A diferença fundamental da relação entre religião e linguagem a partir de Vattimo e de Alves parece ser uma curiosa inversão. A concepção de linguagem em Vattimo é mais profunda que a de Alves, no sentido de que leva às últimas consequências a tomada do referencial da virada hermenêutica. Em Alves, essas consequências se revelam de modo mais brando e ambíguo, raramente de modo completo. Isso pode ser entendido pela comparação do referencial de onde os autores partem: enquanto Alves dialoga com críticos da religião a fim de apontar suas possibilidades diante do cientificismo moderno, Vattimo já procura as possibilidades para a filosofia a partir da construção de uma pós-modernidade. A inversão se constitui, portanto, no fato de que a religião, em Alves, é a linguagem no sentido mais profundo do termo, que condiciona e possibilita toda experiência humana; enquanto que em Vattimo ela é uma rede de transmissão histórica. Assim, Alves, que é mais distante daquela virada, ao tratar de religião se aproxima; já Vattimo, que está mais próximo dela, se afasta ao tratar do mesmo tema. 

A noção de linguagem em Vattimo não é reduzida por ele tratá-la enquanto tradição, pois, é desse modo que se entende a kenosis enquanto condição de possibilidade para o enfraquecimento do ser e a secularização. Como, então, afirmar que sua compreensão de religião como linguagem não é tão profunda quanto pareceria ser? Ora, uma vez que Vattimo condiciona a kesonis cristã como elemento fundador do Ocidente moderno (e também causa de seu declínio), as possibilidades para essa linguagem na pós-modernidade, em seu pensamento, se reduzem à ética: a aplicação da caritas como critério não-metafísico por meio do qual é possível manter o senso crítico e não cair no relativismo – possibilidades presentes no ideal de enfraquecimento. O cristianismo é reduzido à ética enquanto é percebido como fim da religião natural e de sua violência sacrificial de que fala Girard e Vattimo se apropria ativamente. 

Para Alves, todavia, afirmar a linguagem como religião não implica em dizer que toda linguagem é linguagem religiosa no sentido confessional. Há outras linguagens, como a científica, a política ou a poética: isso é fato inegável. Todavia, para ele, mesmo essas linguagens são religiosas na medida em que se estabelecem mediante algo que é essencial à subjetividade humana, à verdade última do indivíduo que, no limite, constitui sua religião. Aqui, as ideias de Rubem Alves em muito se aproximam às de Tillich, principalmente em sua concepção de cultura como forma da religião13. Isto é, a cultura, enquanto esforço humano, é a forma pela qual a religião, enquanto preocupação última, se estabelece objetivamente. Assim, a cultura enquanto forma de exteriorização das preocupações últimas também é uma linguagem que expressa uma consciência religiosa. 

O que, fundamentalmente, afasta os dois autores é o modo como a relação entre religião e linguagem se estabelece. Aqui, a definição, ou não, do artigo que trata da linguagem frente à religião é de suma importância: de um lado está Vattimo e seus pensamentos filosóficos dentre os quais a religião é um tema e, assim, uma linguagem entre outras; do outro lado está Alves e seu pensamento no qual o humano não pode escapar à religião, pois ela é a linguagem fundamental para a construção do mundo. Nesse último sentido, mesmo quando parece haver outra linguagem, há religião.

Essa divergência entre as perspectivas dos autores fica ainda mais latente quando se percebe que o conceito de religião como linguagem em Alves é mais amplo que em Vattimo. No primeiro caso, isso parece estar já justificado, uma vez que religião não se reduz a tradições religiosas, antes, aponta sempre para algo anterior, no nível da experiência e da emoção. Para o filósofo italiano, todavia, falar de religião como linguagem é, praticamente, tratar de como o cristianismo afeta o destino do Ocidente enquanto transmissão histórica fundamental. No caso apresentado em que isso fica mais claro é o da relação entre kenosis e secularização, o autor parece restringir ainda mais o problema. Para Vattimo, então, só se pode falar de cristianismo como linguagem? 

É importante aqui voltar à noção de que, para Vattimo, a religião se dá sempre como um retorno, pois, em qualquer cultura, diz ele, “nenhum de nós [...] começa do zero no caso da questão da fé religiosa” (2018, p. 8). Isso significa que, não só o cristianismo se estabelece enquanto linguagem no Ocidente, mas também toda religião é uma questão que está presente, conscientemente ou não, na vida do homem. Diz ele que “todos nós vivemos a relação com o sagrado, Deus, as razões últimas da existência que em geral são o tema da religião [...] como a reapresentação de um núcleo de conteúdos de consciência que tínhamos esquecido” (VATTIMO, 2018, p. 8). A predileção pelo cristianismo em seu pensamento, além de questão pessoal, apenas revela seu objetivo em pensar a secularização, mas não pode ser apontada como impossibilidade de pensar a religião, em sentido amplo, como linguagem presente em qualquer cultura. 

Rubem Alves, por sua vez, também não apresenta uma dificuldade para a pesquisa enquanto opta por reduzir religião à subjetividade e, assim, deslegitimar a tradição objetiva? Diz Alves: “O erro de se tomarem as formas institucionalizadas, reificadas da religião, como o objeto religioso se deve ao fato de que nada garante, ‘a priori’, que as instituições [...] religiosas realmente desempenhem, para a consciência, uma função religiosa” (ALVES, 1984, p. 40). E mais, para ele, a instituição não é uma expressão da experiência religiosa, mas uma repressão dela. Nesse sentido, a religião enquanto linguagem de uma tradição religiosa não poderia ser afirmada como religião, pois, nada garante, como o próprio autor diz, que ela funcione de modo religioso para a consciência. 

Não obstante tais diferenças entre as perspectivas dos autores, quando comparadas, reflexões sobre a contribuição mútua dos conceitos de linguagem e religião são possíveis. Antes, não tomamos as discordâncias como impossibilidade de diálogo, mas como enriquecimento dele. Olhamos, aqui, para Vattimo e Alves a partir de uma perspectiva complementar na qual, a partir de suas contribuições, um percebe características e conclusões que não são possíveis ao outro. Dessa forma, as divergências não são motivo para limitação, mas são parte da própria possibilidade do diálogo. A partir e em meio a elas devemos fazer nossas reflexões.

5. Para além da linguagem religiosa: reflexões

A partir de Gianni Vattimo e Rubem Alves percebemos que existem mútuas contribuições entre os conceitos de religião e linguagem. Se em princípio esses termos permaneciam justapostos sem, entretanto, se relacionarem, quando colocados em franco diálogo eles se modificam na interação. É necessário, portanto, indicar que, quando os conceitos de religião e linguagem se tocam, inúmeras contribuições para o pensamento das teorias da religião vêm à tona. Para que saibamos identificá- -las, precisamos ainda refletir sobre as consequências de tal interação para uma definição mínima de religião e de pensar essa relação para além da noção de linguagem religiosa. 

A partir das incursões anteriores, a definição de um conceito de religião deve seguir dos seguintes critérios: a) levar em conta sua relação com a linguagem; b) não restringi-la a âmbitos institucionais; c) evitar reducionismos puramente subjetivos; d) não ligá-la a uma expressão religiosa específica. Assim, oferecemos a seguinte definição: Religião é uma linguagem que possibilita e delimita a experiência humana de mundo construindo-o, desconstruindo-o e transmitindo mensagens através da história. Consideramo-la adequada na medida em que, além de preencher os critérios acima, responde às teorias de Vattimo e Alves de modo equilibrado, contemplando a complementaridade que existe na diferença das perspectivas. 

Em relação à definição poética de Rubem Alves14, nossa definição apresenta consideráveis ganhos na medida em que amplia o sentido de linguagem. Como a própria argumentação desse autor, não limitamos linguagem à forma de comunicação, a um jeito de falar sobre o real, sobre o mundo. Também não a excluímos, mas a situamos historicamente. Isso acontece, sobretudo, enquanto inserimos a noção de religião como transmissão histórica de mensagens. A comunicação que a religião faz de si mesma está implicada em tal noção de maneira lógica: por transmitir mensagens ela é, necessariamente, modo de comunicação, maneira de dizer e expressar algo. Ao inseri-la na história, mostrando como qualquer mensagem é sempre dependente de uma cultura (seja de quem envia ou de quem recebe), a religião deixa de ter uma face meramente abstrata, em nossa definição, e ganha caráter também concreto.

Ao nos apropriarmos de partes do conceito de linguagem em Vattimo também apresentamos certos ganhos na definição de religião. Na medida em que a linguagem possibilita a experiência do humano no mundo, porque instaura o arco hermenêutico a partir do qual ele interpreta a realidade, ela é condição fundamental para a existência. Compreendemos que a religião pode ser essa linguagem. Todavia, ela não só possibilita, como também delimita. Não se pode pensar em algo fora dela. Consequentemente, o que a escapa não pode ser pensado. Justamente por isso definimos que a religião é o que possibilita e o que delimita a experiência humana de mundo. Essa ambiguidade não demonstra, entretanto, dois movimentos do mesmo fenômeno, mas um único movimento. Porque e na medida em que ele possibilita também delimita. Por fim, fazemos coro tanto com Vattimo quanto com Alves ao inserir em nossa definição a questão da construção/desconstrução do mundo. No pensamento do filósofo italiano, a linguagem constrói o mundo humano enquanto delimita horizontes hermenêuticos como argumentamos acima. Ao possibilitar e delimitar certas experiências, a religião como linguagem estabelece também certas visões de mundo: interpretações que partem do horizonte hermenêutico instaurado. Em Alves, diferentemente, linguagem e mundo estão em relação dialética: eles se constroem mutuamente em interação. Isso significa que enquanto a linguagem é uma ferramenta de construção de mundo, ela é transformada por meio dele. Podemos, portanto, falar de uma interseção entre os autores aqui: ambos interpretam a religião como construtora de mundos. Todavia, para eles as possibilidades de relação entre religião e mundo não se limitam a construção: ela também tem o potencial de desconstruí-lo15

Podemos dizer que essa definição fornece resposta plausível à problemática desse trabalho. Se quisermos pensar a relação entre religião e linguagem para além da noção linguagem religiosa, é necessário refletir acerca dos papéis que esses conceitos desempenham quando em interação direta. Aqui, afirmamos que a possibilidade de afirmar que a religião tem uma linguagem não encerra nem esgota a relação. Dizemos que a religião é uma linguagem justamente porque constrói e desconstrói mundos, possibilita e limita sua experiência e se transmite historicamente. Nesse sentido, pensamos possibilidades que se coloquem paralelas ao jogo da linguagem religiosa enquanto interpretação única da relação entre linguagem e religião. 

Considerações finais

Convém, para concluir, considerar três pontos a partir de nossa argumentação: a) o posicionamento de nossas reflexões frente à área das linguagens da religião; b) indicar consequências para pensar as teorias da religião; c) sublinhar as contribuições para uma epistemologia da ciência da religião. Nosso primeiro ponto indicou que as relações entre religião e linguagem, na área das linguagens da religião, permanecem uma justaposição sem que os termos interajam. Não optamos por essa discussão para levantar qualquer objeção de falsidade ou de impossibilidade para esta crescente área em nosso país. Revisitamos o fundamento do qual essa área parte para refletir acerca de possibilidades que permaneciam impensadas. Assim, reiteramos aqui a de não exclusão entre as linguagens da religião e a perspectiva aqui apresentada. As interpretações são paralelas, não concorrentes. 

Nossas reflexões são úteis para pensar as teorias da religião na medida em que deslocam os dois conceitos principais de uma área predominantemente empírica para uma abordagem normativa. Mais uma vez, não se pode afirmar que esse seja intrinsecamente melhor que aquele, mas enquanto tentamos definir mútuas contribuições conceituais entre religião e linguagem, acreditamos ser essa a abordagem mais adequada. Assim, para além de observar a função e a narrativa de uma ou outra forma religiosa de expressão, contribuímos com as teorias da religião formulando um conceito que se constitui a partir de um diálogo entre dois grandes autores, e se define diante da noção contemporânea de linguagem. 

Finalmente, acreditamos que é nessa virada das linguagens para a teoria da religião onde contribuímos para o pensamento da epistemologia da ciência da religião. Pensar e sugerir uma definição de religião é importante para o próprio fazer de nossa ciência na medida em que esse conceito é necessário previamente. Isto é, quando se quer constituir o que seja a ciência da religião, é preciso ter de antemão uma definição mínima de ciência e uma de religião. Nossas reflexões fornecem tal conceituação. Mesmo sabendo que ela não é última, unívoca e final, consideramos que ela contribui para as discussões tanto de teoria da religião quanto de epistemologia de nossa ciência. Ela é mais uma definição histórica – e justamente por assim acreditar-se é adequada para pensarmos a religião e sua ciência na contemporaneidade. 

Referências

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ALVES, Rubem. Da Esperança. Campinas, SP: Papirus, 1987. 

ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005. 

ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos. São Paulo: Paulus, 1999. 

BERGER, Peter. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985. 

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CAMPOS, B.; MARIANI, C. Peter Berger e Rubem Alves: religião como construção social entre a manutenção do mundo e a libertação. Protestantismo em Revista. São Leopoldo, v. 36, p. 3-20, jan./ abr., 2015. NOGUEIRA, Paulo (org). Linguagens da Religião. São Paulo: Paulinas, 2012. 

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PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (orgs.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2013. 

PECORARO, Rossano. Niilismo e pós modernidade: (introdução ao “pensamento fraco” de Gianni Vattimo). Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005. 

PIEPER, Frederico. A vocação niilista da hermenêutica: Gianni Vattimo e religião. In: MARASCHIN, J.; PIEPER, F. Teologia e Pósmodernidade - Ensaios de teologia e filosofia da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2008. p. 187-216. 

MENDES, Danilo. Modos de habitar a terra: O estatuto da linguagem religiosa em Gianni Vattimo e Rubem Alves. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião). Instituto de Ciências Humanas. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG. 152 p., 2019. 

TILLICH, Paul. Teologia da cultura. São Paulo: Fonte editorial, 2009. VATTIMO, Gianni. Crer que se crê: é possível ser cristão apesar da Igreja? Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. 

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VATTIMO, Gianni. O vestígio do vestígio. In: DERRIDA, J.; VATTIMO, G. A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 91-107.  

Notas

[1]  Pieper explica que, no pensamento de Vattimo, “secularização não é anti-cristianismo. Pelo contrário secularização é a realização mais plena do ideal cristão de enfraquecimento” (PIEPER, 2008, p. 203).        

[2]  Acerca desse “Retorno da religião” Vattimo trata em O vestígio do vestígio (VATTIMO, 2000, p.91-107). Há, aqui, uma questão peculiar e potencialmente problemática no pensamento de Vattimo: se a religião está presente nos dois primeiros movimentos, Kenosis e secularização, como o terceiro poderia ser seu retorno? Ora, algo que nunca deixou de estar não pode retornar – uma questão, antes de tudo, lógica, mas também conceitual. Todavia, este retorno não é o das instituições religiosas ou mesmo do tema da religião: historicamente, não há rupturas modernas na discussão do tema e, nem mesmo, dissolução de tradições religiosas como catolicismo, protestantismo etc. O retorno de que Vattimo trata é o retorno da plausibilidade filosófica de ser religioso. Em suas palavras, “O fato é que ‘o fim da Modernidade’ ou, em todo caso, sua crise levou consigo também a dissolução das principais teorias filosóficas que acreditavam ter liquidado a religião: o cientificismo positivista, o historicismo hegeliano e depois o marxista. Hoje não há mais razões filosóficas fortes plausíveis para ser ateu ou, em todo caso, rejeitar a religião” (VATTIMO, 2018, p. 17). Assim, a ruptura com a religião não se está vinculada à secularização em si, mas a parte da filosofia que, na modernidade, apontava a implausibilidade da religião.     

[3] Vattimo afirma, seguindo Dilthey, que “O platonismo é [...] o emblema da metafísica antiga” (2004, p. 133).    

[4] Consequência desta noção de secularização e da adoção desta linguagem judaico- -cristã, Vattimo afirma que a dissolução do próprio Deus na Kenosis é também o indício de uma filosofia não violenta: “A encarnação, ou seja, o abaixamento de Deus ao nível do humano, a que o Novo Testamento chama a kenosis de Deus, deve ser interpretada como sinal de que o Deus não violento e não absoluto da época pós-metafísica tem com o traço distintivo a mesma vocação ao enfraquecimento de que fala a filosofia de inspiração heideggeriana” (VATTIMO, 2018, p. 31-32).  

[5] Em suas palavras: “esses ‘conteúdos’ positivos, caracteristicamente positivos, da experiência do retorno em que se dá, para nós, o religioso, também são positivos, sobretudo no sentido de que não os encontramos numa reflexão abstrata sobre nós mesmos, como êxitos do aprofundamento de uma autoconsciência humana em geral. São, ao contrário, dados já numa linguagem determinada, que, em termos mais ou menos literais, é a linguagem da tradição judaico-cristã, da Bíblia” (VATTIMO, 2000, p. 101). 

[6] Para ele, o entendimento deste modo é oposto à teologia dialética, na qual se situa, por exemplo, Karl Barth. Diz Vattimo: “a secularização não tem como efeito colocar em luz cada vez mais plena a transcendência de Deus, purificando a fé de uma relação demasiado estreita com o tempo [...]. É, na verdade, uma maneira com a qual a kenosis [...] continua a se realizar em termos cada vez mais nítidos” (2018, p. 43).         

[7] Quando Vattimo pensa em superação, trata nos termos da Verwindung. Essa superação deve ser entendida à maneira de Vattimo, sobretudo em 1987, p. 131-143. Pieper, por exemplo, afirma que esta superação é o tema central do pensamento do autor (2008, p. 190), mas ela não se dá como “um erro a ser desmascarado” (PIEPER, 2008, p. 195), mas como Verwindung, isto é “torção, dis-torção” (PECORARO, 2005, p. 41). Este termo deve ser entendido como foi utilizado por Heidegger, “em oposição a Überwidung, isto é, ao termo ‘clássico’ utilizado para indicar a superação característica da dialética” (PECORARO, 2005, p. 47).      

[8] Aqui, especificamente, Vattimo dialoga com René Girard, afirmando que sua ligação entre cristianismo e dissolução da violência vitimária é correta, todavia, ainda não completa por fazer esta correlação a partir da morte de Jesus, e não da encarnação (VATTIMO, 2018, p. 28). Sua relação com o pensamento de Girard se estabelece como fundamental porque, para Vattimo, o cristianismo como superação da religião natural é uma espécie de tradição cristã não desenvolvida pela cristandade. Diz Vattimo que “se o sagrado natural é aquele mecanismo violento que Jesus veio desvelar e desmentir, é bem possível que a secularização [...] seja precisamente um efeito positivo do ensinamento de Jesus, e não um modo de se afastar dele” (VATTIMO, 2018, p. 34). Assim, o deus violento de Girard é o deus metafísico de Vattimo. Para o aprofundamento desta discussão, pode-se indicar Cristianismo e relativismo (GIRARD; VATTIMO, 2010a). 

[9] Em inglês, “Christianity is a stimulus, a message that sets in motion a tradition of thought that will eventually realize its freedom from metaphysics”.   

[10] Peter Berger trata sobre a construção de mundo dizendo que “o mundo é construído na consciência do indivíduo pela conversação com os que para ele são significativos (como os pais, os mestres, os amigos). O mundo é mantido como realidade subjetiva pela mesma espécie de conversação, seja com os mesmos interlocutores importantes ou com outros novos (tais como cônjuges, amigos ou outras relações)” (BERGER, 1985, p. 29-30). Aqui fica clara a relação de dependência entre Alves e Berger: a construção do mundo humano é subjetiva, no sentido de que se dá por meio de sentidos e significados. Sobre o assunto, recomenda-se o texto “Peter Berger e Rubem Alves: religião como construção social entre a manutenção do mundo e a libertação” (CAMPOS, MARIANI, 2015). 

[11] As recorrências a ele se dão em dois momentos fundamentais, já descritos: na caracterização da linguagem, enquanto discurso e visão de mundo, como jogo de palavras, reconhecendo seu aspecto interpretativo, porque sempre limitado a um jogo; e ao revelar o caráter enfeitiçante deste jogo, que desemboca numa postura fundamentalista.  

[12] Em Da Esperança (1987), Alves também tratará desta questão, todavia de modo a estabelecer bases que possibilitem uma linguagem humanístico-messiânica (1987. p. 137-152) que seja histórica e de liberdade (ALVES, 1987, p. 149).    

[13] Sobre a relação entre religião e cultura em Tillich, ver seu Teologia da cultura (2009).   

[14] Fazemos aqui referência ao início de seu poema apresentado acima: “Sabia que a religião é uma linguagem? /Um jeito de falar sobre o mundo...” (ALVES, 1999, p. 5).  

[15] Sobre isso, recomendamos o sub-capítulo de nossa dissertação no qual exploramos “A morada sobre a face do abismo” (MENDES, 2019, p. 52-58), isto é, a possibilidade de desfundamento implícita na religião enquanto linguagem.