A importância da palavra em Chico Buarque e no discurso teológico
The importance of the word in Chico Buarque and in the theological discourse

Antonio Manzatto*
* Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina. Prof. da Faculdade de Teologia da PUC SP.Contato: antoniomanzatto@gmail.com
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Resumo
Chico Buarque de Hollanda, um dos maiores artistas brasileiros e com reconhecimento internacional é, em sua arte, verdadeiro artesão das palavras no sentido de construir significados na busca da palavra certa, mesmo se diferente, e também de chamar a atenção para a realidade da dignidade da palavra, que é, no seu dizer, mais que instrumento de comunicação pois é forma de habitar o pensamento. Através de procedimento comparativo, percebe-se que o fazer teológico possui a mesma convicção porque também constrói significados para as palavras que compõem seu universo. Dessa maneira, além da exatidão e do cuidado gramatical, também a teologia tem em alta consideração a atualização de significados e o reconhecimento da dignidade da palavra. Mais não fosse, pelo fato de afirmar na fé que a encarnação da Palavra de Deus em Jesus é forma não apenas de comunicação, mas uma maneira de Deus habitar o mundo dos seres humanos e, por esse viés, possibilitar que também o humano perceba maneiras de habitar o mundo de Deus.

Palavras chave:palavra, Chico Buarque, significados, teologia, Palavra de Deus. Mistagogia.

 

Abstract
Chico Buarque de Hollanda, one of the greatest Brazilian artists with international recognition, is a true craftsman of words, and is so in the sense of constructing meanings and searching for the right word and calling attention to its essence through the affirmation of the value of the word, which is more than an instrument of communication because it is a way of experiencing thought, as he says. Through a comparative approach, one realizes that the theological process acts on the same conviction because it also builds meanings for the words that make up its universe. In this way, besides precision and grammatical accuracy, theology also takes into high consideration the updating of meanings and the recognition of the value of the word. Moreover, it is not because it recognizes that the incarnation of the Word of God in Jesus is not only a form of communication, but also a way for God to dwell in the world of human beings and, because of this view, to make it possible for human beings to perceive ways of living in the world of God.

Keywords:Word, Chico Buarque, meanings, theology, Word of God.

Introdução

Francisco Buarque de Hollanda é um artista completo, daqueles que caracterizam uma época e uma cultura. Carioca nascido em 1944, despontou para o universo cultural brasileiro através da música ainda muito jovem, com seu primeiro álbum sendo lançado em 1966. Depois firmou-se como um dos nomes de maior relevância no cenário artístico nacional. Trilhou caminhos no teatro e no cinema, desafiou os poderosos meios de comunicação, manteve seu sucesso e reconhecimento e, depois, navegou pelas águas do romance. Um artista completo, sim, mas cujo talento especial se desenvolveu na consagração à palavra. Compositor, articula muito bem letra e melodia produzindo canções memoráveis cujo sucesso popular permanece mesmo depois de várias décadas. Nos tempos atuais em que as melodias são mais dançantes, rítmicas e monocórdicas, suas canções elaboradas com grandes doses de erudição permanecem como referência na música brasileira. As letras de suas canções são tão significativas, tão bem construídas que já foram objeto de estudo de especialistas das mais diversas áreas. Seu teatro, elaborado também em parceria com artistas versados na arte, tem jogo de cena marcante e nas palavras seu ponto crucial. Da mesma forma seus romances, elaborados não apenas com arte de saber contar, mas sobretudo pelo trabalho de fazer com que essa narração seja plena de significados1.

Não é de espantar, por isso, que seu trabalho seja reconhecido praticamente no mundo todo e que a consagração maior da língua portuguesa lhe tenha vindo através da atribuição do prêmio Camões, bastante significativo e que será colocado junto a outros tantos prêmios já conquistados, como o Jabuti, Grammy e outros tantos. No Brasil sua obra é admirada por todos, sobretudo suas canções, e na maior parte das vezes é impossível separar o artista de sua obra. Engajamento político e conscientização social são características do compositor e de suas composições, e por isso constituiu em determinada época verdadeira unanimidade nacional, sendo o artista verdadeiro porta-voz de um povo. Recentemente a guinada política brasileira o fez, novamente, perseguido pelas ideologias fascistas e pela censura que sustenta tais posições e regimes políticos. Não obstante ele segue em frente, impávido colosso da expressão da voz popular e da cultura que ele ajudou a plasmar.

Muito se tem escrito sobre sua obra, ainda mais sobre suas canções. A beleza das letras e das melodias, suas ou em parcerias, motivaram não poucos estudos e escritos. Estudiosos de ciências sociais, psicologia, religião, política, música, letras, filosofia e outros mais já se debruçaram sobre suas composições e mostraram aspectos de significação nem sempre perceptíveis à primeira vista2. O pequeno texto que apresenta mos aqui quer apontar uma constante na obra buarqueana que pode se relacionar, indireta e comparativamente, com questões religiosas ou, mais precisamente, com aspectos de teologia.

Características da obra de Chico Buarque

Não poucos estudantes têm-se consagrado a decifrar a obra buarqueana, desde sua gênese criativa, as constantes melódicas, os assuntos mais relevantes que ele aborda, suas referências teóricas básicas. Na verdade, sua criatividade é imensa a ponto de criar melodias para um poema de João Cabral de Mello Neto (Funeral de um lavrador, 1965) e rearranjar, também com melodias, a tragédia de Medeia (Gota d’água, 1975) ou ainda estilizar a música clássica com a Ópera do malandro (1978). Criatividade misturada com muita cultura, erudição capaz de emocionar e significar para toda a gama de seus ouvintes, fãs e seguidores.

Chico Buarque não é exatamente avesso aos meios de comunicação, mas não se preocupa em tornar-se notícia ou estar continuamente presente nas notícias da imprensa. Atualmente sua presença nas redes sociais é ínfima, prezando por sua privacidade. Em outros tempos, tornou-se notícia não porque o tenha buscado, mas pelo interesse despertado por sua obra mais que por seu comportamento. Normalmente apresentado como tímido, é avesso às fofocas que querem continuamente devastar a vida de celebridades. Coloca sempre sua obra como objeto de estudo e conversa, e não sua vida pessoal. Por tempos chegou a desafiar o poder dos grandes meios de comunicação, em especial a Rede Globo, quando durante algum tempo recusou-se até a conceder entrevistas àquela emissora que apoiava o regime militar que o perseguia, sobretudo pela censura imposta à sua obra. Aliás, por conta dessa censura, chegou a assinar várias canções com pseudônimo e, cume do absurdo, as canções foram aprovadas enquanto, se assinadas com o nome Chico Buarque, seriam proibidas.

Suas posturas políticas são, evidentemente, perceptíveis em sua obra. Suas canções militaram contra a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, tornando-se símbolos da resistência aos desmandos e à repressão violenta, e suas composições mais características se situam exatamente nesse período no qual se manifestava o pleno vigor de sua criatividade. Seus outros trabalhos também podem ser lidos a partir de tal perspectiva, de forma que sua obra contém, como característica marcante, a crítica social e a conscientização popular. Canções como Vai passar (1984), Cálice (1973) ou Apesar de você (1970), além de outras tantas, contêm tal crítica de maneira explícita que chega a ser mesmo estruturante daquilo que se diz na canção.

Veja-se o exemplo de Apesar de você (1970)3

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal

Conta a história que, na volta de seu autoexílio na Itália, Chico pensou que a situação política no Brasil tinha melhorado no sentido de se restabelecerem as liberdades democráticas, mas, confrontado com a realidade, desapontou-se e lançou o samba em 1970. O sucesso foi imediato e a censura, inicialmente, entendeu que a canção falava de uma briga de namorados. Não foi senão mais tarde que os chefes militares do governo Médici entenderam o recado que a canção trazia à ditadura e proibiram a canção, confiscando os discos gravados e fazendo com que Apesar de você fosse liberada apenas 8 anos mais tarde4 . Diz-se que, perguntado pelos censores quem era o “você” da canção, Chico teria respondido “é uma mulher muito mandona, muito autoritária” Werneck, 1989). Podemos entender essa mulher como a ditadura, que tem as características apontadas pelo Chico. Existe também o comentário de que a canção teria visado especificamente o Ato Institucional número 5, aquele que caçou completamente a liberdade no Brasil e que foi elaborado em 1968, e seu autor, Luís Antonio da Gama e Silva. Seja como for, a canção é uma crítica ao regime político, mas é uma canção leve, bem construída, sem aquele peso das canções de protesto, dogmáticas e cheias de palavras e ordem. Aqui uma diferença significativa entre a composição do Chico e a de Geraldo Vandré, por exemplo. Não obstante, ela tem um alcance político definido e isso, unido à crítica social, é uma das marcas características das composições de Chico Buarque.

Há um segundo elemento, entre outros, que poderia ser destacado e que também é bastante conhecido e comentado pelos estudiosos: Chico é um artesão da palavra. Suas composições não são apenas rimadas, e às vezes nem o são. Não é a rima que faz o poema, mas a metáfora5 , já se sabe disso. Chico constrói suas canções pela da busca incessante pela palavra certa, aquela que pode ter um significado direto ou em um segundo grau, e que além de tudo se encaixe perfeitamente na melodia. Existe um jogo de palavras em suas obras, é indiscutível. Assim, por vezes a palavra manifesta exatamente o contrário, como em Samba do grande amor (1983) ou O velho Francisco (1987), outras vezes sentimentos desencontrados, como em Madalena foi pro mar (1965) ou Noite dos mascarados (1966), ou ainda fina ironia como em Não sonho mais (1979) ou Não existe pecado ao sul do equador (1972). Há também o jogo de palavras simples que evoca um som marcante, como em Morena de Angola (1980) e talvez em Pedro Pedreiro (1965), ou em Bárbara (1972)6 . Mas há que se convir que existe uma elaboração artesanal que dá vida às suas composições, como se percebe magistralmente em Construção (1971) ou Corrente (1976).

Em Construção, Chico elabora os possíveis e variados significados da canção através do jogo de troca das proparoxítonas finais de cada verso, sobre isso já se falou muito7 . Corrente (este é um samba que vai pra frente), por sua vez, é elaborado de forma que possa ser cantando em ordem direta ou inversa, como aliás foi feito na gravação que lançou álbum Meus caros amigos (1976). Na canção, cada verso é escrito quase de forma independente, o que possibilita que também sejam cantados de trás para frente, o que denota o trabalho artesanal do compositor, uma das características da obra buarqueana.

Eu hoje fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente.

O trabalho de valorização e lapidação das palavras em busca da palavra perfeita para expressar a ideia, também foi vislumbrado por Ronaldo Cavalcanti (2018, p. 333) quando aponta para o fato de Chico utilizar palavras existentes em língua portuguesa, mas pouco usadas na linguagem corriqueira. Não é sempre que isso acontece, mas quando acontece aponta para a valorização que se faz das palavras, em um trabalho quase que de garimpagem de significados feito pelo compositor.

Poucas palavras

Discorrendo sobre essa característica da obra buarqueana e afirmando a pluralidade de seus significados, Cavalcante lembra o conceito de “obra aberta”, trabalhado em sua leitura por Umberto Eco, e a análise semiótica, sobretudo a partir de Charles Peirce. Assim, como obra aberta, todo texto literário, incluindo as letras de canções, exige o trabalho interpretativo do leitor uma vez que o significado da obra não vem fechado na intencionalidade do autor. Ademais, referindo-se à análise semiótica, ele lembra que a leitura de significados abrange também o não dito, formas não verbais de comunicação e significação que podem estar presentes nas obras literárias, como o fato de compor servindo-se de palavras não usuais em canções.

Cavalcanti faz um grande elenco de tais palavras. Realmente algumas chamam bem a atenção, como harpejo em Realejo (1967), escafandristas em Futuros amantes (1993), malocam em As Caravanas (2017), desmilinguindo em A história de Lily Braun (1982), acetato em A voz do dono e o dono da voz (1981); homérico em Cálice (1973) e outros ainda. A lista é imensa e indica exatamente esse trabalho de garimpagem em busca da palavra certa, que diga e chame a atenção para aquilo que diz. De um lado, isso demonstra uma grande técnica e o grande conhecimento que Chico Buarque tem da língua portuguesa. Trata-se, em verdade, de um compositor que conhece e utiliza o idioma sendo também capaz de fazer jogo de palavras com outros idiomas como em Joana francesa (1973), ou utilizar palavras estrangeiras como em A história de Lily Braun (1982) e ainda palavras específicas para o sotaque lusitano em Fado tropical (1972) ou em Tanto mar (1978).

Por outro lado, e isso é digno de nota, trata-se de um autor que valoriza a palavra, cada palavra, e por isso a trata com cuidado, com esmero. Tal ideia se encontra expressa em Uma palavra (1981):

Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra
Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra
Palavra dócil
Palavra d’agua pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra
Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra
Talvez à noite
Quase-palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra
Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra

Aqui a palavra é tratada em toda a sua dignidade. Não mera forma de dizer algo, como se fosse apenas um meio de comunicação entre dois seres, o emissor e o destinatário. Palavra é mais que comunicação, é até mais que arte, é forma de “habitar o coração do pensamento”, é ato humano de ser, mais do que de designar. Por isso o trabalho com as palavras precisa ser respeitoso para que as rimas não se construam de qualquer maneira, sempre rimas pobres, mas sim que sejam mais do que rimas, mesmo que ricas, que sejam formas de ser. Entende-se porque é importante o trabalho de garimpagem da palavra certa e também a razão da construção não apenas do poema ou da canção, mas dos significados que podem e precisam ser múltiplos para indicar a multiplicidade de formas possíveis de habitar o mundo pela palavra.

Em teologia

A palavra tem especial destaque em ambientes religiosos e mais especificamente na teologia cristã. A palavra falada, por exemplo, tem importância especial na cultura e na religião guarani (Brandão, 1990, p.75), tanto que xamãs e profetas precisam dominar, de certa forma, a arte da palavra não apenas no sentido de articular o discurso, mas também no de remeter à divindade. Em outras religiões não é diferente, e com os monoteísmos acontece a mesma coisa. No Islã, a importância da palavra contida no Alcorão é conhecida, e o judaísmo também a tem em alta conta em sua forma de compreender a Torá. No cristianismo a palavra tem relevância pois faz parte da afirmação de fé e é constitutiva da elaboração teológica propriamente dita.

Cabe destacar, em primeiro lugar, a relevância que a palavra adquire em sentido de correção, seja em teologia fundamental, seja na dogmática. Por um lado, a exatidão gramatical é exigida e a ela corresponde, por outro lado, a exatidão lexical (Sesboué e Wolinski, 2002, p. 48ss). Assim, por exemplo, em cristologia se diz que Jesus é uma pessoa em duas naturezas, e não de duas naturezas. A variação não é pequena em termos de significado, embora o pareça em termos de grafia. Se fosse de duas naturezas, Jesus seria um ser composto e não sem dificuldade seria afirmada sua unidade pessoal, pois a gramática remeteria ao nestorianismo e seus aparentados (Frangiotti, 1995, p. 128ss). Dizendo que o Cristo é uma pessoa em duas naturezas se afirma sua unidade pessoal ao mesmo tempo em que se confessa sua divindade e humanidade. A precisão gramatical é exigida para a correta confissão de fé e afirmação do dogma que, por sua vez, é a perenização do que não pode ser esquecido e precisa ser guardado em relação à significação daquilo que se afirma crer (Segundo, 1991, p.25). Da mesma maneira, quando se diz que Deus é Uno e Trino, o que se afirma é que ele é Trindade de pessoas em uma única natureza. Mas é preciso discernir que a unidade se diz em relação à natureza, e a distinção em relação à constituição pessoal. Portanto, não se diz que ele é um e três na mesma coisa, mas em referências diferentes: natureza e pessoa. A construção gramatical e a significação lexical são importantes para a exatidão do dogma em relação com a compreensão da fé.

Além disso, e talvez por isso mesmo, cabe ressaltar a importância que possui a exatidão da palavra. Quando dizemos Deus, não dizemos Ser, mesmo porque, segundo Ricoeur, há mais na palavra Deus que na palavra Ser (Ricoeur, 2006, p. 65). Quando dizemos criação não dizemos emanação ou outros significados aparentados, e da mesma forma quando dizemos escatologia ou ressurreição. Em alguns casos o uso da palavra acaba como que escondendo ou esvaziando seu significado. Assim, por exemplo, com a palavra caridade, que acaba sendo compreendida não como amor ou graça, mas como esmola; o mesmo vai acontecendo hoje em dia com a palavra comunidade, ou outras ainda. Esvaziada de seu significado, a palavra perde exatidão e, portanto, já não remete à confissão de fé primitiva ou à experiência fundante. Ressurreição, assim, não é simplesmente revivificação de cadáver, como teria sido a de Lázaro segundo o relato de João (Jo 11,1-45), mas remete à realidade do Reino de Deus e, por isso, a insistência em seus aspectos de historicidade. Percebe-se a mesma realidade com relação à palavra encarnação, cujo significado permanece a ser percebido e, muitas vezes, é devedor de posições predefinidas tanto teológica quando ideologicamente.

A palavra pertence sempre a uma cultura onde adquire importância e relevância. Nesse sentido, toda palavra é situada não apenas geográfica e cronologicamente, mas também culturalmente. Seu significado em uma cultura pode não ser o mesmo em outra, e os procedimentos de tradução sempre são, na verdade, ações de adaptação e de aproximação de conceitos. A palavra pode também transformar sua significação por conta das transformações culturais e da passagem do tempo, exigindo que sempre haja cuidado na atualização de significados. Não é diferente com a teologia que necessita, também ela, de contínuo trabalho de atualização para guardar e afirmar significados ainda que em palavras outras, diferentes, criativamente inovadoras. Se a teologia precisa ser fiel à tradição para permanecer ainda na mesma corrente de fé e manter sua ortodoxia, ela também precisa ser fiel à situação, e pela mesma razão. Guardar unicamente formalismos pode não ser a manutenção do que é essencial em termos de compreensão e afirmação de significados que sejam pertinentes para as pessoas e a vida de fé que levam nos tempos atuais.

Aqui há uma outra percepção da importância da palavra em cristianismo. Se foi dito da importância da exatidão das palavras e de sua concatenação gramatical, agora passamos para a importância de compreender um dos fatos mais essenciais do cristianismo, exatamente a encarnação da Palavra de Deus. A exatidão de conceitos escondidos atrás dos vocábulos mostra aqui sua importância. Não é fácil perceber a profundidade de significado que a compreensão de encarnação tem para a fé, e mais ainda do que seja a encarnação do Verbo, da Palavra. O cristianismo conheceu diversas maneiras de se afirmar a encarnação do Filho de Deus, algumas que foram consideradas insuficientes, outras que foram assumidas pela grande Igreja (Manzatto, 2019, p. 27). Ao longo de séculos as formas de interpretação do que significa a encarnação se sucederam, e o que continuou sempre a ser dito, de maneira tradicional, pela fé da Igreja foi que Jesus é a encarnação da Palavra de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano. A encarnação em nada diminui a natureza divina ao mesmo tempo em que em nada diminui a natureza humana, a ponto de, já no símbolo niceno, se dizer que o Filho Unigênito se fez homem. Não se trata, pois, de uma humanidade simbólica ou de uma divindade diminuída para penetrar na história humana, mas sim a percepção de que Jesus é a encarnação do próprio Deus. Sua humanidade não é apenas aparente, é integral, em tudo semelhante a nós, exceto no pecado (Hb 4,15), e sua divindade não é diminuída ou mitigada para possibilitar a encarnação. Nesse sentido, o Filho de Deus não está em Jesus, mas ele é Jesus. A encarnação precisa ser compreendida em toda sua intensidade, e inclui seu nascimento, sua vida e sua morte, pois tudo isso faz parte da existência humana, inclusive da do Filho de Deus.

Mas quem é o Filho de Deus? A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade é chamada no Quarto Evangelho de Verbo: o Verbo se fez carne (Jo 1,14). Verbo quer dizer Palavra, sabemos disso. Então, a Palavra se fez carne, aquela mesma Palavra por quem tudo fora criado agora se faz presente na história humana pela realidade de um ser humano, em sua carne. Trata-se do “sermo in carne”, segundo a forma de dizer de alguns padres da Igreja, como Tertuliano (Contra Praxeas 27,5). Afirma a fé cristã, pois, que a Palavra de Deus penetra a história humana tornando-se um ser humano. Não é o poder de Deus que se encarna, nem seu Espírito, nem sua vontade: é sua Palavra. A Palavra de Deus se faz história na história de Jesus mostrando qual a maneira preferida de Deus habitar o mundo dos seres humanos. A encarnação é própria do Filho de Deus, do Verbo de Deus, da Palavra de Deus, formas de identificação da mesma realidade divina que se faz ser humano específico em Jesus de Nazaré.

Essa maneira de entender fez com que a teologia cristã ao longo dos séculos se debruçasse sobre as formas possíveis de interpretação do significado daquilo que se afirma ainda que na variação das épocas e das culturas. A cada momento é necessário ressignificar as verdades fundamentais da fé para que permaneçam pertinentes à vida das distintas sociedades. Esse trabalho não pode abrir mão da exatidão de referência à experiência fundante, e se as figurações aparecem de forma diferente, elas devem remeter sempre àquela exatidão de significados e de construção gramatical à qual se aludiu e que fazem parte da identidade da confissão de fé tradicional. Em tal sentido, há um trabalho artesanal que se faz com as palavras para que seu significado seja garantido, conhecido e afirmado. Palavras não apenas comunicam, mas significam, como lembra a análise semiótica (Santaella, 2008, p. 95) e, com isso, fazem pensar, sendo e indo além do que é o símbolo. Para dizer como Ricoeur, o símbolo faz pensar (Ricoeur, 1959).

Nisso que está dito se percebe uma correlação interessante entre os trabalhos de Chico Buarque e o da teologia: o trabalho artesanal, verdadeira garimpagem que se faz para encontrar a palavra exata e para possibilitar-lhe significações. Pode-se insistir destacando que Chico Buarque reconhece e afirma a dignidade da palavra e, com isso, a percebe como forma de habitar o pensamento, como presente na citada Uma palavra. A correlação com a teologia parece evidente porque reconhece ela também uma dignidade especial na Palavra, não apenas na palavra dita, mas na Palavra encarnada. Em muitos ambientes a referência à Palavra de Deus é compreendida como a Escritura, e efetivamente é assim. Na Escritura, conforme ensina a fé cristã, nos deparamos com a Palavra de Deus, aquilo que Deus diz à humanidade e, em especial, aos crentes. Mas, sejamos consequentes, o significado da palavra de Deus contida na Escritura nos é dado pelo Cristo, já que é a partir dos relatos do Segundo Testamento que, para os cristãos, o Primeiro Testamento adquire real significado. Sendo Deus presente no meio da humanidade e o Revelador de Deus, Jesus é a verdadeira, total e completa Palavra que Deus tem a dizer à criação toda, em especial aos seres humanos. Assim, se pode dizer que Jesus é a Palavra de Deus que se faz ser humano e aponta para a maneira de Deus habitar o mundo dos seres humanos. É a forma preferida de Deus, e os crentes são convidados não a corrigi-lo, mas a aceitá-lo. Daí que a forma de existência de Jesus, da qual os evangelhos nos dão testemunhos, é a maneira de Deus conviver com os seres humanos, e reconhece-lo dá aos crentes mais do que um exemplo de como devem viver suas vidas, mais do que um modelo a ser seguido, lhes dá a possibilidade de compreender as maneiras de habitar também o mundo de Deus porque, afinal, o jeito de Deus ser está plena e completamente revelado em Jesus.

Conclusão

Colocou-se lado a lado, como para possibilitar interações, uma maneira de se ler as composições de Chico Buarque no que se refere à sua forma de trabalho realizado com as palavras, e o labor que a teologia cristã assume em sua ação com as palavras. O que se buscou foi perceber como que uma intersecção não exatamente no texto, como se fora um intertexto, mas na forma de elaboração do trabalho de composição. Chico Buarque não compôs especificamente canções religiosas, embora algumas delas apresentem vocabulário ou temática próxima do religioso, como as composições de O grande circo místico, feitas em parceria com Edu Lobo, e que trazem temática religiosa explícita, como Sobre todas as coisas (1982), ou alusão a perspectivas religiosas ainda que de passagem, como em Sob medida (1979). No entanto, o trabalho de Chico com a temática humana, sua maneira de compreender o ser e o comportamento humanos podem ser interessantes para a teologia e o discurso religioso, como já foi demonstrado em outras situações (Cavalcanti, 2019, passim; Villas Boas, 2020, p. 26ss).

Aqui apontamos para uma outra perspectiva, aquela da elaboração da composição em relação com a elaboração teológica. De um lado, a busca incessante de Chico pela palavra exata e pela construção de significados que possam conter ainda outros significados. A teologia, se não tem exatamente o mesmo proceder, não está distante pois também lida com a exatidão de conceitos e de gramática, além de recorrer sempre a significados mais que a descrições. Por outro lado, Chico conhece e afirma a dignidade da palavra e a compreende como forma de habitar o centro do pensamento, muito mais do que uma simples maneira de dizer o pensamento. Por sua vez, a teologia conhece a dignidade da Palavra de Deus porque a confessa encarnada e, com isso, a tem como referência para a compreensão do humano e do divino, e para perceber formas de viver no mundo humano e no mundo de Deus. Claro, não se trata exatamente da mesma coisa, o que faz Chico e o que faz a teologia, mas em termos comparativos pode-se enxergar similaridade mais do que distância. Talvez porque, mais uma vez, uma perspectiva e outra se refiram à forma de compreender e dizer o que significa ser humano e, no horizonte da fé, a partir daí compreender a Revelação de Deus.

Referências

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Notas

[1]Uma listagem das obras de Chico Buarque pode ser acessada em www.chicobuarque.com. br, ainda que de forma incompleta porque não atualizada. Acesso em 19/05/2020

[2]A título de exemplo do que se tem escrito sobre a obra de Chico Buarque, veja-se: Alberto Lima. Quem é essa mulher? A alteridade do feminino na obra musical de Chico Buarque de Holanda. Recife: CEPE, 2017; Camila Oliver. Chico Buarque. O tempo, os temas e as figuras. Curitiba: Appris, 2013; Marcelo Pessoa. A crônica-canção de Chico Buarque. Curitiba: Appris, 2013; Rinaldo Fernandes. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2004; Heloisa M. Murgel Starling. Uma pátria paratodos: Chico Buarque e as raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009. Humberto Werneck. Tantas palavras / Chico Buarque. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

[3]As letras das canções aqui citadas seguem o apresentado em www.chicobuarque. com.br.

[4] Essa justificativa se encontra em Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, “Notas sobre Apesar de você”, disponível em www.chicobuarque.com.br. Para as histórias relacionadas às composições de Chico, pode-se ver Wagner Homem, História de canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009.

[5]Metáfora segue sendo o elemento central para a compreensão da obra literária, incluindo os poemas e sua presença em canções. Sobre a metáfora a obra referencial ainda é Paul Ricoeur, A metáfora viva, São Paulo: Loyola, 2000.

[6]A canção faz parte do espetáculo teatral Calabar o elogio da traição (1973), e sua primeira versão dizia “cala Bárbara”, evocando, na pronúncia, o nome do traidor, Calabar. A censura vetou o texto, e ele foi então mudado para “cala a boca, Bárbara”.

[7]Construção é considerada uma das melhores canções brasileiras de todos os tempos pela Revista Rolling Stones, por exemplo. É verdadeiramente uma obra prima composta por Chico Buarque de Hollanda. Pequeno comentário pode ser visto em Antonio Manzatto, Certas Canções, teologia e música popular brasileira, São Paulo: Fonte Editorial, 2019.