O Cego e o Rosto
Uma leitura ético-poética
de Clarice Lispector
The Blind and the Face
An ethical-poetic reading
of Clarice Lispector
Marília Murta de Almeida*
Nilo Ribeiro Junior**
* Graduada em psicologia
e mestre em filosofia
pela UFMG, professora
de filosofia e doutoranda
em teologia na FAJE e
professora de psicologia na
PUC Minas.
** Doutor em filosofia
pela UCP-Braga/Portugal,
professor de filosofia
contemporânea e de
Teologia no PPG da FAJE.-+.
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Resumo
Este artigo trata de fazer uma interpretação do conto “Amor”, da escritora Clarice
Lispector, em diálogo com o pensamento de
Emmanuel Lévinas, aqui evocado tanto pela
pertinência de sua reflexão sobre a alteridade
para a leitura do conto clariceano, quanto pela
sua teoria ético-literária que traz para o cerne
de suas ideias a consideração da literatura de
ficção. Assim, a partir das ideias de Lévinas
sobre a alteridade do texto literário, a experiência vivida pela personagem Ana, protagonista do conto, é aqui compreendida sob a luz
das reflexões levinasianas sobre o encontro
com a alteridade do Rosto do outro. O relato
do conto permite perceber como esse encontro, marcado pela infinitude da diferença que
lança a vivência humana à abertura ao que
não pode mais ser controlado e nem mesmo
conhecido, invade a experiência a ponto de
obrigar a personagem a um (re)posicionamento pessoal frente às outras pessoas, mas
sem que essa transformação leve ao distanciamento em relação àqueles que são os mais
próximos.
Palavras chave:Alteridade, Amor, Rosto, Clarice Lispector, Lévinas.
Abstract
This article interprets the short story “Amor”, by the writer Clarice Lispector,
in dialogue with the thought of Emmanuel Lévinas, here evoked both by the pertinence of his reflection on otherness for the reading of the Claricean tale, and by
his ethical-literary theory that brings to the heart of his ideas the consideration of
fiction literature. Thus, based on Lévinas’ ideas about the otherness of the literary text, the experience lived by the character Ana, the protagonist of the story, is
here understood in the light of Levinasian reflections on the encounter with the
otherness of the Face of the other. The writing of the story allows us to perceive
how this encounter, marked by the infinity of difference that launches the human
experience to the openness to what can no longer be controlled and not even
known, invades the experience to the point of obligating the character to a personal (re)positioning in relation to other people, but without this transformation
leading to distance from those who are the closest.
Keywords:Otherness, Love, Face, Clarice Lispector, Lévinas.
Introdução
Pretendemos, neste texto, refletir sobre o conto “Amor”, de Clarice Lispector (1998), sob a luz das ideias de Emmanuel Lévinas focadas na questão do rosto e do encontro com o outro. Trata-se de ver como o pensamento filosófico e a subjacente teoria ético-literária do autor podem nos auxiliar na leitura do conto, depois de já termos sido tocados pelo rosto do texto, considerando o conto como um poema, ou como um aperto de mão, tal como nos fala Paul Celan, ou seja, como aquilo que se nos apresenta como Outrem, como o desconhecido capaz de nos retirar da solidez da compreensão (LÉVINAS, 2014, p. 62). A despeito, então, de uma barreira que a própria lógica levinasiana poderia nos colocar, no sentido de interditar uma abordagem do texto poético que já parta de uma pré-compreensão, pois como representante do Rosto não pode ser reduzido a uma rede compreensiva ‒ no caso, o pensamento de Lévinas ‒, nos arriscamos nesta proposta pelo que percebemos nela de enriquecedor ao entendimento do conto.
Preâmbulo
O conto “Amor” tem sido exaustivamente estudado, tanto pela crítica literária quanto pela filosofia, sendo recorrentemente chamado aos debates que se fazem na fronteira da literatura com a filosofia, por seu conteúdo altamente instigante para a reflexão. Trata-se da narrativa da experiência vivida pela personagem Ana que, num dia comum de seu cotidiano, se vê lançada no que podemos chamar de abertura ao outro ao ver, de dentro do bonde em que estava, um cego mascando chicletes na rua. Desconcertada pelo que sente e pensa, entra no Jardim Botânico e ali sua experiência se intensifica. No final do conto, volta para casa e retoma suas tarefas de dona de casa e mãe.
Nos estudos sobre o conto, vemos a ênfase na leitura que visa compreender o papel da mulher nas relações familiares, quase sempre chamando a atenção para o fato de Ana voltar a sua rotina familiar depois da experiência vivida.
Um exemplo é o artigo de Terezinha Terror (2012), que ressalta o aspecto de libertação de caráter feminista que a experiência da personagem Ana contém, e que sofre um revés ao final do conto, quando Ana parece se submeter – ainda que transformada pelo que viveu ‒ novamente à rede de relações que a oprime. A autora ressalta que a transformação vivida é de algum modo percebida e apropriada pelo marido da protagonista, como a marcar que o que foi vivido não se perdeu, mas não deixa de ressaltar o caráter de desistência que a atitude final de Ana parece representar.
Suely Leite (2014) compreende a obra de Clarice Lispector como um todo como um marco nos escritos femininos no Brasil, pois a autora, desde as primeiras obras, traz personagens femininos protagonistas que extrapolam os limites que a cultura estabelecia para a mulher na sociedade e na família e, obviamente, para a escritora mulher. Sua interpretação do conto “Amor” está localizada em uma retomada histórica dos escritos femininos no Brasil, e se desenvolve também em torno da possível libertação vislumbrada por Ana, mas não de todo realizada, pois ela acaba por se conformar à vida contida que tinha antes da experiência narrada pelo conto.
Valeska Zanello (2007) parte da constatação da escolha de Ana, ao final, pela vida funcional e prática que já vivia antes, para se perguntar sobre o nome do conto e sobre a presença do cego no despertar da experiência vivida por Ana. Em diálogo com Sartre, acaba por também apontar para a abertura de possibilidades da vivência feminina como apenas ensaiada pela personagem de “Amor”.
Desses exemplos, que são representativos da tendência interpretativa do conto “Amor”, depreendemos que o desenlace do conto permanece como um enigma que ainda merece uma maior consideração. Sem levar em conta a questão do feminino já bastante trabalhada pela crítica – mas obviamente sem desconsiderar a importância da obra clariceana nesse contexto –, desenvolveremos a presente reflexão sob a luz do pensamento de Lévinas que nos ajudará a propor uma interpretação que não percebe o final do conto como uma espécie de conformismo de Ana.
A ênfase será aqui, portanto, a problemática da alteridade que permeia todo o texto. O encontro com o outro desconhecido se desdobrará no (re) encontro com o já antes conhecido. E, como já apontamos acima, partimos do encontro com o outro já representado pelo próprio texto literário.
A saber, no pensamento e na teoria literária levinasiana, o fato de se pôr em primeiro plano a alteridade da personagem, ou a personagem como outrem faz com que o autor enfatize sobremaneira a imediata interpelação ética que brota do Rosto do outro. Disso decorre a responsabilidade inescusável do ouvinte/leitor que se deixa afetar pelo outro-texto. Desse modo, a personagem não é evidenciada em função da imaginação que decorreria da leitura tal como sugerem algumas das teorias narrativas hodiernas. Antes, a personagem suscita a prescrição do dever de se ter de dar a outrem o que é solicitado por seu rosto. Não se fixa no impacto da imaginação veiculada pela personagem sobre a ação do ouvinte/leitor, mas na imediação da ação desencadeada pelo traumatismo suscitado pelo outro. Aliás, a propósito da anterioridade do sentido prescritivo sobre o propriamente poético do texto literário, cabe apontar para o paradoxo da responsabilidade subjacente ao contato com o outro no texto poético. Esse paradoxo consiste, segundo Lévinas (2011, p. 34-35),
no fato de eu estar obrigado sem que esta obrigação tenha começado em mim – como se, na minha consciência, uma ordem se tivesse intrometido como um intruso, se tivesse insinuado de viés, como que a partir de uma causa errante de Platão
Ora, o filósofo insiste que, nesse caso, “o sujeito já não é um eu – mas que sou eu – não é susceptível de generalização, não é um sujeito em geral, o que equivale a passar do Eu a mim, que sou eu e não um outro”. Em suma, a identidade do sujeito diante da alteridade do Rosto (num texto) refere-se aqui, com efeito, “à impossibilidade de se furtar à responsabilidade, ao encarregar-se do outro” (LÉVINAS, p.34-35).
Inspirado pelo pensamento (po)ético levinasiano, trata-se de pôr em evidência a experiência vivida pela personagem Ana, que, de dentro de um bonde em movimento, vê um cego (outrem) mastigando chiclete num ponto de ônibus. Tal experiência é um exemplo clássico do que a crítica tem chamado de epifania nos escritos clariceanos: um acontecimento banal que gera uma experiência de transformação em quem o vive. Transformação que se deve ao alargamento da consciência no entendimento do mundo e da própria vivência, daí a pertinência do uso da noção de epifania: algo que se passa na cotidianidade é capaz de levar a pessoa a um descortinar de sua própria experiência como ser vivente.
Ana e o Rosto do outro
Fazemos aqui, portanto, mais uma tentativa de aproximação desse inquietante conto.
Ana sai de casa num dia comum; faz compras e as conduz na bolsa nova de tricô que ela mesma tecera; tem sua vida relatada pelo narrador: uma vida estável, toda compreendida numa rede de sentido. A rede tecida da bolsa e a rede significativa de sua “vida de adulto” se articulam simbolicamente de modo a nos permitir aqui a primeira entrada no universo levinasiano. A compreensão, ou talvez devêssemos dizer a pré- -compreensão, contém a vida de Ana e permite que ela simplesmente siga em frente. Tudo encontra seu lugar na tessitura da realidade.
Cabe ressaltar que a compreensão, segundo Levinas, remete-nos ao universal da razão. Tal como a rede da bolsa que contém as compras não as deixando se espalharem, a rede de compreensão contém a realidade e não permite que ela se dissolva na experiência imediata ainda não refletida. A compreensão nos auxilia ao nos proteger do risco sempre iminente de desarticulação causada pelo vivido, organiza nosso mundo, torna-o objetividade (LÉVINAS, 1980, p. 44-45).
Entretanto, se seguimos com Levinas, encontramos Outrem (LÉVINAS, 1980, p. 45), o outro humano que escapa à compreensão, que escorrega pelos buracos de nossa rede compreensiva, ou seja, que é capaz de nos inquietar por não se deixar capturar pela articulação com a qual apreendemos o mundo. Aquele que, por portar em si a infinitude do não compreendido, rompe nossa rede compreensiva que recobre apenas aquilo que cabe nela.
Nossa relação com outrem consiste certamente em querer compreendê-lo, mas esta relação excede a compreensão. [...] Na relação com outrem, este não nos afeta a partir de um conceito. [...] Não penso somente que o outro é, dirijo-lhe a palavra. Eu lhe falei, isto é, negligenciei o ser universal que ele encarna, para me ater ao ente particular que ele é. [...] Esta impossibilidade de abordar outrem, sem lhe falar, significa que o pensamento aqui é inseparável da expressão. [...] Ela consiste antes de toda participação num conteúdo comum pela compreensão, em instituir a socialidade por uma relação irredutível, por conseguinte, à compreensão. A relação com outrem, portanto, não é ontologia. (LÉVINAS, 1997, p.27-28. Grifo nosso)
Voltemos a Ana. Ao regressar para casa de bonde, com a bolsa cheia pelas compras, vê o cego:
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles. (LISPECTOR 1998, p. 21)
Ainda com os olhos fixos no homem, Ana sente-se desarticulada ‒ poderíamos dizer, com Lévinas, traumatizada (LÉVINAS, 1980, p. 46), tocada pelo não capturável por sua rede aquando da proximidade do outro como próximo. Do ponto de vista da personagem Ana, enquanto sujeito que se aproxima, na aproximação, ela (Ana) não é chamada à tarefa do percipiente que reflete ou acolhe, animada de intencionalidade, a luz do aberto e a graça e o mistério do Mundo. Afinal, a proximidade não é um estado, um repouso, mas precisamente inquietação, não-lugar, fora do lugar do repouso, que perturba a calma da não-ubiquidade do ser. Por conseguinte, é sempre proximidade insuficiente, tal como um abraço, a saber, nunca suficientemente próximo. (LÉVINAS, 2011, p. 100-101).
Do ponto de vista do leitor, essa situação ética narrada pelo texto clariceano evidencia a deposição do sentido meramente narrativo do texto literário. Isso se deve ao fato de que, segundo Lévinas (2011, p. 101):
a proximidade não está já no saber onde estas relações com o próximo se mostram, mas onde elas se mostram já através da narrativa, no Dito como épos e teleologia. As três unidades não são o fato exclusivo da ação teatral: elas comandam toda a exposição, reúnem em história, em narrativa, em fábula, a relação bífida ou bifocal com o próximo. Os símbolos escritos que duplicam as palavras são ainda mais dóceis à reunião e anulam, segundo a unidade do texto, a diferença do Mesmo e do outro.
Por isso, a personagem central do conto clariceano faz notar que no instante em que Ana se sente assim, um movimento brusco do bonde faz com que sua bolsa caia e os ovos dentro dela se quebrem, escorrendo pelos buracos da rede. A compreensão estabilizadora é rompida pela percepção do cego que aqui podemos entender como o rosto (LÉVINAS, 1980, p. 45): aquele que, ao surgir diante de mim, me ultrapassa, ultrapassa toda a compreensão possível, rompe o compromisso com a universalidade da razão e se coloca infinitamente como aquele que é e que tem seu valor em si mesmo, como aquele que é invocado na relação. Nas palavras de Lévinas (2005, p. 30): “O ente como tal (e não como encarnação do ser universal) só pode ser numa relação em que o invocamos. O ente é o homem, e é enquanto próximo que o homem é acessível. Enquanto rosto”.
Plasticamente, a narradora nos oferece a imagem dos ovos escorrendo pelos buracos da bolsa, o que aqui podemos claramente ligar à noção do imprevisto inquietante que escorrega por nossas teias de sentido. Entretanto, com Lévinas vemos a concretude desse algo que escorrega no Rosto humano. É o outro humano que se coloca diante de cada um de nós e nos interpela, nos chama a olhá-lo, escutá-lo, presenciá-lo.
Dito ainda outramente que o ser, acrescenta Lévinas (2009, p. 61-62),
O rosto é abstrato. [...] A abstração do rosto é visitação e vinda que desordena a imanência sem se fixar nos horizontes do Mundo. Sua maravilha consiste no alhures donde vem e para onde já se retira. [...] O outro procede do absolutamente Ausente. Mas sua relação com o absolutamente Ausente do qual ele vem não indica, nem revela este Ausente, e mesmo assim o Ausente te uma significação no rosto. [...] Uma tal significância é a significância do vestígio. O além donde procede o rosto significa como vestígio. O rosto está no vestígio do Ausente absolutamente revoluto, absolutamente passado
No desacerto ali vivido, Ana percebe em si intensa piedade pelo cego: “O mal estava feito. Por quê? teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente” (LISPECTOR, 1998,p. 22). O que surge, tendo perdido o modo estável de compreender e viver, o que é trazido pelo Rosto que a assalta é, pois, piedade, amor. Intenso e quase insuportável, desestabilizador. Com Lévinas (1980, p. 47), poderíamos dizer, amor que é fruto do para “além da percepção” de Outrem em sua nudez, em sua miséria:
O outro, o livre, é assim o estrangeiro. A nudez de seu rosto se prolonga na nudez de seu corpo que sente frio e vergonha de sua nudez. A existência καϑ’αύτό (presença cuja significação se significa a si mesma) a si mesma é, no mundo, uma miséria. Há entre mim e o outro uma relação que está além da retórica (tradução nossa)
Desarticulada, tomada de assalto pelo rosto do homem cego que masca chiclete, Ana se vê invadida pela piedade amorosa. Tenta pensar, articular uma compreensão, se pergunta sobre o porquê do espanto, mas nada se organiza, apenas a invasão inesperada da piedade, sensibilização extrema diante daquele que a tirou da estabilidade. Graças ao seu corpo exposto diante de outrem, isto é, devido a uma subjetividade como sensibilidade, exposição aos outros, vulnerabilidade e responsabilidade na proximidade dos outros, um-para-o-outro, ou ainda, significação pela qual a significação significa antes de se mostrar num sistema linguístico, o sujeito (Ana) de carne e osso é susceptível de dar o pão da sua boca. E de modo hiperbólico, “sujeito susceptível de dar a sua pele a outrem” (LÉVINAS, 2011, p. 95).
O Amor e o cego
Podemos pensar que o amor lança Ana na única “universalidade para além da essência” admitida por Lévinas: a do ato de dar (LÉVINAS, 1980, p. 48-49), pois dar seria uma ação consequente à piedade sentida. Mordida pela piedade, Ana segue desarticulada, como se o rosto visto exigisse dela algo impossível. Na impossibilidade de dar – porque não sabe o que dar, e porque se distancia rapidamente do homem – Ana se perde em si. O bonde segue, o cego fica para trás. O cego, gerador do movimento que a tomou, desaparece do campo de visão de Ana que, entretanto, permanece tomada pela experiência. A fenda gerada pela piedade não desaparece junto com a visão do homem.
Ana segue então a viagem no bonde sem contar mais com a rede compreensiva que a mantinha em sua vida estável. Perde o ponto de descida e, ao perceber isso, desce em qualquer ponto. Sente-se literalmente perdida e, ao se localizar, reconhece o Jardim Botânico e entra nele.
No Jardim, senta-se em um banco e experimenta a realidade de modo inteiramente novo. Vê o mundo. Vê o que não conseguia ver quando protegida pela compreensão. E o que vê é a vida pulsante. Vejamos um trecho mais longo:
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos. Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos, enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno. (LÉVINAS, 1980, p. 25).
Vida e morte se sucedem no mundo inteiramente nu diante dela. O Jardim, impessoal, revela a Ana a vida imiscuída de sujeira. Tendo sido guiada até ali pelo cego ‒ e aqui não podemos deixar de apontar a inversão narrativa que faz daquele que precisa ser guiado, o guia ‒, Ana ama e sente nojo. A figura do nojo lança luz sobre aquilo de que nos protege a compreensão organizadora. O que se revela pelo instante radical de abertura ao vestígio do rosto nos perturba por sua “sujeira”. Desarticulado, o mundo se oferece nu, fazendo desmoronar o esforço humano de limpar e purificar. O entendimento organiza e limpa. O mundo vivo é sujo em sua reentrância. Ana ama o mundo que agora sente como seu, seu e sujo como lemos algumas linhas à frente: “A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. [...] Ela amava o mundo, amava o que fora criado ‒ amava com nojo” (LÉVINAS, 1980, p. 25). É, pois, o amor, a piedade violenta que lhe despertara o cego, que faz com que Ana veja a realidade da natureza pungente no Jardim Botânico como ainda não tinha visto. É a visão recoberta pelo amor que lhe revela a riqueza dos movimentos pulsantes da vida orgânica e suja da qual ela também faz parte.
E é assim, embebida por esse amor novo, que Ana volta para casa puxada pelo amor pelos filhos e pela culpa de estar em falta com eles, pois tinha um jantar por preparar para os irmãos e sobrinhos naquela noite
Ana e a responsabilidade pelos outros
Em casa, continua a ver a vida dos pequenos seres pulsando com a nudez conquistada no Jardim, e a narradora nos diz que “o mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha” (LISPECTOR, 1998, p. 28). Se Jardim Botânico tivera o poder de potencializar a experiência de Ana, pela força crua da natureza ali deixada em liberdade, o que lá fora visto não é exclusividade do Jardim. A vida continua seu trabalho em toda parte, inclusive na cozinha de sua casa onde Ana pode ainda testemunhá-la na aranha no canto do fogão, na flor da jarra, na formiga que esmaga com o pé, na gota d’água que cai na pia, no besouro e no próprio suor a escorrer entre os seios.
Mas esse movimento ecoa em um outro: Sente que a piedade se transformava na “pior vontade de viver” (LISPECTOR, 1998, p. 27), intensa e capaz de fazê-la romper com o que tem, como se indicasse uma intensidade de vida que não coubesse nos dias comuns. Chega a pedir ao filho que não permita que ela o esqueça, sentindo a ameaça de ser capaz de romper até mesmo com o amor mais forte que é o que tem pelos filhos. Amedrontada, segue fazendo o que tem que fazer. Cumpre as tarefas, cozinha, serve. Teme a força do que sente. A vontade de viver poderia levá-la a romper com os laços mais pessoais, talvez movida pela “impersonalidade soberba” do Jardim Botânico, ou pelo “demônio da fé” (LISPECTOR, 1998, p. 26) que exigia dela que abandonasse tudo.
A vida impessoal que se movimentava no invisível da realidade a puxava, como lemos neste trecho:
Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal ‒ o cego ou o belo Jardim Botânico? ‒ agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. (LISPECTOR, 1998, p. 26).
A força do chamado do cego a fazia vislumbrar o mundo carente de amor para além da sua rede de relações, e parecia convocá-la para uma ação entre todos que não precisaria mais ser uma vida entre os seus. Se partisse sozinha, estaria deixando para trás aquilo que até ali tinham sido os seus laços de amor.
Mas ela amava também os seus. E aqui podemos fazer uma reviravolta na análise do conto e ver, no olhar do filho temeroso diante de seu modo brusco de abraçá-lo ‒ “Era o pior olhar que jamais recebera” (LISPECTOR, 1998, p. 27) ‒, ou no gesto do marido, que a acolhe no final do dia ‒ um outro traço do rosto levinasiano.
O clamor percebido no olhar espantado do filho a recoloca na trilha do amor pela sua família, e no imperativo de dar a ela o que lhe pede: sua presença, seu cuidado. De modo que o final do conto, com Ana apagando a chama do dia como se fosse uma vela e indo dormir como sempre ao lado do marido, que poderia ser visto como uma capitulação ou simples retorno à antiga rede protetora, revela-se como mais um movimento do amor (re)desperto por Outrem.
A propósito disso urge recordar a maneira hiperbólica como Lévinas concebe essa doação:
Pensar que o dar pode ser simples dispensa do adquirido acumulado, significaria desconhecer o não-anonimato do para o outro, não implicando ainda assim nada de voluntário. Se o dar é a própria proximidade, ele não ganha o seu pleno sentido senão despojando-me daquilo que me é mais próprio que a posse A dor penetra no próprio coração do “para si” que bate na fruição, na vida que se compraz em si mesma, que vive da sua vida. Dar, ser-para-o-outro, apesar de sim, mas interrompendo o para si, é arrancar o pão à sua boca, satisfazer a fome do outro com o meu próprio jejum. (LÉVINAS, 2011, p.76)
É possível pensar que Ana retorna aos afazeres movida pelo medo do excesso trazido pela experiência, como chega a verbalizar: “estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar” (LISPECTOR, 1998, p. 27). É também possível entender que o chamado profundo, como o do luar para o lobisomem ‒ “A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar” (LISPECTOR, 1998, p. 27) ‒, é o de uma força que chama para a realização plena do que parece ser a sua essência oculta.
Entretanto, se tudo isso a perturba, atemoriza e seduz, não se pode deixar de ver também a força do chamado do olhar dos que estão próximos. O olhar daqueles que a amam e a querem faz com que ela possa reentrar em seu próprio mundo, ainda que esteja agora transmutada pela experiência do amor infinito que a invadira.
Deste modo, podemos dizer que o final do conto recoloca a experiência vivida por Ana em uma dimensão que caiba em seus dias, respondendo à pergunta trazida pelo próprio conto: “o que o cego desencadeara caberia nos seus dias?” (LISPECTOR, 1998, p. 29).
Se o ato de atender ao chamado, como o lobisomem atende à luz da lua cheia, poderia levar Ana a um suposto centro de si mesma, penso que o fechamento do conto nos coloca a questão sobre se, humanos que somos, temos mesmo em nós algo de essencial como parece ter um lobisomem, aquele que aparentemente é um homem, mas em essência é um lobo. A força do chamado pode ser compreendida como uma sedução, e a vida humana como algo mais complexo, como quando ela diz que é mais fácil ser santo do que uma pessoa; no âmbito do humano a rede é sempre furada, não há compreensão fechada sobre o mundo ou sobre si mesma. Ao se desfigurar diante da visada do rosto na face do cego, não reencontra uma trilha segura porque de fato nada recebe dele; no instante da percepção, nada lhe é revelado sobre aquele que lhe despertou a experiência. Lançada na impessoalidade do Jardim, em sua intensa beleza e luz, perde-se ainda mais de sua rede e a realidade lá vivida seduz e convoca.
Mas, seguindo a trilha de Lévinas, na impessoalidade está o perigo da perdição na universalidade abstrata, que acaba se revelando como uma perda ética, na medida em que o real encontro favorecido pelo face a face com o rosto é o encontro ético que aponta para outro modo de universalidade, aquela que, a partir do concreto particular, inclui no ato de dar-se todos os outros (LÉVINAS, 1980, p. 48-49). É a atitude pedida pela revelação de Outrem que nos coloca na trilha do ético, da doação para Outrem. E o outro concreto na vida de Ana são aqueles que lhe estão próximos. Desse modo, vemos como a experiência de abertura infinita provocada pelo encontro com o cego leva Ana a se (re)encontrar com aqueles que ama proximamente. A experiência vivida fez com que ela não se mantivesse fechada na rede compreensiva protetora; por outro lado, o amor vivido na concretude de sua vida comum não permite que ela se perca em um impessoal abstrato que poderia levá-la à falta de amor por aqueles que sempre foram os seus eleitos.
Conclusão
À guisa de conclusão, chegamos então ao ápice desta análise colocando em relevo a dimensão ética do desenvolvimento poético do texto de Clarice Lispector.
Do ponto de vista ético-poético, o poema do sujeito um-para-o-outro ao qual se refere Lévinas se cumpre nessa figura do sujeito como sensibilidade ética encarnado pela protagonista Ana do texto de Clarice. Disso decorre que, segundo Lévinas (2011, p. 77),
O sujeito da responsabilidade [...] não é a quase-facticidade de um exemplar único tal como ela se manifesta numa fábula: era uma vez. Unicidade significa aqui impossibilidade de escapar e de se fazer substituir, na qual se tece a própria recorrência do eu. Unicidade do eleito ou do requerido que não é eleitor, passividade que não se converte em espontaneidade. Unicidade não assumida, não sub-sumida, traumática; eleição na perseguiçãoSensibilizada, pois, pela desarticulação suscitada pelo contato da ordem da proximidade sem fim, isto é, da incompletude radical com o cego, Ana se encontra com o filho e com o marido. E o que ganha então, depois da intensa experiência vivida, é o que tinha perdido, graças ao poema de um corpo que se preocupara com o outro e se descobrira aí como eleita desde sempre para o amor ao próximo de uma fraternidade que ultrapassa o significado de uma contiguidade espacial pelo sentido ético a partir do qual todos os sentidos recebem sentido. Nessa ótica, a poética do conto clariceano recebe um sentido ético primigênio para qual se encaminham todos os outros sentidos poéticos, literários, estéticos e retóricos que a leitura de seu texto pode suscitar no leitor.
Referências
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