Por uma filosofia do “fragmento”:
A metáfora do “des-astre”
em Lévinas e Blanchot
For a “fragment” philosophy:
The metaphor of “dis-aster”
in Lévinas and Blanchot
Edvaldo Antonio de Melo*
*Doutor em filosofia pela
Pontifícia Universidade
Gregoriana de Roma,
atualmente professor e
coordenador do Curso
de Filosofia da Faculdade
Dom Luciano Mendes
– FDLM – de MarianaMG. Pós-doutorando em
Filosofia pela FAJE/BH sob
a supervisão do professor
Dr. Nilo Ribeiro Júnior.
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Resumo
Como a metáfora do des-astre da literatura de Blanchot interroga a ética de Lévinas?
No presente texto procuramos responder a
esta questão na tentativa de mostrar como a
ética e a literatura se articulam em Lévinas e
Blanchot revelando o sentido ético do “fragmento” que somos, fragmento que advém do
des-astre cujo sentido é explicitado neste texto: em termos blanchotianos trata-se de, com
a escritura, mostrar a condição fragmentária
do humano e, com Lévinas, trata-se de afirmar que “o reino do céu é ético”, no sentido
de que tudo o que tem a ver com o humano é
ético e que, mesmo quando somos reduzidos
a uma minúscula partícula, ainda sim, no fragmento resta o ético. Deste modo, entendemos
que a consciência ocidental, na sua busca
por princípios e fundamentos do ser, acabou
colocando-se como um astro, e seu des-astre
foi não ter considerado (con-sideral) outros lugares de expressão como o da ética e o da
escritura literária.
Palavras chave:Fragmento; Metáfora; Ética; Escritura; Desastre.
Abstract
How does the metaphor of the dis-aster in Blanchot’s literature question
the ethics of Lévinas? In this text we try to answer this question in an attempt
to show how ethics and literature articulate in Lévinas and Blanchot revealing
the ethical meaning of the “fragment” that we are, a fragment that comes from
the dis-aster whose meaning is explained in this text: In Blanchot’s terms, it is a
matter of showing the fragmentary condition of the human, and with Lévinas, it
is a matter of affirming that “the kingdom of heaven is ethical,” in the sense that
everything that has to do with the human is ethical and that, even when we are
reduced to a tiny particle, indeed, in the fragment there is still the ethical. Thus,
we understand that the Western consciousness, in its search for principles and
foundations of being, ended up placing itself as a star, and its dis-aster was not
to have considered (con-sideral) other places of expression such as ethics and
literary writing.
Keywords:Fragment; Metaphor; Ethics; Scripture; Disaster.
Introdução
E m linhas gerais, o sentido da filosofia proposta por Lévinas pode, sem dúvida ser entendido como uma filosofia do além, do conduzir para “fora” que, aliás, nos faz encontrar a metá-fora1 como o lugar do pensar e do dizer ético. Conforme interpreta Lévinas (2009, p. 323, tradução nossa): “A metáfora indica uma transferência [transfer] de sentido”. O “transfer” aqui dá a ideia de elevação, ou seja, a passagem de algo elementar para um sentido mais nobre (LÉVINAS, 2009, p. 326, tradução nossa). Em outras palavras, trata-se do que aqui interpretamos como des-astre2 para indicar o turbilhão daquilo que está dentro e que traumatiza o ser dando início ao pensar, mas que deflagra-se para fora desordenando, assim, o pré-estabelecido próprio do pensamento, e abrindo-se para a ética, para o que é próprio do humano. Pensar o des- -astre configura-se como uma experiência de ruptura que desestrutura a ordem pré-estabelecida, apontando para a relação ética.
Em termos blanchotianos, o des-astre da escritura não é meramente da ordem literária e nem da ordem cosmológica – mas da des-ordem do fragmento que sugere o ético. Portanto, diferentemente de um texto meramente lógico, na escritura do humano tem-se um fragmento que remete à ordem da fragilidade, do tênue, do fragmentável, do que é marcado pela realidade do sofrer a dor, do envelhecer e do padecer até a morte.
Dito isto, perguntamos: seria possível pensarmos uma filosofia do fragmento a partir da metáfora, do que está para fora, do des-astre? Se somos fragmentáveis por toda parte, como ler e interpretar esta escritura que ainda somos, isto é, escritura marcada pela finitude existencial? Conforme veremos no texto, nos parece ainda legítima a pergunta pelo sentido da expressão “arrière-pensée” blanchotiana e, consequentemente, de um pensar que também dê conta de suportar tais situações existenciais até o ponto do extremo “padecimento” (subissement) do qual somente o “eu”, na fragilidade da existência, pode responder. Tal pensamento, que chama em causa a responsabilidade pelo outro até o “padecimento”, é nomeado por Blanchot de “traumatismo da criação ou do nascimento” (BLANCHOT, 2016, p. 39/41 3 ). Como afinal articular, a partir da escritura literária blanchotiana e da ética levinasiana, as questões que giram em torno do des-astre e da ética? É o que neste texto pretendemos fazer tomando em con-sideração a metáfora do des-astre. Enfim, retomando a inspiração levinasiana, perguntamos ainda: realmente, somente o “eu” – “escritura vivente” – pode responder pela responsabilidade e pela culpabilidade inocente? Como entender que “sou um e insubstituível [irremplaçable] – um enquanto insubstituível na responsabilidade” (LÉVINAS, 2011, p. 119/163).
Do ponto de vista metodológico, em um primeiro momento pretendemos registrar alguns traços da leitura de ambos os autores que indicam o lugar de onde emerge o “deslocamento” e também como se dá a questão referente à relação entre a ética e a escritura. Para tal, propomos que cada um, na condição de leitor, se deixe “espantar” pela “estranheza” do texto e de suas metáforas. Deixemo-nos interrogar pelo “outro” da escritura que também “sou”. Aliás, sou no “limite da escritura” (BLANCHOT, 2016, p. 17/17), já tocando o invisível, o infinito. Em um segundo momento, colocaremos em questão o sentido do fragmento que sou na relação com o outro. E, finalmente, investigaremos o espaço desse fragmento, nomeado por nós de espaço sider-ético.
Do nascimento ao “deslocamento” da questão
Gostaríamos de iniciar mencionando aqui a experiência de como percebemos o lado filosófico da questão literária do “fragmento” que sou a partir da metáfora blanchotiana4 do des-astre. Se a literatura descobre seus espaços literários em lugares como a melancolia, a solidão e a morte, pretendemos analisar como a águia da noite – que é a filosofia – também se depara, no pensar, com estes espaços literários. Lévinas, por exemplo, descobre na insônia, na preguiça e no cansaço, um “sentido que dá o que pensar”.
Ponto de partida: o encontro com os autores
Em referimento ao nosso encontro com os autores Lévinas e Blanchot, precisamos ressaltar que o encontro com um autor se dá através de sua obra. Mesmo que um ou outro de nós tenha a oportunidade de conhecer pessoalmente os autores que estuda, sua obra é o ponto de partida por excelência. Acrescentamos ainda: à medida que vamos lendo e tomando conhecimento da escritura de um autor, é como se o des-astre fosse se instalando em nós. Trata-se de uma experiência de “deslocamento” de si para o outro, para o texto-autor.
No que diz respeito ao encontro com a obra de Lévinas, esse deslocamento se deu já na fase de graduação, quando se tratava de escolher autor e tema para o Trabalho de Conclusão de Curso. Foi nessa etapa que escolhemos Lévinas e, desde então, o filósofo da ética passou a ser o guia de nossas pesquisas tanto na etapa do mestrado como, também, do doutorado.
No caso de nossa experiência filosófico-literária, o encontro com Blanchot se deu durante a fase do desenvolvimento de nossa tese doutoral, embora o foco, aí, fosse o pensamento de Lévinas na sua releitura de Platão. Ao longo do percurso, porém, também outros pensadores nos interpelaram, dentre eles Maurice Blanchot, abrindo para nós o viés da literatura.
Gostaríamos de acrescentar que a descoberta de Blanchot vem sendo aprofundada por nós em nossos estudos mais recentes5 . Tais estudos nos têm levado a buscar os textos originais, sobretudo de Blanchot, e o contato com especialistas e tradutores de suas obras. Foi então, a partir destes contatos, que passamos a investigar como a metáfora do desastre da literatura blanchotiana interroga a ética levinasiana6
E, assim, em se tratando do lugar originário do qual emerge o pensar, pode-se dizer com Blanchot que o encontro com o autor se dá numa “conversa infinita” – L’entretien infini – já iniciada anteriormente. A sensação que se tem, escreve Blanchot, “é de que a conversa já começou há muito tempo”. E continua: “Um pouco mais tarde, ele se dá conta de que essa conversa será a última” (BLANCHOT, 2010a, p. 11/VIII).
A conversa é da des-ordem “infinita”... É quando o “desastre” começa a ganhar corporeidade em nós. A conversa nunca é totalmente presença, pois ela sempre começa mais cedo e quase nunca termina. Talvez nem sempre sabemos o porquê e o como tal conversa se inicia e nem mesmo o motivo pelo qual ela deveria perdurar. Há uma espécie de estranheza – diferença di-ferida na alteridade do próprio texto – que nos atrai e nos faz permanecer para além do mesmo.
Pensando a “diferença” entre os autores
Nossos autores mantiveram-se em uma conversa infinita. Acentuamos que a temática de nossa pesquisa se situa também numa tentativa de, a partir da experiência de amizade, acolher o pensamento da “diferença” entre os autores, a saber, entre Lévinas e Blanchot7 . No que diz respeito à amizade entre ambos, o próprio Lévinas ressalta esta proximidade em uma de suas conversas (entretiens) com Poirié (2007, p. 60):
Ele [Blanchot] me menciona por vezes em seus livros e me eleva bastante em todos os sentidos do termo. Quero dizer que me acho muito elevado quando, em suas intervenções, ele se aproxima de mim. Sobre muitos pontos nós pensamos da mesma maneira. Ele atravessou uma evolução bem interior em que jamais houve a menor concessão, mesmo no que se refere a si. Impressão de um homem sem oportunismo. Ele viveu de uma maneira extremamente aguda e dolorosa a Ocupação; especialmente, ele salvou minha esposa durante a guerra quando eu me encontrava em cativeiro, e ele também viveu de uma maneira extraordinária o maio de 68! Ele sempre escolhia o caminho mais inesperado e mais nobre, o mais duro. Essa elevação moral, essa aristocracia entranhada do pensamento é o que conta mais e eleva.
No contato com os autores, encontramos, de fato, muitas referências de um ao outro. Trata-se de uma amizade iniciada desde o tempo de estudos em Estrasburgo, onde ambos tiveram contato com a fenomenologia alemã através dos estudos de Husserl e Heidegger. E é bastante sugestivo que, em comum, os dois – Lévinas e Blanchot – também rejeitam o primado da ontologia8 , embora cada um a seu modo: um sob o viés ético-filosófico, e o outro sob o viés literário.
No entanto, é preciso também destacar que é o pensamento da “diferença”, propriamente falando, que os distingue, sobretudo suas crenças religiosas – um de cultura judaica, e o outro de educação católica –, bem como diferenças em relação às convicções políticas. Lévinas, por exemplo, sofre as consequências do antissemitismo, e o jovem Blanchot – embora se mostrasse bastante tolerante com os judeus – tinha uma tendência política mais radical9.
Deste modo, constata-se que a proximidade entre nossos autores é bastante paradoxal, não propriamente pelo fato de um ser de viés mais filosófico e o outro mais literário, mas pela maneira através da qual abordam as questões do quotidiano, jogando com as várias situações, por exemplo, com temas ligados à morte, que são pensados por eles a partir de metáforas associadas à “noite”, à “insônia”, à “vigília”. A partir de noções como estas, os autores também criticam grandes temas da tradição filosófica, como é o caso da ontologia e da filosofia do sujeito moderno cuja origem encontra-se no cogito cartesiano.
E assim, em meio às diferenças, o que mais chama a nossa atenção nessa proximidade entre os autores é a assistência e a fidelidade de um para com o outro, inclusive em tempos difíceis. Por exemplo, no período em que Lévinas esteve no cativeiro – conforme vimos na conversa (entretiens) com Poirié –, Blanchot sustentou materialmente a família de Lévinas, protegendo sua esposa Raïssa e sua filha Simone. Existiu, portanto, uma realidade marcada também pela necessidade da própria vida e que os aproximou. No entanto, o que melhor os entrelaça é o fato de ambos arriscarem-se pela humanidade: em tempos de guerra ou do desastre – na sua dimensão mais trágica – pensaram o sentido profundo da fragilidade humana até as últimas consequências.
No que diz respeito a Lévinas, constatamos que as fontes de suas inquietações filosóficas são oriundas da obra “Sobre a evasão”, em ressonância com os “Cadernos de prisão” – Carnets de captivité – que foram recolhidos e organizados recentemente por Rodolphe Calin e Catherine Chalier. São textos que testemunham a filosofia viva de Lévinas mesmo nas experiências dos Campos de Concentração. As obras publicadas em datas posteriores, como é o caso de Da existência ao existente e O tempo e o outro, mostram que os temas ali presentes são desenvolvidos em pesquisas anteriores, ou seja, no contexto da guerra. Além dos referidos textos publicados neste contexto, é bastante significativo que temas desenvolvidos pelo autor entre o final da década de 40, no pós-guerra, entre 1947 e 1964, ganharam visibilidade muito recente, também com os trabalhos de Calin e Chalier e recolhidos na obra intitulada: Parole et silence.
Fazendo referência ao contexto do pós-guerra, há ainda um terceiro volume organizado por Jean-Luc Nancy e Danielle Cohen-Levinas que merece ser considerado. Trata-se dos textos organizados sob o título Eros, littérature et philosophie, no qual encontram-se ensaios românticos e poéticos de Lévinas. Para o presente artigo este estudo resulta bastante significativo. Embora nosso espaço aqui não seja suficiente para explorá-lo com a devida atenção, é um dos textos em que encontramos bastante ressonância entre Lévinas e Blanchot, sob o viés da literatura. No “Prefácio” da referida obra, Nancy (2013, p. 9), remetendo-se à questão literária no pensamento de Lévinas, usa a expressão: “intriga literária” (l’intrigue littéraire), bastante sugestiva para caracterizar nossa interlocução entre os referidos autores.
Em nosso entendimento, se em Da evasão temos o estranhamento com a questão do ser, no texto introduzido por Nancy temos o estranhamento de Lévinas diante da literatura. Trata-se de um estranhamento também nosso, na condição de leitor e intérprete, pois, até então, para os estudiosos, Lévinas é considerado o “filósofo da ética” por excelência, segundo a expressão de Philippe Nemo em sua entrevista Ética e Infinito (LÉVINAS, 1988, p. 10). Com a “intriga literária”, o pensamento de Lévinas se amplia, se deslocando da fenomenologia para a literatura10.
Para além da fenomenologia e da ontologia
A partir de alguns temas presentes nos autores, tais como a metáfora da noite, pode-se notar que o des-astre pode ser visto como um recurso filosófico literário de “desconstrução” do próprio saber. No caso de Lévinas, revisitando algumas de suas obras, sobretudo seus primeiros escritos, como Da evasão, Da existência ao existente e O tempo e o outro, percebemos que os temas da “noite”, da “insônia”, da “solidão do ser” (LÉVINAS, 1988, p. 39-47) e da própria “morte”, além de se aproximarem à desconstrução, podem ser vistos como despertar da filosofia levinasiana. Trata-se de temas que podem ser considerados desastrosos para a consciência do “eu”, fechado em si mesmo. O des-astre, ou melhor, o desajuste provocado aqui, tem sentido positivo, isto é, o sentido de deslocar a questão da ontologia e chamar em causa a ética.
Vamos reconstituir aqui, em linhas gerais, como se dá este percurso levinasiano na questão investigada por nós – que vai da obra Da evasão (1935) à De outro modo que ser (1974). Nas palavras de Jacques Rolland (2001, p. 11-56), trata-se de “sair do ser por uma nova via”. A outra via – a do Bem além da essência11 – ou mesmo a outra margem, passa a ser também a grande meta da filosofia levinasiana, delineada ao longo de seu itinerário filosófico através da ética, e que culmina em De outro modo que ser, com as noções de corporeidade – a escritura da carne – na carícia humana. Em nosso entendimento, a questão pode ser assim formulada: de que modo o “além” toca a nossa sensibilidade? O além tange-nos no aquém – na condição humana. Ora, esta constatação causa um des-astre para a consciência, desde sempre ajustada em si e senhora de si mesma.
A via proposta em De evasion passa a ser construída com a própria vida, em meio às tensões vividas na história. De acordo com Pierre Hayat (1994, p. 15, tradução nossa), o pensamento levinasiano testemunha, de fato, uma história vivida e interrogada: “Lévinas é um testemunho lúcido e inquieto de nosso século”. Em meio às tensões, suas questões não são meras especulações idealistas. Sua filosofia se faz na transitividade do verbo que pede um conteúdo: a relação com o outro, interpretada por nós como sendo a carnalidade da escritura – relação ética tout court.
E assim, pode-se constatar que o pensamento levinasiano testemunha uma radical “evasão”, um estranhamento que convida ao rompimento, à saída do ser, conforme se pode ver na obra Da evasão, mas não somente uma saída ontológica, há também um deslocamento ou mesmo um esforço para desviar do método fenomenológico. O método é descrito na luz, para citar Heidegger, na clareira (Lichtung) do ser12. No entanto, o espanto está no fato de a noite também dizer, revelar o invisível. Aliás, a experiência com nosso corpo, por exemplo, é sempre da ordem da relação com um estranho próximo, um estranho que sou. E, quando penso na relação com o corpo do outro, esta experiência se torna ainda mais tênue, mais íntima. Deste modo, o que para Blanchot é da ordem da “obra”, para Lévinas vai ganhando significância na sensibilidade, na corporeidade. Isto pode ser visto em Da existência ao existente e em O tempo e o outro, em que os deslocamentos se dão rumo à ética, do ser passa-se à corporeidade que, em nosso entendimento, já está para além da fenomenologia, uma vez que esta ainda trabalha com o fenômeno que aparece (na luz), com o que se manifesta.
A noção de “corporeidade” vai além, portanto, da própria fenomenologia, pois é carne, é relação. Assim também acontece com a escritura. Há uma escritura que me entrelaça e me desordena. À medida que escrevo algo, vou também me declinando, deslizando a caneta no risco que também sou, vou também me riscando, me inscrevendo. Deste modo, esta empreitada, iniciada com as obras anteriores, da década de 30 e 40, ganha maior visibilidade em De outro modo que ser, conforme se pode ver na afirmação (LÉVINAS, 2011, p. 194/281): “o aparecer do ser não é a última legitimação da subjetividade – é nisto que o presente trabalho se aventura para além [au-delà] da fenomenologia”.
Em seu texto O espaço literário, de 1955, Blanchot, mais do que ressaltar a mera experiência da luz ressalta o evento da “noite” como a experiência de uma estranheza que é de uma certa ordem, como aquela do invisível – “o incessante [l’incessante] que se faz ver” (BLANCHOT, 2011, p. 177/214). Há uma primeira noite que é como a oposição ao dia, mas há uma segunda, a “outra noite”, na qual se está sempre do lado de fora (BLANCHOT, 2011, p. 178). Esta “outra noite é sempre outra” (BLANCHOT, 2011, p. 183). Tentamos desvendar o segredo da primeira noite, mas o segredo da outra noite não é possível ser desvendado, pois ela, a outra noite, é armadilha. Conforme afirma Blanchot (2011, p. 184): “A outra noite é sempre o outro, e aquele que o ouve torna-se outro, aquele que se aproxima distancia-se de si, não é mais aquele que se aproxima, mas o que se distancia, que vai daqui, de lá”. Em Sur Maurice Blanchot, Lévinas comenta a “deuxième nuit” como um espaço literário da exterioridade absoluta, do absoluto exílio (segunda noite) que instaura uma loucura na economia geral do ser. Aliás, é a escritura “da carne” a responsável por esta estrutura quase louca que implica na negação do retorno ao ser (LÉVINAS, 1975, p. 17, tradução nossa).
A escritura da carne supõe um corpo que dê abrigo ao astro na sua decadência. É o corpo que padece e que suporta todo o universo. E assim entendemos o sentido da queda do astro “sobre o humano” como uma aventura hiperbólica “para além da fenomenologia” e da ontologia (LÉVINAS, 2011, p. 195). A carnalidade humana tem suas várias formas de corporeidade, desde o cansaço e o envelhecimento até o padecimento da dor e da morte (LÉVINAS, 2011, p. 76).
Ora, a constatação de que a fenomenologia da luz não tem a última palavra também já havia sido posta no “Prefácio” de Totalidade e Infinito: “A fenomenologia é um método fenomenológico, mas a fenomenologia – compreensão através da iluminação – não constitui o acontecimento último do próprio ser” (LÉVINAS, 2014, p. 14). Tais questões mostram que sua filosofia almeja a descoberta de uma existência concreta, para além da intuição da fenomenologia husserliana e da ontologia heideggeriana, conforme se pode ver na coletânea de textos presentes na primeira edição de Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. A sua obra Totalidade e Infinito, de 1961, também é testemunho de um deslocamento, ou melhor, do escapamento da escatologia da história através da recolocação da subjetividade que se dá de modo mais visível, sobretudo a partir da noção de rosto, na qual Lévinas encontra o sentido ético para sua ética. A noção de rosto se encontra atrelada por algumas metáforas muito significativas para sua filosofia, tais como: a noção de casa própria, de feminino, dentre outras. Tais metáforas conduzem para o além, sem se reduzirem ao fenômeno e à própria imanência da história.
E assim, pode-se também perguntar pelo sentido deste “astro” que sou na relação. Trata-se de pensar às avessas, sob o viés metafórico da “queda” da estrela que parece não mais brilhar na grande constelação do universo simbólico do “ser” – por exemplo, da ontologia de matriz heideggeriana –, mas que é ressignificado no universo ético das relações. A seguir, veremos como esta questão surge e também é desenvolvida na experiência filosófico-literária.
A literatura como espaço de escapamento do ser
Ainda, na esteira de Lévinas e tomando por base a obra de 1935, a saber, Da evasão, tem-se um momento por excelência quando o autor se espanta com a ontologia, pondo-a em questão e recorrendo às metáforas da vergonha e do desassossego, dentre outras. Lévinas não só se espanta com o ser, mas também propõe uma “nova via”, a do Bem além da essência. A “nova via” seria a via da metáfora, como acentua Blanchot em sua literatura? Em outras palavras, pode a literatura ser vista como uma experiência de transgressão do próprio “eu”?
Em se tratando do pensamento de Lévinas, embora do ponto de vista literário ele não o desenvolva, propriamente falando, o tema do “deslocamento” é interpretado aqui no sentido da “evasão” – escapamento do ser – um pensamento em constante exílio que perpassa suas obras desde o texto Da evasão. Tal questão também pode ser estudada na sua relação com o pensamento de Blanchot. Seria, então, a literatura o espaço para o evadir-se do ser? Afinal, qual a questão que está em jogo na obra de Blanchot segundo o modo de interpretar levinasiano?
Não é o ser, nem a psicologia e nem a sociologia, mas “um acontecimento que não é nem o ser nem o nada. No seu último livro [L’Écriture du désastre – 1980], Blanchot chama isso de ‘desastre’, o que não significa nem morte nem infelicidade, mas como se o ser se separasse da sua fixidez de ser [fixité d’être], da sua referência a uma estrela, de toda a existência cosmológica, um desastre [dés-astre]. Atribui ao substantivo desastre um sentido quase verbal. [...] No De l’existence à l’existant analisava outras modalidades do ser, tomado no seu sentido verbal: a fadiga, a preguiça, o esforço. Mostrava, nestes fenômenos, um terror perante o ser, um recuo impotente, uma evasão e, por consequência, também aí, a sombra do “há” (LÉVINAS, 1988, p. 35-36/40-41).
Em termos blanchotianos, o des-astre está na separação do ser de sua “fixidez”, a saber, de sua referência a uma estrela. Com base nesta interpretação levinasiana, pode-se entender melhor a expressão des-astre, indicando, por um lado, o sentido subentendido de “noite sem astro”, do desastroso em consequência do declínio da estrela, separação em relação com o “acaso”13 do alto (BLANCHOT, 2016, p. 10/9); por outro lado, interpretamos o des-astre no sentido da separação, a saber, como possibilidade para a relação, como se pode deduzir da interpretação da filosofia de inspiração levinasiana. Neste sentido, o astro é separado, não colidido; o astro é separado-atraído – “cai rumo ao alto [tombe vers le haut], no humano” (LÉVINAS, 2011, p. 195/281).
Deste modo, a partir do “humano” que atrai o astro, a questão é deslocada da ontologia para a ética. Eis o desastre! E assim, por mais que o tema da ética não seja tão visível em Blanchot, não se pode negar traços de uma ética na sua obra, como por exemplo, na carta intitulada “Enigme”14, na qual Blanchot ao ser convidado para escrever sobre a temática da relação entre a literatura e a ética, exprime seu estranhamento a respeito de tal relação.
Ora, não é muito diferente em Lévinas quando se trata da literatura. Porém, perscrutando seus textos, constatamos, por detrás dos fragmentos de Blanchot, como é o caso de A escritura do desastre, elementos éticos que dizem respeito à relação com o outro, que é tanto da ordem do “dom” como da escritura; do mesmo modo que se pode afirmar em relação a Lévinas que, por detrás da dificuldade em exprimir todo o seu estranhamento ou mesmo “traumatismo”15 na relação com o outro, há uma escritura habitada e interrogada pela literatura, seja esta de origem judaica, como se pode notar na influência dos textos talmúdicos, seja na literatura russa, por exemplo Dostoieviski, como na literatura francesa, herança do próprio Blanchot, dentre tantos outros. Nesse sentido, pode- -se intuir pelo uso da metáfora do des-astre que o interrogar da literatura sugere o pensar ético levinasiano.
A metáfora no sentido amplo da palavra, enquanto conduzir para o alto, pode ser vista como um modo, tanto literário quanto filosófico, de repropor a questão da trans-ascendência16 no seu sentido transgressivo. Neste sentido, a reflexão conduzida até aqui nos leva também a perguntar se a metáfora do des-astre seria um modo de recolocar a questão da ontologia de matriz heideggeriana, uma ontologia que tem sua origem cravada na modernidade, sobretudo na filosofia do sujeito (cogito) cartesiano – cogito, ergo sum –, perpassando o “sujeito transcendental” kantiano e culminando no “sujeito absoluto” com Hegel (LÉVINAS, 2011, p. 67-68, nota 33).
E assim, a partir da metá-fora proposta por nossos autores Lévinas e Blanchot, entendemos que é possível pensarmos em uma “desconstrução” ou mesmo um desencantamento da ontologia, bem como uma reconfiguração, via des-astre, do problema do sujeito moderno. Aliás, a metáfora do des-astre favorece a proposta de de-posição do sujeito moderno, a saída da mesmice ou, se quisermos, do solipsismo cartesiano que se concentrou na pergunta do “quem” em sua relação ao problema do “que”, de tal modo que fazer filosofia consistia praticamente em pensar a relação sujeito-objeto, sob o viés do conhecimento. O des-astre significa aqui a retirada do “eu” de sua constelação ordenada, obra da consciência do ser, e a sua ex-posição na relação com o outro, com o diferente, que está no “entre” sujeitos de carne e sangue – para Lévinas - e “entre” os fragmentos da escritura – para Blanchot. Neste sentido, é bastante sugestivo em A escritura do desastre o espanto blanchotiano em relação ao cogito cartesiano:
O que é estranho [étrange] na certeza cartesiana “eu penso, eu sou” é que ela não se afirmava senão falando e que a palavra precisamente a fazia desaparecer suspendendo o ego do cogito, reenviando o pensamento ao anonimato sem sujeito, a intimidade à exterioridade e substituindo a presença vivente (a existência do eu sou) pela ausência intensa de um morrer indesejável e atraente (BLANCHOT, 2016, p. 85/90).
O conhecimento moderno, em sua cientificidade técnica, em geral, manteve o pensar desassociado do além, ignorando o “para o alto” das relações, apesar de Lévinas (2014, p. 35-36) ter encontrado uma “abertura” para a exterioridade na terceira meditação cartesiana. A questão do sujeito continua de certo modo na fenomenologia, sendo reproposta pela noção de intencionalidade com Husserl. Tal questão foi recolocada, depois, a partir do “ego puro” husserliano, na visada das essências. Com Heidegger, a questão ganha novos contornos, porém ainda permanece vinculada à noção de sujeito da modernidade, embora matizada na analítica do Dasein heideggeriano: um sujeito meio ensimesmado que pergunta e é também o mesmo que responde pelo sentido do ser. Ora, distante desta história do sujeito já consolidada na modernidade, perguntamos então pelas tentativas levinasianas para deslocar a filosofia da questão do “ser”, interpretada pelo nosso autor, na radicalidade de sua ética, como pensar de outro modo que ser. Ora, este “de outro modo que ser” responde de modo metafórico?
A metáfora nos permite dizer a questão da própria “transcendência” e de modo hiperbólico afirmar: “O reino do céu é ético [éthique]” (LÉVINAS, 2011, p. 195/281). E assim, pode-se considerar que o referido astro “rebenta e cai rumo ao alto, no humano”. Que astro é este? De modo hiperbólico, sabemos que se trata aqui da essência; nas palavras levinasianas, trata-se do “misterioso carrossel [manège] da essência do ser” (LÉVINAS, 2011, p. 195/281).
Neste sentido, afirmamos que a filosofia sugerida por Blanchot seria uma espécie de “outra margem” a partir da qual a filosofia passa a ser fecundada pela literatura. A “outra margem [dehors]” nas palavras de Lévinas indica a “ex-cedência” ou mesmo o transbordamento que acontece na linguagem – o “dizer” ético. Perguntamos, então, se este ultrapassamento, ou melhor, esta “aventura para além [au-delá] da fenomenologia” (LÉVINAS, 2011, p. 194/281) ainda continua sendo filosofia. Mas, afinal, o que se dá no fragmento literário? Seria este uma espécie de “outra margem” que permite pensar a filosofia, o sentido da própria escritura humana?
A escritura como fragmento
Consideramos o “fragmento” sob dois vieses: de um lado, como estilo literário blanchotiano, aludindo à relação com o aforismo nietzschiano; de outro, como um fragmento da escritura do humano, na aproximação com o dizer ético levinasiano.
Do aforismo à literatura fragmentária
Na terceira parte de seu livro L’entretien infini, intitulada “A ausência de livro”, deparamo-nos com a “Fala de fragmento” [Parole de fragment], a partir da qual o autor, revisitando René Chair, afirma que mais do que qualquer outro, Chair emerge como aquele que, “libertando o discurso do discurso, o convoca, mas sempre de acordo com a medida, até responder à ‘natureza trágica, intervalar, saqueadora – como que em suspenso - dos humanos’ por uma fala de fragmento”. E continua: “eis o que, embora misteriosamente, nos ensina a manter juntos, como um vocábulo reiterado, o fragmentário o neutro [le fragmentaire le neutre] – mesmo se essa reiteração é também uma reiteração do enigma” (BLANCHOT, 2010b, p. 41/ 451).
Que fala é essa que encontra no fragmento o seu lugar? E sobre o fragmento, propriamente falando, tem este a ver com o aforismo nietzschiano? Para responder a estas questões, primeiramente faz-se necessário interpretar o que o autor entende por fragmento, “um substantivo, mas com a força [force] de um verbo, no entanto ausente [absent]: fratura, frações sem restos, a interrupção como fala quanto a interrupção da intermitência não interrompe o devir mas, ao contrário, o provoca na ruptura que lhe pertence” (BLANCHOT, 2010b, p. 41/451).
Interpretando a citação acima, entendemos por “força” (force) do fragmento enquanto verbo aquilo que prova um “estilhaçamento” (éclatement) ou mesmo um “deslocamento” do universo discursivo, liberando-o tanto do próprio texto quanto da escrita. Tal éclatement exprime o que o autor, na linguagem literária, interpreta como “experiência fragmentária”. Não se trata de algo negativo, mas de uma experiência estranha que se tem, por exemplo, quando se lê um poema: uma experiência de separação e de descontinuidade. Neste sentido, o estranhamento está no fato de o “ausente” fragmentário falar de um outro modo e de um outro lugar que o simples texto escrito. A fala de fragmento rompe com a linguagem do mesmo, pois é sempre sugestiva, não é uma fala do “único”.
No fragmento há um falar plural que descreve “o próprio movimento de uma procura [recherche], procura que liga pensamento e existência em uma experiência fundamental” (BLANCHOT, 2010a, p. 30/2). Nesta fala, a saber, nesta palavra plural, tem-se o sentido do ensino da filosofia como um pensar em movimento. Trata-se de um pensamento que leva em consideração as exigências de descontinuidade através da qual o autor faz uma verdadeira análise crítica da história da filosofia17. Tal análise entende o que o fragmento sugere com a interrupção de fala. A “interrupção” provocada pelo ausente na fala do fragmento passa a ser a pergunta, o que interroga no poema, sugerindo-nos a própria questão da filosofia.
A “ausência” que fala no fragmento sugere, portanto, uma nova interpretação do sentido de se fazer hermenêutica, pois não há mais uma escrita em razão de uma unidade. A significância “surge em sua fratura, com suas arestas cortantes, como um bloco ao qual nada parece poder agregar-se. Pedaço de meteoro, destacado de um céu desconhecido e impossível de se conectar a algo passível de conhecimento” (BLANCHOT, 2010b, p. 42/452).
Ainda sob o viés do estilo literário ressaltamos que, embora não seja a nossa intenção fazer aqui um estudo sobre o sentido da escrita no “aforismo” nietzschiano, para o estudo sobre a aproximação entre o pensamento literário blanchotiano e o pensamento ético levinasiano, parece ser de grande valia, ainda que a título de ilustração, aludir à inspiração nietzschiana em Blanchot, a saber, a relação entre aforismo e fragmento. Em linhas gerais, pode-se dizer que o “fragmento” blanchotiano distingue-se do estilo dos aforismos nietzschianos como se evidencia nas passagens a seguir.
Na segunda parte da obra A conversa infinita, intitulada “A experiência limite”, nosso autor dedica várias páginas a Nietzsche, relacionando- -o com a “escrita fragmentária”. Em sua análise afirma: “O aforismo é uma força [puissance] que limita, que encerra. Forma que é em forma de horizonte, seu próprio horizonte” (BLANCHOT, 2007, p. 115/228); na terceira parte da mesma obra, discutindo sobre o sentido da “Fala de fragmento”, também afirma de modo crítico: “O aforismo é fechado e limitado: o horizonte de todo horizonte” (BLANCHOT, 2010b, p. 42/452). Ainda pode-se evidenciar passagens alusivas ao “filósofo do martelo” na obra A escritura do desastre. Na referida obra tem-se, por exemplo, a referência ao parágrafo 49 de Aurora: “O novo sentimento fundamental: nossa natureza definitivamente perecível” (NIETZSCHE, 2007, p. 48)18, a contraposição entre a noção de super-homem e a proposta de uma humanidade no “efêmero” [éphémères] (BLANCHOT, 2016, p. 157/163).
A partir das citações acima, pode-se interpretar que Blanchot faz uma leitura às avessas da filosofia nietzschiana. Blanchot tende a considerar o estilo literário nietzschiano mais do ponto de vista da exigência fragmentária da escritura do que propriamente da forma aforística (BLANCHOT, 2007, p. 114-115/228-229). De acordo com leitura blanchotiana, o “filósofo do martelo” não se contenta com o discurso contínuo, de modo que seria estranho considerar seu pensamento como um discurso integral, pois ao ler as suas obras a partir dos aforismos percebe-se que o próprio autor supõe e supera tais questões, indicando o sentido que é próprio do fragmento, a saber, a linguagem “da pluralidade e da separação” (BLANCHOT, 2007, p. 115/228). Portanto, diferentemente do aforismo, segundo nosso autor, a fala de fragmento suporta uma insuficiência – não se compondo por outros fragmentos para encontrar um sentido ou mesmo formar um pensamento – de tal modo que, no fragmento, tem-se um “fora [dehors] do todo e depois dele” (BLANCHOT, 2007, p. 116/228). De que ordem é este fora? Seria uma espécie de ex-cedência ética no mais puro estilo levinasiano?
O humano enquanto escritura fragmentária: o dizer ético
Como vimos no item anterior, do ponto de vista literário, na obra de Blanchot o termo “fragmento” aparece ligado ao próprio estilo de sua escritura – A escritura do des-astre. A seguir, interpretamos o “fragmento” no sentido da escritura do humano. Com base na humanidade no “efêmero”, de procedência da linguagem nietzschiana, pode-se também entender o “fragmento” da escritura em uma leitura aproximativa com a noção de fragilidade humana, conforme o pensamento ético-metafísico de Lévinas. Veremos a seguir como este fragmento da escritura humana se constitui numa espécie de musicalidade em meio à surdez ou mesmo à opacidade do mundo. No entanto, o des-astre continua na insistência do fragmento da existência que sou.
Neste sentido, o des-astre por excelência, está no “dizer” da nossa existência enquanto vivemos e somos. Quando pensamos e perguntamos: afinal, quem sou? Quem somos? é como se o des-astre fosse ganhando carnalidade em nós. Trata-se de dizer o fragmento na escritura do humano. O “dizer” da nossa existência é ético. De fato, “pôr uma questão” causa sempre um des-astre em nós, pois nos vira do “avesso”. Para além do cálculo e muito mais do que simplesmente pôr questões sobre o mundo, as coisas e o próprio divino, “pensar” significa perguntar por este “fragmento” de escritura que sou (somos): um “fragmento” carregado de sentido. Como relacionar então o sentido do humano com esta escritura “fragmentada”? Que tipo de texto é este?
A sensação que se tem é que não há nem se quer uma categoria literária onde situar o fragmento humano. Ora, se se pode falar do humano como escritura, então essa escritura é fragmentária, não no sentido de textos incompletos, mas de texto-tecido em um con-texto de linguagem ética. Não posso ler o “outro” com as categorias hermenêuticas para compreendê-lo, nem mesmo colocar em laboratório os fragmentos do humano para observá-lo, nem posso tomar distância para compreendê-lo, pois o outro me constitui.
E assim, para continuarmos com a metáfora literária do fragmento da escritura humana, podemos dizer que o texto que melhor diz a escritura do humano é o da partitura musical. Assim como em uma composição musical o humano enquanto escritura é como uma partitura pois tem símbolos, sons, pausas, diversos tipos de estilos, durações (de tempo) diferentes, há momentos de “solo” e momentos orquestrados. Ler e interpretar a escritura fragmentária do humano é como ouvir uma música.
A música, em geral considerada uma linguagem universal, também permite expressar a unidade na qual se manifestam a diferença e as várias tonalidades da relação com o outro – tonalidades de dor, de alegria e da própria compaixão. Mas haveria um limite em nossa reflexão no qual o humano aniquilado tenderia a considerar a música até como um sacrilégio? Se existe este limite ele está no horror, no terror dos campos de concentração, por exemplo. Lá onde a humanidade é aniquilada parece não haver mais sentido falar de textos literários e nem ouvir músicas, isso seria um sacrilégio, como bem afirmava Blanchot referindo-se ao não sentido do Campo de Concentração de Auschwitz, ao horror no Gulag:
[...] por vezes organizavam-se concertos; a potência da música, por instantes, parece trazer o esquecimento e perigosamente fazer desaparecer a distância entre vítimas e carrascos [...] nem esporte, nem cinema, nem música. Há um limite onde o exercício de uma arte, qualquer que seja, devém um insulto à desgraça. Não o esqueçamos (BLANCHOT, 2016, p. 126/132).
Neste sentido, dessa linguagem ética pode-se colher também as diferenças, sentido e não sentido e, em meio ao horror e ao temor, “é preciso ainda meditar” – ressalta Blanchot (2016, p. 126/133). Mesmo no último instante, mesmo sem luz, como é o caso do campo de concentração, no olhar opaco do prisioneiro ainda resta a necessidade de pão que, em termos blanchotianos, é interpretada como o “dom fora da razão” (BLANCHOT, 2016, p. 127/133). Revisitando o pensamento levinasiano, Blanchot (2016, p. 127/133) entende que, mesmo em meio aos valores exterminados e diante da desolação niilista, é este pão que ainda “mantém a chance frágil da vida pela santificação do ‘comer’ (nada de ‘sagrado’, entendamo-lo bem), alguma coisa que é dada sem partilha por aquele que dela morre (Grande é o comer, diz Lévinas, conforme uma palavra judia)”. Aliás, em termos levinasianos tem-se o sentido encarnado da relação ética com o outro – sujeito de carne e osso (de chair et de sang) –, “homem que tem fome e que come, entranhas de uma pele e, portanto, susceptível de dar [donner] o pão da sua boca ou de dar a sua pele” (LÉVINAS, 2011, p. 95/123-124).
A partir da citação acima, entendemos que falar do humano como um texto fragmentário significa ler a partitura reproduzindo-a nas várias tonalidades do humano, no mundo da vida, por exemplo, com as tonalidades de dor e de alegria, quase substituindo a própria partitura. O existir no tempo, torna-se uma espécie de pausa na música. Se o sonho de um grande músico consiste em tocar sem partitura, porque a música já entrou nele, assim interpretamos o sentido pelo qual a escritura se fez carne! Com Lévinas (2011, p. 111/150) afirmamos que a escritura do humano é, de fato, um dizer ético: “a carne [chair] faz-se verbo, a carícia [caresse] faz-se – Dizer”.
A escritura fragmentária do espaço “sider-ético”
Mesmo depois de ter detectado que a queda do astro provoca um des-astre, restando apenas fragmentos, continuamos a perguntar: mas haveria ainda uma estrela19? Onde tal estrela se encontra? Qual o seu espaço? O que ela indica? No fragmento está contido todo o universo20? De que modo pode-se dizer que o céu não está somente acima de nós, mas também dentro? Ora, como veremos a seguir, em nosso entendimento, tudo se passa no fragmento da escritura que somos – o humano no espaço sider-ético21.
Quando a carne se faz verbo, o fragmento ganha um novo sentido, uma “nova ordem”. De tanto desejar relação, a carne busca uma nova forma de “dizer” – busca um logos ético22. Trata-se de um dizer que permite afirmar a ética como “filosofia primeira” [éthique comme philosophie première], uma finitude que interroga a própria ontologia (LÉVINAS, 1998, p. 75). E assim, tudo que era da ordem da luz é ressignificado numa espécie de noite sem astro da escritura humana.
O que em Blanchot é entendido como um fragmento na escritura literária, em Lévinas é entendido na significância da unicidade do eu expresso na carícia. Enquanto no fragmento literário tem-se um des-astre devido à “lacuna” ou mesmo à interrupção do texto, na carícia também se constata um desencontro, pois aí o outro não é totalmente dado. Na carícia há uma estranha fenomenologia, pois há sempre um distanciamento do outro na relação23. Por mais que o “eu” queira capturá-lo, o outro é da ordem do fugitivo, estrangeiro que me visita, mas sempre em partida. Afinal, onde tudo isto se dá? Trata-se do que nomeamos aqui como espaço sider-ético.
E assim, entende-se o fazer-se da carne como obra da carícia. É a carícia que recolhe os fragmentos em uma harmonia “cosmo-ética”: beleza e ética se abraçando, se acariciando. Na carícia, o espaço sideral torna-se sider-ético. O que na literatura blanchotiana é “fala de fragmento”, no pensamento ético é dizer da carícia. O espaço do discurso – logos do dizer – ganha o mundo das relações éticas. E assim, afirmando que, se com Blanchot, o des-astre emerge da “fala de fragmento”, da interrupção, a saber, do ausente que gera a pergunta, colocando a história em movimento, com Lévinas o movimento é instaurado pela presença do outro – este estranho – que na sua estranheza nos interpela e nos põe em movimento, instaurando, assim, um des-astre na consciência do “mesmo”: traumatizando-o, instaurando o movimento do pensar no espaço sider-ético.
De acordo com a tradição judaico-cristã interpretamos de modo metafórico o sentido da estrela: os magos são conduzidos por uma estrela até Belém (Mateus 2,1-2). Neste sentido, é bastante provocativo o final da obra De outro modo que ser ou para lá da essência, de 1974 – de fato, constatamos algo estranho: o astro cai “rumo ao alto”, no humano! E isto levou o autor a afirmar: “o reino do céu é ético” (LÉVINAS, 2011, p. 195). Trata-se de uma afirmação hiperbólica que indica não somente a sua crítica à ontologia, mas também, de modo metafórico, o sentido de sua ética, no espaço do humano.
Vale também ressaltar o que Lévinas afirma no seu livro L’au-delà du verset: “que a ética não se determina, na sua elevação, por uma pura altura do céu estrelado [pure hauteur du ciel étoilé, conforme aparece no pensamento kantiano]; que, pela ética e a mensagem rompendo sem cessar – hermeneuticamente –, na textura do Livro por excelência toda altura toma somente seu sentido transcendente, que será lá, sem dúvida, o ensinamento a tirar – ou um ensinamento a tirar” (LÉVINAS, 1982, p. 138, tradução nossa). O que passa então a determinar a ética levinasiana? Se tomamos em consideração o Livro da condição humana, é precisamente esta condição que determina o pensamento e a escritura levinasiana.
Com Blanchot, perguntamos pelo lugar da escritura, a saber, sua experiência e seu limite. E com base no estudo que fizemos até o presente momento, julgamos ser possível pensar a metáfora do des-astre como o lugar mesmo do pensar, seja este relacionado à memória, ao esquecimento (passado) e também ao “por vir” (futuro)24. É neste “entre” – recordar-esquecer-esperar – que se instala o des-astre. O des-astre, mostrando quem é o ser humano, surge no risco do fenomenológico, colocando em questão a própria fenomenologia, pois não há uma descrição do mesmo, uma vez que ele toca o “inexperienciado, aquilo que se submete a toda possibilidade de experiência – limite da escritura. É preciso repetir: o desastre des-creve [dé-crit]” (BLANCHOT, 2016, p. 17/17). Neste sentido, tem-se no desastre uma fenomenologia fragmentária que encontra significância na ética e o modo de se dizer nos traços da escritura-literatura.
O último fragmento desta obra de Blanchot nos faz ver que é o “dom da escritura”, deste invisível que continua irradiando em nós, sendo gestado em nossa carne, mas que ainda está por “dizer”... O des-astre encontra-se no fato de, ao nascer, tornar-se “morte diferida [différée]” (BLANCHOT, 2016, p. 218/220). Embora o des-astre não seja descrito, ele continua a dizer no não dito do fragmento.
Com esta nova compreensão, fazemos alusão aqui às noções kantianas de “céu estrelado acima de mim” e de moralidade “dentro”, conforme assinalava Lévinas em L’au-delà du verset: “pure hauteur du ciel étoilé”. Tem-se também uma extensão de tais noções para uma outra ordem cósmica – a do sider-ético. Retomando o sentido da escritura literária blanchotiano, pode-se dizer que é a “força do verbo” no fragmento que provoca o des-astre, a ponto de a própria consciência ser desajustada. Este desajuste não estaria já presente no autor da obra a Fundação da metafísica dos costumes, ao detectar a situação difícil para a filosofia “sem que possa encontrar nem no céu nem na terra qualquer coisa a que se agarre ou em que se apoie” (KANT,1980, p. 133)?
Em nosso entendimento, tal interpretação procede no sentido de detectar a dificuldade de articular a ordem do pensar com a ordem da vida prática. Há um desajuste que pode ser entendido como um desastre para a “razão pura”. Na realidade, o des-astre parece estar no fato de pensarmos algo ligado “à consciência de...” husserliana, ou mesmo às noções de “memória, história e esquecimento”, de Paul Ricoeur. Porém, o desajuste não se reduz ao fato de pensarmos. A questão está também no agir, na forma de articular o pensamento no mundo da vida. Em uma palavra, no espaço humano que almejamos, desejamos e calculamos.
Ampliando a nossa compreensão a respeito do des-astre no mundo, entende-se que este também não se identifica com um cosmético – uma espécie de veneno que poderia passar por remédio – para citar Derrida em A farmácia de Platão (2005, p. 45). Querendo manter também um certo realismo crítico, podemos perceber as implicações do des-astre no contexto no qual vivemos, isto é, de uma sociedade em constante “vigília”, sem noite. Segundo a pensadora italiana Donatella di Cesare (2019), vivemos em uma sociedade na qual a cidade não dorme. É como se o dia não terminasse, não vemos mais os astros à noite: perdemos o oriente. Trata-se de um estado coletivo de vigília contínua: “Sonambulismo de massa. A abóboda é sem astro, sem pontos de orientação. Porque se existissem as estrelas elas não seriam visíveis, ocultadas pela intensidade do brilho que se funde com os miasmas da poluição”25.
O texto supracitado sugere que o espaço sideral vem à terra, transformando-se em um novo tema para a filosofia contemporânea que a partir de então deve dar-se conta da catástrofe. O homem contemporâneo, fascinado pela técnica, não mais distingue o dia da noite, vivendo como um eterno sonâmbulo. Daí, por um lado, a necessidade de acolher o des-astre da noite sem astro, não o neutralizando com luzes, nem com espetacularização técnica; por outro, faz alusão à proposta de Franz Rosenzweig, em sua obra A estrela da redenção que, por sua vez, não vê na história a salvação, mas para além da totalidade da história, no fragmento26.
Sobre o desastre que impacta não somente no “visual” estético da cidade, mas também contamina todo o espaço sider-ético – tema do qual esse artigo se ocupa – revisitamos os conceitos de ética e de escritura literária como possíveis lugares da trans-ascendência. Neste sentido, a temática do des-astre ou noite sem astro veio sugerir-nos pensar a trans- -ascendência em nós. O humano passa a ser o espaço sider-ético na terra. É o que tentamos dizer no presente artigo.
Conclusão
Iniciamos falando de nossa experiência de encontro com os autores e como se deu a interação entre os mesmos a partir da amizade entre Lévinas e Blanchot. Tivemos a oportunidade de apresentar o lado filosófico da questão, a saber, o lugar de onde emerge o sentido filosófico-literário na pesquisa, chamado por nós de “deslocamento” da questão da ontologia para a relação entre a ética e a escritura do humano. Concluímos que o nosso pensar se dá a partir deste fragmento da escritura que somos. E, em seguida, passamos a analisar o fragmento humano no espaço por nós nomeado de espaço sider-ético. Trata-se de um texto proposto como experiência de espanto e traumatismo da consciência, pois também me coloco na condição de leitor deste texto que se declina em mim – carnalidade da escritura. Deixar-se espantar pela “estranheza” do texto e do próprio ser que somos, eis uma das condições do des-astre. Propomos também um outro exercício, o de deixar-se interrogar pelo “outro” da escritura que também “sou”. E afirmamos, com Blanchot, que sou o “limite da escritura” (BLANCHOT, 2016, p. 17), já tocando o invisível, o infinito.
Assinalamos que o des-astre pode ser entendido como aquilo – quase sem nome – que aos poucos vai se instalando na escritura do humano. De tal modo que, além de suportar a dor e o sofrer, o ser humano também convive com as perdas e as incertezas na passividade do viver. É como se o des-astre fosse tomando “cuidado de tudo” (BLANCHOT, 2016, p. 11/10)! Somos seres, sim, de uni-verso! Talvez a carícia dê conta de recolher e unir os fragmentos.
Deste modo, entende-se também que o des-astre nos toca no “avesso”, no “outro” da consciência, ora nomeado de “loucura” ou de “perda” da própria memória ou mesmo de esquecimento. Lévinas (2011, p. 119) diria que se trata de “o avesso de uma tapeçaria cujo direito concerne à consciência e tem lugar no ser”. No entanto, o que mais o inquieta é o lado do “esquecimento sem memória, a retração imóvel daquilo que não foi traçado – o imemoriável talvez; lembrar-se por esquecimento, o fora [dehors] novamente” (BLANCHOT, 1980, p. 12/10).
No que diz respeito a esse “fora” (dehors) blanchotiano, embora não tivemos a oportunidade de aprofundá-lo tanto, é preciso ressaltar que não é algo sem importância para ser deixado de lado, pelo contrário: é justamente nesse “fora” que se tem a constatação do des-astre tocando o “avesso” do que sou. Trata-se, portanto, de algo que pode ser também nomeado de catastrófico, como pode suceder com a própria morte, como uma “perda” de algo “cravado” em nós, algo sentido e suportado, na significância do que “sou”: escritura, traço, fragmento. “Sou” a insistência de um ponto que desliza (grissement) sobre uma linha.
O pensamento literário blanchotiano sugere também pensar o des- -astre a partir de “o por vir” (à venir), daquilo que esperamos e que não se reduz à memória do passado e nem ao “instante” que poderia ser interpretado como um “acidente” de percurso. O des-astre diz mais, pois com ele inicia-se algo “novo” em um movimento que, segundo Derrida, pode ser chamado de “desconstrução”. O des-astre indica também o sentido da “diferença” (différence) na escritura, não simplesmente no sentido de uma hermenêutica textual, mas de uma escritura que é tecido pelo outro – alteridade. É o outro que me traz à consciência – novo nascimento, parto. Aliás, é o outro que me conduz a este lugar, que é também da morte na literatura, a partir do qual experimento a finitude humana.
A escritura leva a sério o risco que sou – que somos. Não há repetição e muito menos rascunho. A sensação que se tem é de que o rascunho é mais original. Há um avesso na escritura que não atingimos, não completamos. Na seriedade do risco, mesmo quando interrompida, a escritura prossegue (BLANCHOT, 2016, p. 92). Sou insistente, simplesmente vivo e, em cada traço, rabisco meu ser. De fato, pode-se constatar que, do ponto de vista da escritura, por mais que o desejo de passar a limpo o texto permaneça, somos obrigados a admitir que o rascunho aqui é o original.
E assim, concluindo, pode-se dizer que o des-astre diz respeito ao próprio fato de o ser humano viver e pensar e, em decorrência disso, se interroga pelo lugar da memória, do esquecimento, do dizer e do não dito, do impronunciável que ganha corpo/carne em nós, e da própria morte. Perguntar, portanto, pelo sentido do “des-astre” significa dar voz à própria surdez do “eco” que nos habita; significa perscrutar o “traço” (trace) do “in-finito” em nós que enquanto escritura – “enquanto” pro- -nome – se faz presente na ideia de Deus. Sou – somos – um risco – no “traço” da escritura. Fragmentos me constituem.
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ROLLAND, J., Sortir de l’être par une nouvelle voie (1981). In: LÉVINAS, E., De l’évasion, Montepellier: Fata Morgana, 1982, p. 9-88; trad. portuguesa, Sair do ser por uma nova via. In: LÉVINAS, E., Da evasão. Tradução de André Veríssimo. Vila Nova de Gaia: Estratégias Criativas, 2001, p. 11-56.
ROSENZWEIG, F. Der Stern der Erlösung [1921]; trad. francesa: L’étoile de la rédention. Tradução de Alexandre Derczanski e Jean-Louis Schlegel. Paris: Seuil, 2003. — [1] Sobre o sentido da “metáfora” remetemos ao texto “Notice sur la métaphore” escrito
por Lévinas em 26 de fev. 1962 que se encontra na obra Parole et silence, p. 323-347,
bem como à obra DEL MASTRO (2012), intitulada La métaphore chez Lévinas.
[2]Optamos por escrever “des-astre”, seguindo aqui a interpretação levinasiana, para evidenciar o sentido metafórico da queda do astro “rumo ao alto [vers le haut], no humano”
(LÉVINAS, 2011, p. 195/281). Faremos o mesmo com expressões como: “ex-cedência”,
“sider-ético”, “uni-verso”, dentre outras, para enfatizar o sentido ético que essas metáforas sugerem.
[3]Nas citações, daremos preferência para as obras de Lévinas e Blanchot que se encontram traduzidas em português. Ressaltamos, porém, que, por razões literárias, recorreremos a uma ou outra expressão das obras em original francês, que julgamos mais
conveniente a título de esclarecimento. Deste modo, advertimos que a numeração que
se encontra antes da barra (/) refere-se às páginas das obras traduzidas em português;
e a numeração que se encontra após a barra, às páginas das obras em original francês,
conforme se pode ver nas referências bibliográficas.
[4]Em Blanchot podemos notar a influência de autores como Mallarmé (1842-1898),
Franz Kafka (1883-1924), Georges Bataille (1897-1962), René Char (1907-1988), dentre
outros. Sobre a biografia de Blanchot enviamos ao interessante Documentário Blanchot,
datado de maio de 1998 (produção França 3) e comentado por pensadores como Lévinas,
Giorgio Agamben, Jacques Derrida, Jean-Luc Nancy, dentre outros. O referido documentário está disponível em: [5]A relação entre a literatura de Blanchot e a filosofia de Lévinas vem sendo investigada
por nós no projeto de Pós-Doutorado em filosofia que estamos desenvolvendo junto da
Faculdade Jesuítica – FAJE – de Belo Horizonte, MG, com a temática intitulada: “A carnalidade da escritura: uma interlocução entre Emmanuel Lévinas e Maurice Blanchot”,
sob a supervisão do professor Dr. Nilo Ribeiro Júnior. Ressaltamos que o presente texto
tem origem nos dois Minicursos que ministramos na FAJE como requisitos do Estágio
Pós-Doutoral: um para o Curso de Extensão, no dia 24 de setembro de 2019, intitulado
“Des-astre ou noite sem astro?” nos respectivos autores, e o outro para o Ciclo Filosófico,
no dia 24 de outubro de 2019, intitulado “A transcendência rumo a quê? (Blanchot)”, coordenado pelo próprio professor Nilo Ribeiro Júnior.
[6]Parte da aproximação entre os autores – Lévinas e Blanchot – apresentamos em uma
comunicação no IV Simpósio Internacional Emmanuel Lévinas, realizado na Faculdade
Dom Helder pelo CEBEL, Belo Horizonte, no período de 08 a 10 de outubro de 2019.
Trata-se de uma comunicação com a temática de nosso projeto de Pós-Doutorado em
filosofia que se encontra em fase de elaboração junto da FAJE.
[7]Sobre a proximidade na diferença, parece bastante sugestiva a leitura de A. Cools
(2007, p. 9) o qual sugere uma leitura crítica de Lévinas a partir da metáfora do des-astre
blanchotiano.
[8]Sobretudo a ontologia moderna de matriz heideggeriana, ou seja, do ser como questão fundamental.
[9]No entanto, é preciso também ressaltar que em 1938, Blanchot cessa sua atividade
política, justamente pela radicalização de uma parte da direita política. Sobre estas questões, dentre outras retratando a proximidade, bem como diferenças entre os pensadores
Lévinas e Blanchot, sugerimos a leitura do texto “Avant-propos” feita pelo comitê organizador do livro: HOPPENOT, Éric et al. (Orgs). Emmanuel Lévinas-Maurice Blanchot,
penser la différence. 2e éd. Nanterre: Presses Universitaires de Paris Ouest, 2009, p.
13-17. Livro disponível em: [10]Embora ainda na esteira com Husserl e Heidegger, mas para além dos mesmos,
seu pensamento se abre para outros horizontes do saber, sobretudo com literatos como
Proust, Dostoievski, Blanchot, Celan, dentre outros (NANCY, 2013, p. 9).
[11]Reenviamos à nossa obra Por uma sensibilidade além da essência: Lévinas interpela
Platão (MELO, 2018).
[12]No § 7 da obra Ser e tempo, ao expor o método fenomenológico Heidegger desenvolve três ideias chave de seu método: o conceito de fenômeno, daquilo que se mostra na
luz e torna-se visível, brilha na luz (Scheinen); o conceito de logos que faz ver a verdade
do ser e o próprio conceito de fenomenologia, como método, segundo o qual a ontologia
é possível.
[13]O “acaso” aqui não diz respeito somente a uma questão de linguagem literária, por
exemplo, ao anonimato de um texto (sem nome), mas sobretudo, à experiência filosófica
de “deslocamento” que o texto me permite realizar (BLANCHOT, 2018, p. 329-332).
[14]Ver: Carta à revista universitária americana Yale na qual Blanchot (1991) recebeu o
convite para escrever sobre o tema “La littérature et la question éthique”.
[15]Na entrevista de Philippe Nemo – na obra Ética e Infinito – quando perguntado sobre
como se começa a pensar, Lévinas (1988, p. 11) faz questão de enfatizar que o “trauma”
é um dos pontos de partida. Trata-se do pensar ético.
[16]O termo “trans-ascendência” tem origem na filosofia da existência com autores como
Jean Wahl, Gabriel Marcel, dentre outros que no contexto dos anos 20 de Strasbourg
influenciaram os nossos autores Lévinas e Blanchot. Sobre a origem do termo “trans-
-ascendência”, ver, por exemplo, LÉVINAS, 2014, p. 22, nota 5.
[17]Sob este viés, ler o capítulo “O pensamento e a exigência de descontinuidade [La pensée et l’exigence de discontinuité]” da segunda parte de A conversa infinita (BLANCHOT,
2010a, p. 29-39/1-11).
[18]Seria bastante sugestivo analisar aqui outros textos de Nietzsche, por exemplo, os
§§ 1-2 de Sobre verdade e mentira no sentido extra moral, no qual o “filósofo do martelo” joga de modo metafórico com o sentido do astro do “conhecimento” – da noção de
verdade – que na história da filosofia ocidental não passa de “um batalhão móvel de
metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que
foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo
uso, parecem, a um povo, sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões,
das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal,
não mais como moedas” (NIETZSCHE, 1978, p. 48).
[19]A noção de estrela também nos remete ao pensamento de Franz Rosenzweig, em
sua obra Estrela da redenção [Stern der Erlösung] que muito influenciou a filosofia de
Lévinas (2014, p. 15).
[20]Na sua crítica a Nietzsche que ainda pensa que “somos seres de Universo”, a partir da
“fala de fragmento”, Blanchot (2007, p. 115/228) entende-se o des-astre como lugar da separação e da descontinuidade. Sobre esta questão, retomar ao primeiro item de nosso texto, no qual apresentação a relação entre aforismo nietzschiano e fragmento blanchotiano.
[21]Utilizamos a referida expressão – sider-ético – para exprimir como a ética passa a ser
configurada diante do des-astre blanchotiano.
[22]Conforme expressão utilizada por Silvano Petrosino (2017, p. 77-97).
[23]Permite-nos citar nossa tese de doutorado na qual afirmamos o caráter “subversivo”
da sensibilidade (MELO, 2018, p. 179).
[24]O termo “por vir” nos é apresentado por Blanchot, em sua obra Le livre à venir que se
encontra traduzida para o português – O livro por vir. Em nosso entendimento, a questão
do “por vir” sugere a transcendência como transgressão da linguagem em Blanchot. No
entanto, por razão de delimitação temática, não vamos aprofundá-la aqui. A temática
encontra-se em fase de elaboração por nós em um outro texto.
[25]DI CESARE. Un’esistenza per sonnambuli. Il manifesto, Roma, 16 settembre 2019,
tradução nossa. Disponível em: [26]Entendemos aqui o “fragmento” como elo entre os três elementos Deus-mundohomem que formam os três vértices da estrela em sua “nova relação”-“novo pensamento”: criação-revelação-redenção (ROSENZWEIG, 2003, p. 361).
Notas