Tempo e religião na canção Tempo Rei de Gilberto Gil
Time and religion in the song Tempo Rei by Gilberto Gil 

Jose Benedito de Almeida Júnior *
*Pós-doutor em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte, Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Professor do Instituto e do Programa de PósGraduação em Filosofia, da Universidade Federal de Uberlândia. Contato: beneditoalmeida@gmail.com

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Resumo:

O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre a canção Tempo Rei de Gilberto Gil. Nossas fontes principais são a letra da canção e um texto que se encontra no site oficial do compositor o qual, de modo sintético, apresenta os elementos filosóficos e religiosos da sua canção. Além destas fontes, utilizamos obras de estudiosos dos fenômenos da religião, como Mircea Eliade e Carl Gustav Jung, dentre outros. Tanto para estes autores, quanto para o compositor, há duas posições contraditórias em relação à percepção do tempo: a primeira se dá no profano, dentro dos limites da experiência e da razão humanas; e outra no sagrado, onde se admite o que está além da compreensão racional. A canção de Gilberto Gil assume a perspectiva do tempo sagrado em oposição à postura da canção Oração ao Tempo, de Caetano Veloso. Concluímos que a canção é um pedido do poeta para que possa compreender a passagem do tempo, bem como, para consolá-lo, das perdas inevitáveis que ela acarreta, revelando o aspecto cristão de sua fé. 

Palavras chave: Tempo Sagrado. Tempo Profano. Religião. Gilberto Gil. 

Abstract

The objective of this work is to analyze the song Tempo Rei by Gilberto Gil. Our main sources are the lyrics of his song and a text found on the composer’s official website, which, in a synthetic way, presentes the philosophycal and religious elements of his song. To add to these sources, we use works by research of the phenomena of religion, such as Mircea Eliade, Carl Gustav Jung, among others. For these authors and the composer there are two contradictory positions regarding the perception of time: the first occurs in the profane, within the limits of human experience and reason and another in the sacred, where one admits what is beyond rational understanding. Gilberto Gil’s song takes the perspective of sacred time as opposed to the posture of the song Oração ao Tempo, by Caetano Veloso. We conclude that music is a request by the poet so that he can understand the passage of time, as well as, to console you, of the inevitable losses that this entails, revealing the Christian aspect of your faith. 

Keywords: Sacred Time. Profane Time. Religion. Gilberto Gil. 

Introdução  

Este trabalho nasceu das reflexões sobre as diferenças entre as noções de tempo sagrado e tempo profano, ou, em outras palavras, o tempo numa perspectiva somente humana, como nós percebemos sua passagem durante nossa existência, e o tempo na perspectiva do sagrado, destacando a importância do mito e das orações para a psique humana suportar a pesadíssima carga do fluir, inevitável, do tempo onde se desdobra nossa possibilidade de existência e onde ela também se encerra. Nosso principal objetivo é analisar a canção Tempo Rei de Gilberto Gil e, para tanto, valemo-nos da leitura de obras dos estudiosos do fenômeno religioso como Mircea Eliade, Joseph Campbell e Carl Gustav Jung. Desde o princípio, percebemos que, além da sua riqueza poética, esta canção transita entre o poético e o numinoso, duas formas de expressão sobre o tempo. Posteriormente, ao pesquisar mais a fundo este fenômeno, nós encontramos no site oficial de Gilberto Gil um texto explicativo anexo à letra da canção, o qual reforçou nossa impressão de que se tratava de uma obra que traduzia um sentido profundo da existência, as ideias do poeta e filósofo sobre o tempo, religião e a existência humana. Muito humildemente, Gilberto Gil afirma sua “filosofia popular”, mas ele vai muito além de lugares comuns, seu texto é de um teor filosófico inequívoco. Começamos, pois, nossa análise por suas palavras: 

Tempo Rei é a minha versão para uma questão colocada em Oração ao Tempo, onde a frase-chave para mim é: ‘Quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido’ - quer dizer: o tempo desaparecerá, eu desaparecerei; o tempo e aquele que o inventa, o ego, estarão ambos desinventados, portanto. Na música do Caetano parece haver um niilismo essencial, um mergulho no nada absoluto e uma resignação plena, orgulhosa e altiva com a extinção. Na minha tem uma coisa mais cristã; uma, quem sabe, quimera; um vago desejo de permanência e de transformação. (GILBERTO GIL s/d)1

 A Oração ao Tempo apresenta um diálogo direto do compositor com o deus Tempo, adjetivado de várias formas positivas “tão bonito quanto a cara do meu filho”, “és um dos deuses mais lindos”. A canção descreve uma percepção de que nós surgimos e existimos no tempo, o “compositor de destinos” e que ele dita o ritmo de nossa existência: “tambor de todos os ritmos” ideia que se repete, de um modo ou de outro nas estrofes seguintes. O termo “oração” parece ter um sentido religioso que, como observou Gilberto Gil, não transparece completamente na obra a não ser nos tímidos versos: “Ainda assim acredito; ser possível reunirmo-nos, em um outro tipo de vínculo”, que parece indicar uma certa abertura para o transcendental, o que é também comum no discurso de Caetano Veloso, sempre dando possibilidade para o contraditório do que afirma, seu famoso “ou não”.2 De todo forma, Oração ao Tempo possui menos profundidade simbólica do que encontraremos em Tempo Rei. Curiosamente, há uma aparente situação antagônica. A canção intitulada Oração ao Tempo se passa, predominantemente, na dimensão das percepções humanas, portanto, menos que uma oração é mais uma ode ao tempo, enquanto a canção intitulada Tempo Rei – que indicaria uma relação de dimensão humana, do título político de rei – é muito mais religiosa, especificamente cristã, como declara o próprio autor. Assim, podemos afirmar que se trata de uma canção numinosa, no sentido, agora de fato, de uma oração. Na verdade, creio que podemos dizer que o Tempo Rei é o Cristo Rei. Gilberto Gil assume sua fé declarada em mais de uma canção, como por exemplo, Andar com fé (1982): “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá. Certo ou errado até a fé vai onde quer que eu vá”. Voltando à canção Tempo Rei, no parágrafo seguinte, Gilberto Gil destaca o fato de que, para ele, os versos de Caetano Veloso expressam uma concepção egóica da existência: 

Em todo o meu filosofar popular sobre o existente e o eterno, há sempre uma possível porta aberta pra algo pós. Para mim é muito difícil não crer no pós sem não crer no pré. Como me é absolutamente impossível anular a existência do anterior a mim, também me é muito difícil aceitar a inexistência do posterior; para mim são coisas iguais. Assim como eu ‘não posso esquecer que um dia houve em que eu não estava aqui’ (Cada Tempo em Seu Lugar), um dia haverá em que eu não estarei aqui: mas esse dia haverá; haverá o ser das coisas que serão independentes de mim então. Eu não imagino a extinção de tudo com a extinção do meu ego. A morte de todas as pessoas que nós conhecemos até aqui não extinguiu o mundo - nem o que foi anterior a elas, nem o que lhes foi posterior; por que esse milagre aconteceria justo comigo? Eu levaria tudo comigo? (GILBERTO GIL, s/d) 

Sua crítica, portanto, parte da ideia de que, conceber a existência somente a partir do ego, é iludir-se de que tudo o que veio antes, e o que virá depois nada significam, porque não são percebidos pelo ego. Como seu texto não é de um pesquisador, mas livre reflexão, então ele não se deu ao trabalho de fundamentar a noção de ego, deixando esta interpretação por conta dos leitores. Desta forma, analisaremos a expressão “ego” a partir de uma noção budista. Para fazer uma breve referência, observamos que pautar a existência somente na perspectiva do ego é um equívoco para o budismo, no livro A doutrina de Buda, lemos: “Impelidos pelo desejo, os homens se apegam a estas aparências; mas em sua natureza essencial, as coisas estão isentas de discriminações e apegos”. (1998, p. 55). O tempo e tudo o que foi antes, assim como tudo o que virá depois, estarão isentos dos apegos do ego. Para Gilberto Gil, os versos de Caetano Veloso nos levam a compreender que, para o ego, o tempo só existe porque ele o percebe, e que depois da morte, uma vez não percebido, o tempo nada será. Como veremos adiante, esta é uma postura bastante comum da modernidade, especialmente, do existencialismo. É uma crença na capacidade do ego se autogovernar, governar o mundo e os acontecimentos, uma hipertrofia do ego que é constantemente esvaziada, pela própria realidade, com os golpes que o narcisismo humano recebe. 

1. O tempo profano 

A expressão que melhor define a fundamentação de todo humanismo e existencialismo provém de Protágoras e seu princípio do homo mesura: “O homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são, por aquilo que são, e daquelas que não são, por aquilo que não são”. (REALE, 1990, p. 76). Por um lado, é importante destacarmos que a vida individual e coletiva deve ser orientada pelas noções de tempo fundamentalmente humanas. Para a imensa maioria das pessoas, mesmo religiosas, nem toda a existência se passa no campo do sagrado, em inúmeros aspectos e na maior parte do tempo, vivemos pela experiência do tempo profano que é, por si mesma, diversificada. Mílton Santos afirma que é interessante observar pelo menos três dimensões do tempo: a cosmológica, a histórica e a do tempo existencial. A primeira é a da natureza objetivada, matematizada; a segunda, é o tempo histórico, também objetivado pelos limites da carga humana que pode censurar o que não lhe agrada; a terceira é o tempo existencial, do mundo da subjetividade, do íntimo e, todas estas dimensões, se entrecruzam em nossa existência, pois o tempo é social. A esses acrescenta mais dois: 

A cidade é o palco de atores os mais diversos: homens, firmas, instituições, que trabalham conjuntamente. Alguns movimentam-se segundo tempos rápidos, outros, segundo tempos lentos, de tal maneira que a materialidade que possa parecer como tendo uma única indicação, na realidade não a tem, porque essa materialidade é atravessada por esses atores, por essa gente, segundo os tempos, que são lentos ou rápidos. Tempo rápido é que é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônicas e tempo lento que é o tempo das instituições, das firmas e dos homens hegemonizados. Quem necessita de velocidades rápidas é a economia hegemônica, são as firmas hegemônicas [...]. Já entre os bairros vai-se mais devagar, no sentido de que não há uma materialidade que favoreça o tempo rápido. Aqui, a materialidade impõe um tempo lento. Isso quer dizer que os pobres vivem dentro da cidade sob tempos lentos.” (1989, p. 24 – 15) 

Sem dúvida alguma, portanto, estudos sobre as diferentes percepções do tempo são profundamente interessantes. Porém, nosso objetivo, neste trabalho, é estudar as diferenças entre o tempo profano e o tempo sagrado, sob o ponto de vista dos estudos sobre a importância dos mitos para nossa existência. Este princípio de que o homem é a medida de todas as coisas fundamenta o relativismo epistemológico e ético ocidentais, pois acabam fazendo com que o indivíduo creia que o mundo é expressão do seu ego e que, afora a experiência e as próprias ideias sobre o mundo, nada mais é significativo. Nesta mesma linha, poderíamos colocar tanto o cogito cartesiano “Penso, logo, existo” como, também, a noção kantiana de fenômeno e coisa em si. O filósofo alemão afirma que o mais significativo não são as coisas em si, inacessíveis ao ser humano – como a verdade – mas a representação que tenho em mim, das coisas. Este princípio, levando para o campo da ética, resulta fatalmente na seguinte perspectiva: eu sou a medida de todas as coisas, uma vez que as coisas são inacessíveis a todos, então, cada um as representa a seu modo. Este relativismo, é o fundamento que sustenta o existencialismo e o humanismo. Ultrapassando o campo das ideias filosóficas e observando a sociedade em sua tessitura mais concreta, podemos dizer com Magalhães, em seu prefácio à autobiografia de Santo Inácio de Loyola: “O emotivismo individualista com que a sociedade e a cultura ocidental nos envolvem deixam-nos sem sentido de pertença e sem objetivos.” (2015, p. 8) 

O Humanismo, segundo o dicionário Abbagnano, pode ser entendido como “[...] qualquer tendência filosófica que leve em consideração as possibilidades e, portanto, as limitações do homem, e que, com base nisso, redimensione os problemas filosóficos.” (2003, p. 519). Não se trata, evidentemente, do humanismo ligado ao renascimento, mas do movimento do final do século XIX, tendo Nietzsche como um de seus expoentes, e do século XX, encontrando aí nas obras de Heidegger e de Sartre sua máxima expressão, a despeito das perspectivas destes autores. Dentro desta tendência do humanismo, há duas perspectivas diversas: uma mais preocupada em demarcar a importância do ser humano como centralidade das relações éticas, sem descartar o transcendente e o sagrado, como é o caso do existencialismo cristão; e outras, que elevam ao grau máximo a dimensão humana da existência, considerando irreal tudo aquilo que esteja acima da existência humana, tudo o que esteja fora do seu campo de percepção e da razão. Assim, esta segunda corrente do humanismo conduz a uma postura extremamente radical de negar toda a transcendência espiritual, prendendo a psique do homem moderno num emotivismo individualista. Esta discussão se faz necessária neste trabalho, por conta da indicação do texto do próprio Gilberto Gil. Em primeiro lugar, ele observa, juntamente com outros estudiosos, que o existencialismo leva ao niilismo. Acreditamos que o mecanismo que liga o existencialismo/humanismo ao niilismo é seu fundamento: o ser humano pode se admirar com a capacidade humana para fazer o bem, mas se deprimir com a mesma capacidade para fazer o mal. Além disso, destaca em suas leituras de Sartre, que o existencialismo acaba se tornando um individualismo: 

Aí reside para mim um problema do existencialismo. Aí, e só aí, eu esbarro um pouco em Sartre, apesar do meu grande amor por ele, e ele não me convence. Sartre morreu e o mundo está aí! Por isso à sua filosofia eu chamaria mais de individualismo do que existencialismo. Um existencialismo individualista, não algo universalizável. (GILBERTO GIL, s/d) 

Em linhas gerais, Sartre em O existencialismo é um humanismo responde às objeções de que o existencialismo ateu conduziria inevitavelmente ao niilismo, pois ressalta o lado malvado da humanidade, mas não o seu lado bom. Assim, ele permanece na tese de que a existência precede a essência, que é uma afirmação da liberdade humana, com base nela descarta o existencialismo cristão e, também, o ateísmo do século XVIII que ainda considerava existir uma essência ou natureza humana. Considera, ainda que o homem deve assumir total responsabilidade por sua existência. Este é o ponto em que ocorre um fenômeno semelhante ao ouroboros: a cobra que engole a si mesma. Apesar de haver gerações anteriores, uma cultura anterior e de o ser humano não poder gerar a si mesmo, o homem moderno crê, firmemente, que seu ego é fruto apenas das próprias escolhas negando, pois toda a influência exterior sobre si. Nos momentos em que reflete sobre o lado construtivo do ser humano, o existencialista se torna um otimista, porém, quando reflete o lado destrutivo do ser humano, torna-se um pessimista. E assim fica o seu pêndulo alternando entre otimismo e pessimismo, como um transtorno bipolar ou obsessivo-compulsivo, entre o êxtase e a depressão. Citando um verso da canção Sampa de Caetano Veloso: “Da força da grana que ergue e destrói coisas belas.” (1978). Esta é a crise espiritual do homem moderno. 

Esta crise pode ser definida como o sentimento niilista diante da vida e dos acontecimentos do mundo, um sentimento tão profundo que leva a uma postura de autodestruição ou destruição do outro. Portanto, a crise espiritual reflete-se também na vida comunitária e política: se nada vale a pena, então por que ter esperança de construir algo? Este sentimento é gerado como efeito inevitável do sentimento oposto: a crença que o ser humano, dentro das dimensões humanas, é capaz de fazer um mundo melhor inspirando um narcisismo humano. Quando olhamos o lado construtivo do ser humano, ficamos eufóricos, chegando ao ápice da curva da esperança; quando olhamos o lado destrutivo, a queda é vertiginosa, passando do ponto de equilíbrio e mergulhamos profundamente na desesperança, o niilismo. Assim, estes dois “ismos”, o humanismo e o existencialismo, são correntes filosóficas presas na roda da fortuna: ora, no alto da roda, são otimistas; quando ela gira e estamos abaixo, é o pessimismo que toma conta das emoções. 

Freud observa que alguns golpes atingiram em cheio o narcisismo universal dos homens. O primeiro foi dado por Copérnico, ao qual ele chama de golpe cosmológico: a Terra não é o centro do Universo; é somente um dos astros, nem o maior, nem o mais brilhante do sistema. O segundo foi desferido por Darwin, o chamado golpe biológico: o homem não feito diretamente pelas mãos de Deus e os outros animais da natureza não foram feitos para ele. O terceiro foi o golpe psicológico desferido pelo próprio Freud: 

É assim que a psicanálise tem procurado educar o ego. Essas duas descobertas - a de que a vida dos nossos instintos sexuais não pode ser inteiramente domada, e a de que os processos mentais são, em si, inconscientes, e só atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas e de pouca confiança -, essas duas descobertas equivalem, contudo, à afirmação de que o ego não é o senhor da sua própria casa. Juntas, representam o terceiro golpe no amor próprio do homem, o que posso chamar de golpe psicológico. Não é de espantar, então, que o ego não veja com bons olhos a psicanálise e se recuse obstinadamente a acreditar nela. (FREUD, 1987, p. 89). 

Para ilustrar esta crise, podemos nos valer da metáfora do barão de Münchhaussen. Montado em seu cavalo, o barão ficou atolado na lama e, para sair de lá, puxa os próprios cabelos retirando a si mesmo e seu cavalo do atoleiro. Tal solução mágica não faz sentido fisicamente – e nem deveria conforme a proposta do livro – mas metaforicamente dizemos que o homem moderno, um humanista radical, está supondo que para sair dos dramas da existência nos quais está preso por conta de uma vida simbólica pauperizada, quer sair por si mesmo do impasse, o que é impossível, pois tal como o peso do cavalo e do barão é que levaram à situação de atolamento, é o peso de uma psique presa nos limites da experiência e da razão humanas que conduzem o homem moderno à esta situação de aporia, sendo que por si mesmas, não têm como tira-lo dela. O homem moderno está preso aos próprios valores nos quais se fia, assim, por vezes, eles lhe dão esperança na humanidade, por vezes, porém, se decepcionam tão profundamente que a humanidade se lhes torna um fardo, gerando, portanto, o niilismo diante da existência. É certo que tanto Nietzsche, Heidegger e Sartre propuseram soluções para que suas obras humanistas não se limitassem ao niilismo. 

O homem moderno, portanto, fica à mercê dos acontecimentos, ora está eufórico, quando diante de boas obras humanas; ora, deprimido, quando diante dos acontecimentos e horrores dos quais os seres humanos são capazes, entra em crise e seus sentimentos o levam não ver significado ou sentido para vida. Alguns estudiosos, também perceberam esta crise existencial, a qual também pode ser dita, espiritual, do homem moderno e analisaram suas causas. Dentre eles destacamos Carl Gustav Jung e Mircea Eliade. Para eles, a sociedade ocidental, materialista e niilista, perdeu sua experiência do numinoso, expressão utilizada por Rudolf Otto, em O Sagrado, que é uma de nossas referências para estas reflexões. Para Otto, o sagrado não é um conceito ou uma ideia, é uma experiência de vida, e o que caracteriza o sagrado é o numinoso ou a manifestação do poder divino. Em breves palavras, perder o numinoso significa não ter o referencial sagrado da vida e da história, tudo é reduzido ao nível humano – demasiadamente humano. Jung descreve da seguinte forma o efeito deste processo: 

O homem moderno não entende o quanto seu “racionalismo” (que lhe destruiu a capacidade para reagir a ideias e símbolos numinosos) o deixou à mercê do “submundo psíquico”. Libertou-se das superstições (ou pelo menos, pensa tê-lo feito), mas neste processo perdeu seus valores espirituais em escala positivamente alarmante. Suas tradições morais e espirituais desintegraram-se e, por isto, paga agora um alto preço. Em termos de desorientação e dissociação universais. (1992, 94). 

2. O terror da história 

Há um quadro de Francisco Goya intitulado: Saturno devorando seus filhos, pintado, provavelmente, entre 1819 e 1823. Ele ilustra de modo assustadoramente forte, a narração mítica de que Saturno, com medo de que se cumprisse a profecia, segundo a qual, ele iria destronado por um dos filhos, os devora assim que nascem. Uma das formas de interpretar esta imagem é a relação entre pais e filhos, mas no caso deste trabalho, nós o interpretaremos a partir de outra experiência humana que ele ilustra: a inevitável passagem do tempo. Na mitologia grega o deus que devora os filhos é Cronos, o tempo. Assim, ela está dizendo: o tempo devora tudo o que dele nasce: as coisas, os seres e o ser humano - o único que tem consciência disso. Tudo surge no tempo e, inevitavelmente, cedo ou tarde será por ele devorado. É interessante que no quadro de Goya não é o corpo de um bebê que está sendo devorado, mas de um homem adulto, enquanto na obra similar do pintor Peter Paul Rubens, o deus devora o corpo de uma criança, representando o mesmo terror, mas dando azo à outras interpretações também. 

O terror da história explica dois fenômenos. O primeiro ocorre quando se lança um olhar para a história da humanidade e se constata que os processos de construção e destruição se sucedem, restando apenas ruínas. Esta é a perspectiva de Walter Benjamin em suas Teses sobre a História que o leva ao sentimento de terror da história. O segundo fenômeno se constata quando o indivíduo olha para o futuro e vislumbra, apenas, o fim inevitável de si, se de seu ego e o seu desaparecimento da história. Para vencer o terror da história, Aquiles, o herói grego e rei dos mirmidões, prefere uma morte gloriosa, num combate épico a ter uma vida tranquila e ver seu nome desaparecer. O dia dos mortos, no México, é uma tradição de memória, na qual os antepassados, uma vez rememorados por seus descendentes permanecem vivos em sua individualidade. Enfim, as religiões possuem narrativas míticas e rituais para a superação deste terror. Porém, ao homem moderno, o que resta senão deparar-se com o inevitável desaparecimento e esquecimento? Há, sem dúvida, filosofias como a de Epicuro que pretendem superar o terror da história por meio de uma doutrina filosófica, mas seria o suficiente? 

Em outro aspecto, o homem moderno se sente superior ao homo religiosus por acreditar que é o senhor da própria história. Para ele, não havendo qualquer destino ou predestinação, a história é um vasto campo de possibilidades, nas palavras de Sartre o homem é um projeto, um vir-a-ser constante. Este acúmulo de tempo do homem moderno também lhe traz um problema: o fardo de ter que viver, constantemente, com a própria história, com seu passado. Se os bons momentos trazem esperanças, os maus momentos trazem o sentimento despertado por aquele primeiro fenômeno do terror da história: o acúmulo de destruições e sofrimentos. O homo religiosus, por sua vez, possui um meio simbólico de superar esta história, conforme Eliade: 

Assim, para o homem tradicional, o homem moderno não dispõe do tipo de um ser livre, nem de um criador da história. Ao contrário, o homem das civilizações antigas pode orgulhar-se de seu modo de existência, que lhe permite ser livre e criar. Ele tem a liberdade para não ser mais o que era, livre para anular sua própria história por meio da periódica abolição do tempo e da regeneração coletiva. [...] de fato, enquanto a natureza se repete, cada nova primavera representa a mesma primavera eterna (ou seja, a repetição da Criação), a “pureza” do homem antigo, depois da periódica abolição do tempo e da recuperação de suas virtualidades intactas, permite-lhe, às portas de cada “nova vida”, uma continuada existência na eternidade, e, portanto, a abolição definitiva, hic etc nunc, do tempo profano” (1992, p. 134) 

O homem moderno, portanto, não tem como defender-se do terror da história, seja a pregressa, seja a futura, porque lhe falta a experiência da vida simbólica, pela qual estas constatações podem ser reinterpretadas e ressignificadas num plano que é psiquicamente mais profundo do que os sentimentos e muito mais profundo do que o da razão. Por mais que esta forneça argumentos para tranquilizá-lo diante do terror da história, não tem força psíquica suficiente para modificar os sentimentos, nem muito menos as emoções, tal como afirma Eliade: “O terror da história torna-se cada vez mais intolerável a partir dos pontos de vista proporcionados pelas várias filosofias historicistas”. (1992, p. 129). Claro que a razão pode ter um papel importante no processo simbólico, assim como tem a imaginação, mas em nenhuma hipótese um papel decisivo. Por isso, deixamos como questão se uma filosofia tem condições de, apenas pelos argumentos, aplacar os fenômenos do terror da história. 

3. As camuflagens do sagrado no profano 

Há uma outra questão ainda: será que o homem moderno se libertou mesmo da dependência do sagrado? A esperança do racionalismo e do humanismo exacerbados - da filosofia e da mentalidade ocidental desde o século XIX – era de que o ser humano poderia estabelecer seus próprios valores de existência individual e coletiva e, caso houvesse crise nestes valores, deles mesmo se retiraria a solução. Assim, totalmente libertos dos irracionalismos da religião, com seus mitos e ritos, poderia existir autonomamente. Porém, as obras de Jung, Eliade, Campbell, dentre outros, demonstram que o homem moderno sequer tem consciência de quanto ainda está no mesmo nível ontológico do homo religiosus que, de forma alguma, superou seu modo de ser. O problema é que, não tendo uma vida religiosa ou simbólica consciente, acaba vivendo inconscientemente os mesmos valores. Este fenômeno é tratado por Mircea Eliade como “as camuflagens do sagrado no profano”. Na canção Andar com fé (1989) Gilberto Gil destaca, este fenômeno de uma fé que se manifesta, mesmo não sendo reconhecida pelo homem moderno: “Mesmo a quem não tem fé, a fé costuma acompanhar, pelo sim, pelo não”. Não é difícil, para os psicólogos, identificarem as doenças psicológicas com manifestações semelhantes da religião. Em especial, destacamos a relação entre o chamado TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo) com os rituais religiosos. No TOC a pessoa se sente constrangida a realizar determinados atos com precisão, nos momentos exatos, para que tudo aconteça corretamente. Do mesmo modo, Jung percebeu que os conteúdos dos sonhos de seus pacientes se relacionam diretamente com os inúmeros mitos – narrativas sagradas – inclusive de povos dos quais não tinham conhecimentos. Há outros exemplos, mas nos restrinjamos a este. Para apresentar uma breve fundamentação desta perspectiva, citamos um psicólogo freudiano e bastante materialista, Jacques Lacan em sua obra O mito individual de um neurótico afirma: 

Se ficarmos na definição do mito como certa representação objetivada de um epos ou de uma gesta que exprime de maneira imaginária as relações fundamentais características de certo modo de ser humano numa determinada época, se o entendermos como a manifestação social latente ou patente, virtual ou realizada, plena ou esvaziada de sentido, desse modo do ser, então é certo que poderemos encontrar sua função na vivência mesma de um neurótico. (2008, p. 15)

A vida simbólica ou a nossa relação com o símbolo não pode ser simplesmente extirpada de nossa existência por meio de um ato da vontade ou pela negação da razão que, por vezes, não vê sentido no símbolo. Assim, o sagrado emerge no comportamento do homem moderno por meio de pulsões que lhe são incontroláveis, mas por falta de uma experiência religiosa institucional, estes se manifestam em ações simples do cotidiano, daí o fenômeno da camuflagem do sagrado em atos comuns do profano. Não somente em casos de crises psíquicas, mas também cotidianamente o sagrado emerge na vida cotidiana do homem moderno, seja sua afeição por determinados lugares onde teve experiências emocionais, que lhe ficam na memória afetiva, e se tornam verdadeiros lugares sagrados, assim como as datas em que estas experiências ocorreram se tornam especiais em seu calendário pessoal. E, ainda em outro sentido, o sagrado se manifesta da forma mais cotidiana. Eliade, numa referência direta à Sartre afirma: 

Eu não posso levar em consideração apenas o que certo homem me diz, quando ele conscientemente afirma: ‘Não acredito em Deus, eu acredito na história, e assim por diante. Por exemplo, eu não acho que Jean-Paul Sartre dê tudo de si em sua filosofia, porque sei que Sartre dorme, sonha, ouve música e vai ao teatro. E no teatro ele entra numa dimensão temporal na qual ele não vive seu moment historique. Lá ele vive numa outra dimensão. Nós vivemos numa outra dimensão quando ouvimos Bach. Uma outra experiência é dada ao drama. Passamos duas horas assistindo a uma peça, ainda que o tempo nela representado dure anos e anos. Nós também sonhamos. Este é o homem completo. Não posso cindir este homem completo, e acreditar imediatamente em alguém quando conscientemente diz não ser um homem religioso (ELIADE, 1973, p. 104)

Nas narrativas sagradas dos mitos e nos sonhos; nas ações simbólicas dos ritos, e em nosso comportamento cotidiano estamos profundamente ligados à experiência do sagrado e, a despeito do que o racionalismo afirme, o ser humano não é somente razão, mas um conjunto de características psíquicas que incluem os sentimentos, as emoções, as intuições, pensamentos, os sonhos. Uma das formas nas quais percebemos estas múltiplas características do ser humano, são as produções artísticas. Neste trabalho, vamos analisar a canção de Gilberto Gil. 

4. O Tempo Rei

No site oficial de Gilberto Gil podemos encontrar a letra da canção Tempo Rei juntamente com um texto, explicando alguns aspectos desta obra, que nos fornece elementos importantíssimos para compreendermos um pouco mais da filosofia de Gilberto Gil – a qual ele chama, humildemente, de popular – e também alguns aspectos da própria canção. O que não nos impede de, irmos um pouco além da canção e das explicações do poeta/filósofo, como pretendemos fazer a partir dos referenciais dos estudos de mitologia e religião. Para iniciar nossa análise da letra, vamos, primeiramente, citar o último parágrafo do texto: 

O provérbio “água mole em pedra dura etc.” fala da eficácia que as coisas acabam tendo ao durarem no tempo. Na letra, a omissão do final do ditado, “até que fura” (cujo significado é o da ação de interferência no mundo, dentro do plano do tempo “real”, cronológico), e a sua substituição pela expressão “que não restará nem pensamento”, além de servirem para romper a expectativa de enunciação completa de um dito conhecido, servem, segundo Gil,3 sobretudo ao seu propósito de sugerir a idéia de corte da dimensão do tempo enquanto duração para a dimensão do tempo “enquanto eternidade sorvedora de todas as suas dimensões, para a sua transdimensionalização”; de saída “do tempo-existência para o tempo-essência (o eterno)”; do tempo para o “atempo” - onde, nas palavras do compositor, “já nem pensar é possível”. (GILBERTO GIL, s/d) 

Há aqui duas definições de tempo: o tempo existência, que representa a experiência concreta de existir no mundo e o tempo essência, que se remete à eternidade, que sobrevive ao tempo existência e, portanto, ao ego. Passemos, agora à análise da letra. 

Não me iludo 
Tudo permanecerá do jeito que tem sido 
Transcorrendo 
Transformando 
Tempo e espaço navegando todos os sentidos 

Os cinco primeiros versos refletem uma aceitação incondicional do poeta à constatação de que tudo passa. Há, no entanto, uma antítese inevitável para quem reflete sobre o tempo nesta perspectiva: se tudo permanecerá do mesmo jeito, como pode continuar transformando? O poeta Luís de Camões também escreveu um soneto sobre o tempo, cujo primeiro quarteto citamos em epígrafe a este artigo. Vale a pena ver a resposta do poeta português, pois em sua perspectiva não há uma antítese. 

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, 
muda-se o ser, muda-se a confiança. 
Todo mundo é composto de mudanças, 
Tomando sempre novas qualidades. 
Continuamente vemos novidades, 
diferentes em tudo da esperança; 
do mal ficam as mágoas na lembrança, 
e do bem (se algum houve), as saudades. 
O tempo cobre o chão de verde manto, 
que já coberto foi de neve fria, 
e, enfim, transforma em choro o doce canto. 
E, afora este mudar-se a cada dia, 
outra mudança se faz de mor espanto, 
que não se muda já como soía.

O primeiro quarteto descreve a aceitação de que tudo muda, em todos os sentidos. O segundo descreve uma perspectiva sentimental desta constatação: tanto o mal, quanto o bem que vivemos passarão, o primeiro deixará mágoas e o segundo, saudades. O primeiro terceto descreve as mudanças na natureza e conclui, novamente, com a condição humana: com a fim do bem que vivemos – o doce canto - vem a tristeza, representada pelo choro. Por fim, o último terceto afirma que há uma mudança que o espanta ainda, mais: o fato de que não se muda, já como mudava antes. O verbo soer, quase em desuso, provém do latino solere que significa “estar habituado” ou “ter por costume”, isto é, a própria forma de mudar também se modifica. 

Numa canção posterior a Tempo Rei, intitulada O Eterno Deus Mu Dança (1989) Gilberto Gil volta ao tema numa característica mais social, uma sociedade que clama por mudança. Há um certo tom profético: “Sente-se! Levante-se! Prepare-se para celebrar o Deus Mu Dança!”. Nota-se que, num dos textos que também se encontra no site a antítese é admitida: “Sendo que o sentido de “mudança” era, antes de tudo mais, o motivo principal da canção: a ideia paradoxal da transformação como a única constante no universo”. (GILBERTO GIL, s/d) 

Em Tempo Rei, a antítese é igualmente admitida: a única coisa que permanece é que tudo muda, não há, pois, hipótese de paralisar o tempo e modificar a regra de ouro: o tempo devora a tudo o que é gerado por ele e sua esposa Gaia, a terra. Isto nos leva ao quinto verso, que une tempo e espaço neste processo de eterno processo de surgimento, crescimento e morte. Tudo isto se dá no tempo e no espaço, que navegam em todos os sentidos, de norte a sul, de leste a oeste, não há um só lugar em que alguma coisa permaneça. Na segunda parte da primeira estrofe temos uma dimensão das mudanças em relação à natureza e a última palavra nos lançará para a dimensão humana, que estará presente na segunda estrofe: 

Pães de Açúcar 
Corcovados 
Fustigados pela chuva e pelo eterno vento 
Água mole 
Pedra dura 
Tanto bate que não restará nem pensamento

Os três primeiros versos indicam as transformações que ocorrem na natureza, trata-se do processo de erosão, provocados por agentes das intempéries, como a chuva e o vento. Evidentemente, há outras agentes naturais que não foram – e nem precisariam – ser contemplados pelo poeta, como a ação da gravidade, de agentes biológicos e químicos. Os dois últimos versos remetem a um ditado popular: água mole, em pedra dura, tanto bate até que fura; este ditado indica um processo de transformação causado pela constância de uma ação, mesmo que o agente seja, aparentemente, mais fraco que o paciente. No entanto, ele nos surpreende com a mudança do último verso para “não restará nem pensamento”. Não restar “nem pensamento” também é uma expressão popular que significa: não restará nada, nem sequer a mais abstrata de todas as coisas humanas: o pensamento, que não está suscetível à ação da natureza, por isso, teoricamente, deveria sobreviver mais tempo. 

No texto, a explicação é diferente desta nossa, ele afirma que o tempo eterno é um tempo onde “já nem pensar é possível”. Esta frase nos remete a uma ambiguidade: não é mais possível pensar quando se está mergulhado no tempo eterno e, portanto, não se está mais no tempo existência ou não é mais possível pensar, porque o nosso pensamento está limitado ao tempo existência e não pode compreender a transdimensionalidade do tempo essência? Tendemos, mais a considerar, na perspectiva do texto, a primeira. Do ponto de vista de um estudo mitológico é mais plausível a segunda interpretação, pois um dos arquétipos das relações entre deuses e seres humanos é que estes não tem condições de entender a dimensão da existência dos deuses, seus desígnios que, para nós, parecem absurdos, para eles, faz todo sentido, pois conforme lemos em 1 Coríntios 1, 25: “Quod stultum est Dei sapientius est hominum et quod infirmun est Dei fortius est hominum”: Pois a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. 

Na segunda estrofe, a partir do final da primeira, adentramos na dimensão humana poetizada na canção. 

Pensamento 
Mesmo o fundamento singular do ser humano 
De um momento 
Para o outro 
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos

A palavra pensamento é o motivo do início da segunda estrofe e dá sequência ao final da primeira na qual vimos que, conforme o dito popular, com a inevitável mudança, não restará absolutamente nada. A ideia dos dois primeiros versos dá a entender que o pensamento é uma característica singular do ser humano e que graças a ela, foi possível fundar a cultura. A licença poética não precisa se preocupar com verdades científicas e filosóficas, então, deixemos de lado o fato de que os animais também pensam e assumamos a metáfora de que pensamento, na canção, é sinônimo de cultura. Novamente, há uma mudança na expectativa do leitor ou ouvinte que espera a conclusão costumeira da expressão “agradar gregos e troianos” e ele nos surpreende com gregos e baianos. Ora, mas se o pensamento – ou cultura – é capaz de fundar civilizações, como ele poderá, de um momento para outro, não mais fundar civilizações? Trata-se, a nosso ver, daquela perspectiva do terror da história: a de que a mesma potência humana que funda, destrói civilizações. Então, estes versos são o tom mais crítico ao humanismo, ao existencialismo, pois indicam que apostar somente na potência humana significa ter que conviver com a criação e a destruição de civilizações, a visão aterrorizante do anjo de Paul Klee que inspira o texto de Benjamin. Seria esta noção de pensamento equivalente à razão instrumental da Escola de Frankfurt? Em certo sentido sim, ainda que nesta tradição sociológica, haja uma hipostasia da razão, pois não é ela a única, nem a mais decisiva instância de escolhas do ser humano. Esta discussão, no entanto, deverá ficar para outro ensaio. 

Mães zelosas 
Pais corujas 
Vejam como as águas de repente ficam sujas 
Não se iludam 
Não me iludo 
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo

Os três primeiros versos são uma advertência aos pais e mães: por mais que sejam zelosos, devem estar atentos, pois de repente, as águas ficam sujas, o que significa: a criança pode adoecer. Esta expressão nos lembra da mudança de aparência das secreções, especialmente a urina, do corpo humano, se a mudança indica a presença de substâncias não habituais, que refletem em sua aparência, odor, etc. indica a presença de uma doença, um alerta. Os três versos seguintes reforçam a constatação de que tudo muda, portanto quem está saudável hoje, pode estar doente amanhã e tais mudanças podem nos surpreender; tudo pode estar por um segundo indica uma condição mental na qual o medo nos faz ficar atentos às inevitáveis surpresas do destino. 

Por fim, o refrão é, com certeza, uma das mais belas poesias já escritas sobre o tempo. As chaves para a interpretação deste refrão, encontram-se no texto de Gilberto Gil, no qual afirma seu cristianismo e, também, no documentário biográfico Tempo Rei (1996) onde podemos constatar sua fé declarada, sincrética, que inclui elementos das religiões afro-brasileiras como o Candomblé e do cristianismo católico. No vídeo, vemos que Mãe Menininha do Gantois e Pierre Verger não concordam que o sincretismo seja algo positivo, mas Jorge Amado e Gilberto Gil, o consideram uma realidade e algo extremamente positivo e admirável. Em seu diálogo com Jorge Amado, Gil afirma: “Hoje em dia é difícil distinguir, quem está na frente ou atrás, em importância no caso de Oxalá e Senhor do Bonfim, ou seja, aquela entidade da qual não se pode muito distinguir, o Senhor do Bonfim e Oxalá, já são uma coisa só” (1996, 38’ e 48’’- 39’05’’). O escritor, por sua vez, afirma: “Acho que não há nada tão poderoso em matéria de sincretismo religioso do que a procissão da quinta-feira santa do Bonfim a procissão de Oxalá!” (1996, 39’ 06’’ – 39’ – 16’’). No entanto, os versos do refrão não trazem esta perspectiva sincrética, mas, em nosso entender, totalmente cristã e especificamente católica. Nestes versos lemos: 

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei 
Transformai as velhas formas do viver 
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei 
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei

O refrão, além de ser uma belíssima obra poética, é, de fato, uma oração. O sentido rogatório é claro no texto e conclui o que foi dito nos versos anteriores nos quais ele descreveu que a inevitável passagem do tempo faz com que tudo se transforme, isto é, desapareça, seja os elementos da natureza, seja a cultura ou o próprio ser humano. A constatação da nossa finitude é chocante à psique humana e, para que ela se mantenha equilibrada diante deste impacto é necessária uma vida simbólica que dê um sentido para as perdas inevitáveis pelas quais passamos ao longo da vida, inclusive a da nossa própria vida. Tudo o que é do ser humano é fadado à desaparecer! Nossa vida é constantemente defrontada com o estado de luto e o homem moderno, somente com os raciocínios não pode suportar a carga pesada desta realidade. Seu impacto provoca uma ruptura no equilíbrio psíquico e, fatalmente, dissociações. A vida simbólica pode ressignificar estas experiências constantes do luto, seja ela de qual religião – o que equivale dizer mito – for. O importante é que a pessoa se identifique psicologicamente com o mito que seguirá, budismo, cristianismo, candomblé, espiritismo, taoísmo. 

No seu texto Gilberto Gil diz que sua canção é mais cristã e de fato, isto se constata e, dentro do universo do cristianismo, seu credo é mais especificamente católico. Ele roga três vezes “Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei” o que, em linguagem religiosa representa um pedido muito intenso. “Transformai as velhas formas do viver”, ou seja, continue a mudar tudo como sempre, é uma aceitação da natureza do tempo. No terceiro verso ele chega ao ponto central da canção: “Ensinai-me, ó pai, o que eu ainda não sei” trata-se de um pedido de iluminação, uma epifania que o faça compreender e aceitar a passagem do tempo e a inevitabilidade das perdas que isto significa. O poeta reconhece que ainda não consegue aceitar sentimentalmente as perdas, ainda que compreenda racionalmente – conforme ficou claro ao longo da canção – que tudo acaba um dia, criado e consumido pelo tempo.

O último verso é de uma beleza infinita, demonstrando toda a genialidade poética de Gilberto Gil que, ao mudar ligeiramente a expressão original cria duas diferentes dimensões. Na primeira, podemos entender o sentido original é “Nossa Senhora do Perpétuo Socorro”. A mudança de Nossa para Mãe faz parte das expressões populares. Trata-se de uma referência à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Esta manifestação de Maria é caracterizada por um ícone bizantino clássico: Maria está com o Cristo criança no colo, ele olha assustado para dois anjos que seguram os instrumentos da paixão que sofrerá futuramente: a cruz e a lança, com a esponja. Seu medo é patente na forma como abraça a mãe e, tensionado, acaba soltando uma das sandálias de seus pés. O título significa que Maria irá socorrer seu filho sempre que for necessário e, por extensão, todos os que tiverem necessidade de amparo num momento de dor. Assim, o poeta roga à Nossa Senhora para que, em sua disposição perpétua, console-o por alguma perda que o faz entrar no estado de aflição e que o leva à fazer a oração. 

A segunda dimensão, provocada pelas mudanças que o poeta faz no título desta manifestação, invoca uma outra imagem de Maria. Ele mudou de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, para Mãe Senhora do Perpétuo. Assim, além da disposição perpétua dela em socorrer, a descreve como “mãe do Perpétuo”, isto é, a mãe do Tempo o que equivale a dizer, mãe de Deus, logo, mãe de Cristo. Este título de mãe de Deus aparece em outras orações católicas. A primeira é na Ave Maria, onde ela é apresentada como “Santa Maria, mãe de Deus” e na Salve Rainha lemos: “Rogai por nós, Santa Mãe de Deus”. Aqui, o Tempo Rei é o Cristo ou o próprio Deus e, tal como nas orações citadas, o poeta roga à mãe de Deus que o socorra: Mãe do Perpétuo, Deus e Cristo, socorrei. Desta forma, dentro do espírito mariano, ele pede ao pai, Deus, sabedoria “ensinai-me, ó Pai, o que eu ainda não sei”, mas à Maria, além dos ensinamentos, pede socorro, consolo neste momento de aflição que faz nascer a canção. Na teologia católica, apesar do importantíssimo papel de Maria, em nenhum momento se afirma que ela se torna o centro da fé, esta permanece cristocêntrica. Na fé popular Maria não ocupa o lugar central do Cristo, porém, sendo ela inteiramente humana, está mais próxima da realidade dos sofredores. Tal como, por exemplo, é retratado no Auto da Compadecida quando João Grilo, resolve apelar para Nossa Senhora, a fim de escapar das acusações do Encourado. Seu argumento é: “Está vendo? Isso aí é gente e gente boa, não é filha de chocadeira não! Gente como eu, pobre, filha de Joaquim e de Ana, casada com um carpinteiro, tudo gente boa!” (2013, p. 123) Quando Manuel (Jesus) lhe pergunta se João não está se esquecendo dele, João responde: “Não é o que eu digo, Senhor? A distância entre nós e o Senhor é muito grande. Não é por nada não, mas a sua mãe é gente como eu, só que gente muito boa, enquanto que eu não valho nada”. (2013, p. 123). Ainda que Cristo esteja no centro da fé, Maria é a intercessora; se ele é o pai que ensina, ela é a mãe, que consola. 

Conclusão

Nossa intenção, neste trabalho, foi analisar a letra da canção Tempo Rei a partir dos referenciais de estudiosos do fenômeno religioso. Em nossa perspectiva, esta canção transcende o limite do poético e transita para o numinoso, pois a referência ao Tempo Rei e à Mãe Senhora do Perpétuo são mais do que signos ou expressões poéticas, elas possuem valor simbólico para o compositor, na medida em que o elemento religioso nela presente não é apenas uma rememoração ou homenagem, mas uma verdadeira declaração de fé, conforme podemos constatar em outras canções e no documentário biográfico Tempo Rei. Esta impressão inicial foi reforçada quando nos deparamos com um texto no site oficial do compositor em que ele afirma que esta música é “uma coisa mais cristã”. Além disso, o próprio compositor nos explica que esta canção nasceu de um incômodo com a canção Oração ao Tempo, de seu amigo Caetano Veloso, pois ele identificou nela um certo ar existencialista que lhe causa certo incômodo. Assim, declara, de forma sucinta, porém muito solidamente os fundamentos filosóficos que tinha em vista. Procuramos aprofundar um pouco, na medida do possível, as indicações que o próprio Gilberto Gil aponta no seu texto e, acrescentamos algumas análises sobre a crise espiritual do homem moderno. Não sabemos se o poeta compôs esta canção em um momento que desejava compreender e assimilar a dor de uma perda ou se a compôs a partir de suas memórias ou ainda, de um exercício de imaginação. Sabemos, com certeza, que se trata de uma obra poética belíssima e, ultrapassando este limite, uma profissão de fé sincera e profundamente comovedora. 

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Notas

[1]  No site oficial do compositor há um texto no qual há uma análise da letra da canção. O texto não tem data    

[2] Há um blog que analisa de forma interessante as canções Tempo Rei e Oração ao Tempo, o qual pode ser consultado em: https://tuliovillaca.wordpress.com/2015/01/30/ tempo-tempo-rei. 

[3] Neste trecho, há uma mudança na perspectiva do texto, não sabemos se é da autoria de alguém analisando a letra, ou se, trata-se do poeta falando de si mesmo na terceira pessoa