Entre a literatura e a filosofia: pensar com Lévinas é pensar além
Between literature and philosophy: to think with Levinas is to think beyond

Sandro Cozza Sayao*
**Pós-doutor em Filosofia pela Université Paris X/ Bolsista CAPES. Doutor em Filosofia, Professor dos Programas de Pós-graduação em Filosofia e Mestrado em Direitos Humanos da UFPE. Contato: sandro_sayao@hotmail.com
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Resumo
O encontro entre literatura e filosofia na obra de Emmanuel Levinas, é foco aqui de nossa atenção. Longe de pretender esgotar o tema, mas buscando já compreender suas relações e mostrando pontos em que essas duas atividades se entrecruzam, a intenção que nos orienta é indicar sob que perspectivas o agir literário influência Levinas. Efetivamente em muitas de suas teses há uma estreita relação com o que já vibra enquanto “insigths” em obras clássicas da literatura, principalmente aquelas da literatura russa. Ao lado das escrituras sagradas do judaísmo, a literatura é igualmente fonte de inspiração para as teses que durante toda sua obra irá defender. O interesse também é destacar o quanto é enriquecedor quando pensadores dão os braços a outras áreas do saber, como é facilmente demonstrável na história. A literatura é para Levinas o lugar em que nos conectamos ao frêmito da vida, locus do pulsar de algo que pode, isso sim, animar o fazer filosófico e, mais do que isso, discurso capaz de fazer o próprio pensamento ir além.

Palavras chave:Levinas; Literatura; Filosofia; Fenomenologia;

 

Abstract
The encounter between literature and philosophy in the work of Emmanuel Levinas, is the focus of our attention here. Far from trying to exhaust the topic, but seeking to understand their relationships and showing points where these two activities intertwine, the intention that guides us is to indicate from which perspectives literary action influences Levinas. In fact, in many of his theses there is a close relationship with what already vibrates as “insigths” in classic works of literature, mainly those of Russian literature. Alongside the sacred scriptures of Judaism, literature is also a source of inspiration for the theses that throughout his work he will defend. The interest is also to highlight how enriching it is when thinkers join other areas of knowledge, as is easily demonstrated in history. Literature is for Levinas the place where we connect to the thrill of life, the locus of the pulse of something that can, yes, animate the philosophical doing and, more than that, discourse capable of making one’s own thinking go further.

Keywords:Levinas; Literature; Philosophy; Phenomenology;

Introdução

Não são poucos os autores da filosofa cuja obra se tece a partir de uma estreita aproximação entre filosofia e literatura. Não apenas pela força do estilo discursivo mais elástico que torna o dito literário de muito mais receptividade; nem tampouco por estarem cientes de que toda narrativa isenta da obrigatoriedade de erguer conceitos ou justificativas carregadas auxilia no trabalho de apresentação de suas teses. Quando filósofos dão os braços com a literatura é porque sabem da forma sincera e direta com que essa acessa a vida e a realidade humana em sua inteireza. Sabem que uma das maiores peculiaridades da literatura está em abrir mão do olhar de sobrevoo, que tipifica os que tem por dever a apreciação crítica da realidade, na qual a finalidade é sempre expor uma teoria ou mesmo uma análise apurada de algo, para viver de dentro o movimento bruto da condição humana no mundo. Mesmo que pela via discursiva, mesmo que pela agitação das palavras que exigem a racionalidade, a tarefa que compete à literatura é outra em relação àquela que vigora no trabalho de filósofos, antropólogos ou sociólogos, por exemplo. O desejo de apreciação que tipifica as atividades desses, não é o centro do desejo de grande parte de quem faz literatura. O que lhes interessa é habitar a voz muitas vezes silenciosa de nossa estada no mundo, algo que vivemos e sentimos, algo que é nitidamente presente entre nós, mas que por uma espécie de indiferença dos próprios mecanismos racionais, permanece alheio e sem realidade. Por isso, as narrativas literárias têm tanta força. Por elas, escorre para o lado de cá do próprio agir cognitivo, questões que são muito mais experimentadas, do que consideradas conscientemente. Delas ecoa a sonoridade de uma vibração que é o estofo da própria vida, mas que permanece nos bastidores da própria razão, como um subsolo que nutre e dá sustentação, mas que nem por isso é visto ou considerado.

Por tudo isso, de um modo extraordinário, a literatura tem a capacidade de acessar uma dada vibração de nossa própria presença no mundo; uma vibração que, muitas vezes, é escamoteada pela turbidez dos dispositivos lógicos a que estamos aliados e que por uma série de narrativas e scripts viciam nosso olhar e mesmo nossa tomada de ciência de algo. De modo singular, a literatura habita o solo bruto donde nascem as intuições, deixar fluir por seus personagens as grandes questões que animam o pensamento, nossas emoções e escolhas e, no fantasioso que muitas vezes propõe, consegue de modo fantástico visitar o interim mais sutil de nossa presença no mundo. Instância peculiar e absurdamente real, que diante da ordem do conhecimento prisioneiro de ideologias, é simplesmente rechaçada e desconsiderada. Por isso, sua face transgressora.

Assim como toda arte, têm a literatura em si a efervescência daquilo que não interessa a ativismos ou discursos ideológicos baratos: pensar. Se filosofar é como diria Derrida: “trabalhar no conceito de limite e no limite do conceito” (DERRIDA,1991, p.18), ela tem o poder de fazer o pensamento sair do seu eixo, aproximando-se do que é por si mesmo transgressor, para daí tomar impulso para se pensar além, para ir além. Nada mais importante para quem tem por tarefa debruçar-se sob a vida que deixar-se afetar por esse bloco de vibrações do próprio viver. A filosofia, seja como metafísica, seja tendo por télos a ontologia, precisa desse entrecruzar com o que lhe é outro para daí se erguer. Se o que lhe interessa não é outra coisa senão pensar a verdade da presença humana no mundo, nada mais significativo do que dar os braços com o que faz ecoar as sutilezas dessa própria presença, mas que aí outra coisa não ache do que a própria intuição, do que um determinado impulso. Em outras palavras, o que se quer dizer é que a filosofia não busca na literatura o argumento, mas talvez o estofo desde o qual as palavras e os conceitos irão se estruturar.

Nesse sentido, a literatura (em seus diferentes gêneros) vigora como uma espécie de irrupção original do dizer1 , cuja ordem dos discursos convencionais da tradição, principalmente os que tomam impulsos nas regras da matemática e da geometria, da lógica e suas peripécias, não conseguem acessar e se deixar permear. Embora como veremos ao longo desse texto, a filosofia sempre esteve às voltas com um dado entrecruzar de sentidos com outras áreas do conhecimento, e não precisamos aqui lembrar de como na sua maior parte os primeiros filósofos eram também amantes da astronomia, da matemática, da geometria e da poesia, o que se tem em nossos dias, principalmente falando agora do fazer filosofia como fenomenologia, é a capacidade de se utilizar todo um instrumental elaborado na forma de um modo de proceder, fazendo esse vibrar a partir de determinadas perspectivas que se abrem, seja nas elaborações da arte, da literatura ou mesmo das escrituras sagradas do judaísmo, como é o caso de Emmanuel Levinas, autor que nos interessa aqui pensar. Ou seja, haveria na literatura, assim como na arte e na perspectiva de alguns discursos religiosos, elementos singulares de grande potência que não só moveriam o pensamento, mas o inspirariam e esses teriam por si grande potencial e importância.

Levinas e a literatura

Esse é um dos motivos principais pelos quais Levinas se interessa tanto pela literatura. A criticidade que a tonifica e o mais áspero e singular da vida que em seus entremeios ecoa, lhes são profundamente significativos, principalmente no que concerne à tarefa de olhar “além”, de um “outro modo” e para um “outro lado”.2 Não é à toa que toda sua obra é repleta de referências às grandes produções literárias e seu discurso em muitos momentos recorra a essas, tanto como forma de poder demonstrar o que deseja explicitar como para nos aproximar da intriga que se dá entre o Mesmo e o Outro: os laços singulares que os aproximam e em que medida conseguem permanecer separados, infinitamente próximos e radicalmente distantes..

Quando faz referência a Gabriel Marcel, por exemplo, no texto, Uma nova racionalidade, que juntamente com outros textos compõe o livro: Entre nós - ensaios sobre a exterioridade (LEVINAS, 1987), Levinas deixa claro em que medida seria preciso retomar a força do significativo (sensé) desde o qual se erguem as intuições e todo pensar; em como precisamos conduzir o pensamento a novos recomeços, a novos contextos de sentido, libertando e despertando as consciências dos dogmas, da autossuficiência e da busca de identidade, que imperam e que fazem a filosofia se degradar em formalidades presa à obsessão das genealogias e etimologias das palavras e aos rigores da proposição lógica e do veredito repressivo dos julgamentos, para então se começar novamente a tarefa de pensar. (Cf. LEVINAS, 1997, p. 94). É como se a filosofia precisasse ser realimentada pela força que a justificou e que seria entre tantas coisas, retomar a força crítica, criativa e inventiva de uma visada mais autêntica a respeito do mundo, alheia da sedução do poder e das necessidades egoístas que nos circundam.

Esse alerta feito convite, que, de nenhum modo, significa a necessidade de um retorno à já conhecida reflexão sobre si mesmo ou a necessidade de se recorrer ao encontro de novas teses que possam ser universalizadas, assim como se fez obsessivamente nos dois últimos séculos, indica, a grosso modo, o desafio de fazer o pensamento se nutrir de um dado impulso para fora de si mesmo, numa espécie de convite a habitar novas terras, novos contornos e perspectivas. O que Levinas vai interpretar como a necessidade de se retomar com vigor a responsabilidade por Outrem; a necessidade de o acolher e por ele se deixar conduzir.

E, assim, tanto relação como ruptura e, assim, despertar de Mim por outrem, de Mim pelo apátrida, isto é, pelo próximo que nada mais é que próximo. Despertar que não é nem reflexão sobre si nem universalização; despertar que significa responsabilidade por outrem a nutrir e vestir, minha substituição a outrem, minha expiação pelo sofrimento e, sem dúvida, pela falta de outrem (LEVINAS, 1987, p. 97)

Isso desde uma perspectiva não ontológica da própria ideia de Deus que nos remete para além da intencionalidade e das forças do conatus, para além dos interesses auto-referidos que não deixam outra saída interpretativa senão aquela que determina tudo e todos movidos pela mesma necessidade de poder e por uma mesma necessidade de cuidar de si mesmo a ponto de se eliminar a anular a toda diferença que possa funcionar como ameaça e perigo.

Como diria Levinas:

A aproximação não ontológica da ideia de Deus passa pela análise das relações inter-humanas que não entram no quadro da intencionalidade, a qual, tendo sempre um conteúdo, pensa sempre a sua medida. Pensamentos que excedem o seu limite, tais como o desejo, a procura, a questão, a esperança – pensamentos que pensam mais que o que pensam, mais do que o pensamento é capaz de conter. (LEVINAS, 2003, p. 187)

Em outras palavras, falar em ética é para Levinas, falar no momento exato em que o pensamento é necessariamente convidado a ultrapassar a si mesmo, reconfigurando os termos da liberdade, as forças centrípetas da consciência e os entremeios da intencionalidade que, para ele, seria em essência um momento anárquico em que se escapa e se evade da vertigem da unidade e da intencionalidade originária de todo ato. Anarquia que terá, para ele, duplo sentido: num primeiro momento remetendo ao pré-original – arkh, como dimensão fundamental, anterior à consciência e aos atos de liberdade; e numa outra perspectiva, remetendo ao que diz respeito agora ao movimento de contestação ao já instalado, ao que é habitual, ao que é estado.

An-arquia que deve ser duplamente entendida. Em primeiro lugar como o que não revela mais de uma arkh – e, portanto, como o que em Autrement qu’être designa de pré-original. Mas também no sentido óbvio de anarquia e de anarquismo, contestando a omnipotência do Estado; o que dá igualmente um outro sentido ao profetismo. (LEVINAS. 2003. p.187)

O que como o próprio Levinas esclarece, refere-se ao pôr em questão a espontaneidade do sujeito, como sendo esse sua própria origem, isso num contexto de puro fechamento e solidão. O que é absolutamente incompreensível a partir da questão do ser.

Assim, quando faz referência à literatura, quando se entremeia com essa, seja a literatura de Proust, Shakespeare, Balchot, Baudelaire, Celan e Sartre, mas principalmente quando se deixa permear por autores da literatura russa que aprendera no seio materno a ler e respeitar (sejam esses Tolstói, Pushkin, Gogol e principalmente Dostoiévsky), Levinas adere ao despertar do discurso que, nas ideias livres desses, lançam o pensamento para além da autossuficiência e autorreferência. Sua ideia é, de certo modo, alavancar o próprio pensamento lançando- -o para fora daquilo que tem apequenado a razão, matado todo dito e empobrecido todas as narrativas. Claramente, Levinas se deixa permear pela força transgressora que no interior das narrativas literárias ecoa, extravasando a logicidade da própria razão e o caminho convencional da própria lógica. Ele não confunde significação e tematização.

Contrariamente ao que nos ensina a filosofia que nos é transmitida, a significação não implica necessariamente tematização.[...] O um-para-o-outro não é um defeito da intuição, mas o excesso de responsabilidade que se diz no para da relação. Neste para se assimila a significação de uma significação que vai para além do dado e se distingue da famosa sinngebung ou ‘doação de sentido’. (LEVINAS, 2003, p.188)

Levinas percebe nas obras literárias uma dada conexão sincera e profunda à perspectiva singular de nosso modo de estar no mundo. Uma textura sutil e profundamente delicada, que é impassível de ser retida e mesmo açambarcada por algo geometricamente quantificável. A sutileza a partir da qual pretende pensar, essa fina textura de uma presença no mundo cujas narrativas lineares frias e impessoais não conseguem acessar, fala de um excesso que transborda a todo equacionamento racional matematicamente estruturado onde se pensa o humano tal com se pensa uma coisa. Tomando por existência algo diferente aquilo que a tradição filosófica analítica estava acostumada; visitando um horizonte de sentido novo, aberto pelo “escavamento” fenomenológico de Husserl e Heidegger, Levinas sabe que é preciso adentrar onde o pensamento rígido jamais poderia acessar; sabe que o desafio aponta para algo que é para além, de uma outra margem e de uma outra natureza, mas que é por si mesmo o locus significativo desde o qual reverbera aquilo que somos no mundo. É nesse excesso que se apoia a sua filosofia.

A recorrência a Paul Celan, quando esse diz que “eu sou tu quando eu sou eu”3 (LEVINAS, 2003, p.191) é um exemplo claro desse assumir de algo que tem em si mesmo uma dada torção da realidade, e mostra como se está diante de um pensamento que é extravasado e que busca perseguir uma significação cujo pensamento solitário, autoreferrido, é incapaz de perceber.

“Eu sou tu quando eu sou eu” como referência “a transcendência na imanência” – que nas palavras de Levinas é aquilo “[...] que pode significar a exterioridade lacerando o seio do íntimo, a “alma na alma”, a alteridade, lá onde tudo é coincidência consigo ou reencontros consigo...” (LEVINAS, 2002, p. 44), reafirma o sentido da ética que pretende delinear e em que medida essa própria intriga fundamental está já estampada no seio da literatura.

Um espírito pobre de espírito, uma alma solitária ou “desalmada”, como diria a linguagem cotidiana, é aqui uma alma na qual falta a presença íntima da transcendência, uma alma que ainda vigora solitária e por isso ainda na monotonia do Eu, e essa sabedoria pulsa para Levinas como o próprio despertar da consciência que levaria ao ultrapassar da “autarquia” do eu, no dilacerar das forças narcisistas que nos mantêm prisioneiros da egoidade.

Nesse mesmo caminho, pode-se perceber ainda em que medida Dostoiévsky é um dos autores da literatura mais significativos dentro do que se propõe Levinas. Na empreitada filosófica de trazer para o seio da filosofia a exterioridade que lhe falta, a alteridade que permanecesse indiferente, a responsabilidade infinita que Dostoiévsky representa um marco de grande vigor. Quando esse delineia no todo de sua obra a responsabilidade que extravasa a toda visão econômica de um mundo egoísta, cujo nítido reflexo aparece quando Dimitri em Irmãos Karamazov afirma que “cada um de nós é culpado por todos diante de todos” (DOSTOIÉVSKY, 2019, p.17), vai ressoar em Levinas do mesmo modo que a frase de Celan. Ou seja, nela vai vigorar a ressonância perfeita da ética naquilo que pensa Levinas.

Sem querer dizer com isso, que Levinas se utiliza de Celan e de Dostoiévsky para ilustrar o que ele pretende dizer de modo filosófico, mas como é a partir desses que se ergue parte da inspiração que trata da anterioridade da ética e da responsabilidade desde contornos absurdamente singulares, que Levinas vai à literatura para defender e apresentar a ideia de um Humanismo do outro homem.

Como não perceber uma dada relação de engajamento entre Levinas e Dostoiévsky nesse ponto? Como não observar aí a mesma descrição de um contexto em que o que chamamos de humano é o ente responsável por excelência, cujo ponto de referência não parte do vício do si mesmo?

A ordem ética que na afirmação de Dimitri ecoa, e que é por si mesma exterior ao movimento linear de um pensamento que só sabe olhar o mundo a partir de seus próprios interesses, certamente é simétrica a tudo que Levinas se refere, e nela faz morada um sentido cujo compromisso ético do sujeito, não só para com o Outro que está diante dele, mas para com todos os Outros, vibra de modo absurdo.

Levinas perseguirá esse sutil sentido em toda sua obra. Ele, sabe que num mundo que padece da indiferença e do egoísmo, em meio a cegueira e a completa ojeriza ao diferente, a responsabilidade é uma quimera e os laços que nos unem uns aos outros como irmãos, uma mera ficção. Por isso, os personagens de Dostoiévsky, que cita com primazia em muitos momentos, o interessam muitíssimo. Nesses haveria a vibração de uma dada responsabilidade irrefutável entre nós, cujo teor de nenhum modo é por razão de uma justificativa plausível que nos possa convencer conscientemente, mas pelo simples fato de estarmos uns com os outros, lado a lado nessa curta jornada do dia a dia chamada vida. O que é insignificante para as teorias e filosofias que permanecem centradas numa dada razão que de tão formal se perderam em meio ao encapsulamento das vontades.

Irmãos Karamázov figura com singular importância na obra de Levinas, exatamente pelo extravasar da razão que o constitui. Suas tramas ressaltam um fino e sutil laço ético entre nós, totalmente ignorado na perspectiva da tradição filosófica ocidental. Assim como Crime e castigo em que a morte, nesse caso nossa própria morte, vai constituir também a absurdidade que permite se pensar na gratuidade da responsabilidade pelo Outro como intriga ética.

É a minha mortalidade, a minha condenação à morte, o meu tempo ao abrigo da morte, a minha morte que não é possibilidade da impossibilidade, mas puro rapto, que constituem essa absurdidade que torna possível a gratuidade da minha responsabilidade pelo Outro.” (LEVINAS, 2003, p. 251)

É importante acrescentar que a literatura russa, mas também Shakespeare entre outros, anunciarão uma dada dimensão da ética que para Levinas também aparecerá nos textos sagrados do judaísmo que acessa. Esse laço sutil entre os homens que chamará religião (Ver. LEVINAS, 1988. p.28), aparecerá de diferentes modos em sua obra cujo fundo mostrará uma dada ressonância singular tanto na literatura como nas escrituras sagradas do judaísmo que também vai considerar.

Responsabilidade de refém a se entender no sentido forte do termo. Porque, que outrem me diz respeito, me é incompreensível: ‘que me é Hécuba’ – dito de outro modo: “Serei eu o guardião do meu irmão? – tais questões são incompreensíveis no ser. [...] É a resposta de Caïn a Deus na Génesis, IV, 9. Uma resposta colocada na boca de Ivan por Dostoievsky nos Irmãos Karamázov (II parte, Livro V, cap. III). (LEVINAS, 2003, p. 190)

A fim de compreender de onde sai toda essa profusão criativa, é importante considerar que as teses que configuram o pensamento de Levinas, nascem da confluência de três grandes tradições culturais. É no seio de três solos linguísticos, três grandes construções discursivas e três dimensões de sentido que se enlaçam e entrecruzam, que seu pensamento tomará corpo, configurando-se estrangeiro em relação às filosofias que têm na centralidade do ego e na ontologia seu ponto de partida.

Não há como acessar o sentido maior de sua obra, sem considerar essa experiência “pré-filosófica” desde a qual seu pensamento se anima. Levinas é filósofo, suas grandes obras deixam claro isso, mas a fonte desde a qual nascem suas teses ergue-se da vida, das suas muitas demandas e suas idiossincrasias e não propriamente do argumento filosófico em si, como seria esperado por aqueles cujas ideias brotam apenas da contração de obras já organizadas de determinados pensadores. Embora tenha uma cultura filosófica vastíssima e acesse a história da filosofia ocidental como poucos, o que fica explícito no modo como dialoga e traz ao debate grandes nomes da história da filosofia ocidental, Levinas não para aí. Embora tenha um domínio impar da fenomenologia, cabe ressaltar que é dele a primeira tradução francesa de Investigações Lógicas de Edmundo Husserl, seu pensamento irá se tecer no fulcro de todo um amálgama de ideias e problemas, de perspectivas diferentes da própria vida e de sentidos de realidades que não se resumem à experiência ocidental grega em seu modo de compreender e mesmo perceber a realidade.

Em Do sagrado ao Santo, ele reafirma ainda mais essa conexão ao que não tem em si o rótulo de filosofia, mas que, ao mesmo tempo, é o lugar desde o qual nascem os discursos, as teses que animam esses e tudo que se faz em filosofia. Além disso, ao acessarmos seus textos a respeito da diferença entre o Dizer e o Dito, nos quais exalta a experiência “pré-original” anterior aos signos verbais, aos sistemas linguísticos e às questões semânticas, mostrando que ao tratarmos do ser das coisas estamos já assentados num próprio contexto de proximidade em relação com essas, Levinas nos faz considerar a importância de também considerarmos o seio desde o qual as ideias tomam corpo.4 Em Autrement qu’être (1974), onde expõe de modo singular a relação entre o Dizer e o Dito, compreendemos em que medida estamos falando na verdade de uma dada subordinação de um em relação ao outro.

É importante reforçar, que o sistema linguístico e a ontologia, não são capazes de sacar deles mesmos as coisas e a vida. Esses são apenas em razão de uma demanda de manifestação que os exige e convoca. “A correlação do dizer e do dito, isto é a subordinação do dizer ao dito, ao sistema linguístico e à ontologia é o preço que pede a manifestação”5 . Se pretendemos aqui acessar um pouco do solo vibrátil que o inspirou, cabe destacar o entrecruzamento de culturas, de formas de sentir e perceber o mundo e de sentidos que se intercambiam em sua forma de pensar. Poderíamos arriscar dizendo que sua filosofia é, na verdade, um reflexo do que viveu e acessou, principalmente durante os primeiros anos de sua vida e de sua formação acadêmica. Pensamento que é no fundo nutrido e impulsionado de um lado pela cultura judaica em que nasceu; pelo contexto da linguagem e da perspectiva da cultura russa em que viveu toda sua infância e do posterior encontro com a língua francesa, que assumirá como nervura do pensar e de sua especificidade narrativa no trato com as coisas. Por essa razão, a exemplo do que disse François Poirié, é desde aí que precisamos olhar sua obra, considerando de saída que em si mesma essa expressa o entremear de uma dimensão histórica, espiritual e literária. (POIRIÉ, 2007, p.10).

Como todos o sabemos Levinas era judeu. Viveu as agruras de um tempo de perseguição que o fez desde cedo compreender a capacidade da totalidade imputar, a partir de determinadas justificativas, a inferioridade e a descartabilidade de pessoas e grupos humanos. De uma família de classe média que respeitava as tradições, e que o colocou desde cedo numa rotina árdua de leitura e interpretação das escrituras sagradas do judaísmo e da Bíblia (teve seu primeiro professor de hebraico aos seis anos de idade), teve acesso cedo aos entremeios da tradição judaica e das discussões entorno da ciência rabínica. Nascido em Kaunas na Lituânia em 1905, cidade que juntamente com Vilna (chamada de Jerusalém do Norte) criou-se numa região de grande efervescência cultural, acostumado a um ambiente de discussões e grande reflexão, apesar de toda pressão sofrida pelos judeus já naquele momento. Kaunas e Vilna foram redutos da intelectualidade judaica de então e foi nesse ambiente que adentrou no espírito do hebraísmo mosaico de tradição Hassidim, que nitidamente o influenciou.

Além disso, Levinas recebeu também forte influência da cultura e da língua russa, que era a língua falada na Lituânia. Sua mãe, amante dos grandes clássicos da literatura russa, foi quem lhe influenciou sobremaneira à leitura de autores como Dostoiévsky, Gogol, Tolstói e Pushkin (destaca-se que Levinas era filho de uma família de livreiros, o que lhe permitiu acesso privilegiado também à literatura). Por último, destaca-se sua adesão à língua francesa, a qual escolhera como pano de fundo de tudo que viria fazer no campo filosófico, principalmente no contexto da fenomenologia e das discussões que travará com Husserl e Heidegger.

Essa diversidade de sentidos, de aberturas e possibilidades, certamente é fonte da grande riqueza do seu pensamento e dela decorrem certamente os motivos de não ser grega a fonte desde a qual nascem suas teses a respeito da condição humana. É possível dizer que a obra de Levinas é hoje tão interessante e ao mesmo tempo tão desafiadora, exatamente pela eclosão híbrida das forças intuitivas que a compõe. Além de um claro teor e organização discursiva próprios do fazer filosófico, e aqui destacamos não só Totalidade e infinito e Outramente que ser, suas obras de maior destaque, mas também Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, Da existência ao existente, Difícil Liberdade, Deus, a morte e o tempo, entre outros tantos textos; como também as obras em que trata das escrituras sagradas do judaísmo, como Do sagrado ao santo, Novas interpretações talmúdicas, Quatro leituras talmúdicas, entre outras, bem como os textos que mostram sua adesão à literatura, principalmente os reunidos em 2009 nas suas obras completas.

Embora em toda sua obra mostre uma clara adesão à literatura, isso a partir de diferentes citações que são constantes em seus textos, é em Carnets de captivité que podemos perceber com nitidez essa aproximação que o inspira e o quanto que o ficcional, fantasioso e mágico, próprio do fazer literário, de nenhum modo é tomado aqui como algo absurdo, como uma narrativa desconectada da vida impossível e improvável, muito pelo contrário. A literatura teria para ele uma dada chave de acesso à nossa presença no mundo, revelando, fazendo pulsar e exclamando perspectivas de nós mesmos, que no fazer filosófico e nas construções semânticas desses permanecem num ponto cego. (Cf. LEVINAS, 2009)

Ao contrário do que poderia imaginar os que superficialmente acessam a literatura, mesmo travestida de irrealidade e magia, de ficção e narrativas absurdas, quando boa, ela estaria prenhe de uma dada força e mesmo de um dado acesso profundo ao mundo e à realidade, que em muitos casos a própria filosofia, prisioneira da métrica do jogo conceitual, estaria alheia. É como se ela tivesse a capacidade de nos reportar a algo de singularmente sutil, simples e intensamente presente em nós, donde nascem nossas escolhas e possibilidades e que ao mesmo tempo é algo eminentemente negado pela formalidade dos discursos e suas contrações. Isso a ponto de reverter a própria lógica do pensamento hermético ao despertar da autarquia de si mesmo.

Ao se referir a obra de Ariosto em Carnets de captivité, Levinas vai considerar em como nos seus entremeios e profusões, haveria na literatura o pulsar de uma dada concretude de nós mesmos, sem desvios e sem nada de fantasioso. Ao afirmar que: “a magia faz parte da constituição do mundo. O real só é compreendido em oposição à magia – à ilusão”6 , Levinas reforça a ideia de como a realidade e o que somos em essência está longe de ser aquilo que o pensamento tomado pela lógica geométrica matematizada, desejosa de harmonia e ordem, poderia supor. Ou seja, literatura, em sua textura ficcional e mágica, acaba possuindo, nesse sentido, a capacidade de acessar o que de mais peculiar existe em nós e o que de mais próprio nos é devido. Concretude que inaceitável para quem é alérgico à humanidade e sua demasia e que desejaria um mundo mais robotizado e com menos visceralidades.7

A obra de Ariosto, Roland furieux (1532), é, nesse sentido, a explícita medida de como a narrativa literária possui para Levinas uma dada capacidade de nos conectar ao que se poderia chamar de mais autêntico de nós mesmos. Isso pelo modo vigoroso de como acessa a profusão de sentimentos transloucados que nos constitui e que é, de modo nítido, exterior às perspectivas e esquemas definidos pelos ditos oficiais nos quais a vida estaria de algum modo sujeita a uma dada métrica.

É como se a literatura, ao fazer isso, estabelecesse de modo discursivo um acesso singular a nós mesmos. As contrações e pulsões pervertidas que os romances escancaram, revelam uma dada autenticidade que as teorias e as regras discursivas oficiais visionam encontrar na sistemática e harmoniosa perspectiva conceitual, mas que no fundo apenas reduzem a um jogo de ainda maior ilusão.

L’amour pervers de la vie. L’âcre plaisir de la souffrace. C’est la presence meme de Dieu. Amour pervers de la vie – amour de Dieu. Bien au-dessu du pantheísme de l’amour direct – du Dieu que l’on attaint par le spectacle de l’univers hamonieux.” (LEVINAS, 2009, p. 64)

Ou seja, a literatura estaria muito mais conectada ao frêmito da vida que se pode supor. Embora o enrosco ficcional de suas tramas, é ela muito mais lúcida que muitas produções de muitas escolas filosóficas e que muitas teorias da ciência.

É como se uma fina e sutil voz de vida lhe fosse singularmente acessível e que sua tarefa não fosse outra senão corporificar e mesmo amplificar aquilo que singularmente tateia. O que habilmente nos desinstala das idolatrias que criamos e das ilusões que cultuamos soberbamente. Em outras palavras, a literatura nos convida a pensar.

Assim, mesmo que passeando pelo fantasioso e ficcional, ela portaria em si uma disposição eminentemente autêntica àquilo que nos é mais próprio. Sua singularidade estaria no fazer pulsar no campo discursivo o que é parte, estofo e combustível da vida, mesmo que em muitos momentos essa seja também palco de ideologias e que através dela possamos do mesmo modo construir realidades que são muito mais expressão de determinadas necessidades, do que propriamente o pulsar sincero de algo.8

Enquanto arte, a literatura guarda em si a possibilidade única de nos fazer conectar ao que de mais sútil nos configura e que mesmo assim nos é tão complicado dizer e acessar. Por ser despudorada, livre de amarras como toda arte que se preze o é, consegue habitar imediatamente no tecido do mundo vivido, fazendo vibrar um dado excesso de nós mesmos, muitas vezes, escamoteado por pensamentos atrelados a artificialidades e idealidades. Por isso, podemos dizer que é ela ao mesmo tempo ponte de acesso entre o leitor e aquilo que ele mesmo é e que por alguma razão lhe parece tão estranho. Essa é a sintonia maior que Levinas percebe ao fazer referência a Blanchot, Shakespeare, Paul Valéry, Tolstoi, Paul Celan, Léon Bloy, Cervantes, Dostoiévsky entre outros poetas e autores da literatura.

Embora seja campo da magia, do absurdo e da imaginação, do sonho e do ficcional, o que lhe configura em essência nada tem de irrealidade. Em si, a literatura guarda uma carga de realidade tão absurdamente concreta, que aqueles que por ela navegam simplesmente são desinstalados. Basta nos entregarmos às páginas de obras como de Saramago, Murakamy, Borges, García Márquez entre tantos autores próximos de nós, para compreendermos que as narrativas que expõe são no fundo de uma tal concretude que até os mais “rígidos” conseguem perceber a conexão com o frêmito da vida que promovem.

Como não perceber que somos todos um pouco o inseto metamorfoseado de Kafka, ou mesmo a esperançosa Macabéa de Clarice? Como não encontrar em Ulisses de Homero um pouco de tudo que nos foi ensinado por aqueles que amam idealidade e em Dorian Gray de Wilde um pouco do que nos acontece todos os dias quando escondemos de nós mesmos a perversidade?

A literatura, tateia a vida no seu “avesso”, põe tintas naquilo que nos é mais próprio e nisso faz a filosofia lembrar o que jamais pode ser esquecido, ou seja, o âmago desde o qual parte a necessidade do pensamento.

Por isso, autores como Henri Bergson, prêmio Nobel de literatura em 1927 e Sartre que, 1964 também receberia o mesmo prêmio se não o tivesse negado, marcam a história da filosofia como autores cuja composição discursiva porta não só uma dada “boniteza”, mas uma perspectiva de mundo e realidade que extrapola a métrica vigente. Como se uma força sutil, cultivada no agir literário, lhes convocasse o pensamento a ter que se curvar a ele, como uma planta que num contexto sombrio se curva buscando os raios atravessados de sol que pressente. Isso numa adesão singular ao que é para além do caminho convencional do pensar e que lança, por isso, o pensamento a movimentos alheios às armadilhas da artificialidade. O que revigora a filosofia e a impede de se converter em ciência ou se descambar em ideologia criando pseudo explicações da realidade apenas úteis ao contexto no qual emergem.

Desse modo, de maneira alguma a literatura é um instrumento a ser utilizado para a exposição de teses ou ideias filosóficas, como se essa fosse apenas uma narrativa de mera publicização de algo. Isso principalmente para Levinas. Seria um descaso para com a força que essa porta em si e uma ignorância muito grande acreditar que a literatura é algo de segundo plano ou mesmo uma atividade a “serviço de”. Seu papel é muito mais significativo.

Assumir que a literatura dispõe de uma fundamental torção de realidade, que essa inverte disposições instaladas ao mesmo tempo queabre perspectivas inusitadas a ponto de levar o pensamento a habitar o que em razão de certas forças já instaladas não conseguimos perceber, e ao mesmo tempo compreender seu papel transgressor que anima e movimenta. Daí, podermos afirmar aqui, que nada melhor do que estar em meio a algo que não permite obviedades e que por si só se alimente de torções e contrapontos, para assim podermos fazer cumprir o papel maior da filosofia, que é exatamente perguntar, indagar e buscar, mesmo que tudo já tenha sido visto, mesmo que tudo já tenha sido questionado, um pensamento que nos leve à outra margem.

Não é à toa que Tales de Mileto, talvez o verdadeiro pai da filosofia, comece a filosofar quando rompe com a proteção de sua casa, quando sai do lugar comum em que tudo está ao alcance das mãos e se permite arrebatar pelo espanto e pela dúvida do desconhecido; fato que igualmente permitiu à Grécia tornar-se berço da filosofia ocidental.9

É misturando-se ao mundo e à realidade humana, aos entremeios mais singulares do que nos configuram, que o pensamento é impulsionado é “animado” e que as teses, que sustentam as teorias e todas as produções nas mais diferentes áreas, tomam fôlego.

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Perder a conexão com a realidade, pensar de modo asséptico o mundo, como se toda visada para o lado de “cá” de baixo fosse já uma perda de propriedade, é apenas cabível para aqueles que se nutrem de artificialidades, para os que se encontram numa bolha ilusória de puro autoengano e má-consciência. A filosofia quando de braços dados com o mundo e a realidade, tal como esses o são, é impregnada do espírito da pergunta que é base ao ato de criar. Não é à toa que para Bergson:

O pensamento representa ordinariamente o novo como um novo arranjo de elementos preexistentes; para ele, nada se perde, nada se cria. A intuição, vinculada a uma duração que é crescimento, nela percebe uma continuidade ininterrupta de imprevisível novidade; ela vê, ela sabe que o espírito retira de si mesmo mais do que possui, que a espiritualidade consiste justamente nisso e que a realidade, impregnada de espírito, é criação. (BERGSON, 2006, p.32)

Assim como a divisória entre as áreas do conhecimento é apenas uma convenção, criada por quem não consegue lidar com a complexidade da própria vida e com a pluralidade que a constitui, desconsiderando que tudo, absolutamente tudo que conhecemos, não deixa de ser sempre a expressão de uma dada forma de se estar aí, de uma determinada perspectiva de mundo e realidade, nesse caso, a perspectiva humana, como um projeto dessa sutil e frágil presença que instaura mundo e realidades que chamamos homem.10

Se nos interessa aqui destacar o papel dos que dão os braços com a literatura, é cabível compreender quão rico foi quando pensadores deram os braços com outras áreas do saber, o quão criativo e intuitivo foi esse momento e não é preciso lembrar aqui de Platão e seu amor pela geometria, Pitágoras e seu encanto pelos números, Tales de Mileto e seu teorema, Descartes e toda sua importante obra filosófica baseada num pensamento inspirado pela matemática, Pascal e o estudo das probabilidades e mesmo Leibniz e as bases do cálculo diferencial e Edmund Husserl, pai da fenomenologia que tinha na matemática a inspiração para a busca de afirmações indubitáveis, para mostrar a veracidade do que dissemos. Em todos esses, e outros tantos aqui não citados, o saber não foi seccionado e a promiscuidade serviu de palco, cenário e intuição para o que disseram e pensaram. Foi ela a fonte de inspiração que os animou o pensamento e mesmo a fonte intuitiva desde a qual se ergueram novas e inusitadas teorias.

Em todos esses personagens, um dado impulso se gestou e se desdobrou na forma de um novo modo de pensar, que não se traduziu apenas na maneira de pensar uma determinada área do saber, como seria se estivéssemos, por exemplo, falando de filosofia da matemática, mas como um filosofia inspirada, movida e “fermentada” por uma dada perspectiva de realidade, por uma dada forma de encarar o mundo e a vida em todos os seus movimentos. Em outros termos, a literatura é para Levinas o lugar em que nos conectamos ao frêmito da vida, locus do pulsar de algo que pode isso sim animar o fazer filosófico e mais do que isso, ser um discurso capaz de fazer o próprio pensamento ir além.

Referências

BERGSON, H. O pensamento e o movente. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

DERRIDA, J. Margens da filosofia. Trad. Joaquim Costa, António Magalhães. Campinas, SP: Papirus, 1991.

DOSTOIÉVSKI, F. Os Irmãos Karamazov. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2019.

HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Trad. Marco Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

LEVINAS, E. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris: KLUWER ACADEMIC, 2004.

LEVINAS, E. Carnets de captivité 2. In. Oeuvres 1.Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 2009.

LEVINAS, E. Deus, a morte e o tempo. Trad. Fernanda Bernardo. Coimbra: ALMEDINA, 2003.

LEVINAS, E. De Deus que vem à ideia. Trad. Pergentino Pivatto. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

LEVINAS, E. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Pivatto.Petrópolis, RJ: Vozes,1997.

NIETZSCHE, F. Humano demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

POIRIÉ, F. Emmanuel Levinas: ensaio e entrevistas. Trad. J. Guinsburg, Márcio Honorio. São Paulo: Perspectiva, 2007.

SHÜLLER, D. Por uma filosofia do buraco. In. http://www.revistacontemporanea.org.br/revistacontemporaneaanterior/site/wp-content/artigos/artigo109.pdf Acesso: 17/12/2019.

Notas

[1]Dizer é aqui a representação desse solo vibrátil da própria vida, profusão de sentidos, significados, emoções e etc. desde o qual todo dito é sempre devedor e eternamente incapaz de açambarcar. A distinção entre Dizer e Dito é uma das elaborações significativas de Emmanuel Levinas (1974) na obra Autrement qu’etre ou au-delà de l’essence.

[2]Lembremos que “além” é a tradução de “meta”. A meta-física para pensar as relações entre o Mesmo e o Outro e a proposta de uma meta-ética, que visivelmente se percebe como estofo de seu trabalho, mostram o interesse de Levinas (1974) em pensar de “outro modo”, ou “para um outro lado”.

[3]“Ich bin du, wenn ich ich bin.”

[4]A esse respeito consultar nosso texto: Entre o Dizer e o dito: sobre a precariedade e a finitude de nosso pensar em Emmanuel Levinas In. Conjectura, Caxias do Sul, v.16, n.1, jan-abr, 2011.

[5]“La correlation du dire et du dit, c’est-à-dire la subordination du dire au dit, au systemme linguistique et à l’ontologie est le prix que demande la manifestation” (LEVINAS, E. 2004. p.17). Tradução própria.

[6]“la magie fait partie de la constitution du monde. Le réel n’est compris que dans son opposition à la magie – à l’illusion” (LEVINAS, 2009, pp. 64-65). Tradução própria.

[7]Nietzsche talvez seja o primeiro a nos fazer pensar a respeito dessa demasia humana tão escamoteada e tão relegada ao esquecimento. Talvez fosse mais fácil à totalidade se não fossemos tão absurdamente humanos e tão demasiadamente quem somos. (Cf. NIETZSCHE, 2000.)

[8]Um bom exemplo disso, foram as obras literárias produzidas no final do século XIX e que eram direcionadas exclusivamente ao público feminino. Nessas, numa clara posição ideológica, a tarefa era educar as mulheres à docilidade e à cordialidade.

[9]Cabe lembrar aqui, a história antiga de Tales de Mileto contada pelo historiador da filosofia do segundo século de nossa era, Diógenes Laércio. Conta-se que ao sair de sua casa, a convite de uma senhora, Tales teria ficado tão espantado com a perfeição e harmonia do firmamento, que fixaria seu olhar para cima a tal ponto que não enxergaria um buraco que estaria a sua frente e que o levaria à queda. Tomado pelo espanto e pela dúvida, ao do conforto do já conhecido em que tudo está resolvido, Tales seria chamado a pensar tão profundamente que se desligaria das demandas práticas que lhe ocorriam. Daí as anedotas que dizem que filósofos são lunáticos, que vivem com a cabeça nas nuvens. A história da queda de Tales, nos reporta ao fato de que pensar é pensar além e que sem espanto nada de novo insurge. Na segurança do já conhecido, da proteção da casa em que tudo está ao alcance das mãos, nada perguntamos, nada de novo questionamos. Donaldo Shüller, especialista em filosofia antiga, analisa de modo magistral essa história em: “Por uma filosofia do Buraco”. De modo irônico, fala em como a filosofia nasce da perda de fundamento, da perda de certezas e verdades, enfim, da perda da segurança do lugar conhecido onde nada se questiona. Segundo ele, o filósofo precisa perder-se para se encontrar. Precisa deixar o lugar seguro das verdades que carrega, para então começar a perguntar. E só há filosofia onde há pergunta, onde há dúvida e onde há busca. A filosofia depende da pergunta, tanto quanto as teorias dependem das ideias que lhe fundamentam. E essas não surgem sem espanto, sem afetação e sem movimento. Não é a toa que a geografia da própria Grécia e o papel que essa desempenhava no contexto clássico, sendo local por onde transitava comerciantes e pessoas das mais diferentes culturas, propiciou de modo singular o pensamento de então, fazendo desse lugar de encontro dos diferente berço do pensamento e da investigação filosófica. Do encontro com a diferença nasce o pensamento, do encontro com o movimento, nasce a intuição filosófica. Cf. SHÜLLER, D. Por uma filosofia do buraco. In.http://www.revistacontemporanea.org.br/ revistacontemporaneaanterior/site/wp-content/artigos/artigo109.pdf

[10]A esse respeito seria interessante retomar Heidegger na obra Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão, em que esse mostra como o homem é formador de mundo e como o mundo é, na verdade, uma projeção de uma dada atividade do existir humano. Em outras palavras, o mundo é o acontecimento de um projeto, do projeto humano. (Ver. HEIDEGGER, 2006.)