Silêncio e dignidade na
contemporaneidade
Silence and dignity in contemporaneity
Walter Moure*
Fernando Genaro Junior**
*Doutor em Psicologia
Clínica pelo IP-USP.
É pesquisador em
Filosofia Intercultural do
Instituto de Filosofia da
UBA e pesquisador em
Antropologia Médica da
Faculdade de Medicina da
USP. Contato: waltermoure@
yahoo.com.br
**Doutor em Psicologia
Clínica pelo IP-USP,
membro do Grupo
Winnicott de BH-MG e
do Grupo de Pesquisa do
CNPq: Estudos Levinasianos e Alteridades na FAJE. É
pesquisador visitante do IPUSP e da UFMG. Contato:
fernando.genaro@gmail.com
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Resumo
O artigo aborda o silêncio e a dignidade
humana como facetas do sofrimento ético recorrente na contemporaneidade. Os autores,
psicanalistas, refletiram a partir das suas testemunhas na clínica, em especial, sobre uma
crônica de um paciente, com valor literário,
originada durante o seu processo psicanalítico. Em seguida, buscaram uma articulação
dessa problemática privilegiando os escritos
inéditos de Lévinas. Para tanto, empregou-se
um diálogo entre a crônica e a conferência de
Lévinas sobre a palavra e silêncio, numa perspectiva de fazer reverberar considerações sobre a necessidade ética da palavra a ser ouvida, e não capturada pelo ser, assim como
questionaram a viabilidade do cuidar em psicologia frente ao sofrimento contemporâneo.
Palavras chave:Lévinas, ética, dignidade, silêncio, sofrimento contemporâneo
Abstract
The article addresses silence and human dignity as facets of contemporary ethical suffering. The authors, psychoanalysts, reflected from their witnesses in the clinic, in particular, about a chronicle of a patient, with literary value, originated
during his psychoanalytic process. Then, they sought an articulation of this problem, privileging Lévinas’ unpublished writings. To this end, a dialogue was used
between the chronicle and Lévinas’ conference on the word and silence, with a
view to reverberating considerations about the ethical need for the word to be
heard, and not captured by the being, just as they questioned the viability of the
caring in psychology in the face of contemporary suffering.
Keywords:Lévinas, ethics, dignity, silence, contemporary suffering
Dans cette chambre réservée Je pleure la nuit durant Tandis que liée par un songe enchanté Paisiblement tu dors dans le silence. Lévinas, 13 de Novembro de 1924.
Introdução
E mmanuel Lévinas (1906-1995) filósofo lituano-francês traz contribuições importantes para a reflexão sobre a existência e dilemas humanos, como por exemplo, fraturas éticas derivadas da experiência do Holocausto. Seu pensamento parte da concepção de que a Ética, e não a Ontologia seria a Filosofia primeira. A fecundidade de sua obra nos auxilia a estabelecer um novo lugar, a partir do qual se possa indagar, e investigar o sofrimento humano contemporâneo. Para Lévinas é no face-a-face que surge no ser humano o sentido, para além de qualquer abstração e/ou domínio. Diante do rosto do Outro, o ser humano se reconhece como responsável. Enfatizamos a dimensão ética, uma vez que observamos na contemporaneidade um mundo organizado e dominado pelo positivismo científico, pela técnica e pelo virtual em que o sofrimento humano decorre da perda de contato com os fundamentos da condição humana, dentre eles destacamos o silêncio e a dignidade.
A proposta da elaboração do presente texto inicialmente nos colocou em debate sobre a maneira como poderíamos estabelecer um diálogo entre Teologia e Literatura a partir do pensamento levinasiano e entre nosso trabalho clínico, que permanentemente nos apela eticamente, a fim de estabelecermos diferentes diálogos em torno do sofrimento humano.
Em seguida recorremos à conferência de Lévinas intitulada Silêncio e Palavra, de 1948, a qual apresenta muitas ressonâncias passíveis de serem observadas em sua obra De outro modo que ser (1974). Decidimos tomar a crônica (O batismo de Joaquim) que escreveu um paciente na qual nos relata a recuperação da sua dignidade outramente que ser. Tal crônica fez parte de uma sessão, fruto do seu processo psicoterápico, tendo valor literário, e, o que é fundamental para o assunto que nos compete, remete à palavra que não captura o ser, mas que em todo caso endereça a uma escuta e a um diálogo ressonante, para além da situação clínica, na medida em que ali se descreve um tipo de sofrimento frequente na contemporaneidade.
Como metodologia estabelecemos diálogos entre diferentes alteridades a partir do fenômeno introduzido pela vivência do paciente na sua restituição da dignidade, a saber: diálogo especialmente com a crônica, que, por sua vez, como veremos, pressupõe a constituição do rosto do outro; entre os autores, que nos empenhamos por estabelecer um tipo de acompanhamento clínico que restitui o diálogo com a(s) alteridade(s) (e a irredutibilidade da alteridade) como momento fundamental do atravessamento de todo sofrimento; entre a Psicanálise e a Filosofia levinasiana; entre nós e a vivência de santidade que o paciente nos apresenta.
Lévinas nunca se debruçou no trabalho clínico, psicoterápico, porém, suas contribuições mostram-se frutíferas para desenvolver a escuta do tipo de sofrimento que se apresenta no mundo contemporâneo. Nesse contexto, suas contribuições nos apelam a pesquisar maneiras clínicas de acompanhar outrem que sejam de outro modo que cuidar o surgimento/desvelamento do ser, tão impregnado na tradição psicológica (e médica em geral), que acaba levando a captura do sentido do sofrimento, de forma que arrasta também o sentido da alteridade, comprimindo-a, dominando-a, totalizando-a… até os pacientes conseguirem chegar ao limiar dessa dominação do pensamento ocidental: sentir, ou melhor, viver na inexistência de si mesmos.
Apresentaremos a seguir o contexto das vicissitudes fundamentais da vida do paciente, a quem chamaremos de Antonio1 ; a seguir, a crônica por ele escrita no momento do batismo do filho mais novo; logo depois, o diálogo entre a crônica escrita e o texto Silêncio e Palavra, seguido de outros textos de Lévinas que nos ajudam na aproximação ética da dignidade.
Breve Contexto
Antonio tem 34 anos, é educador, artista plástico e terapeuta artístico. Dedicado e comprometido com a sua necessidade de compreender a alteridade, é um grande observador e estabelece consistentes elaborações sobre a vida e a maneira em que os outros se apresentam.
Já de criança padecia de uma extrema lucidez em relação ao apagamento do rosto e da presença dos outros, levando-o a episódios de desespero que se mostravam em forma de significativas inquietações que foram evoluindo a formas de episódios de violência. Violência não manifestada fisicamente contra as pessoas, mas motoramente em relação a objetos, e de adulto, em forma de explosões verbais, de palavra e sons.
Aos 11 anos, numa noite de chuva, Antonio já descansando em seu quarto, seu pai saiu até o jardim, e uma explosão deixou-o imóvel embaixo dos lençóis, sabendo o que tinha acontecido: um raio havia eletrocutado seu pai. A partir desse momento, tudo mudaria nessa família. O corpo morto do pai estabelecia um apelo tão grande, que Antonio não tinha como assumir, muito menos responder. Mas esse apelo continuaria no grito silencioso, não manifestado, na interioridade de Antonio. A vulnerabilidade e a ausência do rosto de outrem fariam parte da vida quotidiana dele. Assim como a insistência da cultura em “ter de ser alguém” aumentaria ainda mais suas reações violentas. A ligação profunda com a arte o salvou!
Adulto, depois de casar com Letícia, e após o nascimento de sua primeira filha, Diana, os episódios de violência se acrescentaram com sentimentos de desespero, iniciando uma psicoterapia, a qual possibilitou que ele pudesse estar mais centrado (contido) e em condições de estabelecer diálogos com diferentes facetas da vida, dos outros e da conformação da nova família. Há um ano, após o nascimento do seu filho mais novo, Joaquim, já estável, mas ainda com episódios de violência, inicia o novo tratamento com um de nós, os autores do presente artigo.
Rapidamente Antonio conseguiu observar que os episódios de violência tinham a ver com os momentos em que, estando com outras pessoas, o rosto delas desapareciam. Por meio da sua sensibilidade, Antonio escutava - a partir de pequenos gestos, ou pelo modo de se expressar ou agir dessas pessoas - que algo ficava falseado, e todo contato ficava impossível. Esvaziavam-se os rostos. E um profundo sentimento de indignidade, que, no extremo, o levava a sentir-se inexistente.
Momento fundamental do processo terapêutico foi quando em Antonio se manifestou o rosto do outro, e ele como rosto para alguém. É para tal ocasião que ele escreveu a crônica a seguir, que intitulamos: o batismo de Joaquim.
A crônica: o batismo de Joaquim
“Preparando o batismo, eu ficando perto aos poucos, um ano, reuniões, encontros, conversas, pensamentos, organização, vontade, desejo e sentido. Confiança e a sensação de estar fazendo o correto no instante justo. Idas e vindas, sentimentos como ondas impulsionaram- -me a continuar e a deixar, a fugir e a continuar qual rocha ao pé da letra tudo quanto acreditava que tinha que acontecer. Finalmente, no último mês soltamos e definimos a data:29/12/19, 11h30 na igreja seria o batismo.
Aproximava-se a data, conectando-me com o momento único e irrepetível, sentindo o meu filho, com o seu ser imortal, tentando apenas. Solidão, e ao mesmo tempo, o desejo de preparar o momento, e que ficasse algo que lembrasse o acontecimento.
No dia prévio peguei três imagens de uma artista conhecida, mostrei-as para Joaquim, ele escolheu uma. Levei-a, e fiz cartões para lembrar o dia e o seu nome. No dia do batismo acordei com energia, alegre, e comecei a cozinhar para receber os padrinhos após a cerimônia. Fazendo a comida entre os afazeres do lar com as crianças, entro de repente no lugar onde tudo se abstrai. Letícia me reclama certas coisas que não são significativas e, num instante, tudo cai, escurece-se o fundo da cena, e o vazio reina em tudo quanto me rodeia. Silêncio, vazio e angústia profunda. Todos se perdem ali, já não existe nada e nem ninguém, e tudo parece um teatro sem cena, a mentira se faz evidente. Violência e indignação. Tudo deixa de ter sentido. Observo atentamente tudo ao meu redor. Guardo calma, sento e deixo de fazer tudo o que estava fazendo. Não posso continuar. A vida freia por um instante. O mundo pára e se perde no nada.
Ao redor de mim as crianças observam, continuam a vida vendo o pai atordoado. Letícia olha a situação e tenta preencher o vazio contando uma história do Advento e, acendendo velas, eu sento e observo. Observo hipocrisia, falsidade, imitação, forma, invólucro, quase que estão vendendo para mim uma história como se fosse Coca-Cola.
Estou indignado, triste, e observo; não posso continuar vivendo nessa mentira, não sei como continuar. Sou peça fundamental nessa cena, e vejo o vazio que a sustenta. Não posso continuar, mas devo continuar, por Joaquim e por Diana. Olho para eles, e ali encontro o sentido, ali reencontro o sentido. Respiro novamente, profundo, uma, duas, três vezes, olho e observo ao redor; sinto calma e sorrio suavemente, sinto certa cumplicidade, como se todos compreendessem um pouco a cena, como um piscar de olhos do além... um rosto fica contornado e me acalma. Volto para a vida, conecto, e saímos para a igreja. Ali não consegui fazer nenhum contato com ninguém, além do meu filho e do sacerdote: só com eles. Foi belíssimo, encontro profundo, direto e claro, com verdadeira presença de todos.
Foi um encontro espiritual comovedor, quase sem palavras. Não há palavras, aconteceu como tinha que acontecer, e foi algo eterno.
Depois continuou a vida, e a celebração, com a satisfação interna de algo consumado, e a lembrança na alma de um encontro profundo com Joaquim.”O diálogo
Posicionamentos
A vinheta clínica e a crônica apresentadas aqui podem nos levar a pensar para além das questões antropológicas e psicológicas, mas as incluem. Berardi (2018), sob outra perspectiva, assim também como outros filósofos contemporâneos, se pergunta pela transformação na capacidade de sentir do ser humano e a dissolução da concepção moderna de humanidade que está acontecendo na atualidade. Algo está mudando na maneira como as pessoas se percebem a si mesmas e aos outros. A transição tecnológica em direção a um ambiente digital vai levando as experiências a um ponto de dissociação entre a empatia e o vínculo social, produzindo, no âmbito emocional, um incremento do estresse e da ansiedade; e no âmbito político, a propagação de estados de exceção, nos quais predomina o desenho biossocial que insere respostas automatizadas em nossa percepção, imaginação, desejo. Ainda assim, os corpos (o eros, diria Lévinas), a arte (a poesia), a sensibilidade resiste ao determinismo que esse tipo de experiências suscita. Nós acrescentamos o sofrimento (o inassumível) numa perspectiva inter-humana (LÉVINAS, 1997, p. 141), que se coloca ante nós no diálogo estabelecido na situação clínica.
Antonio traz na crônica um exemplo de vida a partir do qual podemos nos debruçar em primeira instância na relação entre silêncio e linguagem, nos interstícios em que podemos distinguir as articulações do existir.
Poderíamos chamar ontológico ao passo que retrotraz as estruturas da antropologia à economia geral do ser, quer dizer, que a conduz para além da parte estritamente humana de ser. (LÉVINAS, 2015: p. 57).Nessa definição, Lévinas, concede um lugar para a ontologia, como ponte para o outro, e a desloca de uma Filosofia primeira. No texto Silêncio e Palavra, ele traça o percurso da linguagem ao serviço do pensamento, presente em toda a tradição filosófica ocidental, mas também na expressão do pensamento lógico, da vida psicológica, da história, das variações de sentido nos diferentes contextos culturais: desde Platão até Husserl e Heidegger, podemos compreender que a palavra designa a realidade que aparece ante o pensamento. A função da linguagem sempre foi tratada como servil. E de certa maneira também o silêncio: na árdua tarefa do pensamento ter de abrir caminho entre diferentes signos, a palavra não designa apenas o pensamento. Ela tem que fazer silêncio (a linguagem poética), como quando encontramos em Platão o diálogo silencioso da alma consigo mesma, denunciando que, para pensar, é necessário uma oposição de si a si mesmo, pergunta e resposta, mantendo uma unidade, meditando em dois tempos, e esquecendo essa dualidade, para desembocar no silêncio, realizado desde o começo do pensamento (Cf. LÉVINAS 2015, p. 56).
Nesse antes da palavra, cada pensador acede silenciosamente ao ser, de modo que a palavra se coloca na verdade prévia e que a linguagem nomeia e atualiza como universal. Essa tradição, que estabelece a correlação fundamental entre existir e revelar-se, é a que consegue mostrar como o pensamento é permeável à totalidade, e o que é pensado deixa de ser estranho. Quando o ser humano concebe o ser como tema, acessa o existente como totalidade. O homem é, portanto, poder, tomado de possessão, por vontade de poder e de domínio. O poder finito do homem e dos acontecimentos são concebidos como compreensões: aqui está a sua obsessão de poder, a necessidade de poder ser sujeito, de poder e liberdade, representando e capturando o outro - representações que permitem exaltar o indivíduo e superar-se a si mesmo, perdendo contato com a alteridade, mas por isso mesmo, podendo vê-la. Essa é a linguagem a serviço do pensamento, inerente à Filosofia moderna ocidental do sujeito, de domínio, e a inevitável consequência de que toda relação humana seja uma relação de poder.
No entanto, desde o começo do texto, Lévinas nos convida a lembrar outro sentido do silêncio, remetendo-nos a observar como o silêncio era vivido por Pascal (1977):
Nada é tão insuportável para o homem como estar em pleno repouso, sem paixões, sem o que fazer, sem diversão, sem cuidado. Sente então seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. Ao ponto surgirá do fundo da sua alma o tédio, o entenebrecimento, a tristeza, o mau-humor, o despeito, o desespero. (PASCAL,1977, p. 78)Este outro silêncio remete à anulação do outro, tal como se nos apresenta no cotidiano do mundo contemporâneo, e que Antonio descreve lucidamente como “o lugar onde tudo se abstrai.” Gesta-se ali, em silêncio, o grito (o apelo, diria Lévinas) no momento justo antes que o rosto do outro se apague para sempre. “Já não existe nada nem ninguém, e tudo parece um teatro sem cena”, um não-lugar que denuncia domínio, poder, e a supressão da condição humana. Com o apagamento do rosto do outro, a vida freia, e tudo cai no nada, no vazio de Pascal. Ou como nos diz Lévinas (2015, p. 51), esse silêncio agônico e opressor, que denuncia “a água estancada, água que dorme, na que se apodrecem os ódios, as más intenções, a resignação e a covardia.”
Alteridade
Há um momento fundamental da crônica de Antonio: quando ele, olhando para os filhos, descobre-os como outros, não convertidos em interioridade. Eles enquanto eles. Antonio é chamado à responsabilidade que consiste em abandonar “o lugar onde tudo se abstrai”, o lugar onde tudo é reduzido ao mesmo, demanda que os filhos só poderiam fazer para esse pai; e o pai finalmente aceita, porque também é encontrado nesse milagre de ser testemunha do Infinito, na aceitação de uma travessia sem volta.
Contudo, para chegar a essa aceitação de estar destinado ao apelo dos outros, Antonio faz um percurso pela confusão da impessoalidade do mundo; pelas identidades hipócritas; pela vivência familiar dita “em comum”, em que todos permanecem, na verdade, isolados; pelos acordos inerentemente falsos de convívio e de compartilhar. Tudo o que afasta da proximidade de uns com outros2 , e da linguagem que proporciona distinção entre eu e o outro, não apenas na vivência afetiva ou animal, nos diz Lévinas, mas no plano do pensar. (LÉVINAS, 2015, p. 61).
Dignidade
Em que sentido Antonio nos apresenta o seu sofrimento em torno da falta de dignidade, e em que medida ela é recuperada a partir do encontro com o rosto do outro? E qual a relação disso com a desarticulação da violência?
A lucidez de Antonio em relação ao apagamento do rosto do outro no mundo contemporâneo o deixava sem mundo, isolado na violência do impensável, na medida em que nenhum diálogo com alguém podia ser estabelecido, no sentido de que os outros se apresentavam ancorados no ser, e a dignidade concebida a partir desse poder. Para quem é lúcido para essa questão da ausência do rosto do outro no mundo contemporâneo, o sofrimento é vivenciado como equivalente a uma castração do ser.
Lévinas nos apresenta outro sentido da dignidade, não relativa ao ser, ao sujeito, nem a algo derivado do pertencimento ao gênero humano, mas à sua absoluta singularidade, o caráter sagrado de toda criatura fora de toda Teologia3 . Essa irredutibilidade de outrem, a sua incomparabilidade e o seu mistério, no sentido do que escapa a toda intelecção, o denomina “glória do ser”, ali aonde o sujeito transborda: “seu em si se converte em um para o outro.” (LÉVINAS, 2015, p. 66). A sensibilidade manifestada aqui não é a luz, própria da situação intelectiva, mas o som. E nessa dignidade há uma plenitude da humanidade em cada outro.
Nos rostos dos seus filhos, Antonio recuperou o silêncio que resiste à captura dos significados e, escutando o apelo dos filhos, transbordou em direção a eles e a conseguir poder responder a eles. A violência de Antonio era a forma da sua força e do seu empenho de ser, tentando assegurar os poderes da sua soberania. Essa violência é desarticulada no encontro do mistério sagrado que ele encontraria no rosto do seu filho. E ali, a dignidade pela primeira vez se constituiu, isto é, que o outro pudesse estar na sua glória de ser, sua “existência eterna”.
Som e ressonâncias
Cabe agora perguntar: o transbordamento de Antonio colocado em grito, e às vezes em fúria, seria isso a sonoridade do som, da ruptura que não poderia ser englobada na solidão de ninguém? É essa a sonoridade não convertível em identidade do eu, esfacelando o mundo da luz (de toda compreensão), introduzindo a alteridade para além do mundo? Como entender essa dor que não encontra ressonâncias em ninguém, mas apenas alarma e a necessidade de controlá-la? E como é que o grito de Antonio agora se transforma em crônica, em palavra?
O som, diz Lévinas (2015), surge por perturbação vertida no tempo, manifestando o que, por essência, não se manifesta: o misterioso do ser enquanto outro. A relação do som com o acontecimento de ser não é redutível: o som não substitui esse acontecimento e também não é a sua imagem, mas apenas ressonância. Ali temos a manifestação do mistério do outro. Quando ressoa, o rosto do outro emerge, e a palavra, ao surgir, faz ressoar a alteridade mesma do sujeito. A palavra ali não é apenas o nome do objeto, nem a imagem associada a ela, nem a ideia que veicula, mas sonoridade pura, verbo, quer dizer, a possibilidade de que um ser possa aparecer desde fora, ser outro, de se apresentar como outro, para que algo possa nos ser ensinado. A sonoridade do som em todo caso é símbolo, algo distinto de uma alegoria, de um signo ou daquilo que pretende significar. Na ruptura de continuidade que ela provoca (por perturbação) “descreve a estrutura de um mundo no qual o outro pode aparecer.” (LÉVINAS, 2015, p. 69).
Na sua dor, Antonio nunca desistiu, pelo contrário, o seu grito preservava não a existência, mas a sua insistência pela alteridade, fazendo se manifestar uma dignidade outra, o sentido levinasiano do caráter de santidade de toda criatura.
Significação
A expressão da palavra não é apenas o som, mas também significação. A questão da dor de Antonio é suscitada quando, no lugar onde tudo se abstrai, só resta significação, pura fábula, pura mentira, ali todos os significados são capturados e tudo ganha pura forma de hipocrisia, sem nada nem ninguém; a universalidade “fagocitando” toda singularidade. Em resposta a isso, só um grito mudo. Pura fábula, sem vestígios do som.
Antonio padecia em sua carne aquilo que Lévinas se esforçou por descrever: se encontrava frequentemente numa situação em que a existência não encontrava meios ou fraturas para ir além da situação imposta, na qual o estar lançado (Geworfenheit) detinha toda possibilidade de projetar-se.
Lévinas (2011, p. 73) se pergunta: “Qual o suporte na minha relação com o outro?” Em seguida afirma: “Penso que é o filho.” “A evasão está feita da relação com o filho.” Quer dizer, a evasão é entendida como o movimento de saída de “ser”, e essa evasão é que vai permitir que o pai possa ser externo ao filho, existir de outro modo que ser, existir de um modo pluralista, excessivo para toda compreensão. Na palavra, agora como alteridade, o som, “em lugar de manifestar a plenitude do existir, a expressa permitindo a algo distinto da subjetividade, o som se converte em signo.” (LÉVINAS, 2011, p. 73). O nós não aparece nu, nem como mistério, aparece como um “ele”, revestido de mito com relações que dão identidade, e a palavra evoca, assim, um signo. Nisso a palavra comporta uma mentira essencial, o tormento da palavra, mas necessária para tornar a alteridade possível, referida ao presente, sem poder sobre o outro, preservando o próprio mistério. Daí que a comunicação se dá “na descoberta arriscada de si, na sinceridade, na ruptura da interioridade e no abandono de qualquer abrigo, na exposição ao traumatismo, na vulnerabilidade”. (LÉVINAS, 2011, p. 68-69).
Considerações finais
O ofício de acompanhar pessoas em situação de sofrimento psíquico e/ou existencial por diferentes condições e contextos traz como possibilidade o testemunho e o reconhecimento do mal estar atual da sociedade. Assim, não nos propomos a fazer Filosofia ou Teologia, mas abrir reflexões na tentativa de contribuir para o campo da clínica. Não foi nosso intento fragmentar, aplicar e/ou até mesmo reduzir as discussões filosóficas do autor, mas pensar o fenômeno da dignidade outramente que ser.
Dedicamo-nos a um trabalho de escuta do som da palavra que nos antecede, o silêncio e a dignidade humana na contemporaneidade a partir da crônica de Antonio, intitulada O batismo de Joaquim. Pudemos reconhecer que a dignidade para Lévinas constitui-se por uma relação ética de alteridade, de acolhimento a partir da precariedade própria da condição humana e do apelo do outro. Antonio, em sua crônica originada da experiência radical de paternidade, nos apresenta um processo de recuperação da sua dignidade a partir do apelo dos rostos de seus filhos, que se irromperam como Outrem, assim como da evasão do seu ser, nas palavras de Lévinas.
Nesse sentido, observamos que o pensamento de Lévinas nos oferece um arcabouço de concepções sobre o humano que, sob a perspectiva da Psicologia e da Psicanálise, propiciam outras maneiras para se pensar a proximidade do outro (paciente), a partir de outra ética, no campo das relações inter-humanas, considerando-se particularmente as subjetividades implicadas nessas inter-relações.
Lévinas (2011) reconhece que anterior à metafísica e à ontologia, a Ética se funda como Filosofia primeira, trazendo em seu bojo a concepção de que a subjetividade humana no presente aponta para o passado imemorável de sua responsabilidade pré-originária pelo outro ente humano - Infinito. Na perspectiva levinasiana, a responsabilidade ética por outrem em sua radicalidade implica em reconhecer o “Não Matarás!”. A subjetividade é assim constituída pela sensibilidade e vulnerabilidade de um em relação ao outro, isto é, pela responsabilidade de um pelo outro e pelo ser para outro.
Em Lévinas (2011) a concepção de sensibilidade torna-se pura abertura, vulnerabilidade, a passividade mais passiva. Não se trata de uma epistemologia, significância da significação, mas um-para-o-outro que se faz signo. Lévinas aposta na dissimetria das relações comunicativas, que se dão na proximidade da pele a pele. Com isso, o filósofo nos oferece uma abordagem distinta dos modelos antropológicos que destituem o ser humano de sua sensibilidade. Isso é possível reconhecer no diálogo estabelecido entre a crônica de Antonio e as concepções de som, de linguagem, de dignidade e de subjetividade.
Nosso trabalho aponta para o quanto a Psicologia Clínica, bem como a Psicanálise, necessitam se aproximar das noções mais originárias dos fundamentos da condição humana. Na contemporaneidade, pessoas como Antonio buscam avidamente por um rosto de outrem que lhes possibilitem alteridade fundamental para destinarem suas existências. Desta forma, questionamos os modos de cuidar derivados da ontologia e de perspectivas excessivamente técnicas em que supervalorizam com frequência o controlar, o nomear, o entender para dominar.
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Referências
BERARDI, Franco. Fenomenología del fin: sensibilidad y mutación conectiva. Buenos Aires: Caja Negra, 2018.
LÉVINAS, Emmanuel. Transcendance et hauteur. Bulletin de la Société française de Philosophie. 56.3, 1962: 89-110.
LÉVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. (Publicado originalmente em 1964)
LÉVINAS, Emmanuel. De outro modo que ser ou para lá da essência. Tradução José Luis Pérez e Lavínia Leal Pereira. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011. (Publicado originalmente em 1974)
LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
LÉVINAS, Emmanuel. Escritos Inéditos 2: Palabra y Silencio y otros escritos. Madrid: Editorial Trotta, 2015.
PASCAL, Blas. Pensamientos. Buenos Aires: Aguilar, 1977.
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Notas
[1]Os nomes do paciente e da sua família são fictícios de acordo com as exigências éticas em voga, assim como o paciente assinou termo de consentimento informado para a publicação dos conteúdos aqui compartilhados.
[2]A questão da proximidade como posicionamento do eu-tu enquanto o outro concebido como irredutível ao mesmo tem duas implicações para Lévinas. Uma é religiosa: a imagem da proximidade de Deus entendida não como degradação da união, mas que tem valor em ambos, distância e proximidade, ao invés do que faz a Teologia, que, em busca do logos divino, reduz a proximidade de Deus à intelecção, abrindo caminho à divinização do ser humano. Mas temos também ali, na proximidade, o protótipo da coletividade, situada fora da intelecção e consequentemente também do poder e do não-poder. Essa passagem é fundamental para determinar a relação social fora da intelecção e do poder, a qual Lévinas entende como uma posição distinta do ato, que define como “estar em casa”, como forma de permanecer no interior de. (p. 66).
[3]Lévinas afirma que ele só pode definir Deus pelas relações humanas, pois é o humano que ele conhece, e que o seu ponto de partida é absolutamente não teológico, mas filosófico. (Lévinas, 1962: 110)