Aspectos sociais, políticos e governamentais da administração da vida e da morte
Social, Political and Governamental aspects of life and death administration

Simeão Donizeti Sass*
Dante Marcello Claramonte Gallian**
*Doutor em Filosofia pela UNICAMP. Docente do Centro de História e Filosoifa da Escola Paulista de Medicina - UNIFESP – SP. Contato: simeao77@gmail.com
**Doutor em História Social pela FFLCH--USP. Docente da Universidade Federal de São Paulo. Contato: dantemgallian@hotmail.com
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Resumo
O presente estudo é uma tentativa de elaborar um “diagnóstico do presente” acerca da pandemia de SARS-CoV-2 e de suas consequências. A filosofia política, ao longo de sua história, produziu inúmeras definições acerca do ato de governar. Apresentaremos mais uma. Tal tentativa terá como foco a compreensão da “arte de governar” como a dominação dos recursos estatais praticada em benefício de certas classes sociais em detrimento de outras. Para empreender tal compreensão, abordaremos os seguintes temas: 1- análise da pandemia de SARS-CoV-2; 2- a arte de administrar a vida e a morte na pandemia; 3- a pandemia como metáfora viva da “arte de governar”; 4- as soluções dadas no caso da pandemia e das enchentes no mesmo ano de 2020 no Brasil: contradição em ato; 5- o uso de recursos do governo federal para socorrer os oligopólios e o abandono da população pobre. Ao final, enunciaremos questões relativas ao problema político da valorização do saber científico e acerca das consequências da revalorização dos movimentos sociais.

Palavras chave:administração, genocídio, ciência.

 

Abstract
The present study is an attempt to elaborate a “diagnosis of the present” about the SARS-CoV-2 pandemic and its consequences. Political philosophy, throughout its history, has produced numerous definitions of the act of governing. We will present one more. Such an attempt will focus on understanding the “art of governing” as the domination of state resources practiced for the benefit of certain social classes to the detriment of others. To undertake such an understanding, we will address the following topics: 1- analysis of the SARS-CoV-2 pandemic; 2- the art of managing life and death in the pandemic; 3- the pandemic as a living metaphor for the “art of governing”; 4- the solutions given in the case of the pandemic and the floods in the same year 2020 in Brazil: contradiction in action; 5- the use of federal government resources to help the oligopolies and the abandonment of the poor population. At the end, we will enunciate questions related to the political problem of the valorization of scientific knowledge and about the consequences of the revaluation of social movements.

Keywords:administration, genocide, Science

Identidade narrativa

Opresente estudo é uma tentativa de elaborar um “diagnóstico do presente” acerca da pandemia de SARS-CoV-2 e de suas consequências. A filosofia política, ao longo de sua história, produziu inúmeras definições acerca do ato de governar. Apresentaremos mais uma. Tal tentativa terá como foco a compreensão da “arte de governar” como a dominação dos recursos estatais praticada em benefício de certas classes sociais em detrimento de outras.

Para empreender tal compreensão, abordaremos os seguintes temas: 1- análise da pandemia de SARS-CoV-2; 2- a arte de administrar a vida e a morte na pandemia; 3- a pandemia como metáfora viva da “arte de governar”; 4- as soluções dadas no caso da pandemia e das enchentes no mesmo ano de 2020 no Brasil: contradição em ato; 5- o uso de recursos do governo federal para socorrer os oligopólios e o abandono da população pobre.

A gripe espanhola ceifou milhões de vidas, com uma virulência muito mais violenta e descarada do que observamos agora com a pandemia do vírus SARS-CoV-2. O inusitado e desconcertante da atual situação, portanto, não está no fenômeno “pandemia” em si, nem na dimensão da sua letalidade, mas na forma como estamos vivenciando este fato em si bastante corriqueiro na história da humanidade. O inédito da atual circunstância está, sem dúvida, na dimensão global da presente peste e, claro, a possibilidade – ou melhor, a quase obrigatoriedade de acompanhar cada um dos seus movimentos (número de pessoas contaminadas, mortos, lugares atingidos) em tempo real, minuto a minuto. Estamos diante de um caso clássico em que o excesso de notícias e informações mais ajuda a confundir do que a esclarecer. Sem esquecer que o contrário também é verdadeiro: a ignorância quando é demais é a desgraça dos mortais. Nada como as situações extremas de crise, como aquelas que se vivem numa guerra, por exemplo, para revelar “como as pessoas são na realidade”. Conhecida como um dos cavaleiros do apocalipse, ao lado da guerra, a peste parece ter este mesmo poder: o de revelar não só as pessoas, mas as coisas (principalmente as dinâmicas sociais) como elas são na realidade. Ou seja, não é que as grandes crises, como as provocadas pela guerra e pela peste, mudem ou alterem as coisas ou as pessoas, antes elas revelam aquilo que elas já são, mas que em situações normais não são tão aparentes.

Uma dessas revelações, por exemplo, é que não obstante sermos todos iguais no quesito “humanidade” e, portanto, igualmente vulneráveis e igualmente agentes transmissores do vírus, o manter-se em casa parece ser mais necessários para uns que para outros – e aqui não me refiro à categoria “grupo de risco”. Para aqueles que têm uma casa (ou algo que corresponda à ideia que o senso comum categorizou como “casa”) e que possa, de alguma maneira, continuar exercendo, de maneira virtual, uma atividade produtiva, a quarentena não só é válida como obrigatória. Mas para aqueles que não se enquadram na categoria acima e cuja ausência pode colocar em risco o conforto ou a lucratividade dos que estão “isolados”, esses são tacitamente considerados “imunes” e não só podem como devem circular normalmente pelos meios de transporte coletivos e assim desempenhar suas funções profissionais nada remotas ou virtuais. É claro que cabe ressalvar os milhares de “isolados” (quero crer que sejam milhares) que, sacrificando o seu conforto e comodidade econômica, revelam um autêntico sentido humanitário, propiciando e garantindo, com segurança financeira, o isolamento daqueles que lhes prestam serviços impossíveis de realizar remotamente. Entretanto, infelizmente, se crises humanitárias como essa que estamos vivendo revelam virtudes inusitadas que eram desconhecidas para alguns, elas também acabam revelando muito mais vícios, como a ganância, a cupidez, o descaso, o egoísmo e o desprezo pelo próximo, que estavam apenas disfarçados e ainda mal disfarçados por muitos. E assim, como numa espécie de recriação onírica da realidade, vemos cenas descritas em clássicos da ficção científica, como a do exército de deltas e gamas sub-humanos que se deslocam em massa para servir os bem protegidos alfas e betas do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley (2014), se materializarem de forma assustadora no cotidiano das grandes cidades.

Neste mesmo sentido, é possível mencionar apenas mais um desses fatos desconcertantes que a atual crise revela: a disponibilização de recursos financeiros na casa dos trilhões de dólares ou euros para salvar empresas e ajudar milhares de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, mostrando que em momentos de excepcionalidade e de “ameaça extrema à vida humana”, as leis do mercado podem perfeitamente serem suspensas. Levando em consideração que mesmo em casos tão extremos os governos e, principalmente, o capital nunca optaria por um gesto suicida, é inevitável se perguntar onde se encontravam esses recursos quase ilimitados e porque apenas agora eles, como que por mágica, se tornaram disponíveis – considerando que a vulnerabilidade extrema de alguns setores da sociedade está longe de ser causada pela pandemia.

Todas essas e muitas outras revelações que a atual crise propicia se, por um lado, provocam essa sensação onírica de pesadelo e irrealidade, por outro, paradoxalmente, têm o poder de escancarar as más disfarçadas contradições e mazelas da nossa sociedade, tanto no âmbito das ideias e práticas institucionais, quanto nos valores e atitudes dos indivíduos. E, se num primeiro momento, é quase impossível prever como será o mundo após a crise, não deixa de ser interessante se questionar o que faremos no futuro próximo com todas essas revelações que estão emergindo no presente. Ao despertar do pesadelo da pandemia levaremos em conta as revelações que tivemos para postular uma nova realidade – como nos ensina Fiódor Dostoiévski (2007) na narrativa fantástica O Sonho do Homem Ridículo – ou simplesmente nos esqueceremos delas, preferindo atribuí-las à irracionalidade caprichosa do nosso inconsciente? Depois do pesadelo da peste, despertaremos para transformar o pesadelo da realidade ou continuaremos fingindo que estamos dormindo, acreditando que o pesadelo em breve se transformará em sonho bom, por foça de alguma magia onírica?

Albert Camus, em sua obra tão clássica como atual, A Peste (2017), nos leva a concluir que a verdadeira doença não é aquela transmitida por vírus ou bactérias, mas aquela que ocultamos e cultivamos em nossos corações: a ignorância e a indiferença em relação ao outro. Quantas crises ainda serão necessárias para acordarmos para essa realidade?

Análise da pandemia de SARS-CoV-2

A saúde coletiva é um dos melhores indicadores das políticas governamentais (VAITSMAN, J.; LOBATO, L.; ANDRADE, 2013). Desde o início da humanidade, as primeiras organizações sociais, os clãs e as famílias eram governadas por duas necessidades prementes: manutenção da vida e defesa contra a violência. Em suma, a “política” tinha por função administrar a vida e a morte. Política entendida como a governança da vida das pessoas de uma comunidade. Até a “economia”, enquanto “administração da casa”, visava tais necessidades fundamentais. O crescimento populacional tornou essa administração da vida e da morte muito mais complexa, mas não eliminou a sua dimensão estrutural.

O século XX notabilizou-se pela industrialização e pela tecnologia nunca antes vistas na história da humanidade. Tais programas político- -econômicos prometiam o paraíso na terra, ao menos para todos aqueles que aceitassem o jogo de dedicar-se sofregamente ao trabalho para que a roda girasse. Esse “promessismo messiânico” mostrou suas inconsistências desde os anos vinte. Em sucessivas guerras e crises econômicas que, na verdade, expressavam a essência do sistema, o século vinte assistiu ao maior processo de concentração de renda dos últimos séculos. Superando os regimes escravocratas e ditatoriais mais sanguinários, o capitalismo do século XX criou as condições para a verdadeira plutocracia que se revelou inconteste no século XXI. No início do ano de 2020 um fato imprevisto, mas evitável, revelou que as bases da política sempre exigem de seus governantes atenção aos dois princípios elementares: evitar a morte e promover a vida. Esse acontecimento foi a pandemia que teve seu início na China e que hoje se espalha por todo o planeta, a pandemia de corona vírus, ou SARS-CoV-2.

Esse acontecimento de repercussão mundial já desperta nos futurólogos previsões catastróficas. Fala-se na “maior crise social e econômica desde a Segunda Grande Guerra”, na necessidade de um novo “Plano Marshall para a salvação de países assolados pela pandemia”. Nas principais capitais do mundo toda a população está em quarentena, transformando em realidade os piores pesadelos dos filmes de ficção científica. O assassinato de George Floyd por um grupo de policiais transformou os Estados Unidos da América no centro dos protestos antirracistas. Tal revolta, que envolve toda a sociedade estadunidense, foi potencializada pelo abandono das populações desamparadas. Os mercados de ações mundiais estão em queda livre. A previsão de desemprego em massa amedronta a classe trabalhadora e a imensa população carente de todos os países que só aumentaram em número desde a implementação da globalização. Se a queda do muro de Berlim foi a derrocada do Comunismo Soviético a pandemia de SARS-CoV-2 parece ser a versão capitalista da mesma transformação.

Muitos especialistas comparam a pandemia ao caos econômico dos anos de 1929 e 2008 (RIBEIRO, 2020). A comparação é pertinente porque reforça a tese que desejamos defender no presente estudo. É muito interessante tomar esse caso como termo de comparação entre diversos países de diferentes estruturas governamentais e econômicas. As diferenças revelam os níveis assimétricos de desenvolvimento social e humano que nosso planeta abriga. Enquanto países europeus, asiáticos e do norte da América organizam verdadeiras operações de guerra contra a pandemia, em nosso país, a guerra política se dá entre os governadores dos estados e o governo federal. Os primeiros tentando isolar as cidades de possível onda de contaminação e o governo federal adotando outra estratégia. Enquanto alguns governantes alertam para os perigos de aglomerações e para a necessidade de isolamento total de populações vulneráveis, representantes do governo e da sociedade civil classificam a pandemia “onda passageira”.

Uma superficial análise das medidas adotadas no plano federal demonstra a inegável concepção contraditória da parte do governo, por um lado, e da sociedade, por outro. Primeiramente, houve uma certa passividade em relação aos alertas e sinais de perigo emitidos pelos países que foram atingidos pela pandemia. Países asiáticos e europeus, desde o início, alertavam para gravidade da situação. Emitiam alertas de fechamento de fronteiras, isolamento de pessoas idosas e grupos de risco como doentes com enfermidades endêmicas. Afirmavam que a velocidade de contaminação era exponencial. Alertavam para o caos no sistema de saúde. Mas, alguns países optaram por negligenciar o caos que se via crescer. Adotaram a estratégia de “imunidade de rebanho”, não escondendo o viés racista que orienta a administração de suas populações.

Governos de diversos países, contra todas as evidências científicas, negligenciam, por meio explícito de entrevistas de seus governantes, o caos que se instala. Em vários países vemos casos de conflito entre visões distintas. No plano econômico, medidas foram adotadas para salvar grandes empresas da falência, usando para tanto, recursos federais como isenção de impostos, taxas, uso de recursos de bancos públicos para financiamentos e decretação de leis trabalhistas que facilitam a demissão em massa de trabalhadores. Sem faltar a conhecida benevolência em relação ao sistema financeiro especulativo.

O contraste entre os benefícios e bondades direcionados aos mais ricos, ao grupo que denominamos privilegiados e as maldades praticadas contra os mais pobres e desvalidos revela, de forma clara e inquestionável, a política do “fazer viver e deixar morrer” praticada em diversos cantos do planeta. Até o momento, a pandemia conta com milhões de infectados. Dados oficiais, atualizados diariamente, apontam para o crescimento exponencial dos números. É fato que tais informações oficiais correm atrás da realidade, pois a estimativa é que para cada caso oficial existam muitos sem notificação. Fato que revela outro elemento essencial dessa “guerra de informações”: nas guerras e pandemias, a primeira a morrer é a verdade (ZAROCOSTAS, 2020a). A política de “administração dos dados” visa esconder a real situação em função de escamotear o genocídio que se avizinha. Genocídio que somente se torna mais explícito no caso da pandemia, mas que se repete diariamente no sistema de saúde em todos os países. E que, muitas vezes, sofrem sistemática política de cortes de verbas em seus sistemas, para direcionar, em muitos casos, o uso desses recursos para o pagamento da dívida estatal aos banqueiros nacionais e estrangeiros.

A política de administrar a vida e a morte na pandemia

Como afirmamos acima, a pandemia de SARS-CoV-2, que se alastrou pelo mundo e atinge o Brasil, é um caso exemplar do modo como a arte de governar a vida das pessoas se transforma em sentença de morte para quem não integra a casta de privilegiados (SANTOS, 2020b). Desde o início da pandemia, alguns países adotaram a estratégia de negar a gravidade da situação, replicando a postura dos Estados Unidos da América, que insistiu e insiste em se preocupar com os efeitos políticos da crise econômica que se alastra pelo planeta. As consequências desse negacionismo são evidentes: os mais pobres estão pagando com a vida tal política. Com a intenção de evitar que as medidas para diminuir o contágio galopante afetem os negócios, tenta-se fazer da salvação da economia a base de combate aos danos sociais. O que está por trás dessa estratégia é garantir que as mortes não atrapalhem os projetos de manutenção do poder, ao mesmo tempo que amenizam os efeitos deletérios sobre o capital especulativo. Desde o início da crise, o mercado de capitais amarga a maior derrocada em seus papéis, sendo o Brasil o país mais afetado com a baixa no valor das ações e a fuga de “especuladores”, que buscam seus países de origem como ratos abandonando o navio que afunda (BARBOSA, 2020c).

Se a crise é tratada como “histeria” pela casta dominante, que vê seu capital baseado no “rentismo” derreter como sorvete ao sol de verão, a área da saúde, em todos os países, oscila entre o enfrentamento da pandemia e o discurso de que o “alarmismo” não pode parar a economia. Em alguns países, proprietários de grandes redes de restaurantes e fast- -foods publicam vídeos conclamando a população a voltar ao trabalho, alegando que as mortes são um preço aceitável para que os negócios continuem a enriquecer seus donos.

No plano estrito da saúde pública, todas as áreas coligadas dedicam-se ao trabalho hercúleo de lutar contra o vírus e contra os governos que boicotam financiamentos de pesquisas, demonizam as universidades públicas, planeja o corte de salários dos funcionários públicos, autorizam aumento no preço de remédios em plena crise, incentiva as aglomerações rindo da “falsa gripe” e tantos outros procedimentos lunáticos.

Os governadores de estados e províncias, em todos os cantos do planeta, lutam como podem para evitar que a catástrofe seja ainda maior. Hospitais são improvisados em estádios de futebol e prédios públicos, quarentenas são decretadas e o comércio não essencial é fechado. Nesse caos produzido por aqueles que deveriam evitá-lo, os mais pobres e desvalidos são os primeiros a sofrerem as atrocidades. A quarentena imposta obriga famílias inteiras a conviverem em um espaço residencial que muitas vezes não abriga adequadamente seus ocupantes. As crianças sem aula e os idosos sem amparo se juntam aos adultos desempregados ou em férias forçadas. As condições sanitárias de imensos bairros residenciais das camadas mais pobres da população são, por si só, causas de doenças. O simples ato de lavar as mãos, que pode evitar o contágio, é impossibilitado por falta de rede de água tratada e de esgoto. As previsões de mortes entre os moradores dos bairros desvalidos assustam a qualquer ser humano mentalmente saudável (SANTOS, 2020b). Um exército incontável de pessoas que vivem nas ruas, sem lar, sem emprego ou assistência preconiza a catástrofe humana. A maior preocupação da parcela privilegiada da sociedade é com os saques que podem ocorrer em função da falta de emprego, de salário, de assistência médica, de alimentos que podem começar a faltar por vários fatores. O famoso “estado de sítio”, tão acalentado pelos mais radicais, pode ser usado para a combater os saques e surtos famélicos. Além de abrir a porta para o regime de força apregoado por apoiadores dos golpistas de plantão, como ocorre em alguns países europeus.

Diante da crise sem precedentes na história humana, os escolhidos para morrer já foram listados. Os pobres, os sem teto, os idosos abandonados, as crianças sem amparo, os desempregados, aqueles que serão demitidos, a imensa massa humana que somente é usada para girar a “roda da fortuna” e que será reposta quando a crise for superada. Afinal, o banquete canibal servido pela parte da sociedade que não é afetada sempre tem ao seu dispor incontáveis corpos nus. A política que se pratica cotidianamente nos hospitais, nas escolas, nos sanatórios, nas clínicas para idosos somente reforça a decisão pré-formatada. Como em todas as crises mundiais, como a que se passou nos Estados Unidos da América – quando o governo doou quantias estratosféricas para os bancos falidos, sendo os seus executivos os beneficiados – a catástrofe disseminada entre os pobres será, talvez, a oportunidade de ganhar mais com a “ajuda” do governo federal. A arte de governar, que inspirou incontáveis manuais de filosofia política, repete o roteiro escrito pelas encarniçadas lutas travadas nas selvas da humanidade.

A pandemia como metáfora viva da “arte de governar”

A experiência da pandemia vivida em perspectiva mundial se transformou na metáfora viva da arte de governar. Relatos vindos de todos os cantos narram situações que remetem aos piores tempos de barbárie. Representantes de governos assaltam aviões com máscaras e instrumentos médicos doados a outro país. Governos decretam que idosos serão deixados para morrer em função de terem menos chances que os jovens. Cadáveres são abandonados em suas casas, por dias ou semanas, sem qualquer cuidado. Corpos são levados em caminhões do exército para cremação. Planos de saúde e hospitais privados dificultam atendimentos de pessoas pobres. Países sem sistema público de saúde abandonam populações inteiras ao destino fatal. Somas astronômicas são direcionadas para a manutenção do sistema especulativo dos bancos enquanto hospitais carecem de suprimentos e os profissionais da saúde são contaminados ou morrem cumprindo seu dever. Suprimentos essenciais como máscaras, álcool, luvas sofrem aumentos de preços abusivos. Todos esses exemplos revelam que o verdadeiro negócio do capitalismo rentista é a morte. A corrida dos laboratórios farmacêuticos segue o caminho da fabricação de vacinas e não no barateamento dos ventiladores para os afetados com a doença. Até na hora da morte o lucro é ditador de estratégias. Quem será o primeiro a patentear a vacina? Quem ganhará rios de dinheiro com a “salvação” da humanidade? Todos esses fatos comprovam que o ser humano sofre do mal de ser usado pela própria espécie para que uma pequena parcela de seus representantes se aproprie da vida de milhares de seres humanos para enriquecer com a desgraça alheia.

A questão teórica e prática que se coloca com a situação é expressa pela polêmica instaurada entre os governos centrais e os governadores estaduais. Enquanto o primeiro, em muitos países, defende o fim do isolamento social e a retomada da economia para que o sistema econômico e o controle dos gastos públicos não sejam afetados, comprometendo o pagamento de dívidas públicas aos bancos privados; os governadores estaduais vivem o dilema de seguir ou não os protocolos de saúde, nacionais e internacionais, tentando salvar o maior número de vidas frente ao crescimento intenso dos casos fatais da pandemia. O cálculo que muitos governantes fazem é que a “conta” das mortes será debitada nos governos estaduais e nas prefeituras.

Tal situação expressa, na verdade, o verdadeiro dilema da filosofia política: governar para quem? (SKINNER, 2002; BACON, 2008; FOUCAULT, 2008a; SKINNER, 2009; FOUCAULT, 2010; FOUCAULT, 2010a; MAQUIAVEL, 2010b; SKINNER, 2010c; SKINNER, 2010d; SKINNER, 2012; RIBEIRO, 2020). Se a resposta for para a maioria da sociedade, a decisão recai na opção de usar os recursos do Estado para minimizar os danos sofridos pela calamidade, usando as verbas federais para o bem-estar geral. Se o governo se preocupar somente com a casta dominante, com a oligarquia que domina as estruturas políticas, governamentais e econômicas, a opção será pela retomada das atividades econômicas, expondo as classes mais desvalidas ao perigo de morte e salvando os lucros dos grandes conglomerados financeiros (ONU, 2020d; OXFAM BRASIL, 2020e; WELLE, 2020f; VEJA, 2020g).

As medidas adotadas pelos governos federais, até o momento, em muitos casos, indubitavelmente, apontam para a segunda alternativa. As medidas, até agora, liberam verbas aos bancos, salvam as companhias aéreas, o agronegócio, libera financiamento de bancos públicos para os mais abastados. No outro lado da corda, desse cabo de guerra, os mesmos governos federais publicam medidas facilitando a demissão em massa de empregados, sem qualquer política de amparo diante da hecatombe. Na Itália, segundo jornais, pessoas com mais de 80 anos foram deixadas em segundo plano (CARNEIRO, 2020h; BLASI, 2020i). Defendem, em outros casos, o retorno ao trabalho daqueles que ainda estão empregados, defendem o corte de salários dos trabalhadores. Algumas pessoas chegam a chamar de “covardes” aqueles que ficam “escondidos” em casa diante do inimigo, como se os cidadãos pobres fossem um exército a ser sacrificado na guerra pelo lucro dos oligarcas. Tal postura se assemelha aos ditadores mais sanguinários que preenchem a história da humanidade sempre pedindo o sacrifício da massa humana desvalida no altar do sistema econômico (FELLET, 2020j). A pandemia mostra, em todos os cantos de nosso planeta, que a humanidade vive a crise de ver-se no espelho, como a espécie que se alimenta de si mesma.

Em regimes políticos mais evoluídos como alguns dos países europeus e asiáticos, a postura é oposta (MAGENTA, 2020k). O estado se coloca como o grande financiador de um verdadeiro esforço de guerra, não pendido a vida dos pobres, mas oferendo a eles abrigo temporário, salário garantido durante a quarentena, financiamento ao sistema econômico, para que continue funcionando. As grandes empresas redirecionam sua produção para a fabricação de insumos e aparelhos hospitalares. A diferença radical de postura entre os governos reflete a abissal distinção entre o modo como cada um entende ser a função do Estado, da economia, da política, dos políticos, enfim, de toda a sociedade governada por um dado regime.

A pandemia de SARS-CoV-2 está revelando a todos os governados o tipo de regime real a que estão submetidos. Questão correlata a essa é a validade do voto depositado nas urnas em eleições presidenciais. Um jornalista, com muita propriedade, afirmou que “o voto não pode ser a aceitação de sentença de morte”. Essa frase resume bem o problema que estamos debatendo. Só há política se a vida de cada integrante da sociedade vale igualmente em relação a qualquer outro membro desta mesma sociedade. Se o governo não serve para a defesa da vida, qual será sua utilidade? A promoção do genocídio? Se o pacto social, como diziam os contratualistas, serve para a defesa da sociedade contra a violência, como justificar o “terrorismo de Estado” que lança sua população pobre aos braços da morte certa? Essa é a questão que levantamos.

As soluções dadas aos casos da pandemia e das enchentes, no mesmo ano de 2020, no Brasil: contradição em ato

É interessante comparar a pandemia de SARS-CoV-2 com as enchentes que assolaram o Brasil no início de 2020. Inúmeras cidades brasileiras, dentre elas as grandes capitais, sofreram com alagamentos, desabamentos, queda de barreiras, desabastecimentos. Como sempre ocorre nesses casos, a periferia das cidades, os bairros sem infraestrutura de saneamento e condições sanitárias, foram os mais atingidos. Milhares de pessoas ficaram sem sua casa, seus móveis, veículos, alimentos. Muitos pequenos empresários, trabalhadores autônomos, diaristas, desempregados foram solenemente ignorados pelas respectivas instituições governamentais. Num gesto grotesco e hipócrita, os mesmos governantes que zombavam do “discurso alarmista dos denunciadores do aquecimento global” debitaram a conta da destruição no fenômeno climático. Tal justificativa hilária tentava dissimular responsabilidades como se a manutenção de pontes, barragens, cursos de rios situados em meio aos centros urbanos, o planejamento urbanístico, as previsões de catástrofes e todos os aspectos que se relacionam ao cuidado com a vida das pessoas que vivem nas cidades não fossem dos próprios governantes que cobram impostos injustos, oferecendo serviços de “fim de mundo”.

Um aspecto importante para nossa análise é a dimensão econômica desse fato. Aos milhares de cidadãos comuns, alijados do comando e do poder, que perderam tudo, bens materiais, negócios e empregos, os governos estaduais, municipais e o governo central simplesmente enviaram seus votos de pronto restabelecimento. Algumas migalhas foram ofertadas para puro efeito propagandístico eleitoreiro. Como somente alguns representantes da casta oligárquica foram levemente atingidos, sofrendo com o fechamento de alguns restaurantes requintados, nada foi feito para ajudar os atingidos.

Outro aspecto digno de nota é o trabalho da grande imprensa, custeada com propaganda estatal. Durante os dias de catástrofe social, as imagens devastadoras percorriam os televisores e as telas dos celulares mostrando as cidades inundadas. Algumas reportagens mostravam a desgraça dos pobres, cujo aspecto sensacionalista fazia aumentar exponencialmente o faturamento dos oligopólios jornalísticos. Passados os dias de catástrofe, tudo foi esquecido, o drama das populações pobres desapareceu dos editoriais, “tudo voltou ao normal”. Entenda-se, os pobres assumiram seus prejuízos sem que o Estado fizesse algo para ajudar num momento de desamparo. No caso dos pequenos proprietários, nenhuma lei veio em seu auxílio.

Retomando o caso da pandemia, a morte, mais uma vez, tornou-se o tema central. A questão é: deixar morrer um certo número de pessoas ou salvar do fracasso a economia nacional? Fracasso este que já é dado como certo, não devido ao fator de saúde, mas aos arroubos fundamentalistas de economistas que só pensam em equilíbrio fiscal (AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS, 2020l). Uma vez mais, o lucro dos oligarcas pede aos pobres uma cota de sacrifício, neste caso, literal. Alguns empresários, em alguns países periféricos, gravam vídeos dizendo: morrerão 6 ou 7 mil pessoas, na maioria “velhos”, ou seja, “improdutivos que ganham a aposentadoria governamental”, mas, esse é o preço a pagar para que “o país não pare”. Em pleno século 21, vemos governos, que apoiam o “retorno ao trabalho” – leia-se: perigo real de contaminação e morte – para que a economia volte a crescer, isso tudo para que “os pobres não sofram ainda mais”. Se voltássemos o filme da história mundial, veríamos reis e tiranos ofertando crianças, jovens e adultos ao deus pagão Baal, usando os mesmos argumentos e justificativas. Os pobres devem morrer para que todos vivam bem. O infortúnio da peste deve ser redimido com o sangue dos pobres. Se a pandemia atinge os mais velhos, melhor, assim o governo pode aprimorar seu equilíbrio fiscal economizando com aqueles que deixam de “sobrecarregar” as contas estatais.

A questão específica da cifra dos mortos é reveladora. O que são 30 ou 60 mil mortos diante da roda da fortuna que não pode parar? Seria interessante perguntar: qual cifra realmente representaria um problema social? 15, 20, 150 mil ou 1 milhão de mortos? Qual seria a dimensão do genocídio que transformaria o normal em anormal? Outra questão poderia surgir: se a pandemia atingisse, por puro acaso, o mesmo número de representantes dos privilegiados, como a pandemia seria tratada? É a questão que fica sem resposta.

O uso de recursos dos governos federais para salvar os oligopólios e o abandono da população pobre

Andrew Ross Sorkin, autor do best-seller Too Big to Fail, publicado em 2009, narra como os grandes bancos dos Estados Unidos da América transformaram a catástrofe financeira mundial de 2008 em um imenso negócio lucrativo para eles próprios, usando recursos do governo federal. Nessa mesma catástrofe, milhares de cidadãos comuns perderam tudo, sem que o Estado fizesse nada para ajudar. Obras literárias como essas não fazem muito sucesso no Brasil, até hoje a obra não foi traduzida para o português.

A história dos “lobos de Wall Street” repete com mais glamour a tragédia sangrenta encenada cotidianamente por seus replicadores latino- -americanos. O caso narrado por Sorkin é, na verdade, o roteiro de uma história que se repete, cotidianamente, nos quatro cantos do planeta. E essa história enfoca tanto casos particulares de pessoas que vivem os fatos quanto o sentido geral de uma narrativa que guarda a sua universalidade. Talvez, esteja aí a “cientificidade” das narrativas reais. O caso concreto espelha a pluralidade dos casos humanos.

A revolta contra racismo que hoje sacode a sociedade estadunidense é a outra face da política de arrancar dos pobres cada centavo para entregar, na forma de “isenção de impostos”, aos ricos tudo o que for possível. A pandemia serve para exemplificar que a política de exclusão de camadas cada vez maiores da sociedade conduz ao processo de acirramento das contradições sociais (WOODWARD, 2018).

(In)conclusão

Ao final de nossas considerações acerca das relações possíveis entre a pandemia de SARS-CoV-2 e a oligarquia plutocrata, desejamos enunciar dois temas correlatos, o primeiro é o papel da Universidade pública nesse quadro. O segundo é mais teórico, a questão relativa ao modo como é possível classificar a “estratégia” de se conquistar e se manter o poder.

A Universidade pública brasileira, há muito tempo, tem sofrido o mais violento ataque dos setores que sempre desejaram acabar com o que resta de autonomia intelectual e soberania em nosso país (IOSCHPE, 2013a; CENTRO DE REFERÊNCIA EM EDUCAÇÃO INTEGRAL, 2019). Os ataques surgem de todos os lados. A lei de teto de gastos imposta aos órgãos governamentais tem reduzido drasticamente os recursos das Universidades Públicas, sejam elas federais ou estaduais. O ensino gratuito, de qualidade e socialmente referenciado passou a ser alvo de todo tipo de campanha difamatória. A reforma trabalhista atingiu os trabalhadores “terceirizados” e a reforma da previdência lançou milhares de profissionais no dilema de solicitar aposentadoria para não perder os benefícios prometidos 30 anos antes pelos respectivos governos ou permanecer na instituição governamental que mais perdeu recursos nos últimos tempos. Papel protagonista nessa campanha destrutiva vem da grande imprensa que desde a famosa “lista dos improdutivos” do início do governo Collor bombardeia sistematicamente a classe dos professores universitários e a Universidade Pública. A intenção é a privatização completa do ensino em todos os níveis. Sempre que se fala da “farra com o dinheiro público”, de ineficiência, “balbúrdia”, descalabro, burrice, incompetência, “privilégios absurdos diante da população pobre” e tantos outros impropérios, a Universidade Pública aparece no topo da lista.

Exemplos corriqueiros se multiplicam em número exponencial nas redes sociais. É possível afirmar hoje que nem a escola, nem a igreja, nem os meios de comunicação dos grandes conglomerados privados “fazem a cabeça”, formam a opinião pública da massa, da maioria da população. As redes sociais e seus aplicativos se transformaram na nova formadora do consenso, da opinião pública. Como dizia Sartre, nos anos quarenta, a comunicação se transformou “literalmente” na produção, na fabricação de mensagens (SARTRE, 2015). A “literatura” produzida e consumida hoje é a da mensagem curta, por vezes cifrada, em algumas linhas ou palavras. Geralmente acompanhada de imagens ou breves filmes. Tal comunicação rápida e de “fácil digestão” pelo grande público abriga a eficácia de ser replicada e propagada em um raio amplo e diversificado. Não se fala em veracidade ou confiabilidade da mensagem, somente se propaga o seu conteúdo, que, frequentemente, é mentiroso. Mas, essa verdadeira pandemia da mentira é importada da metrópole até em seus mínimos detalhes. O pacote vem pronto para o consumo, sem qualquer necessidade de elaboração local. Não temos notícias mentirosas ou falsas, temos “fake news”. E essa parece ser a intenção e, principalmente, a estratégia central da “guerra pelo controle da opinião pública”. A estratégia militar, de verdadeira guerra assimétrica, aposta no fato de que não há mais distinção entre o período eleitoral de campanha presidencial e o governo propriamente dito. A campanha é feita diariamente, sem respeito aos ditames das legislações eleitorais que estão absolutamente defasadas e cegas em relação aos novos procedimentos. O caso emblemático é o governo Trump.

O governo realiza campanha política e publicitária de forma ininterrupta. Essa estratégia político/militar tem seu maior expoente no governo atual dos Estados Unidos da América, mas se alastra pela periferia atingindo as colônias em diferentes níveis de contaminação. Se a lógica da campanha é a guerra, a mentira é sua arma mais potente. Exatamente porque o nível educacional e de informação da esmagadora maioria da população é o mais baixo possível, fruto de uma sistemática promoção da ignorância, a mentira, nesse sistema, é consumida como verdade. Estratégia praticada sistematicamente durante o reinado do nazismo que pregava: “uma mentira, repetida insistentemente, se transforma em verdade”.

Assim, temos hoje a política do circo sem pão, degradação da prática tirânica dos imperadores romanos. Podemos dizer que o circo se transforma em ritual de sacrifício humano quando edifica como fundo a peça teatral do genocídio. Em plena pandemia, em vários lugares de diversos países, carros dirigidos por propagadores do vírus saem em carreatas exigindo que os trabalhadores voltem aos seus postos para que a roda da fortuna não pare. Os mesmos que pedem para que os cordeiros proletários sejam imolados diariamente nos ônibus, metrôs, elevadores, salas, corredores, são aqueles que ficam em casa ao abrigo da segurança domiciliar. Defendendo “a salvação dos empregos” dos mais necessitados, lançam a população pobre ao risco de perder a vida ou a saúde.

Diante desse quadro, a Universidade Pública tem um papel central. Não só no trabalho de combate ao vírus, mas no processo de restauração da importância da ciência em um período de reativação das propostas totalitárias. Afinal, somente a pesquisa séria e árdua poderá inventar a vacina que salvará a espécie humana. Juntamente com o trabalho de reconstrução da pesquisa, do ensino e da extensão, é preciso combater o discurso e a prática da destruição da Universidade Pública, preconizada pela privatização e pela extinção dos financiamentos para as pesquisas. É imperativo que a voz da Universidade Pública seja propagada em todos os veículos de comunicação, para que ela não seja definitiva e irreversivelmente destruída. Com o que ainda resta de sanidade e racionalidade em nossa sociedade, é preciso que a Universidade Pública demonstre que ela é parte da solução do quadro de auto aniquilação no qual se encontra. As soluções que as ciências médicas, humanas e exatas, podem dar aos inúmeros problemas causados pela pandemia podem ser a ocasião para que a sociedade reconheça o valor da educação pública. Reconhecimento que, por vezes, chega da forma mais cínica, como em veículos de comunicação, que, após publicar centenas de artigos de seus “especialistas”, ministros, economistas, engenheiros e cientistas – destruindo a reputação dos servidores públicos, da Universidade Pública, de seus funcionários e alunos, classificando-os como “parasitas” (LUNA; NUNES, 2020o) do Estado – afirma que é preciso enunciar uma palavra de “admiração”, não ao conjunto das Universidades Públicas, mas aos seus “pesquisadores” (AGÊNCIA BRASIL, 2020n; LUNA; NUNES, 2020o). Os pesquisadores são lembrados nesses momentos, somente eles, como se não fizessem parte das Universidades Públicas. Os docentes, os técnicos-administrativos e discentes simplesmente são ignorados. O pão e circo dos tiranos romanos se degradou a tal ponto que a arena do coliseu se transformou em ruas, casas, colégios, hospitais, restaurantes, hotéis, enfim, em todos os espaços da sociedade. O coliseu se transformou na cidade, no estado, no País. A história política está repleta de príncipes novos usando a tirania em nome da manutenção do poder, sobretudo, para o “bem de todos”. Esses casos revelam que a plutocracia aprendeu a exercitar soberbamente a maldade, porém, esquecendo de “temperá-la” com a justiça social. Como sempre, aplicam a lição dos mestres pela metade, exigindo o sacrifício das vidas de seus súditos, sem, ao menos, lançarem aos esfomeados as migalhas de seus festins.

A última questão que enunciaremos, está diretamente ligada à primeira, e se dirige aos que se ocupam das teorias políticas. Muito se fala hoje acerca de uma nova ordem mundial que surgirá a partir das mudanças estruturais causadas pela pandemia. Como diz o jargão empresarial, “toda crise é oportunidade para mudanças e crescimento”. Ocorre que essa mentalidade serve para justificar, no plano do capitalismo rentista, cortes de empregos e de salários. A mudança sempre ocorre para que o lucro aumente. Os acontecimentos dos últimos tempos, com a organização de movimentos antirracistas e antifascistas revela que a sociedade está farta de falsas soluções para antigos problemas. As ações e estratégias elencadas no presente estudo, adotadas para combater a pandemia, demonstram que o poder estabelecido pretende, uma vez mais, debitar na conta dos pobres os prejuízos, privatizando os lucros e os “auxílios emergenciais” em proveito das grandes corporações. Uma mudança, contudo, se mostra. Se a pandemia globalizou os problemas, também inspirou e inspira movimentos de resistência. É essa esperança que surge como uma alternativa ao sistema sócio-político que mostra seu esgotamento. Somente a mobilização popular poderá instaurar uma nova sociedade. Toda verdadeira mudança pressupõe o movimento que surge da base social, daqueles que sofrem as consequências da administração estatal da vida e da morte. O povo nas ruas reivindicando seus direitos é o único remédio que realmente poderá curar a sociedade de sua letargia desumana.

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