A crise na educação brasileira: a falácia da Escola “sem” Partido
The crisis in Brazilian education: the fallacy of the School “Without” Party

Marcos Carneiro Silva*
Professor associado da Faculdade de Educação (UFRJ), pós doutoramento no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Integrante do Programa de Pós graduação em Educação da faculdade de Educação da UFRJ, membro do Laboratório de Filosofia Contemporânea da UFRJ e do Labec, na faculdade de Educação e vicelíder do GT Pensamento Contemporâneo da ANPOF. Contato: macs2006@gmail.com
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Resumo
O texto tem como objetivo identificar as origens do movimento denominado Escola sem Partido e o ambiente político profícuo em que se instalou e suas consequências para o sistema educacional e político no Brasil. Para tanto, pretendo fazer uma breve síntese do mapeamento das suas correntes ideológicas, analisando como se alastrou nas nossas redes de ensino, quais as suas pretensões e as possíveis formas de resistência. A tentativa de realizar uma diagnose do presente depende muito da habilidade do autor, mas sigo na intenção foucaultiana de não perder a sensibilidade ao intolerável e acho esse, um caso bem emblemático. Nesse sentido, contarei com o suporte conceitual, não só de Michel Foucault, mas também de Hannah Arendt (inimigo objetivo, banalidade do mal, vazio de pensamento). Verificamos que os pressupostos da Escola “sem” partido, baseados numa educação neutra, promove a irreflexão e o vazio do pensamento. O risco identificado, caso nada seja feito contra essa corrente retrógrada, foi a produção de deficientes cívicos.

Palavras chave:Escola “sem” partido. Banalidade do mal. Vazio de pensamento.

 

Abstract
The text aims to identify the origins of the movement called School without Party and the fruitful political environment in which it was installed and its consequences for the educational and political system in Brazil. To this end, the work performs a mapping of ideological currents, analysing how it spreads in our education networks, what are its claims as well as possible ways of resistance. To attempt to carry out a diagnosis of the present, is necessary to depend on the author’s ability, but I follow in Foucault’s intention not to lose sensitivity to the intolerable. Also, I think this is a well emblematic case and, in this sense, I will have the conceptual support not only works by Michel Foucault, but also by Hannah Arendt (objective enemy, banality of evil, emptiness of thought). We found that the assumptions of the School “Without” Party, based on a neutral education, promote lack of reflection and emptiness of thought. The identified risk, if nothing is done against this retrograde current, is the production of civic disabled persons.

Keywords: School “without” party. Banality of evil. Emptiness of thought.

Introdução

Ocontexto educacional brasileiro encontra-se num momento, no mínimo, preocupante. A nossa educação sempre conviveu com crises e sua história foi demarcada com mudanças e ou reformas de acordo com os interesses políticos vigentes, entretanto, convivemos agora com outras e mais ardilosas tramas. Revisitando a obra de Bourdieu e Passeron, A Reprodução (1970), talvez seja possível uma referência inicial para nossa análise, uma vez que os autores denunciaram, logo no título, a função reprodutora da escola, subserviente aos sistemas de governo dominantes. A ideia base do livro era que a escola deveria sempre se adequar aos ditames de qualquer governo e, para tanto, contaram com teses bastante conhecidas no meio educacional. Porém, o que visualizamos agora é um quadro um tanto inusitado e bastante perigoso que confesso que foi, inicialmente, negligenciado no seu surgimento. Muitos, entre os quais eu me incluo, acharam que esse movimento, denominado Escola sem Partido (ESP), seria mais uma corrente isolada e sem muita sustentação jurídica pra seguir em frente, uma vez que nossa constituição (Art. 205) e a lei maior da educação brasileira (Lei de Diretrizes e Bases – 9394/96) garantiriam uma autonomia pedagógica que o inusitado movimento insistia em atacar. Pois bem, águas passaram e moinhos foram remexidos e agora, ou melhor, há algum tempo (2004) estamos em meio a ataques sistematizados aos professores e aos sistemas de ensino municipais, estaduais e federais, com consequências bem desastrosas. Minha ideia nesse artigo será identificar as origens desse movimento denominado Escola sem Partido e o ambiente político profícuo em que se instalou e suas consequências para o sistema educacional e político no Brasil. Para tanto, pretendo fazer uma breve síntese do mapeamento das suas correntes ideológicas, analisando como se alastrou nas nossas redes de ensino, quais as suas pretensões e as possíveis formas de resistência. Para me auxiliar, no alcance desses objetivos, contarei não só com Michel Foucault, mas, principalmente, com o suporte conceitual de Hannah Arendt (inimigo objetivo, banalidade do mal, vazio de pensamento) e me desculpem se, propositalmente, ou por pura inabilidade, forçarei alguns conceitos ou abusarei de algumas torções. A difícil tentativa de realizar uma diagnose do presente depende muito da habilidade do autor, mas sigo na intenção foucaultiana de não perder a sensibilidade ao intolerável e acho esse, um caso bem emblemático.

O panorama político/educacional que propiciou as bases insólitas da Escola “sem” Partido

Podemos dizer que foi no ano de 2004 que surgiu o movimento denominado Escola sem Partido. Sua origem pode ser demarcada por um fato pitoresco: um advogado, pai de uma estudante do ensino fundamental, sentiu-se ofendido quando o professor de história comparou Ernesto Che Guevara, a São Francisco de Assis. Indignado, o bacharel em direito decidiu reunir outros responsáveis para agir contra a doutrinação de esquerda nas escolas. Em 2014, tivemos outro quadro marcante quando o movimento recebeu maior destaque e grande adesão, pois, um deputado estadual e um vereador (irmãos), ambos da cidade do Rio de Janeiro, decidiram propagar o movimento e transformar suas pautas em projetos políticos, incluindo, agora, a empreitada contra o que denominaram de “ideologia de gênero” e “marxismo cultural”. O movimento ampliou-se e ganhou dimensão nacional e, em julho de 2016, conseguiu submeter projetos de lei através de vereadores, de deputados estaduais, além da Câmara dos deputados federais.

Quando investigamos as afiliações daqueles que possuem conexões com o Escola sem Partido percebemos uma forte ligação com o Instituto Millenium, entidade formada por intelectuais e empresários diretamente vinculados ao pró-impeachment da presidente Dilma Roussef e a campanha do atual presidente. Esse grupo sempre esteve empenhado em divulgar valores do neoliberalismo, juntamente com igrejas evangélicas e com diversos políticos representantes desta categoria. Lembremos que a maioria dos deputados ao declarar seu voto a favor do impeachment da presidente, invocou Deus, a família e a pátria. As participações do Instituto Millenium podem ser também verificadas em eventos como no Foro de Brasília e no Instituto Liberal, da mesma forma que possuem fortes laços com militantes do Movimento Brasil Livre (MBL) e o extinto Revoltados Online, grupos disseminadores da Escola sem Partido. Percebe-se claramente que mesmo se auto intitulando “sem partido” ou “apartidários” esses grupos estão intimamente ligados às correntes mais conservadoras do país, com filiações aos partidos que defendem os mesmos princípios retrógrados. É falso afirmar que essa escola não tem partido e, por conta disso, passamos a utilizar a denominação Escola “sem” partido.

Gaudencio Frigotto (2017) fez uma análise bastante extensa sobre as tendências e os possíveis riscos da concepção da Escola “sem” Partido (ESP). Estes adeptos ao pensamento controverso já tinham se manifestado sob a égide da Escola “sem” Partido, com o lema “meus filhos, minhas regras” e seus militantes propuseram restrições aos professores de toda ordem. Entretanto, o seu ideário nunca foi original, mas transplantado do projeto Campus Watch e no Creation Studies Institute (ambos dos Estados Unidos da America). Essas organizações influenciaram a Escola “sem” Partido em suas diretrizes e em seus métodos de ação, como a orientação, aos responsáveis e aos estudantes norte-americanos, de denunciar os professores que falarem sobre perspectivas de gênero, multiculturalismo, racismo ou sobre as questões palestinas. Os conceitos do homeschoolling e a no indoctrination também foram igualmente importados e são as usados como referências da Escola “sem” partido. A ideia do homeschoolling eu vou passar de modo muito breve, pois trata-se de uma pregação ao retorno do ensino doméstico em que as crianças seriam educadas em casa, pelos seus próprios pais ou responsáveis, sem a intervenção da escola. Temos alguns poucos representantes no Brasil, mas não são significativos, até porque a legislação brasileira, ainda não permite tal prática, mas, nos Estados Unidos da América têm fortes adeptos e servem, entre outros objetivos, para as desqualificações dos professores e dos sistemas de ensino. Gostaria de focar na questão mais incisiva que é a do no indoctrination, numa tradução livre, a não doutrinação dos alunos pelos seus professores. Esse é ponto nevrálgico da Escola “sem” Partido. Há uma associação clara ao conceito de inimigo objetivo, quais sejam: os “petralhas”, “esquerdistas”, “comunistas” ou a qualquer pensamento diferente, ou melhor, a qualquer pensamento dissonante da atual ideologia governamental. Hannah Arendt (1989) caracterizou inimigo objetivo como uma das formas em que o totalitarismo utilizou para veicular sua propaganda destruindo velhas instituições e criando novas. Para tanto, a criação de inimigos nacionais tem a capacidade de regular os sentimentos diversos existentes em uma única corrente de ódio e medo que dariam as massas uma coesão e força de pertencimento a uma nova organização viva. Nesta perspectiva “de tudo é possível” se instaura o terror e o Estado Totalitário avança e amaça a todos. Vejam bem, até o Movimento Brasil Livre (MBL), citado anteriormente, que deu sustentação e alavancou as manifestações nas ruas pelo atual governo, já foi acusado de ser de esquerda. Na visão hegemônica governamental há um “aparelhamento” das escolas, não apenas das universidades, mas de todo o sistema público de ensino, dominado por professores “comunistas” que estão fazendo a cabeça das nossas crianças e adolescentes que precisa ser imediatamente denunciado e interrompido. É importante ressaltar que a identificação deste “aparelhamento” não se reduz apenas ao sistema de ensino, mas é citado toda vez em que o governo discorda de algum indicador, anunciado por uma instituição oficial (por exemplo: taxa de desemprego, desmatamento na Amazônia etc.). A denúncia faz parte da estratégia da Escola “sem” Partido e existem manuais de procedimentos para identificar e denunciar tais professores e, infelizmente, tivemos várias denúncias em diversas regiões do país. A perspectiva de uma educação neutra em que o professor não pode, em hipótese alguma, tomar nenhum partido é a falácia que mantém o discurso fácil e sem fundamentação coerente dessa corrente. Aliás, para os adeptos dessa concepção, também a ciência deve ser igualmente neutra. A neutralidade pretendida é por si só uma ficção produzida por essa facção. Existe uma fantasiosa neutralidade puritana pretendida que beira o absurdo. Porém, não basta o ataque constante ao sistema de ensino e a desqualificação dos professores, torna-se necessário, também, sufocar e eliminar o inimigo. O desmonte das agencias de financiamento das pesquisas no país (Capes e CNPq) é inédita, acredito que nem no tempo da ditadura militar tínhamos esse desmantelamento. Só pra exemplificar: a Empresa brasileira de pesquisa agropecuária (Embrapa), uma empresa pública criada no regime militar para dinamizar a agricultura, através de estudos científicos, está sendo igualmente asfixiada com cortes abruptos de verbas que inviabilizará seu financiamento em pouco tempo. Talvez o conhecimento científico produzido por essa empresa pública fosse incompatível com os interesses daqueles que liberaram, a toque de caixa, todo e qualquer tipo de agrotóxico. Ou seja, o conhecimento científico foi também eleito como inimigo objetivo. Podemos perceber que ensino e pesquisa não podem interessar a essa governamentalidade. O processo de extinção dos fóruns de debates educacionais, em que as categorias podiam se manifestar, já foi iniciado no governo de Michel Temer, mas o desmonte dos espaços de diálogo e reflexão, nada gradual, do atual governo é espantoso e sem precedentes. Podemos citar, como exemplo, a extinção, em 2019, da Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (SASE) responsável pelo acompanhamento do Plano Nacional de Educação (PNE). É possível perceber que em vários aspectos o conceito foucaultiano de razão de Estado pode ser revisitado e outros elementos como inimigos e racismo de estado e, mesmo até, golpe de estado, devem ser reconsiderados (FOUCAULT, 2005, 2008). Foucault nos relembra que as razões que a razão do Estado pode reivindicar serão mais poderosas se forem igualmente menos democráticas. Sabemos também que as artes de governar são perpassadas por interfaces de exceção (os rebeldes, os anormais, as minorias, os miseráveis etc.) e que os mecanismos de inclusão/excludente estão por toda parte, entretanto, o que estamos observando é que a sutileza das estratégias contemporâneas está sendo subsumida por atos grotescos. E isso, nos preocupa: uma insensatez somada e uma estúpida insensibilidade nessa “nova” governamentalidade.

A falácia do conhecimento neutro e a impossibilidade do pensar sem reflexão crítica

Iniciei chamando para nossa conversa Bourdieu e Passeron (1970), pois suas teses sustentam que o papel da educação em todo governo é dar apoio a classe dominante e mais, reproduzir seus ideais. Dessa forma, um governo que se inicia elege os princípios da educação que almeja fomentar, ou seja, ESP. Nesses tempos sombrios, parece que vivemos em meio a uma derrocada de preceitos democráticos e respiramos ares totalitários por todos os cantos. São desmontes sistemáticos nos sistemas educacionais e científicos e se formos enumerar, precisaríamos, sem dúvida, de mais artigos. Sem contar os ataques a todas as políticas afirmativas, ao meio ambiente (farra dos agrotóxicos e o ataque às reservas indígenas) e toda gama de conquistas históricas que a população, principalmente, mais pobre, demorará muito tempo pra reconstruir. É justamente nesse cenário caótico que a educação pública, não só ela, mas, principalmente ela, sofre ataques sistemáticos. Mesmo antes do resultado das eleições presidenciais, universidades foram invadidas e a autonomia de cátedra, de pensamento e de expressão foram vilipendiadas. Era o prenúncio do que viria, mas chegou de chofre, como por exemplo, o corte de verbas denominado de “contingenciamento”, mas que inicialmente foi destinado apenas às universidades que promoveram “balbúrdias” (como, por exemplo, a Universidade Federal da Bahia e a Universidade Federal Fluminense).

Nesse momento, acho que as análises de Hanna Arendt são mais do que necessárias, as considero essenciais. Aspectos da sua filosofia política, sem dúvida, devem nos ajudar na diagnose dos nossos tempos sombrios em relação ao tema em tela. Obras como As Origens do totalitarismo (1989) e Eichmann em Jerusalém (1999) podem nos auxiliar numa diagnose mais precisa deste nosso momento político. Porém, não pretendo fazer uma descrição do conceito de banalidade do mal e nem as barbáries cometidas por Eichmann (e tampouco entrar na sua polêmica), mas acrescentar outra obra, A vida do espírito (1995), em que Arendt estabelece a relação entre banalidade do mal e o vazio do pensamento. Parece-me interessante enveredar por essas análises no tocante ao momento presente e a temática educacional. A perplexidade de Arendt diante das atrocidades de Eichmann, no seu julgamento em Jerusalém, que não revelaram o réu, nem como um monstro nazista, nem como um ser odioso e nem mesmo estupido, mas um funcionário que cumpriu seu papel burocrático, com a temível irreflexão de seus atos. O que se revelou no depoimento daquele acusado foi a sua superficialidade e a sua incapacidade de pensar. Para Arendt, Eichmann era uma aberração que nunca havia experimentado as exigências do pensamento reflexivo diante dos acontecimentos. A questão que Arendt anuncia e se propõe a aprofundar é a ausência do pensamento e sua possível relação com os atos maus (DUARTE, 2000). No primeiro volume da obra A vida do espírito a filósofa procura compreender o estatuto do pensamento, entretanto, a sua motivação é o julgar. No clássico ensaio Pensamento e considerações morais, Arendt está motivada pelo caso Eichmann, e questionava: “Será que nossa capacidade de julgar, de distinguir o certo do errado, o belo do feio depende de nossa capacidade de pensar?” (ARENDT, 1993, p. 146). Arendt não concorda com as tradicionais explicações sobre o que motiva o ato mau (as patologias psicológicas) e elabora uma possível alternativa para essa forma de agir que seria a ausência do pensamento, ou a irreflexão dos atos (DUARTE, 2000). Nesse ponto, Arendt analisa a relação entre o pensamento e o juízo. A sua perspectiva é que a incapacidade de pensar oferece um ambiente propício para o fracasso moral. A tese de Arendt é que o ato de pensar poderia condicionar os seres humanos a não praticar o mal. Dessa forma, o pensamento, carrega em si mais possibilidades do que seguranças ou determinações. Minha perspectiva, neste texto, foi exatamente a de denunciar os princípios falaciosos da ESP e de relacionar a banalidade do mal, com o vazio do pensamento e a necessária e, mais do que nunca, a urgente tarefa de uma educação crítica/reflexiva a contrapelo do que determina essa concepção enganosa.

Contudo, continuemos com a linha de pensamento de Arendt enfocando na sua questão: O que é o pensar? (ARENDT,1995, p. 98). Se a tradição metafísica apresentava o pensamento como demarcado pela quietude, pela contemplação e pela passividade, afirmando que pensar é estar fora do mundo, a perspectiva arendtiana, reconhece (ao tratar da passividade do pensamento) o polêmico tema da incompatibilidade entre o agir no mundo e o ato de pensar. Entretanto, pretende investigar o pensamento como atividade, ou melhor, como a mais pura atividade humana. O pensamento é uma saída sim, mas não um subterfúgio do mundo. Essa saída do mundo seria a capacidade de negar o cotidiano, uma descontinuidade própria da vida humana, uma parada, uma re-flexão, o ato de voltar-se sobre os acontecimentos a fim de re-significa-los. A atividade de pensar significa sim um rompimento com o mundo, mas não é hipótese alguma, uma atividade de outro mundo, mas deste mundo, não tendo a menor pretensão de trocar esse mundo por um melhor, mais puro ou mais profundo (ARENDT, 1995), como erroneamente pretende os arautos do puritanismo educacional. A propósito, o pensamento para Arendt não é passividade, mas a pura atividade humana, nunca é a inação, mas o máximo da ação. Não é fuga, nem abandono, mas um distanciamento que possibilita reaproximar-se do objeto pensado com um olhar totalmente revigorado. O estranhamento e não a passividade ou a “neutralidade” é que nos faz pensar. Ou melhor: pensar e estar inteiramente vivo são a mesma coisa, e isto significa que o pensamento tem sempre que começar de novo; é uma atividade constante que acompanha a vida e tendo relações com conceitos como justiça, felicidade e virtude, que nos são oferecidos pela própria linguagem, expressando o significado de tudo o que aconteceu na vida e nos ocorre enquanto estamos vivos (ARENDT, 1995). Então, pergunto: Como pensar uma educação que não seja reflexiva? Como a ESP poderia subtrair o pensamento reflexivo da educação? Afinal, suas teses não seriam justamente o embotamento do pensamento reflexivo? Acredito que sim e, por esse motivo, é preciso combater diuturnamente essas teorias falaciosas e desfazer as continuidades irrefletidas existentes nessa teatralização, nesse mundo de clichês. Uma educação crítica (na perspectiva arendtiana, de valores) revelaria, assim, a crise do pensamento retrógrado da ESP, garantiria a autonomia do âmbito do pensamento enquanto campo específico da vida do espírito e apontaria as possibilidades de uma educação que se relacione com o pensamento reflexivo.

À guisa de uma conclusão...

Acredito que a educação crítica ou educação em valores, como anuncia Arendt, deve ajudar a desfazer as continuidades irrefletidas existentes entre o mundo cotidiano e o mundo dos clichês da ESP, no qual poderíamos, com a perda da sensibilidade ao intolerável, conviver. Uma educação crítica, então, seria capaz de incorporar na sua prática, tanto uma denúncia à banalidade, enquanto mal sem motivos, quanto um anúncio das responsabilidades diante do estranhamento necessário com o mundo cotidiano. A perspectiva inovadora de Hannah Arendt, sobre o estatuto do pensamento, nos ajuda na compreensão da banalidade do mal, que uma educação reflexiva, ou em valores, deve enfrentar. Entretanto, no entendimento de Arendt o pensar não tem caráter fundador, não inaugura um marco normativo, mas apenas estabelece uma preparação. O pensamento é possibilidade indefinida, incerta e sem garantias. E mesmo o pensamento lidando com o invisível e sendo fora da ordem, ele é, na sua busca incessante de experiências significativas, uma importante arma na luta contra os critérios preestabelecidos e, do mesmo modo, contrário aos preconceitos e autoritarismos. Dessa forma, o pensamento pode deter a possibilidade de favorecer um ambiente que desenvolva a capacidade de fazer o mal e, assim sendo, fundar um ambiente propício para a educação em valores.

É importante observar os limites e as diferenças que Hannah Arendt apresenta entre pensar e conhecer. Conhecer é buscar a verdade pelo intelecto e nessa empreitada os resultados podem ser acumulados, enquanto conhecimento adquirido. O pensamento não pretende buscar a verdade; ele lida com os significados, com os sentidos atribuídos ao mundo. O pensamento não busca a verdade das coisas, mas o que elas significam para nós (ARENDT, 1995). Arendt pretende marcar uma distinção entre pensar e estar no mundo, ou seja, entre pensar e dominar o mundo pelo conhecimento meramente técnico instrumental que é justamente o que prega a ESP. O pensamento é uma possibilidade que se caracteriza por ir além da atividade de conhecer, de manipular, de instrumentalizar o mundo. O conhecimento deixa um rastro, acúmulos, entretanto, podemos dizer que o pensamento nos deixa de mãos vazias; ele não acumula significados, uma vez que os significados são experiências únicas e singulares. Então, o pensamento está liberado dos interesses da acumulação, tendo como finalidade ser significativo e desvinculado da chamada verdade neutra e objetiva. Ao contrário do que prega a ESP uma educação não deve estar preocupada apenas com conteúdos moralizantes a serem incluídos no currículo escolar, mas uma educação que se queira crítica reflexiva, ou moral, na perspectiva arendtiana, deve apostar (sem garantias, certezas ou neutralidades) no pensamento enquanto exercício de descontinuidade com o cotidiano e significação do mundo. Esse ponto de vista desinteressado quer nos remeter para um novo olhar sobre o mundo, e não para critérios morais ou normativos que surjam apartados desse mundo. Esse olhar desinteressado do pensamento significa que ele não é código de conduta, nem critério de conhecimento ou de manipulação para a vida prática. O pensamento, na perspectiva arendtiana, não é normativo, mas apenas possibilidade. Ao contrário, a insanidade da ESP avança no território que desemboca na intolerância e da eliminação dos divergentes que nos remetem aos princípios do pensamento único. No território sombrio da ESP há a imposição do que é ciência, com a única intenção de delimitá-la pra finalidades específicas. Para tanto, é mister desqualificar os pesquisadores para, logo em seguida, substituí-los (caso do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Ela quer estabelecer as fronteiras do que considera conhecimentos válidos, sempre alardeando a ameaça do pensamento crítico e reflexivo estar a serviço de um partido e de uma opção ideológica ou de um sistema de governamento inimigo. Esse terrorismo de Estado é usado para criminalizar as atitudes políticas dos adversários para, em seguida, condená-los e, no limite, eliminá-los. A pedagogia do conflito, do diálogo crítico e reflexivo são substituídas pelo estabelecimento de uma nova função pedagógica que é a da desconfiança, da intolerância e da delação. A ESP está a serviço do pensamento totalitário, da xenofobia e da rejeição às diferenças de gênero, de etnia, de classes e de tudo que pode expressar a divergência, da pluralidade, do livre pensar e agir.

Arendt nos apresenta o pensamento como reconciliação com o mundo, ao mesmo tempo em que reconhece algo inegável da tradição metafísica: o estatuto do pensamento tem como característica a suspensão do mundo. A retirada e reconciliação com o mundo e, quem sabe assim, seja possível repensar a educação, pois, educar para e no pensamento é colocar-se no campo das possibilidades, e não das certezas. Como nos diz Arendt, uma educação em valores poderia também ser entendida como a possibilidade de se expor ao vento do pensamento (ARENDT, 1995), tal como fazia Sócrates. Todos nós deveríamos desejar a exposição a esse vento, para que assim ele possa bagunçar nossas pequenas certezas, nos sacudir e abrir outras possibilidades e novas incertezas. Imaginem esse caminho de incertezas na perspectiva bizarra da ESP. Mas, é por isso mesmo, que o pensamento deve interromper todas as nossas atividades cotidianas, deixar-nos inseguros quando percebemos que duvidamos de coisas que antes nos davam certa segurança irrefletida diante da banalidade do mal. Essa banalidade está concretizada em inúmeros casos de injustiças, violências e intolerâncias desses tempos sombrios e acredito que todos nós estamos diante de um grande desafio, qual seja: educar para e no pensamento e, consequentemente, para e em valores distintos dos que estão sendo disseminados por esse retrocesso que é a ESP. Educar na perspectiva do pensamento e ressignificar o mundo que vivemos é necessário e urgente, ou poderemos correr o risco de produzir apenas, como nos alertou Gaudêncio Frigotto (2017), “deficientes cívicos”!

Referências

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ARENDT, Hannah. Pensamento e considerações morais. in ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. Trad. Antonio Abranches. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993, p.146-150.

ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. Antonio Abranches. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BOURDIEU, P.; PASSERON, J. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora S/A. 1970.

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DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FRIGOTTO, Gaudêncio. A gênese das teses da Escola “sem” Partido. in FRIGOTTO, Gaudêncio. (Org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017, 17-34.