Pequenos partidos e novas estruturas políticas nas democracias
Small parties and new political structures in democracies

Guilherme Castelo Branco*
* Doutor em Comunicação e Professor Titular do Departamento de Filosofia da UFRJ. Contato: guilhebranco@gmail.com
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Resumo
Os partidários da vida comunitária e da democracia, há dois séculos, tem procurado realizar, malgrado as experiências das diversas ditaduras e regimes totalitários, esforços em favor da gestão democrática das sociedades. A pergunta que se faz, diante da história, é pertinente: será que, de fato, o mundo contemporâneo realiza, de modo crescente e permanente, uma vida democrática feita através de ampla participação popular, em todos os aspectos? Se a democracia, como exercício popular pode existir, em muitos casos, com ampla participação coletiva, qual a razão das eventuais e constantes destituições da vida comunitária e democrática em todo o mundo? A pergunta que fazemos, neste trabalho, diante do quadro difícil de analisar, é o da possiblidade e força dos pequenos partidos na vida política na atualidade. Existe alguma certeza sobre o lugar dos grandes partidos na vida democrática? As propostas dos pequenos partidos podem modificar as regras do jogo democrático?

Palavras chave:democracia; partidos políticos; atualidade; filosofia política

 

Abstract
The supporters of community life and democracy, for two centuries, have sought to carry out, in the curse of the experiences of the various dictatorships and totalitarian regimes, efforts in favor of the democratic management of societies. The question that is asked, in the face of history, is pertinent: does the contemporary world, in fact, realize, in a growing and permanent way, a democratic life made through broad popular participation, in all aspects? If democracy, as a popular exercise can exist, in many cases, with broad collective participation, what is the reason for the constant destitution of democratic life around the world? The question we ask, in this paper, in view of the difficult situation to analyze is think the possibility and strength of small political parties in political life today. Can the propositions of small parties change the rules of the democratic game?

Keywords:democracy; political parties; actuality; political philosophy

Vamos começar com uma alegoria tirada de romances. De diferentes origens e alcances.

Uma passagem do romance italiano O Leopardo, de Lampedusa, é demasiado conhecido, quando um sobrinho do personagem principal, Don Fabrizio Solina, nobre siciliano, falando sobre seu engajamento nas lutas revolucionárias de então( 1860, em prol da República), afirma, numa frase que possui inumeráveis versões, que “é preciso modificar algumas coisas para que tudo permaneça como está”. Talvez esta versão não seja a mais perfeita, mas creio que o sentido permanece garantido. É uma frase de gente poderosa, que irá se manter assim ainda que as coisas mudem, por alianças vindas de casamentos e outros jogos ou alianças de poder. O sobrinho de Don Fabrizio joga em favor dos novos ventos e da sobrevivência da família. A visão que a frase comporta diz respeito a um mundo de nobres numa realeza em vias de extinção, que vão apoiar senadores na república futura, e garantir uma breve sobrevida econômica e social ao seu grupo político. A frase diz respeito, digamos, à macropolítica, e ao exercício possível de seus representantes na arena central do poder de Estado.

A literatura latino-americana (mas não somente ela), por outro lado, e com outra visão, traz passagens de grande perspicácia no que se refere à vida política, em especial em regiões delimitadas ou pequenas cidades. Trata dos pequenos poderes, exercidos nos microcampos da vida política. Um notável escritor que fez de suas obras personagens exemplares e inesquecíveis saídos da vida comezinha e quase insignificante de pequenos mundos e cidades, com histórias em muitos casos histriônicas, foi Jorge Amado. Romances como Tocaia Grande e Grabriela, Cravo e Canela, relatam como se exercitava o poder, dito democrático, num pequeno universo da micropolítica. Jorge Amado escreve, não sem ironia, sobre os exercícios dos poderes dos ricos e poderosos no vasto mundo dos lugares pequenos. No Gabriela, Cravo e Canela, por exemplo, o personagem Ramiro Bastos, ainda que pessoa rude e arrogante, é líder político no mundo dos ‘coronéis’ fazendeiros da cacau, na sul da Bahia, onde demonstra habilidade e competência nas artimanhas da tradicional forma de fazer política, no qual a compra de votos e a manipulação das eleições tem lugar garantido. Sua sagacidade política , todavia, não garantiu a continuidade de seus propósitos e nem ele fez sucessores.. Outra corrente política ganha as eleições da cidade, e uma certa transformação aconteceu na cidade e na região.

Nossa questão central está no mundo da política, está evidenciado.

As democracias são complexas, comportam muitos aspectos, e são difíceis de estudar. No campo filosófico, quando nos referimos ao estatuto da democracia, discutimos sobretudo o estatuto do Estado e o poder do governante. Discutimos também o papel do consentimento ao poder do(s) governante(s) e as liberdades numa sociedade não-coercitiva e legalmente regulada. Nossa questão, neste trabalho, é mais restrita, e se interessa por um dos campos vitais da convivência democrática, que diz respeito aos diferentes anseios e às variadas ideologias que vigoram em uma sociedade democrática digna do nome: os partidos e a vida partidária. Vamos, assim, procurar discutir o papel da representação política nos sistemas e legislações eleitorais que se dizem democráticos nos países ocidentais. Nos últimos decênios, a questão da representação democrática ganhou faces inesperadas e pouco evidentes, configurando contextos que tem levado a muitos impasses e a situações de instabilidade política.

As oscilações políticas e incertezas políticas constantes tem lugar nos países centrais e ocorrem também na América Latina e no Brasil. No meu entender, não se trata tão somente de uma conjuntura institucional e jurídica que se dá apenas num país ou continente determinado; na verdade, a onda de enfrentamento ideológico e político também parece ser parte da vida política das diversas democracias espalhadas pelos países do Norte e do Sul. A partir da eleição presidencial de 2018, no Brasil, a situação política chegou a tal cume de afrontamentos, que a representatividade democrática passou a ser objeto de indagação, em especial devido ao quadro de polarização ideológica e partidária, ao menos no que diz respeito ao governo federal e à vida nacional1 . A questão aberta pela pertinência da representação democrática, para além do calor dos acontecimentos, necessita de princípios, de estudos teóricos e de alicerces éticos. Será a representação política uma modalidade prioritária aceitável para se fazer governos representativos e legítimos nas diversas democracias? Como poderíamos pensar no alcance e pertinência dos partidos políticos em tempos tão intempestivos? Qual deveria ser o vínculo entre os partidos políticos e a governabilidade? A consciência política tem valor nas atuais demandas políticas? Qual é o valor da participação política? A democracia tem valor incontornável? Ou é uma peça histórica?

Podemos partir da admissão de que em política, as diferentes tendências e pautas de ação são amplas e mais numerosas do que as atividades legítimas tornadas possíveis na vida institucional. Em especial porque existem impedimentos que decorrem das legislações restritivas que existem, ainda, em certos países, no tocante à representação democrática. Vamos nos deter um pouco neste ponto.

O projeto democrático, onde floresceu, não se fez segundo alguma teoria intrinsecamente poderosa e cativante aos olhos das populações nem de acordo com ideais desenraizados, mas se constituiu a partir de uma vasta dinâmica de forças sociais que mesclaram interesses, ideias e carga emocional. Em muitos lugares, a instauração da democracia foi realizada com forças e dinâmicas sociais que geraram projetos de representação políticas não universais. As experiências democráticas não nasceram de maneira igualitárias e com campo de liberdade irrestrito. A quase totalidade das experiencias democráticas iniciadas há dois séculos criaram diferentes modalidades de barreiras à participação política, num amplo leque que vai do gênero à idade, da renda ao credo religioso, entre outros. As oligarquias, as elites econômicas, as camadas cultivadas da população, enfim, as camadas privilegiadas da sociedade se empenharam em fazer democracias com equações sociais desiguais, e com ocupação do campo institucional do poder sendo feito de modo desbalanceado.

Uma das premissas que alicerçam nossa análise é a da necessidade da existência de partidos e representações políticas divergentes no sistema político admitido, como tal, enquanto democrático. Tal princípio que adotamos foge à tradição, ao menos no campo da filosofia, que sempre partiu da justificação e da fundamentação do Estado e do governo. Na verdade, desde a Grécia clássica, com Platão, passando por Rousseau, até Heidegger, a tradição filosófica nunca foi amiga da democracia. A ideia de um governo do povo e pelo povo sempre desagradou os filósofos2 . Por extensão, a questão da representação política não foi tema central da obra dos filósofos tidos como clássicos. Rousseau, por exemplo, afirma que “tomando o termo em sua acepção rigorosa, nunca houve uma verdadeira democracia, nem jamais existirá. Vai contra a ordem natural que a maioria governe e que a minoria seja governada”( ROUSSEAU, 1957, p. 124)

A democracia representativa, que é o que nos interessa neste texto, tem em Wanderley Guilherme dos Santos uma breve descrição, desde que satisfaça a duas condições:

“ 1. A competição eleitoral pelos lugares de poder, a intervalos regulares, com regras explícitas, e cujos resultados sejam reconhecidos pelos competidores; 2. a participação da coletividade na competição se dê sob a regra do sufrágio universal, tendo por única barreira o requisito da idade limítrofe”( SANTOS, WG, 2017, pág. 25)

Se considerarmos os critérios de Santos, temos que reconhecer que democracia representativa não espelhou a vida política no ocidente, desde seu nascimento, há dois séculos e meio. A democracia nos termos explicitados tem como ponto de partida e ponto de chegada a competição agonística, na qual a competição política é ampla e incessante. A democracia representativa requisita convivência dos diferentes atores sociais e políticos. Quase nunca pudemos observar, no curso da história contemporânea, uma sequência continuada de governos legitimados pela competição agonística em padrões não conflituais3

Lembra Foucault que “uma das coisas que se deve preservar, é a existência, fora dos grandes partidos políticos e dos seus programas normais e corriqueiros, de certa forma de inovação política, de inovação política e de experimentação política”( FOUCAULT, 1994, vol. IV, p. 746). Na sua percepção, centrada do que ocorreu nas décadas de sessenta e setenta do século XX, a expressiva pauta de inovação política estava nas mãos dos movimentos sociais que cresciam e ainda crescem no século XXI, sempre com pautas renovadas. Do ponto de vista estratégico, é muito mais fácil dominar, comprar, fazer alianças suspeitas, intimidar e perseguir apenas um partido considerado de oposição diante de um regime totalitário4 . Sistemas restritivos à participação partidária e aos movimentos populares não podem entender a pluralidade das pautas políticas que estão postas nos movimentos sociais e tentam, quase sempre sem sucesso, reprimir ou impedir as reivindicações e contestações sociais políticas e econômicas. Os movimentos sociais e os partidos políticos não são a mesma coisa, apesar da predominância dos movimentos populares nas pautas políticas recentes, dando margem, inclusive à formação de partidos políticos com novas propostas. Mas não deixam de ter razão as análises dos céticos quanto à autenticidade e pureza ideológica dos movimentos sociais pós-modernos ou pós-verdadeiros. Mas este ceticismo não invalida a força dos movimentos de contestação e de alcance populares

Ora, muitos movimentos sociais deram origem a pequenos partidos, assim como os pequenos partidos trazem pautas inovadoras e específicas em política. Não enxergo na visão de Foucault uma pauta contra os partidos em geral; na verdade, ele faz críticas à falta de criatividade dos grandes partidos e instituições, que tem como contrapartida a inovação e quebra de pautas continuadas dos movimentos sociais. Não se fala, na análise foucaultiana, dos pequenos partidos, talvez pela incapacidade que o filósofo francês teve em perceber, à época, o papel político que as diversas lutas populares passaram a desempenhar a partir do final do século XX. O foco exclusivo nos movimentos sociais, por outro lado, certamente impediu os analistas políticos de compreenderem que outros atores políticos poderiam contribuir nas pautas inovadoras em política.

Um dos fatores que levaram à dificuldade na compreensão a respeito dos nexos entre movimentos sociais e pequenas organizações políticas está no escopo e propósito dos inumeráveis grupos que eventualmente recebem publicização. . Certos grupos de ação cultural( como grupos literários) e de reivindicação social podem ter grande importância e repercussão, mas não se prestam a se converter em grupos políticos formais. Outro caso, movimentos de resgate da memória, ainda que com razões políticas( como o das mães e avós da Plaza de Mayo, na Argentina). Ou, de modo absolutamente diverso, pequenas demandas pontuais e pragmáticas, como defender determinadas chapas sindicais ou eleger membros de instituições de alcance social, como conselhos tutelares. Certos campos de ação social, em suma, têm alcance político, mas nunca resultarão em estruturas partidárias.

O mundo recente( início do século XXI) tem como pauta demandas de outra ordem em política, que tem dimensão pública inquestionável, e exatamente por este motivo devem ser objeto da atenção da filosofia política. Temos que observar a problematização dos novos campos de ação e pensamento político, vindos de periferias e de zonas ou camadas sociais até então invisíveis. O que chama a atenção, doravante, é a crescente indiferença dos grandes e importantes partidos políticos aos campos microfísicos da vida política, nos países democráticos que são considerados centrais no mundo Ocidental. Será que o funcionamento das democracias tem que ser feito com poucos partidos, ou partidos poucos plurais? Não existiriam outras modalidades de trato político na atualidade, fora e dentro da vida política institucional e partidária?

Em certos países como o Brasil, ainda hoje5 , vigora a convicção, que tem até mesmo força de senso comum, de que a democracia somente se exprime pela existência de grandes e poucos partidos consolidados. O efeito dessa crença é a desvalorização da existência de muitos partidos( e também pequenos) como estruturas representativas políticas que respeitem a ampla gama de convicções e projetos de organização da vida comunitária e social. Convém desconfiar de tal crença a respeito da relação entre consolidação da democracia em oposição à existência de pequeno número de partidos políticos. O sonho ideológico unitário sustenta, seguindo uma lógica da exclusão, não podemos nos esquecer, que estamos num mundo rachado, como se somente existissem duas possibilidades ideológicas capazes de gerar escolhas políticas. Nos regimes totalitários e nas pseudodemocracias( em especial os EUA) o bipartidarismo tem representatividade jurídico-política mas não consegue mobilizar a maioria da população no processo eleitoral. Talvez seja o contrário que aconteça. Como não aceitar novas expressões e vias políticas?

Antes de continuar, convém lembrar que a história recente das democracias demonstra que certas barreiras foram impostas quando da substituição das monarquias ou nos governos colonizadores. O resultado foram oligarquias representativas, nas quais a participação política era muito escassa, beirando a dez ou vinte por cento da população. As oligarquias representativas nasceram juntamente com uma série de restrições legais à participação não somente na vida política mas também com impedimentos na possibilidade de se tornar mero eleitor. O processo de eleição direta e universal era negado à maioria dos membros da sociedade, devido a barreiras e restrições de diversas ordens. As democracias nascidas no século XIX, em sua imensa, não conheceram o voto direto. As restrições eram as mais diversas; as duas primeiras e mais importantes restrições foram as de gênero e as de renda. A lista das barreiras à participação conta ainda com outros elementos, que tiveram sua importância: a idade6 , a religião, o estado civil, e o grau de instrução ainda tem lugar em certos países.

Outro impedimento ao exercício da representação democrática, que foi resultado de conquistas históricas que duraram décadas, foram as inúmeras interrupções da vida democrática. Há uma tradição de caráter eurocêntrico em dizer que o Continente Sul-americano foi repleto de ditaduras e golpes de estado, como é possível ver no livro coletivo Terrorismo de Estado. No Brasil, entre 1937 e 1945 e entre 1964 e 1985, certamente vivemos períodos nos quais a representação popular sofreu restrições mais acentuadas. Em outros países da Américas aconteceram períodos turbulentos. Mas não devemos esquecer que a Europa foi um paraíso para regimes totalitários e para tiranos, como se observa na magistral obra de Hannah Arendt sobre os regimes totalitários, As Origens do Totalitarismo. Temos ditadores como Salazar em Portugal, Franco na Espanha, Mussolini da Itália, Hitler na Alemanha, Stálin na URSS, Tito na Iugoslávia, Ceasescu na Romênia, de Gaulle....., enfim praticamente todo o continente Europeu foi assolado por algum período totalitário, ditadorial ou pseudo-democrático, com o agravante de que a maior parte deles teve longa duração. Em certos casos, na Europa, somente a morte do ditador pôs fim a um período de regime autoritário e personalista. É bom lembrar que por aqui nos trópicos as ditaduras duraram relativamente pouco tempo, ainda que isto não retire seu caráter violento e impopular.

O fato é que a democracia está sempre no horizonte de possibilidades na vida política, e que nenhum regime totalitário conseguiu manter-se como opção das populações. Hannah Arendt, assim como importantes teóricos políticos, faz uma análise muito invulgar sobre o caráter das massas que se deixam levar por regimes totalitários, que são constituídas por pessoas solitárias, solitárias políticas. Vamos à passagem: “ O que prepara os homens para o domínio totalitário mundo não totalitário é o fato de que a solidão[....] passou a ser em nosso século7 , a experiência diária de massas cada vez maiores”( ARENDT, 2014, pág. 638). Os argumentos de Hannah Arendt são mais detalhados8 , e complementam o que os pensadores, sobretudo de esquerda, sustentam a respeito do vigor das democracias depender das forças sociais, movimentos diversos, sindicados, grupos políticos com objetivos restritos e temporários, enfim, da imperiosa necessidade de vida política ativa e disseminada na sociedade. A manipulação política sobrevém quando existe uma multidão politicamente solitária.

Para existir democracia participativa hoje, início do século XXI, entre tantos outros elementos necessários, jurídicos, econômicos, culturais, comunitários, etc, um sistema multipartidário amplo constitui uma maneira satisfatória de expressão dos diversos agentes sociais e políticos. Pode-se dizer que um sistema com muitos partidos que é fator primordial para que inexista a solidão política e para evitar a derivada possibilidade de surgimento de regimes totalitários a partir de indivíduos isolados e desorganizados na estruturação da política. Nos últimos trinta anos, os pequenos partidos podem ter a capacidade de integrar variados modos de expressão e de interesses políticos diferentes. Mas fica claro, pela experiência , que a tentação e a implantação de regimes e governos com tendências autoritárias talvez esteja impedida de acontecer com a presença de pequenos partidos populares organizados.

Em certos casos, países que contam com muitos partidos tem levado a alianças de centro esquerda vitoriosas. Na Espanha, por exemplo, existem cerca de doze partidos. E uma exitosa conquista do poder pelos setores progressistas, depois de décadas de política fascista inspirada em Franco e na realeza. O mesmo descolamento depois de décadas de ditadura salazarista tem acontecido em Portugal, cujo arco de centro-esquerda tem levado o país a um momento de prosperidade e convivência. Ora, Portugal tem, hoje, 26 partidos políticos, de todos os espectros de pensamento. A França segue um roteiro político próprio, de centro-esquerda, com dez partidos. A Holanda, com política de centro esquerda(sem certeza), tem 20 partidos, apesar do crescimento dos partidos de direita. O México tem hoje um governo de esquerda e democrático, e possui sete partidos. O Uruguai, uma vez mais, vive uma aliança majoritária de esquerda, hoje alijada do governo central. A direita foi derrotada na Argentina, em 2019. O leque partidário na Argentina derrubou pelo voto, há pouco, um governo de direita com evidentes traços oligárquicos.

Mas a direita tem lugar em diversos países. Por exemplo, na Hungria, hoje governado pela extrema-direita, existem dez partidos. Sob uma ideologia nacionalista comandada pelo presidente da Assembléia Nacional( eleito em 2010), o país concedeu por um golpe parlamentar plenos poderes ao seu líder durante a pandemia de 2020, sob o olhar condescendente da União Européia. A Grécia, de direita, possui vinte partidos e é governado pelas ordens das empresas privadas e bancos da União Européia. O Brasil, de direita há alguns anos, depois de um golpe parlamentar em 2016, tem agora 35 partidos e é governado por empresários e militares anti-patriotas.

O país com governo bi-partidário mais constante é os Estados Unidos da América, onde um sistema misto e federativo eleve representes, que por sua vez, entre representantes e de forma indireta, elegem o presidente do país( muitas vezes sem corroborar o sufrágio eleitoral da população. É difícil considerar um país belicista e perseguidor de minorias uma democracia. Muitos governos latino-americanos, inspirados nos estadunidenses, estão em situação de crise por insistirem em manter um quadro de oposição entre dois partidos dominantes, como aconteceu, no ano de 2019, no Peru, Bolívia, Guatemala e Equador. Em outros continentes a polarização partidária gera constantes insatisfações e movimentos de protesto. Tudo parece indicar que o bipartidarismo ou a redução do largo campo de interesses a minúsculas modalidades de pensamento em apenas duas legendas partidárias funciona com dificuldades e parece ter seus dias contados. Não é um mundo fácil de explicar. Ele não é líquido nem sólido; é, na verdade, problemático.

A China, assim como muitos países asiáticos sem sua força econômica continua sendo um caso à parte, uma vez que o Partido Comunista Chinês, desde 1949, controla o país de maneira unipartidária. A Assembléia Nacional Popular da China, com cerca de 3.000 membros, é eleita de modo indireto. O regime, portanto, é unipartidário, a estrutura central do poder é escolhida de modo indireto. Para finalizar, o centralismo do poder na China possui um caráter predominantemente patriarcal, e seu Comitê Central é composto de homens, ou seja, por pessoas do gênero masculino. Podemos afirmar, sem erro, que a China é uma república burocrática que encobre muitas contradições sociais e políticas.

Um caso à parte é o Chile, que nada mais é que uma ordem plutocrática, bastante violenta, que substituiu a ditadura de Pinochet, que foi um grande genocida. A inexistência de critérios políticos sólidos fez do país um exemplo espantoso de falta de apreço à população.

Sem desmerecer o caráter inovador e disruptivo dos movimentos sociais, vamos centrar nossa atenção, de maneira breve, nas lutas partidárias nos últimos anos no Brasil, que parece quebrar com muitos preconceitos do senso comum e da mídia9 . Segundo W. G. dos Santos, partidos com pouca representatividade na Câmara dos Deputados, em Brasília, possuem certa expressão eleitoral nos legislativos estaduais, que cresce em dimensão quando se observa os resultados nos municípios10. O fim do bipartidarismo forçado pela ditadura militar no Brasil, em 1982, teve como efeito o surgimento de número crescente de partidos políticos. Em 2014 o Tribunal Superior Eleitoral computava que existiam trinta e três partidos. A maioria deles tem expressão local e regional( considerando que sempre importam os estudos e projeções sobre o desempenho eleitoral dos pequenos partidos em locais e regiões nas quais as grandes agremiações políticas não mais obtém êxito em cativar representação política). Poucas pessoas se dão conta do fato de que, desde a possibilidade da criação de novos e pequenos partidos no Brasil( assim como no exterior), novas propostas e novas ou antigas maneiras de pensar obtiveram voz e voto. Não seria o caso de enxergar nos pequenos partidos vozes novas e antigas ambições, de diferentes origens?

Ao contrário do que é voz corrente, talvez seja o caso de observar que os grandes partidos políticos brasileiros perderam espaço político e votos, em todo o território brasileiro, em particular nas pequenas cidades, enquanto que os pequenos partidos políticos tiveram crescimento significativo. Este fenômeno é recente. Tal crescimento, cabe alertar, não se mede pela quantidade de eleitos para o Congresso Nacional. É na base da pirâmide da representação política que as pequenas agremiações políticas ganham força. Nada impede, portanto, que se analise a pulverização dos pequenos partidos enquanto fato micropolítico com alcance e potencial altamente expressivo e inovador. O que equivale a dizer que o microfísico, na estrutura política legalizada, pode ter expressão num grande país como o Brasil.

Não se deve negligenciar a existência, a potência e as aspirações dos partidos pequenos e periféricos. Talvez ainda tenhamos que aprender muitas lições com tais agremiações. Por este motivo, pode ser falsa a hipótese, defendida pelos grandes partidos, de que os pequenos grupos políticos seriam ‘partidos de aluguel’, com votos à venda a cada decisão parlamentar considerada importante. Parece ser ainda mais falsa a defesa,( esta sim interessada e quiçá pouco honesta) de que deve ser feita um reforma política visando eliminar os pequenos partidos; na verdade, tentar eliminar os partidos políticos periféricos”... legalmente e não pelo voto equivale a cercear a competição e a consagrar uma reserva de mercado de eleitores, algo que nem mesmo elevado custo das campanhas conseguiu realizar com êxito”(SANTOS, 2018, p. 166). Ao que tudo indica, lutas estratégicas e micropolíticas, no universo capilar dos processos eleitorais, tem como efeito o fortalecimento dos partidos periféricos, que trazem programas inusuais e desconhecidos pelos analistas voltados para os grandes centros urbanos ou interessados apenas na macropolítica. Vale a pena se perguntar sobre o potencial transformador das pequenas legendas, uma vez que elas podem formar arcos políticos com propostas de lutas sociais e econômicas que são capazes de derrotar cartéis políticos tradicionais e oligarquias associadas aos grandes partidos.

Recordo que Portugal e Espanha somente conseguiram vencer os partidos conservadores e de direita quando efetivaram estratégias de fragmentação partidária; através do crescimento do número de partidos. A partir deste momento as novas agremiações de centro-esquerda puderam fazer uma aliança que levaram ao enfraquecimento e à derrota dos partidos conservadores e de centro-direita a nível nacional. Portugal e Espanha, vamos repetir uma vez mais, souberam atravessar o limiar do retrocesso político através de pequenas organizações partidários com propostas renovadoras que acabaram, se tornando majoritárias através de alianças bem arquitetadas. Foi quebrando estruturas partidárias restritivas que os novos partidos populares( que se denominam, por uma carga semântica positiva, de populistas) e de esquerda tem conseguido vencer, ademais, candidaturas de partidos de extrema-direita em praticamente toda a Europa.

Talvez seja oportuno levar em conta que o sistema representativo em política não mais se faça em nome dos melhores representantes e das grandes questões. O multipartidarismo pode conter, com todas as reservas, nas pequenas propostas e demandas, um desenho político mais fidedigno do mundo social, quem sabe mais limpo. Nem sempre o desenho em larga escala dos maiores representantes que foram escolhidos nas estruturas maiores de poder resulta numa bela imagem. A feiura política, por exemplo, é visível nos representantes do executivo e em especial do legislativo brasileiro no Congresso Nacional, deputados e senadores. Todavia, eles são a imagem dos que o levaram ao exercício, por certo tempo, do poder: ‘espelho, espelho meu”

Uma série de questões estão abertas para todos nós. Como reinventar a educação política? Como voltar a despertar a consciência social dos direitos e deveres que todos nós temos que forjar e pelos quais temos que defender e lutar? Em política, o tempo e a perseverança dos variados grupos politicamente mais articulados fazem a diferença e geram novos anseios políticos. A violência cega, a ignorância, o fanatismo podem tentar cercear os espaços que foram abertos à criação e ao mundo da invenção. Nada como a união das pessoas em torno das bandeiras sociais, todas elas, quaisquer que sejam, de todas as magnitudes.

Não esqueçamos portanto, dos pequenos campos de exercício de poder. Eles ocorrem nos departamentos de universidades( como tentei mostrar no Terrorismo de Estado ), nos preconceitos de origem social ou de gênero, nos interesses agrários e nas lutas pela terra, nos diferentes poderes de ordem religiosa, etc., em todos os dias de nossas vidas. Algo de novo pode acontecer.

No universo das pequenas cidades e nos pequenos anseios populares e demandas comunitárias, não parece evidente que a sentença emitida n’O Leopardo, de que é preciso mudar algo para que tudo permaneça como está, tenha vigencia plena. Muitas vezes, tudo permanece como está pelo simples fato de que as coisas não mudaram. Ou mudaram muito pouco. No caso dos pequenos partidos, lembro, existem sinais de que podem trazer modificações na vida política, Os que são atentos aos novos dias dos costumes e dos valores na política verão o campo aberto do porvir. Vamos aprender, sempre.

Referências

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Notas

[1]A polarização política mais geral não parece se repetir nos outros níveis da República tais como os estados da Federação e os municipios. Cabe lembrar que o Brasil tem, hoje, perto de 5.570 municípios. Cerca de 1.260 municípios tem menos de 5.000 habitantes. O que está em jogo, nestes lugares, é uma vida peculiar e muito distante das grandes questões ideológicas da vida federativa e das megalópolis.

[2]Valeria a pena se fazer um estudo mais aprofundado das razões que levaram à recusa da democracia pelos filósofos, inclusive pelos professores de filosofía, defensores entusiasmados do platonismo e adversarios firmes da sofística, nos livros e nas salas de aula. Platão no livro VIII da Republica, apresenta a democracia como uma forma política degradada e que é, ademáis, indutora da pior forma de governo, que é a tirania.

[3] Nunca cansarei de repetir, apoiado no magistral estudo de Caromeni , que os países que primeiro instauraram democracias com escrutínios diretos e universais, sem barreiras, ainda no século XIX, foram a Nova Zelândia e depois a Austrália. No Cone Sul, não deixa de ser uma grande surpresa para os ainda não informados, que o país pequeno e inovador no processo democrático foi o Haiti, hoje arruinado pela miseria decorrente das escolhas de suas elites e de governos tão terríveis quanto os desastres ambientais que o país sofreu.

[4]No Brasil, no tempo da truculência, que eu vivi na carne enquanto estudante e jovem professor, existiam apenas dois partidos, a ARENA e o MDB. Eram partidos sem coragem e sem vigor. Oportunistas de diversos tipos se valeram das legendas oficiais para conquistarem cargos e empregos naquela época. Para obter benefícios na ditadura bastava um tipo qualquer lamber coturnos e ser inexpressivo. Eram tempos sombrios, tristes e medíocres. Tempo de assujeitamento.

[5]Estamos, agora, nos anos vinte do século XXI.

[6]No passado, no século XX, a idade mínima para votar na Itália, por exemplo, era trinta anos.

[7]O texto é dos anos cinquenta do século XX.

[8]Merece, portanto, que nos debrucemos sobre eles em outro artigo.

[9] É importante observar que que na análise política recente novos métodos e formas de análise criaram olhar renovado no que se refere ao desempenho dos pequenos partidos na política partidária.

[10]Nos estados e municípios, no caso brasileiro, revelam decisões que expressam interesses práticos e específicos que são locais e regionais, seja para eleitos e eleitores. As pautas municipais não reverberam, necessariamente, as pautas nacionais, repetidas, todos os dias, pela grande mídia. A pequena vida partidária é desconsiderada ou até ignorada pela grande mídia.