Machado de Assis e a Teologia da Prosperidade: aproximação e contrastes
Machado de Assis and Prosperity Theology: approximation and contrasts

Paulo Sérgio de Proença
Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Campus dos Malês- BA. Contato: pauloproenca@bol.com.br


Voltar ao Sumário


Resumo: Este estudo pretende averiguar similaridades e divergências entre a Teologia da Prosperidade e a paródia “O Sermão do Diabo”, publicada em 1892 por Machado de Assis. A metodologia adotada é a pesquisa bibliográfica, com colação de textos bíblicos e machadianos. O apoio teórico vem de Hagin e de estudiosos mais recentes do movimento da Prosperidade; para analisar o sermão machadiano seguimos princípios semióticos apontados por Barros (2001) e Proença (2011), elementos de carnavalização indicados por Bakhtin (1987) e configuração de paródia, de acordo com Hutcheon (1989). Resultados indicam que Machado e o movimento da Prosperidade associam religião e economia, mas há motivação e finalidade específica em cada proposta.

Palavras-chave: Machado de Assis; Teologia da Prosperidade; “O Sermão do Diabo”

Abstract: The goal of this study is to point out similarities and divergences between Theology of Prosperity and the parody “O Sermão do Diabo”, published in 1892 by Machado de Assis. The applied methodology is bibliographic research, with collation of biblical and Machado’s texts. Theoretical support comes from Hagin and recent scholars of the Prosperity movement; for analyzing Machado’s sermon we follow semiotic principles pointed out by Barros (2001) and Proença (2011), elements of carnivalization indicated by Bakhtin (1987) and configuration of parody, according to Hutcheon (1989). Results indicate that Machado and Prosperity movement associate religion and economics, but there are specific motivation and purpose in each proposal.

Keywords: Machado de Assis; Prosperity Theology; “O Sermão do Diabo”

Introdução

Que de comum pode haver entre Machado de Assis e a Teologia da Prosperidade? Mais de 60 anos separam a morte do escritor e a eclosão do movimento no Brasil. Esse hiato temporal não impede aproximações entre o escritor e o movimento religioso – e contrastes. 

A Teologia da Prosperidade impactou o panorama religioso do Brasil nas últimas décadas, fenômeno que desafia nossa compreensão e revela a complexidade de novas formas de experiência do sagrado e de suas expansões para diversas áreas de atividade humana, inclusive e principalmente as relações com o dinheiro e com os bens materiais em geral, não desprezadas as dimensões simbólicas acionadas nesse processo. 

Machado de Assis escreveu uma peça paródica intitulada “O sermão do Diabo”, na qual há, igualmente, encontro entre religião e economia; a peça tem por fonte o “Sermão do Monte”, conhecida passagem bíblica que foca a ânsia por acúmulo de bens materiais.

Verificar possíveis aproximações e contrastes entre Machado de Assis e a Teologia da Prosperidade é o objetivo aqui proposto, a partir de colação entre os textos indicados, sem a pretensão de esgotar os desdobramentos mais recentes do movimento da prosperidade. Serão mencionados Hagin, Soares (2019) e Sung (2014; 2015), estudioso das relações entre religião e economia. Para analisar “O sermão do Diabo”, o apoio será buscado na semiótica (BARROS, 2001) e Proença (2011); Hutcheon (1989) oferece aporte para a compreensão da paródia; e Bakhtin (1987), para particularidades da carnavalização, elementos importantes presentes no texto machadiano.

Tanto “O sermão do Diabo” quanto a Teologia da Prosperidade vinculam, em algum grau, a experiência do sagrado a riquezas materiais; apesar de haver outros elementos importantes nessa relação, é esse aspecto que interessa aqui, com o propósito de indicar a relação entre essas duas dimensões, em diferentes contextos históricos, sociais e religiosos. Apesar desse traço comum, as motivações e os desdobramentos são diversos. A paródia machadiana critica o ajuste social de seu tempo, que tem na conjunção com bens materiais o ideal a ser perseguido, ainda que com violência contra o próximo e com descumprimento dos princípios ético-religiosos expostos na Bíblia. A Teologia da Prosperidade, por sua vez, resulta de acomodação a princípios econômicos que organizam a sociedade capitalista, que passa a assumir encargos de satisfação e felicidade, próprios de sistemas religiosos (SUNG, 2015). 

1 Teologia da Libertação e Teologia da Prosperidade: breves aproximações contrastivas 

Max Weber foi talvez o primeiro a apontar a atração que há entre fé e economia, na modernidade, com formulação sociológica; para ele, a Reforma liberou a ambição de lucro, considerando-o não contrário à vontade de Deus e fez da riqueza sinal de bênção divina (WEBER, 2004). Este trecho, em que descreve princípios puritanos, poderia ter saído da pena de adeptos da Prosperidade: “Querer ser pobre, costumava-se argumentar, era o mesmo que querer ser um doente, seria condenável na categoria de santificação pelas obras, nocivo portanto à glória de Deus (WEBER, 2004, p. 148).

As primeiras décadas do século passado formam a moldura histórica para o surgimento da Teologia da Prosperidade. Um de seus expoentes, que exerceria grande influência em seguidores no Brasil, foi Kenneth Hagin, nascido em 1917 nos EUA. Ele teria recebido visões e revelações de Deus para sua particular compreensão do evangelho; alega também ter sido transportado ao céu e ao inferno. Foi pastor de uma igreja batista, migrou para o pentecostalismo (Assembleia de Deus) e depois se tornou pastor autônomo. Nunca estudou Teologia; alegou que ninguém ensinou a doutrina que pregava, pois a tinha recebido diretamente de Cristo (PROENÇA, 2008).

No Brasil, a Teologia da Prosperidade sucedeu a Teologia da Libertação, em termos cronológicos, o que está em consonância com as características econômicas, políticas e sociais em que vicejaram esses movimentos. De um lado, princípios igualitários de acesso a bens e serviços, com máxima amplitude social; de outro, motivações de acumulação pessoal, com frouxos laços de vinculação solidária.

 A Teologia da Libertação surgiu no começo dos anos 1960 e adotou como eixo hermenêutico releitura do Êxodo e dos profetas[1]. Aquele, por relatar a libertação de Faraó e por ter um potencial revolucionário no ideal de liberdade; estes, por denunciarem a injustiça social e econômica como recusa em cumprir a vontade de Deus, que prescreve justiça social, direito, liberdade, proteção aos desamparados.

Essa forma de ler a Bíblia ocorreu em momento importante da história do país. Com o fim da segunda guerra, o Brasil vive onda de industrialização sob Juscelino Kubitscheck (e também sob João Goulart) e espasmos de modernização econômica e social; movimentos reivindicam espaço, com reflexos nas artes em geral (com destaque à música), na política, na Educação (Paulo Freire) e na Igreja Católica, que convoca o Vaticano II.

Tal renovação foi contida pelo golpe militar de 1964, que perseguiu lideranças de movimentos populares, incluindo religiosos das Igrejas Católica e Protestante; em trevas e tristeza o Brasil mergulharia. Entretanto, frutos ainda podem ser sentidos, como a popularização da Bíblia em círculos de leitura e a adoção de Pastorais que se ocupariam de atender a grupos socialmente oprimidos[2].

A liberdade é o vínculo que une as realidades bíblica e atual; no êxodo hebreu, é a escravidão em seu tradicional formato; no Brasil e na América Latina, é a exploração econômica estruturalmente arquitetada, nos tentáculos da ordem econômica e social. Tudo é exploração[3].

O ideal de libertação diminuiu no plano político, econômico e ideológico por efeito da violência de ditaduras militares, da perseguição ao comunismo (identificado como demoníaco) e da queda do muro de Berlim. O ideal de transformação do mundo e de justiça social cedeu lugar à ânsia de fruição e acúmulo de bens materiais e indiferença quanto ao modo de organização social. O fim da história havia chegado, não como realização escatológica, mas como triunfo do capitalismo, com o qual se identifica a Teologia da Prosperidade.

Os neopentecostais, grupo religioso surgido nos anos 1970, na chamada terceira onda do pentecostalismo brasileiro, foram os principais agentes religiosos de propagação da prosperidade; deram ênfase à luta entre Deus e forças demoníacas (associadas principalmente a religiões africanas); defenderam a prosperidade dos fiéis, condicionada à entrega de dízimos e ofertas, necessárias à retribuição divina; aceitaram manifestações carismáticas para confirmação de autoridade profética. Adepto da Teologia da Prosperidade, R. R. Soares é discípulo de Hagin, cujos livros a editora da Igreja Internacional da Graça de Deus publica. Assim, essa igreja em suas ênfases teológicas e as demais instituições religiosas influenciadas pela onde neopentecostal servem de referência para análise de princípios e crenças dessa tendência.

Há estratégias de atuação definidas e ostensivamente utilizadas por grupos neopentecostais, no campo político e nos meios de comunicação de massa, como recurso para ampliação de sua influência. Essas instâncias dão a esses grupos a agilidade de mercado própria de empresas que exclusivamente buscam lucro; Instâncias políticas são responsáveis por decisões que podem contemplar interesses dessas (e de outras) igrejas. Nas últimas eleições presidenciais no Brasil, por exemplo, foi decisivo o apoio dos evangélicos, aí incluídos os neopentecostais, mais representativos em termos numéricos[4].  

A confissão positiva é marca da Teologia da prosperidade, da qual deriva a respectiva autoridade espiritual que autoriza fiéis exigir que Deus cumpra suas promessas. Hagin é discípulo de E. W. Kenyon, que teve nos anos 30-40 seu auge como pregador da prosperidade. Kenyon estudou em Boston, onde floresceram algumas seitas metafísicas, como Ciência Divina e Sociedade do Cristo que Cura. Essas seitas ensinavam que a esfera espiritual controla os aspectos físicos e é a causa dos males: se pensarmos de modo certo, podemos controlar a saúde (SILVEIRA, 2007). Nessa forma de pensar há influência de Norman Vincent Peale, autor da obra O poder do pensamento positivo, que teve grande recepção no Brasil. Lauro Trevisan e Lair Ribeiro, autores desse campo, fazem sucesso no mercado editorial. O princípio condutor é que o pensamento está à frente do acontecimento: a mente tem prevalência e o interior é a sede do poder e de resolução de problemas, com apagamento dos fatores conjunturais. Se mentalizado, qualquer objetivo pode ser alcançado.

As doenças ocupam posição de destaque no leque de princípios do movimento; elas são consequência da ação de espíritos do mal, sediados nos orixás, por exemplo (demonizados por esses cultos). Para essa concepção teológica de mundo, há necessidade de eleição de inimigos, de forças e formas do mal que devem ser combatidos. Se Deus criou seres saudáveis, é impossível não haver cura, uma vez que Cristo derrotou os poderes do mal. A doença, maldição da lei mosaica, foi anulada por Cristo e, por isso, o cristão deve exigir seus direitos, porque a maldição foi anulada. “Descobri que o modo mais eficaz de se orar é aquele pelo qual você requer os seus direitos. É assim que eu oro: “Exijo meus direitos!’” (HAGIN, 2002, p. 39). R. R. Soares segue no mesmo caminho; diz, a respeito: “[...] somos nós que decidimos o que teremos ou não” (PIERATT, 1993, p. 73).

Outro elemento é o exorcismo, que estabelece uma guerra espiritual contra religiões mediúnicas, vistas como espaço de atuação dos demônios, produtoras de desgraças. O sofrimento, a miséria, a falta de perspectiva dos milhões de excluídos do mercado faz com que busquem uma visão de mundo marcada por formas de religião que reduz e simplifica a complexidade da vida.

O uso peculiar da Bíblia é indispensável para o sucesso do movimento, dada a importância que as Escrituras têm não só na formulação de princípios doutrinários, mas também na prescrição de comportamentos adequados para os fiéis. Neopentecostais têm forma específica de leitura e entendimento da Bíblia, que é interpretada de forma seletiva – como ocorre em qualquer movimento religioso que invoca a Bíblia como fonte avalizadora. Nesse caso, o procedimento transplanta textos de seu contexto original com reinterpretação no contexto capitalista, sem as cautelas próprias. 

Prosperidade foi termo utilizado também de forma enfática na sabedoria da Bíblia, mas com diferentes possibilidades semânticas. Filipenses 4.19 diz que Cristo supre necessidades e é interpretado da seguinte forma“Todas as suas necessidades incluem as necessidades financeiras, materiais e as demais. Na realidade, nesse capítulo, Paulo está falando a respeito das coisas financeiras e materiais” (HAGIN, 2002, p. 8). Deus faz a devida provisão de necessidades financeiras[5]. O cristão deve vestir as melhores roupas, comer a melhor comida, ter as melhores coisas: “Os crentes têm permitido ao diabo lesá-los em todas as bênçãos que poderiam usufruir. Não era intenção de Deus que vivêssemos em pobreza. Ele disse que éramos para reinar em vida como reis” (PIERATT, 1993, p. 59).

A dimensão econômica se confunde e se completa nas demais, no amparo bíblico principalmente. A prosperidade econômica é entendida como direito do cristão, pois faz parte da expiação efetuada por Cristo. Por isso, a pobreza não é vontade de Deus, sendo uma maldição. Esses princípios teológicos estão em conformidade com os ideais capitalistas de acumulação. A presença do cristão no mundo e a instituição religiosa de que participa funcionam inspiradas na lógica do mercado; as igrejas da prosperidade são de fato um empreendimento religioso bem-sucedido (BOBSIN, 1995). 

Há afinidades entre o mercado, essa entidade invisível que adquiriu amplitude universal (globalização) e os princípios neopentecostais. Isso pode ser notado na nomenclatura da maioria delas, que incorporam os termos Universal, Internacional, Mundial, a esse se juntam outros que portam sentidos caracterizadores de doutrinas bíblicas: Reino de Deus, Graça de Deus, Poder de Deus. No caso da Igreja Universal, por exemplo, os termos Universal e Reino de Deus, da igreja que tem esse nome (SILVEIRA, 2007).

Como a religião passa a mercadoria, as bênçãos espirituais são alvo de negociação entre humanos e Deus. Assim, a falta de prosperidade é explicada como a falta de oferta: “a relação entre o fiel e Deus ocorre pela reciprocidade: o cristão semeia por meio de dízimos e ofertas, e Deus cumpre suas promessas” (SILVEIRA, 2007, p. 19). Quem dá mais recebe mais:

Você gostaria de ver maiores bênçãos financeiras na sua vida? Aumente suas contribuições e ofertas, porque as Escrituras dizem que a sua colheita será [...] transbordante [...] porque com a medida com que tiverdes medido vos medirão também. Por outro lado, podemos estorvar nossas orações em prol da prosperidade financeira, se não cooperarmos com Deus; se não entramos pelas portas que Deus abriu para nós (HAGIN, s/d, p. 111).

Esse ponto de vista se apoia na lei do retorno, apoiada em Marcos 10.29-30 (dentre outras passagens), pois receberemos cem vezes mais do que damos. E isso é um direito do cristão[6]. Por não conhecermos não reivindicarmos nossos direitos. A nova aliança, o Novo Testamento, é um documento jurídico que garante direitos das leis espirituais que regem o mundo. Cabe ao cristão conhecê-las e ter domínio sobre elas.

A lei do retorno remonta ao domínio da sabedoria bíblica.

1.1 A noção de retribuição e a sabedoria de Israel

Seguem considerações que têm por finalidade apresentar o movimento de sabedoria, em cujas características literárias e históricas podem ser reconhecidas motivações para os adeptos da Teologia da Prosperidade. 

A sabedoria em Israel é resultado da observação baseada na experiência; tinha um caráter objetivo e concreto: verificar o funcionamento do mundo e buscar inserção nessa ordem que, acreditava-se, tinha sido estabelecida por Deus. Os sábios eram os cientistas e teólogos práticos da antiguidade, engajados numa busca de entendimento racional da realidade (PROENÇA, 2008).

Esses observadores descobrem certa regularidade nos fatos e verificam a existência de uma lei, uma relação entre causa e consequência. Daí passa-se à conduta ética: se fizer isso, vai acontecer aquilo. Desse modo, a sabedoria foi agente de socialização ao propor limites e escolhas em que se deve viver[7].

A observação era um meio indispensável de relação com os fenômenos, para compreendê-los. Essa relação se reflete no que se chama lei do retorno:

[...] o homem judeu se sentia em estreita relação pessoal com o mundo. As leis que dirigiam o mundo lhe diziam respeito, eram abertas, caminhavam em sua direção. O acontecimento em que o homem se achava envolvido tinha um aspecto que lhe cabia e se relacionava com seu comportamento. O mundo podia voltar-se para o homem, numa ação benéfica e favorável, ou se voltar contra ele, como castigo (RAD, 1973, p. 402).

Poderíamos perguntar se a retribuição é resultado de uma ação de Deus, necessária à ordem do mundo, ou se é apenas uma constatação objetiva dos fatos. Para o sábio, toda ação conduz a uma consequência boa ou má que afeta, inclusive, a comunidade. Mas essa lei não tem valor teológico nem jurídico, conforme enfatiza Rad (1973, p. 409-410):

Não convém falar aqui de 'retribuição' [...] Inútil procurar qualquer concepção teológica ou jurídica [...] todas essas numerosas afirmações da existência de uma relação interna entre boa ação e salvação, assim como as advertências sobre a relação entre pecado e infelicidade situam-se, geralmente, fora de qualquer contexto teológico [...] O motivo dessas máximas é sempre: lembra-te dessas leis, tanto para o bem como para o mal; não sejas o 'insensato' que as transgride, mas baseia nelas tua vida.

Essa retribuição é entendida como prosperidade, termo frequente em nossas traduções. Mas o sentido bíblico é o mesmo que a ele atribuímos atualmente? É sinônimo de riqueza material? O valor do termo é avaliado de forma precipitada por aqueles que acham que a prosperidade material é o sentido do termo. Contudo, a característica principal do justo no Antigo Testamento não é sua exuberância material, mas o compromisso ético com justiça, honestidade, integridade (Provérbios 29.7). Desse modo, a riqueza, como resultado de distribuição desigual de bens, pode ser entendida como uma injustiça, o que afeta a consciência do justo. Além disso, a tradição sapiencial condena o acúmulo de riquezas e a confiança nelas depositada: “Aquele que confia nas suas riquezas cairá, porém os honestos prosperarão como as folhagens” (Provérbios 11.28).

Siqueira (2005, p. 143-4), que analisa o significado de termos originais também fora dos escritos sapienciais, define prosperidade da seguinte forma:

[...] ser próspero é o mesmo que dar frutos (Ez 17.1-10); é ser forte, corajoso,  não temer e andar nos caminhos de Deus (Js 1.1-9); é praticar misericórdia e ser leal a Deus e ao povo (Ne 1,11); é andar com sabedoria e discernir as instruções de Deus (Dt 29.9); 1 Rs 2.3); é promover a paz no mundo (Sl 122.6-7); é promover o bem e agir corretamente (Jó 21.13; Sl 106.5). Esses exemplos bíblicos reforçam a ideia segundo a qual prosperar não é necessariamente obter vantagens pessoais ou acumular riquezas (Jr 12.1-6). 

A literatura sapiencial contém elementos que autorizam a negação da retribuição. Por exemplo, Provérbios 28.20: “A vida da pessoa honesta é cheia de felicidade, mas quem tem pressa de enriquecer não fica sem castigo”. Nesse verso, um paralelismo antitético contrasta “pessoa honesta” ao que “se apressa a enriquecer”: essa oposição nos leva a concluir que fidelidade a Deus é o oposto de enriquecimento. As bênçãos do homem fiel não são as riquezas.

Além disso, ao longo do tempo, mudou, por causa da própria natureza da sabedoria, a ótica de observação da realidade e de sua organização. Ora, o mundo é cambiante; as coisas, as pessoas, as situações mudam com o tempo e o sábio acompanha esse fenômeno, pois se as experiências nem sempre se repetem, se são novas e desafiadoras, a sabedoria devia estar aberta a essas atualizações. Por isso, uma dificuldade inicial evidente é que nem sempre se pode extrair uma lei geral estável, uma ordem reguladora permanente, em virtude de acontecimentos não previstos, frutos do imponderável que, para o sábio, era fonte não só de reflexão, mas também de prazer: "quando se descobria, porém, por trás desses acontecimentos ou fatos paradoxais, a existência de uma certa ordem, a satisfação era ainda mais profunda. Superava-se o caos" (RAD, 1973, p. 396). Isso dava proteção contra as ameaças, ainda que ao custo de experiências dolorosas[8] (PROENÇA, 2008).

Nem esse prazer, ainda que significativo, anulava a perplexidade diante de paradoxos e fatos inesperados e incompreensíveis. Nem sempre o mundo podia caber nas máximas sapienciais, pois a regularidade ou a lei da recompensa não explicava tudo. Por que o justo sofre? Por que o ímpio “prospera”? Essa constatação foi um desencanto na evolução da sabedoria e proporcionou o surgimento dos livros de e de Eclesiastes, por exemplo, em que esse atordoamento atinge o radicalismo, chegando ao ceticismo nesse último livro, resultado da ameaça provocada pela a perda de contato com a fé na ação de Deus na história[9].

O livro do Eclesiastes é um poço de amargura. Entretanto, Deus não tem culpa pela vaidade do homem e pelo vazio da existência. O ser humano não pode ou não sabe fazer coincidir a sua vontade e o seu tempo com a vontade e o tempo de Deus. Com isso, há uma insegurança total na vida. Especial em Eclesiastes é que ele nega a retribuição, ao negar qualquer relação entre ação e resultado. O mundo é uma realidade exterior e estranha, que traz insegurança (7.15; 8.14) e incerteza (8.7). Só a morte é certa (9.1-3). Loucura e sabedoria se igualam, pois como o tolo, o sábio morrerá. 

1.2 Jesus, o Novo Testamento e a sabedoria

Jesus foi um sábio. Ele se serviu de máximas e pensamentos que resultaram da observação do mundo concreto. Aforismas foram significativos em seus ensinos, nos quais temas de provérbios do Antigo Testamento aprecem em parábolas, o que constitui um corpo comum de experiências e partilha. Ele aplicou à sabedoria, contudo, a mesma postura crítica e reformadora que teve diante de outros elementos de sua tradição religiosa; utiliza argumentos sapienciais para iluminar a experiência cotidiana e, se não formulou as máximas que usou, os recebeu da tradição, assumindo-os na sua pregação. 

Jesus está mais próximo dos desdobramentos posteriores do movimento sapiencial de Israel (Jó e Eclesiastes) quanto à forma de interpretação da realidade concreta (objeto de observação do sábio). Vai nisso negação enfática de que essa mesma realidade seja, necessariamente, o espaço e o tempo no qual a vontade de Deus impera. E, se a realidade se nega a cumprir a vontade de Deus, não restam alternativas se não a recusa a acomodações. Para a radicalidade reformadora de Jesus, nem os sábios se salvam: os mistérios de Deus não foram revelados a eles, mas aos pequeninos (Mateus 11.25).

Jesus adota uma postura firme e clara em relação às riquezas. Ele diz: “Não podemos servir a Deus e às riquezas” (Lucas 16.13). A riqueza é tratada como um ídolo que toma o lugar de Deus. É muito mais: servir a Deus é rejeitar a riqueza. Jesus disse: “é difícil ao rico entrar no céu” (Mateus 19.23). Ele mesmo não tinha onde dormir (Mateus 8.20). Em Marcos (8.34), Jesus exige renúncia dos discípulos: quem quer ganhar a sua vida vai perdê-la e quem perder a sua vida por causa do Evangelho vai ganhá-la. Inverte-se a lógica de valores: se a riqueza (prosperidade) é um ganho aos olhos humanos, então será perda etc. Lucas registra, ainda, a parábola do rico insensato que acumula riquezas, mas diante da morte, de nada servem a ele. Jesus nunca prometeu riqueza nem prosperidade a ninguém. Ele foi, assim, um fracasso para a Teologia da Prosperidade.

Outros textos do Novo Testamento têm a mesma perspectiva. A epístola de Tiago (2.5-7) partilha dessa mesa herança. Ensina que Deus escolheu os pobres para serem ricos, sim, mas ricos de fé. Ricos são os que oprimem, arrastam os pobres aos tribunais e blasfemam “o bom nome” de Jesus. 

A comunhão de bens da igreja primitiva confirma esse ideal de rejeição da riqueza e da prosperidade como característica necessária à vida cristã. Além do desapego aos bens materiais, a igreja primitiva aboliu a privação (nem ricos nem pobres) – aí não residiria a justiça da herança sapiencial? O acúmulo de riqueza é um pecado contra Deus e sinal de injustiça, como é o caso de Ananias e Safira em Atos 5.

Em Atos 3, um coxo pede esmolas fora do templo. Pedro e João não têm dinheiro para dar, mas oferecem algo muito mais valioso: a cura. Os apóstolos eram pobres e não ensinavam que os cristãos tinham o dever de ser ricos nem que deviam exigir isso de Deus. Os apóstolos não tinham dinheiro, mas deram o que tinham e nisso mesmo reside o milagre. 

Ainda outros trechos do Novo Testamento reforçam tais princípios. Em 1Timóteo 6.9-10 aprendemos que o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males humanos. Paulo, por sua vez, não ensina a acumular bens materiais como sinal da bênção de Deus, ao contrário; ele passou fome e escassez e sabia viver bem nessas situações (Filipenses 4.11s).

A Teologia da Prosperidade é triunfalista, no sentido em que foca somente elementos que se combinam com o egoísmo capitalista. Sob o ponto de vista teológico é anulação da cruz, pedra angular da soteriologia cristã, ideia claramente assumida por Hagin: 

Nosso problema é que temos pregado uma religião de “cruz”, sendo que precisamos pregar uma religião de “trono” [...] Na verdade, a Cruz é um lugar de derrota, ao passo que a Ressurreição é um lugar de triunfo. Quando se prega a cruz, está-se pregando morte e deixa-se o povo na morte. Morremos, sim, mas ressuscitamos com Cristo. Estamos assentados com Ele. Essa é a nossa posição atual: Estamos assentados com Cristo no lugar de autoridade, nos lugares celestiais. (HAGIN, 2002, p. 30). 

A negação da cruz não é negação da essência do cristianismo? Esse trecho e pensamento exemplificam peculiaridades hermenêuticas e exegéticas do movimento da prosperidade.

Nesse ponto ficam mais evidentes as conexões com Machado de Assis, como se verá adiante.

1.3 Teologia da Prosperidade: profética ou apocalíptica?

São Paulo diz que, se esperamos algo da religião apenas para esta vida, somos infelizes: “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos as pessoas mais infelizes deste mundo” (1Coríntios 15.19). Assim, exige-se que religiões tenham algo a dizer sobre o além, o futuro, o que vem depois da morte; essas expectativas condicionam o presente, configurando uma forma ética específica de presença no mundo. 

Na tradição bíblica há duas possibilidades quanto a isso: ênfase no futuro ou no presente, a que correspondem duas formas diferentes de conceber a história, os seres humanos e instâncias supra-humanas, identificadas com a apocalíptica e o profetismo, respectivamente.

Profeta não deve ser entendido no sentido comum de alguém que prediz o futuro. O profeta clássico bíblico é um porta-voz de Deus (embora em alguns casos representasse também interesses dos grupos de pessoas ou de grupos a que estava ligado, como o rei ou o templo). Ele enxerga o que é mau na realidade social e atua para mudá-la. Denuncia os males dos seres humanos e os convoca a mudanças, convidando-os à conversão:

Lavem-se e purifiquem-se! Tirem da minha presença a maldade dos seus atos; parem de fazer o mal! Aprendam a fazer o bem; busquem a justiça, repreendam o opressor; garantam o direito dos órfãos, defendam a causa das viúvas (ISAÍAS 1.16-17).

Mas, se de fato emendarem os seus caminhos e as suas ações, se de fato praticarem a justiça, cada um com o seu próximo; se não oprimirem o estrangeiro, o órfão e a viúva, nem derramarem sangue inocente neste lugar, nem seguirem outros deuses para o próprio mal de vocês, eu os farei habitar neste lugar, na terra que dei aos pais de vocês, desde os tempos antigos e para sempre (JEREMIAS 7.5-7).

O profeta bíblico tem por horizonte a história humana: este mundo, o aqui e o agora é o palco em que ele atua e o qual pretende transformar; para isso, conta com a conversão de seres humanos e perdão e favor divinos.

Posteriormente aos profetas clássicos, pode-se falar em movimento apocalíptico, cujos representantes, como os profetas, também enxergam a realidade má, mas não acreditam que os homens podem se regenerar para mudá-la, pois há poderes demoníacos que atuam no mundo. Somente as forças divinas podem vencê-los; daí a necessidade de combate de amplitude cósmica dessas esferas supra-humanas (EHRMAN, 2000). Trata-se de visão maniqueísta, de influência persa, que já aparece assumida nas páginas do Novo Testamento. Para essa concepção, o presente é mau porque está sob poderes demoníacos que perseguem os cristãos; o triunfo só chegará no futuro, quando as forças do bem, em batalha cósmica, triunfarão:

Bem-aventurados são vocês quando, por minha causa, os insultarem e os perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vocês. Alegrem-se e exultem, porque é grande a sua recompensa nos céus; pois assim perseguiram os profetas que viveram antes de vocês (MATEUS 5.11-12).

Mas, naqueles dias, após a referida tribulação, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do firmamento e os poderes dos céus serão abalados. Então verão o Filho do Homem vindo nas nuvens, com grande poder e glória. E então ele enviará os anjos e reunirá os seus escolhidos dos quatro ventos, da extremidade da terra até a extremidade do céu (MARCOS 13.24-27).

O presente para a apocalíptica é alvo de desdém, pois o que importa é o futuro de glória, com a vitória prometida das forças divinas. Se há desconforto agora, depois ele será recompensado e superado.

Nessa perspectiva, os adeptos da prosperidade negam eles o futuro como o tempo de Deus; valorizam o presente, por afirmarem a fruição imediata de bençãos materiais. Mas não são proféticos por isso, visto que não estão comprometidos com a transformação do mundo, como indicou o ideário programático dos profetas bíblicos. O presente não é tempo de compromissos nem de lutas nem de renúncias e procura-se evitar o desconforto que ele oferece, não havendo compromisso com a mudança para melhorar o mundo. Pode-se dizer que há uma espécie de relativização dessas concepções, com o surgimento de nova relação com o tempo, com as pessoas e com bens materiais.

Enfim, podem ser apontados aspectos de aproximação e de contraste, sob o ponto de vista teológico: a Teologia da Libertação e a Teologia da Prosperidade têm em comum o fato de Deus não ser indiferente ao sofrimento causado pela carência material; contudo, há uma diferença significativa: para aquela, trata-se de consequências da ordem social injusta; para esta, é a fraqueza espiritual do crente a responsável pelas agruras materiais. Disso decorre outro ponto comum, que é “a não aceitação da redução da religião à esfera da vida privada e da salvação eterna pós-morte” (SUNG, 2015, p. 45). Trata-se de agir no presente – e logo, com as ferramentas disponíveis. Em adição, pode apontar ainda outra importante diferença: para a Teologia da Libertação a dignidade humana universal independente da condição religiosa e da pobreza, enquanto a Teologia da Prosperidade a “defende a inclusão no consumo, sem questionar a cultura de consumo capitalista. Isto é, a primeira busca a superação do sistema capitalista; a segunda, a integração e ascensão no interior da classificação social capitalista” (SUNG, 2015, p. 47).

Nesse sentido, sob o ponto de vista das ciências sociais, estudos que analisam o fenômeno indicam que é preciso considerar ainda que em contexto de religioso (portanto, de grande complexidade social, como o panorama atual do Brasil), as expressões religiosas tendem a se submeter à lógica da economia de mercado, que, assim, assume funções tradicionais da Religião quanto a convicções e comportamentos (SUNG, 2014).

2 Machado de Assis, “O sermão do Diabo” e economia

O conto “O enfermeiro”, publicado em 13 de julho de 1884 na Gazeta de Notícias, termina nestas palavras: “Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados” (ASSIS, 2008, vol. 2, p. 497). Essa reprodução paródica de um verso do conhecido “Sermão do Monte”, proferido por Jesus e registrado no Evangelho de Mateus, bem poderia ser síntese de alguns princípios da Teologia da Prosperidade.

São muito recorrentes as menções a bens materiais e merece destaque a forma com que o dinheiro é tratado nas obras de Machado de Assis. Vive-se e morre-se por ele, o deus deste mundo, como afirmou certa vez: “O dinheiro é um termômetro; cumpre ter os olhos nele, a ver se valemos deveras alguma coisa. E se ele é o deus do nosso tempo, e Rothschild seu profeta [...] alegremo-nos com a confiança do profeta; é o caminho da graça divina” (ASSIS, 2008, vol. 4, p. 444). Ao tema pecuniário se associam remissões à Bíblia e à religião, cuja síntese adequada e representativa é a paródia “O sermão do Diabo”.

O tema pode ter amplitude maior se for considerada a importância que a economia tem para a organização da sociedade; é o centro em torno do qual gravitam outros constituintes de grupos humanos. Por outro lado, é possível considerar apenas os limites da relação pessoal com o dinheiro e com os bens materiais na configuração de valores e comportamentos em seus desdobramentos interpessoais. Em Machado encontramos ambas as alternativas.  

A recorrência de menções à economia em Machado são tantas que Gustavo Franco (2005), ex-presidente do Banco Central do Brasil, elaborou uma antologia nas quais a economia e a relação com o dinheiro são predominantes; analisando crônicas produzidas entre 1883 e 1900, o livro tem seu interesse, apesar de o autor querer fazer de Machado um investidor engajado, como se disso dependessem o vigor e o valor de sua obra. A antologia foca os lances escusos dos capitalistas, banqueiros, comerciantes, rentistas, fazendeiros, escravocratas, grandes ou pequenos – toda essa variada galeria frequenta a obra machadiana.

O escândalo das fortunas instantâneas do Encilhamento foi resultado da vitória do espírito do capitalismo desacompanhado da ética protestante, sem escrúpulos de expor escusas transações nas praças (FRANCO, 2008)[10]

 A segunda metade do século XIX experimentou, sobretudo no período inicial da República, forte onda de especulação financeira e complexificação das relações econômicas, com reflexos significativos no comportamento dos indivíduos. Observava-se paulatino abandono de escrúpulos religiosos quanto ao dinheiro, se é que os havia na prática. O mundo moderno da República era laico, como sublinha Faoro:

O homem religioso, o cristão, o católico, são extravagâncias e inutilidades na máquina do mundo. O católico perdeu suas raízes cristãs que o alimentaram e lhe insuflaram o sentimento da divindade. Sua existência social se determina pela qualidade de burguês, cujo último estágio é o do acionista, e não de membro da cristandade, da igreja (FAORO, 1976, p. 398).

Machado de Assis percebeu e retratou bem essas oscilações em sua obra. O acionista, por exemplo, nova figura do mundo econômico, aparece em algumas peças. Ele é “uma bela concepção [...] é próprio capital, é o fundo, é super hanc petram[11]. Sem ele não há casa nem obra [...]” (Assis, 2008, p. 856). Em crônica de 23 de outubro de 1892, o narrador faz recuar essa relação ao início de tudo: 

Ah! se eu for a contar memórias da infância, deixo a semana no meio, remonto os tempos e faço um volume [...] E assim irei de século a século, até o paraíso terrestre, forma rudimentária do encilhamento, onde se vendeu a primeira ação do mundo. Eva comprou-a à serpente, com ágio, e vendeu-a a Adão, também com ágio, até que ambos faliram. E irei ainda mais alto, antes do paraíso terrestre, ao Fiat lux, que, bem estudado ao gás do entendimento humano, foi o princípio da falência universal (ASSIS, 2008, p. 929).

O trecho sumariza a forma com que o acionista, a ética capitalista, o lucro, o dinheiro – ou qualquer outro nome que isso venha a ter – é avaliado pelo escritor brasileiro: “falência universal”.

2.1 “O Sermão do Diabo”[12]

Publicado em 1892, no jornal Gazeta de Notícias, “O sermão do Diabo” é paródia do conhecido “Sermão do Monte”, registrado no Evangelho de Mateus. Dos 28 versículos que compõem a peça, transcrevemos por ora a abertura[13]:

Nem sempre respondo por papéis velhos: mas aqui está um que parece autêntico; e, se o não é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo, justamente um sermão da montanha, à maneira de São Mateus. Não se apavorem as almas católicas. Já Santo Agostinho dizia que “a igreja do Diabo imita a igreja de Deus”. Daí a semelhança entre os dois evangelhos. Lá vai o do Diabo.

O sermão começa em primeira pessoa, assumida pelo enunciador, com a apresentação do manuscrito; em seguida, é concedida voz ao (narrador do) manuscrito para, posteriormente, ser concedida voz ao Diabo; este, por sua vez, a delega a outro enunciador (“ouvistes o que foi dito...”). Essa cadeia de vozes, em abismo, além de projetar relevância para o arranjo de múltiplos discursos, torna complexo o resultado, impedindo a responsabilização pelo enunciado de apenas uma instância discursiva. 

Sob o ponto de vista retórico, reconhecem-se dois recursos: o primeiro procura atenuar o estranhamento do título e possíveis resistências do leitor, que tenderia a não-crer no enunciado pelo cruzamento inesperado: o Diabo não profere sermões. Há o emprego de recurso retórico relacionado às relações entre o enunciador e o seu auditório, a captatio benevolentiae. Na introdução, o enunciador trata de demolir possíveis resistências: “Não se apavorem as almas católicas”. O final é significativo, ao apontar para o exorcismo e fuga do Diabo: “Fiz-lhe uma cruz com os dedos, e ele sumiu-se”. O segundo recurso retórico é o argumento de autoridade, pela invocação a Santo Agostinho, doutor da Igreja, para quem “a igreja do Diabo imita a igreja de Deus”. Esse tipo de recurso se sustenta no prestígio incontestável de auxiliares convocados “para que cumpram programas narrativos de uso: atribuam competência ao sujeito ou realizem, em seu lugar, fazeres necessários ao programa de base” (BARROS, 2001, p. 111).

Na parte final desse trecho pode ser reconhecido um efeito pragmático que reforça a ambiguidade. O enunciador não responde pelo papel; o efeito consequente é fazer com que o destinatário tire suas conclusões, isentando o enunciador de ser por elas responsável.

Depois desse preâmbulo, começa o sermão propriamente dito; estes são os nove primeiros versículos são aqui transcritos por serem representativos das ideias que se quer realçar:

1º E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.

2º E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as palavras seguintes.

3º Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão embaçados.

4º Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.

5º Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais leves.

6º Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.

7º Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu respeito.

8º Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.

9º Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra coisa se há de salgar? [...].

É interessante fazer breve comparação com o “Sermão do Monte”. O sermão bíblico apresenta semelhanças na projeção de categorias de pessoa, espaço e tempo, como fonte da paródia. Vejamos os seguintes exemplos:

Quadro 1: Comparação entre o Sermão de Mateus e o “Sermão do Diabo”

Sermão de Mateus[14]

Sermão do Diabo

5.1 Vendo Jesus a grande multidão do povo, subiu a um monte, e, depois de se ter sentado, chegaram para o pé dele os seus discípulos.

1º E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.

5.12. Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso nos céus...

8º. Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.

6. 20. Mas entesourai para vós tesouros no céu, onde não os consome a ferrugem nem a traça, e onde ladrões não os desenterram nem roubam.

21. Mas remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde nem a ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões o roubam, e onde ireis vê-los no dia do juízo.

Fonte: Proença (2018)

Há detalhes linguísticos que aproximam o sermão dos princípios da Teologia da Prosperidade. O primeiro versículo do sermão do Diabo emprega noção espacial de aproximação, pelo uso do dêitico espacial Corcovado, que contamina a noção de tempo a ele associada (aqui, agora). No v. 8, em lugar de “céu” aparece “terra”[15] e, no v. 21, “banco de Londres” ocorre em lugar de “céu”. Ocorre, assim, uma distinção das noções de espaço entre os dois sermões. As projeções de tempo e pessoa sofrem uma contaminação espacial; o “aqui” representado por “Corcovado” implica num “agora”, inclusive por causa do gênero do escrito: a paródia está embutida numa crônica, concebida numa moldura temporal, identificada no início e no fim da peça; e justamente nesses limites há o emprego do “aqui” e da primeira pessoa verbal. 

A diferente projeção dessas categorias vai abaixo exposta, de forma esquemática:

Quadro 2: noção de espaço, tempo e pessoa nos dois sermões

 

Espaço

Tempo

Pessoa

Sermão de São Mateus

Então

Ele

Sermão do Diabo

Aqui

Agora

Eu-vós[16]

Fonte: Proença (2018)

O efeito da paródia é provocar aproximação, enquanto há distanciamento no sermão bíblico. é o espaço de Deus; aqui é o espaço do Diabo. Nesse simulacro, o tempo projetado é o agora.

As categorias de tempo, espaço e pessoa têm a finalidade de produzir efeitos específicos. As delegações e retomadas de voz são controladas para produzir os efeitos desejados pelo narrador: objetividade (nas concessões de fala) e a correspondente isenção do enunciador pela responsabilidade de dizer o que foi dito.

“O sermão do Diabo” se ocupa do tema da bem-aventurança vinculada à posse do dinheiro, cujos meios de obtenção são violência e logro. Para a identificação de temas e figuras serão considerados os percursos figurativos e temáticos mais significativos, que mantêm relação de complementaridade.

Quadro 3: percursos temático e figurativo dos sermões

Percursos temáticos

Temas

Percursos figurativos

“Galardão copioso na terra”; “sal do money market; “guardar tesouros na terra”, “as percentagens são as primeiras flores do capital” 

Bem-aventurança (amor ao dinheiro)

Terra, sal, tesouros, ferrugem, traça; capital; banco, comissões, algibeiras; galardão; acionistas; 

“Comei-vos[17] uns os outros”; “arrancar a última camisa”; “tira do teu irmão o que levar consigo”

Roubo, violência, ganho, perda:

Lombo, camisa, irmão, chapéu, vela; ladrões; polícia; cadeia

“Bem-aventurados aqueles que embaçam”; “não jureis nunca a verdade”; “vendei gato por lebre”; “fica a ver navios”; “não deis contas das contas passadas”

Logro, engano (verdade e mentira)

 Gato, lebre, navios; concessões

Doutrinas; semelhança entre os dois evangelhos; “Fiz-lhe uma cruz com os dedos”

Religião

Santo Agostinho, igreja, evangelho, São Mateus, Diabo, discípulos, cruz; irmão; 

 “Não se põe uma vela acesa debaixo de um chapéu, pois assim se perdem o chapéu a vela” 

Sabedoria (instrução)

Homem sábio, homem sem consideração; rocha, areia; ventos; navio

“Já Santo Agostinho dizia que...”; erros de cópia; Mefistóteles

Literatura

Papéis, texto, manuscrito, papel, erros; cópia;

“Não serão embaçados”; “possuirão a terra”; “andarão mais leves”; “morrerão grossos” (v. 6)

Recompensa e punição

Polícia, prisão, galardão; cadeia

Fonte: Proença (2018)

O percurso temático-figurativo da antiga ordem está em relação de contraste com os demais (exceto o da Literatura, situado no campo da neutralidade), sobre os quais é projetado investimento de valor positivo, com o que se alinha o novo homem sábio, representante do discípulo da nova religião. Predominam temas vinculados a dinheiro e finanças, que desencadeiam vínculos com logro, roubo e violência.

O sermão de Mateus apresenta outros temas e figuras, alguns com função e valores invertidos no sermão machadiano. Por exemplo, o tema o amor radical: “Amai a vossos inimigos” (5.44); o tema da do sofrimento: “Bem-aventurados os que choram” (5.5); “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça” (5.6). 

“O sermão do Diabo” prega a posse do dinheiro como máximo valor a ser perseguido, para o que valem todos os meios, principalmente os ilícitos e os violentos. O Diabo indica que, para conquistar esse intento, seus ouvintes têm plena capacidade, conforme indica o v. 22: “Não vos fieis uns nos outros. Em verdade vos digo, que cada um de vós é capaz de comer o seu vizinho e boa cara não quer dizer bom negócio”.

Estabelece-se tensão entre o ser e o parecer, verificada a partir dos acordos pactuados com o diabo machadiano e o sermão bíblico. O resultado é aparente adesão ao sermão de Mateus, dada a força sancionadora da religião oficial; contudo, por causa de constrangedoras exigências de renúncia que nem todos estão dispostos a acatar, instala-se ambiguidade no pacto social, com duas dimensões opostas: a do parecer, relativa ao contrato proposto em Mateus; e a do ser identificada com o Diabo. A paródia provoca o efeito de denúncia desse arranjo social mantido pela mentira (no sentido semiótico do termo), que professa valores (inclusive religiosos) na esfera do parecer e os nega na dimensão do ser (BARROS, 2001).

Identificam-se no sermão do Diabo duas relações de base: exploração x solidariedade e vida x morte: vida se associa a exploração e, por necessidade, morte a solidariedade. Começa o sermão machadiano por afirmar a vida, segundo o sermão bíblico (ouvistes o que foi dito...); passa, em seguida a negá-lo (eu, porém, vos digo...) e chega a afirmar o contrário: a vida não é solidariedade, mas a exploração: para o sermão bíblico, a vida está no amor; para o sermão do diabo, a vida está na exploração.

Todavia, é preciso que se faça importante observação: não há uma enfática negação de um dos polos. O sermão não é peremptório na radicalização dos extremos semânticos dos eixos de sentido, a partir do v. 14: “Também foi dito aos homens: Não matareis a vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não sejais castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar a vosso irmão para ganhardes o reino da terra; basta arrancar-lhe a última camisa”. Essa ideia é reforçada pelo v. 29 que admite, excepcionalmente o amor, desde que renda alguma vantagem (amor-interesse): “29. Podeis excepcionalmente amar a um homem que vos arranjou um bom negócio; mas não até o ponto de o não deixar com as cartas na mão, se jogardes juntos”. 

Essa ambiguidade é significativa e projeta ênfase para a proposta do sermão. Há dois discursos polêmicos numa relação de negação mútua; um e outro se constituem em dois elementos de uma extensão de sentido, como dois polos de um mesmo eixo semântico.

O sermão de Mateus exige que os discípulos amem os inimigos (v. 13: “Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-vos uns aos outros [...]”); assim, a vida está no amor, na solidariedade; nega-se a exploração e o amor ao dinheiro; ao contrário, o sermão do Diabo não nega a vida, mas o amor-solidariedade: a vida está na exploração e no amor-interesse.

A título de exemplo, justapomos dois versículos, um de cada sermão, que servirão para sustentar essa diferente axiologização:

Quadro 4: comparação entre versículos dos dois sermões

Sermão de São Mateus

Sermão do Diabo

6. 23.     Portanto, se tu estás fazendo a tua oferta diante do altar, e te lembrar aí que teu irmão tem contra ti alguma coisa, 24 Deixa ali a tua oferta diante do altar, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e, depois virás fazer a tua oferta.

15. Assim, se estiveres fazendo as tuas contas,[18] e te lembrar que teu irmão anda meio desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu irmão na rua, restitui-lhe a confiança, e tira-lhe o que ele ainda levar consigo (grifos nossos).

Fonte: Proença (2018)

Como “O sermão do Diabo” associa vida a engano e exploração, opera-se complexificação dessa relação de oposição ao promover uma transposição, com a simultânea projeção de um valor positivo a termos que, culturalmente, sofrem valorização negativa, como a opressão e o interesse.

A relativização dos termos opostos do eixo semântico do amor e da morte (v. 14 e 29) pode ser considerada isotopia narrativa de ambiguidade, atestada na introdução, na citação de Santo Agostinho: “a igreja do Diabo imita a igreja de Deus” e “Daí a semelhança entre os dois evangelhos” e nestes outros, da conclusão: 

Aqui acaba o manuscrito que me foi trazido pelo próprio Diabo [...] ou alguém por ele; mas eu creio que era o próprio. Alto, magro, barbícula ao queixo, ar de Mefistófeles. Fiz-lhe uma cruz com os dedos e ele sumiu-se. Apesar de tudo, não respondo pelo papel, nem pelas doutrinas, nem pelos erros de cópia (grifos nossos). 

A conjunção alternativa ou inicia provoca o efeito de negar a afirmação anteriormente feita, instalando a dúvida, realçada pelo termo erros. Erros pode ser considerado um desencadeador de isotopia, pois sugere, de forma ambígua, uma névoa de incerteza que recai sobre todo processo de transmissão cultural.

Há emprego de recursos poéticos no sermão do Diabo, alguns colados ao original parodiado, outros acrescentados pelo narrador. No primeiro caso temos paralelismos, sintéticos e antitéticos, como no v. 24: “Não queirais julgar para que não sejais julgados; não examineis os papéis do próximo para que ele não examine os vossos, e não resulte irem os dous para a cadeia, quando é melhor não ir nenhum”. No segundo, podem ser reconhecidas metáforas, comparações, antíteses, aliterações repetições, como, o exemplo, no v. 27: “Não deis conta das contas passadas, porque passadas são as contas contadas, e perpétuas as contas que se não contam”.

Em “O sermão do Diabo” há realce à paródia. O Diabo toma o lugar de Deus e profere um sermão em moldes bíblicos. Além disso, a paródia instala o efeito do riso e do humor que resulta de carnavalização, pela consciente elevação do Diabo ao papel que cabe a Deus.

2.2 Efeitos do uso de paródias e de carnavalização

Bakhtin (1987), afirma que a produção literária de Rabelais está ligada a fontes populares, à valorização do riso, da praça pública, do humor, características das festas religiosas da Idade Média. Esses ritos ofereciam visão não-oficial do mundo, do ser humano, exterior à Igreja e ao Estado, em que aspectos sérios e cômicos se misturavam, numa dualidade ambivalente do mundo, ao fundir em moldura carnavalizada aspectos de natureza positiva e negativa, do alto e do baixo (Deus x Diabo), do feio e do bonito, do conveniente e do não conveniente (sob o aspecto das convenções sociais). A esse fenômeno, que atribuía sua essência ao corpo, sempre em simbiose com os valores primeiros da existência, Bakhtin dá o nome de realismo grotesco (PROENÇA, 2018)

Características populares e suas possibilidades de renovação estão inscritas em procedimentos e valores portadores de vida e – também por isso – se constituem em esperança de um mundo melhor, social e economicamente mais justo. Essa visão festiva libera o mundo de tudo que é atemorizador, inclusive e sobretudo dos medos que vêm do Diabo; o mundo torna-se inofensivo e alegre: o medo é vencido pelo riso. O grotesco tem a função de liberar o homem das formas de necessidade artificialmente desumana em que se baseiam as ideias dominantes e, por sua ambivalência, o projeta para o campo do relativo.

No realismo grotesco eram livres as paródias e não havia proibição: ocupavam-se do culto, do dogma religioso e da Bíblia. Um de seus efeitos inconfundíveis é o riso carnavalesco universal e ambivalente, principalmente quando o alvo era religioso. As produções paródicas não indicavam apostasia: “Sabemos que os autores das paródias mais desenfreadas dos textos sagrados e do culto religioso eram pessoas que aceitavam sinceramente esse culto e o serviam com não menor sinceridade” (BAKHTIN, 1987, p. 82).

A paródia é uma das principais características do sermão machadiano. Segundo Hutcheon, ela resulta da mescla de elogio e censura, com ato crítico de reavaliação e acomodação. Essa forma expressiva não é “aquela imitação ridicularizadora mencionada nas definições dos dicionários populares” (HUTCHEON, 1989, p. 16), embora não deixe de ser imitação, com a qual compartilha o recurso de incorporação em sua organização formal. A paródia tem distância; não é apenas de imitação, mas apropriação textual, com distanciamento irônico e revisão crítica; exige participação do leitor, na apreensão interpretativa. Historiadores dizem que ela “prospera em períodos de sofisticação cultural que permitem aos parodistas confiar na competência do leitor espectador, ouvinte da paródia” (HUTCHEON, 1989, p. 31). 

            O uso literário da paródia repousa em rica tradição, como atesta Bakhtin. Os jogos monacais a que se permitiam teólogos e eclesiásticos criavam liturgias paródicas, que se ocupam do culto e do dogma religioso: “[...] a Liturgia dos bêbados, a Liturgia dos jogadores [...] evangelhos paródicos: o Evangelho do marco de prata, o Evangelho dos beberrões [...] Encontramos testamentos paródicos: Testamento do porco, Testamento do asno” (BAKHTIN, 1987, p. 74).

Em “O sermão do Diabo” não é difícil reconhecer a presença de outro tema: a sabedoria. É verdade que em Machado a sabedoria é pessimista, inspirada em e Eclesiastes (PROENÇA, 2011). No fecho de “O sermão do Diabo”, ocorre essa remissão: “Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa, será comparado ao homem sábio, que edificou sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contrário do homem sem consideração, que edificou sobre a areia, e fica a ver navios...”. 

Conclusão

Tanto a Teologia da Prosperidade quanto o sermão machadiano fazem convergir religião e economia, fé e bens materiais, Deus e Mamon – embora com propósitos divergentes.

Prosperidade é recorrente na Bíblia e noção importante para a sabedoria. Contudo, o sentido do termo é bem diverso do que hoje se admite: não é uma recompensa de natureza econômica, mas inserção em uma ordem social em que há compromisso ético com a justiça e com a mudança. A sabedoria variou no tempo. e Eclesiastes testemunham um desencanto com o mundo em que os justos sofrem. Jesus, herdeiro da sabedoria, a reelabora e nega a lei do retorno: a bem-aventurança do crente é o sofrimento por causa do compromisso com o Evangelho; haverá recompensas, mas elas chegarão no futuro de Deus

Para essa Teologia, a essência da vida religiosa é a riqueza material, ainda que o preço seja a relativização de elementos essenciais à fé cristã, como a distensão escatológica que aponta o futuro como o tempo da recompensa divina; esta é a chave sob a qual as escrituras são interpretadas: o tempo e o lugar de fruição é o agora e o aqui. Para isso, as organizações religiosas da prosperidade se inserem no mercado religioso por meio de estratégias de marketing.

A valorização do presente se dá porque é neste tempo que a fruição deve ocorrer e não porque a solidariedade deve dirigir as consciências; cristãos devem exigir de Deus abundância material. A Teologia da Prosperidade decretou a vitória de Mamon. A fé se submete ao dinheiro. Deus e dinheiro se confundem e se relativizam, com supremacia do capitalismo, sistema que mais se ajusta às misérias humanas.

A Teologia da Prosperidade teve ampla aceitação da sociedade, principalmente dos setores mais pobres da sociedade por apontar o caminho do acesso e eventual acúmulo de bens materiais, o que, no fundo, é pilar das sociedades capitalistas[19]. Em certo sentido, essa porta estava fechada por escrúpulos religiosos que projetam a felicidade máxima para o mundo do além. Com superação desse bloqueio, os valores capitalistas são assumidos e estimulados, sem a devida crítica às injustiças em que ele se assenta. Soares (2019) aponta o desafio que crises constantes do sistema capitalista e seu sistema de exclusão desafiam explicações convincentes.

Para a Prosperidade, o presente é de fruição – e não importa se nele há injustiças; para Machado, no presente há injustiças – e isso importa – provocadas pelos seres humanos, seguidores do Diabo, para a finalidade de acumulação material. 

Machado também usa as Escrituras em conexão com riquezas e bens materiais, mas para crítica ao arranjo social de seu tempo, como se pôde ver em “O sermão do Diabo”: se o sermão bíblico aponta valores referentes à vida, o sermão do Diabo os nega, e vice-versa. A vida, no sermão bíblico, corresponde ao amor-solidariedade, enquanto no sermão do Diabo, a vida aponta para o interesse, o logro[20], o roubo, temas recorrentes em Machado.

Corcovado provoca uma superposição espacial e temporal; o aqui e o agora se projetam do espaço e do tempo míticos. Contudo, há nova perspectiva que comanda essa inserção, pois a bem-aventurança é descrita sob novas categorias. Os bem-aventurados do Corcovado não são mais os pobres, os pacificadores, os que têm fome e sede de justiça, conforme o evangelho bíblico; ao contrário, são os afoitos e os que enganam. Na peça machadiana, a bem-aventurança é trazida pela posse do dinheiro, obtido pela violência (“o vosso galardão é copioso na terra”), com o apoio a recorrências temáticas e figurativas que asseguram coerência ao conjunto.

A aproximação com os profetas pode ser reconhecida na denúncia. Contudo, há diferença em Machado: enquanto nos profetas bíblicos há sempre uma possibilidade de redenção, em Machado não há esperança nenhuma. A denúncia reside nisto: violência para obtenção de riquezas a qualquer custo, por inspiração do Diabo, que está no Corcovado[21].

Recentemente a estátua do Cristo no Corcovado foi reconhecida como uma das maravilhas do mundo. A estátua não abençoa a instância do parecer e esconde sob seus braços a ordem do interesse e logro. Onde nós vemos Cristo, Machado viu o Diabo: “Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão embaçados”.

Referências

ASSIS, Machado de. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília; São Paulo: Editora Universidade de Brasília; Hucitec, 1987.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas, 2001.

BOBSIN, Oneide. Teologia da Prosperidade ou estratégia de sobrevivência: estudo exploratório. In: Estudos Teológicos, 35(l):21-38, 1995. Disponível em: http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/839/768. Acesso em: 28 maio 2020.

EHRMAN, Bart D. The New Testament: A historical introduction to the early Christian writings. New York/Oxford: Oxford University Press, 2000.

FAORO, Raimundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.

FRANCO, Gustavo H. B. A economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo do acionista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

HAGIN, K. A oração que prevalece para a paz. Rio de Janeiro: Graça Artes Gráficas Editorial, s/d.

HAGIN, K. Novos limiares da fé. Rio de Janeiro: Graça Artes Gráficas Editorial, 2002.

HAGIN, K. O nome de Jesus. Rio de Janeiro: Graça Artes Gráficas Editorial, 1999.

HAGIN, K. Redimidos da miséria, da enfermidade e da morte. Rio de Janeiro: Graça Artes Gráficas Editorial, 1988.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1989.

PIERATT, Alan B. O evangelho da prosperidade: análise e resposta. São Paulo: Vida Nova, 1993.

PROENÇA, Paulo S. Jesus e a prosperidade: ecos e desafios da sabedora de Israel. In: Estudos bíblicos, 99, 2008/3. Petrópolis: Vozes, 2008.

PROENÇA, Paulo S. O protagonismo do Diabo em Machado de Assis. Curitiba: Appris, 2018.

PROENÇA, Paulo S. Sob o signo de Caim: Machado de Assis e a Bíblia. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011. 247f.

RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo. Vol. 1. São Paulo: ASTE, 1973.

SILVEIRA, Marcelo. O discurso da Teologia da Prosperidade em igrejas evangélicas pentecostais: estudo da Retórica e da Argumentação no culto religioso. Tese (Doutorado). São Paulo: Departamento de Filologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007.

SIQUEIRA, Tércio Machado. Tirando o pó das palavras: história e teologia de palavras e expressões bíblicas. São Paulo: Cedro, 2005. 

SOARES, Luiz Eduardo. Revoluções no campo religioso. In:  Novos estudos Cebrap. Vol. 38, número 01, p. 85-107, Jan–Abr, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/8MpVc6VhKDmDnN8T4BSkGcv/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 10 set 2022.

SUNG, J. M. Mercado religioso e mercado como religião. In: Horizonte - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 12, n. 34, p. 290-315, 2014. Disponível em:   http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P. 2175-5841.2014v12n34p290. Acesso em 03 ago 2022.

SUNG, Jung Mo. Prosperidade sim, família homossexual, não! A nova classe média evangélica. In: Psicologia USP. Volume 26, número 1, p. 43-51, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pusp/a/CxXJnYFzdYgnySPSXhfdpFL/ ?lang=pt. Acesso em: 31 jul 2022.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 ------------

Notas

[1] Característica dos profetas era a invectiva, a coragem para denunciar e reivindicar. Isaías, Jeremias, Oseias e Amós são os principais representantes. 

[2] Organizações ativas no Brasil se inspiraram no movimento com iniciativas relevantes, como o CEBI-Centro de Estudos Bíblicos, que produz material de excelente qualidade para círculos de leitura popular; CONIC-Conselho Nacional de Igrejas Cristã no Brasil; CENACORA-Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo; CESE-Coordenadoria Ecumênica de Serviço; CLAI-Conselho Latino Americano de Igrejas, dentre outras.

[3] Curiosamente, a liberdade foi mote da última campanha presidencial de candidato direitista assumido, que invoca João 8.32: “conhecereis a verdade, e a verdade os libertará”. Ironia da história, agora o texto bíblico suporta a opressão, embora fale de liberdade. Esse candidato venceu as eleições presidenciais de 2018 com maciço apoio dos cristãos, principalmente evangélicos, supostos guardiões da Bíblia e da Liberdade.

[4] Há flutuação de termos identificadores, na tentativa de delimitação de territórios identitários entre fiéis cristãos; os não-católicos foram identificados inicialmente por crentes. Com a chegada dos pentecostais no começo do século XX, cunhou-se evangélicos para diferenciar membros de igrejas históricas dos  novos crentes. Com os neopentecostais, novo grupo se distingue nesse cenário; com eles não se alinham alguns pentecostais, que passam a  se identificar também por evangélicos; com isso confundem-se com os históricos que, por sua vez, criam novas estratégicas de identificação: “acabam por se chamar de  evangélicos da igreja tal, ou evangélicos tradicionais, ou então reformados, conforme cada situação” (SILVEIRA, 2007, p. 17-18).

[5] A redução da espiritualidade a um valor contábil é reforçada pelo uso do nome de Jesus, que tem um valor mágico, pois o cristão, ao proferi-lo, é investido de um poder de preencher um cheque em branco: “Falemos do nome de Jesus! Ele nos deu, individualmente, um cheque assinado dizendo: ‘Preencha-o’. Deu-nos um cheque assinado, cobrável aos recursos do céu” (HAGIN, 1999, p. 19).

[6] O direito somente pode ser entendido a partir de seu desdobramento natural: o dever. Se o ser humano tem o direito “adquirido” à prosperidade, ela é, então, um dever de Deus. Daí poder ser requerida, “declarada”.

[7] O sábio produz sentenças de grande impacto; no aspecto formal delas há predominância de sentenças curtas, de fácil memorização. As sentenças da sabedoria são profanas, elas não reivindicam o estatuto de revelação; têm valor teológico à medida que se referem diretamente a Deus e a sua intervenção na ordem das coisas observadas. 

[8] Havia, também, o prazer que traziam os jogos de linguagem e os recursos de expressão linguística, de que os sábios se serviram, pela exploração estética dos recursos da linguagem e do pensamento.

[9] Para Rad nunca houve dúvidas quanto à existência de Deus, mas quanto à sua capacidade de dirigir a história, em virtude da implacável adversidade do imponderável: "A tragédia desse livro é precisamente que Quohelet procura Deus num mundo totalmente despido da intervenção histórica de Javé [...] Observou a vida em busca de um valor que valesse a pena e verificou que tanto a sabedoria, como a riqueza, o trabalho ou a glória póstuma são 'vaidade’” (1973, p. 427).

[10] Encilhamento foi uma reforma econômica e política que pretendia incentivar a atividade econômica; provocou efeitos contrários aos pretendidos, por causa de desajustes tais que permitiram lucros enormes, mas de fundo apenas especulativo.

[11] A expressão super hanc petram (sobre esta pedra) é parte do que Jesus disse a Pedro: “sobre esta pedra edificarei minha igreja” (Mateus 16.18). Nisso se apoia a tradição católica, para reivindicar a autoridade eclesiástica e o governo episcopal, além da sucessão apostólica. A citação é da crônica de 23 de fevereiro de 1889.

[12] Machado escreveu também “A igreja do Diabo”, conhecido conto no qual o Diabo cria igreja para si e prega evangelho sedutor para os seres humanos, pois transforma em virtude o que para a doutrina cristã é pecado. O conto tematiza a contradição inerente à condição humana. 

[13] As citações relativas a essa peça têm esta fonte: Assis, 2008, vol. 2, p. 620-622.

[14] Nos versículos que servirão para comparação, será utilizada a tradução do padre Antonio Pereira de Figueiredo, utilizada por Machado.

[15] A noção espacial ocorre pelo emprego de diferentes referências: “terra” e “Londres” (a expressão “banco de Londres” se opõe a “céu”; “Corcovado”, a um “lá” indefinido, mítico).

[16] No sermão de São Mateus há, igualmente, emprego das primeira e segunda pessoas eu-(tu-vós), inclusive por causa do imperativo e nisso os sermões se parecem.

[17] Esta é a definição de “comer”, segundo o dicionário Caldas Aulete: “comer alguém: enganá-lo, ludibriá-lo [...]; comer alguma coisa a alguém: extorquir, por fraude ou ardil; roubar”.

[18] O que em Mateus é altar e oferta em “O sermão do Diabo” vira contas; a reconciliação inicial se transforma em nova oportunidade para expropriação. Há, por força dessa correlação, uma contaminação entre os discursos, cujo efeito inegável é: a religião do Diabo é a da exploração e a oferta é o roubo-exploração.

[19] Soares (2019) chama a atenção para o fato de, apesar do crescimento do segmento neopentecostal, haver aumento significativo dos sem religião e do individualismo.

[20] É interessante notar a origem etimológica de logro, que recupera outro vocábulo de muito prestígio, hoje: lucro.

[21] O monte é um espaço privilegiado na religião, por representar a elevação espiritual. O monte Corcovado, contudo, se notabiliza por ser o lugar em que o Diabo está.