Anjos do Espaço: Angelologia na
Trilogia Cósmica de C. S. Lewis
From poetry to divine mystery
Angels of Space: Angelology in the
Cosmic Trilogy of C. S. Lewis
Não são todos eles espíritos ministradores, enviados para serviço a favor dos que hão de herdar a salvação? Hb 1,14
Carlos Ribeiro Caldas Filho*
* Doutor em Ciências
da Religião pela
Universidade Metodista
de São Paulo. Professor
no Programa de
Pós-Graduação em
Ciências da Religião da
PUC Minas. Contato:
caldas42@yahoo.com.br
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Resumo
O escritor norte-irlandês C. S. Lewis
(1898-1963) foi um dos mais destacados pensadores cristãos do século passado. Autor
de vasta obra, transitou por áreas como crítica literária, literatura infanto-juvenil, ficção
científica e textos de exposição teológica e
apologética propriamente. Na categoria ficção científica destaca-se a assim chamada
“Trilogia Cósmica”: Além do planeta silencioso, Perelandra e Aquela fortaleza medonha.
Nestes três livros Lewis apresenta grande
gama de temas. Dentre tantos, a angelologia
- o estudo sistematizado dos seres celestiais
conhecidos como anjos. O objetivo do presente artigo é apresentar as principais influências
que Lewis utilizou para construir sua angelologia (literatura judaica antiga, representada por textos como o Enoque Etíope – ou Livro de Enoque ou 1Enoque – e a tradição
bíblica. Procurar-se-á também defender a hipótese que, com o recurso da literatura de ficção, Lewis constrói uma teologia imaginativa e sugestiva que é uma
crítica ao racionalismo da teologia continental de seu tempo.
Palavras chave:Angelologia. C. S. Lewis. Ficção científica. Teologia e literatura
Abstract
Northern Irish author C. S. Lewis (1898-1963) was one of the most outstanding Christian thinkers of the late century. A prolific author, he moved through
so different areas, such as literary criticism, youth literature, science fiction and
texts of theological exposition and of apologetics. In science fiction there is his
remarkable “Cosmic Trilogy”: Beyond the Silent Planet, Perelandra and That
Hideous Strength. In these three books Lewis presents such a vast array of themes. Among these, angelology – the systematic study of heavenly beings known
as angels. The aim of this article is to present the major influences that Lewis
used to build his angelology (old Jewish literature, exemplified in texts such as
the Ethiopian Enoch (or the Book of Enoch or First Enoch), and the biblical tradition itself. The article will seek also to defend the hypothesis that, as using
literature of fiction, Lewis builds an imaginative and suggestive theology that is a
critique of the rationalism of continental theology of his day.
Keywords:Angelology. C. S. Lewis. Science Fiction. Theology and Literature.
Introdução
O escritor norte-irlandês clive Staples Lewis (1898-1963), mais conhecido como C. S. Lewis, foi um dos principais autores cristãos do século passado. Lewis produziu obra vasta, tendo transitado por áreas tão diferentes uma da outra quanto a literatura infanto-juvenil, a crítica literária e a exposição teológica e apologética, incluindo também obras de literatura de fantasia e ficção. Nestas obras Lewis apresentou uma teologia imaginativa, sugestiva, veiculada algumas vezes em forma de uma literatura de fantasia, outras, em forma de literatura de ficção. O fato de ter produzido textos em áreas tão diferentes uma da outra é indicativo de grande genialidade da parte do autor. Não é de se admirar que seus livros continuem tendo sucessivas reedições e que tenham sido traduzidos para dezenas de línguas.
Lewis tratou de diferentes temas teológicos em suas obras. Dentre tantos, destaca-se o tema da angelologia, que na teologia sistemática é o estudo dos seres celestiais conhecidos como anjos. Não era comum falar-se sobre tal tema em meados do século passado. A teologia europeia continental de sua época, marcada por tendência fortemente racionalista, tinha dificuldade de apresentar qualquer tipo de elaboração sobre seres invisíveis que, pelo menos aparentemente, têm mais a ver com mitologias antigas que com os interesses do homem “moderno”. Como que “nadando contra a correnteza”, Lewis apresentou uma curiosa e sofisticada angelologia em sua principal obra de ficção e fantasia, a saber, sua trilogia cósmica: Além do planeta silencioso, Perelandra e Aquela fortaleza medonha. Neste artigo examinar-se-á a maneira pela qual Lewis apresenta uma angelologia na mencionada trilogia.
Angelologia na Bíblia – uma síntese
Nesta parte do artigo será apresentada, tal como indicado no seu enunciado, síntese do ensino bíblico a respeito do tema angelológico. Curiosamente, “angelologia, ou a doutrina dos anjos, não é um grande tema na teologia crista, a despeito das muitas referências a anjos na Bíblia” (COMFORT, ELWELL, 2001, p. 47, tradução nossa). De fato, a angelologia é um capítulo pobre, ou mesmo inexistente, nas teologias sistemáticas contemporâneas, por influência, consciente ou inconsciente, de uma influência racionalista que não se sente bem em falar de criaturas invisíveis. Tais criaturas não têm lugar quando se compreende o mundo em perspectivas apenas racionalistas e mecanicistas.
Se isto é problemático para o homem moderno (e talvez, para o pós- -moderno também), não o era para o homem do medievo e da antiguidade, seja a europeia clássica (greco-romana), seja a do Oriente Médio, da África subsaariana, das três Américas, do subcontinente indiano ou do leste da Ásia. Karl Barth lembra que os símbolos cristãos afirmam a crença em Deus Pai, todo poderoso, criador, não apenas da terra, mas também do céu. Conforme Barth,
O céu é a parte da criação incompreensível ao homem, a terra é a que lhe é compreensível. Uno-me ao Símbolo de Niceia que fala de invisibiliaetvisibilia1 . Tentei ajuntar estas duas expressões: “coisas visíveis” e “coisas invisíveis”. Eu tentei tomar essas duas coisas, visíveis e invisíveis, pelos termos compreensíveis e incompreensíveis. Quando a Escritura - da qual usamos a terminologia aqui - fala do céu, ela não entende simplesmente o que estamos acostumados a nomear assim, o céu atmosférico, mas uma realidade criada, que absolutamente domina nosso “céu” puramente físico. O homem da antiguidade, especialmente o habitante do Oriente Próximo, imaginava o mundo visível como inteiramente coberto por uma enorme abóbada chamada firmamento. Esta abóbada constituía, em relação ao homem, o começo do domínio celestial e invisível (BARTH, 1968, p. 92-93, tradução nossa, ênfases do autor).
O “domínio celestial e invisível” citado por Barth é onde habitam todas as classes de seres angelicais. Barth não menciona os anjos neste capítulo em que comenta o sentido do artigo do Credo que fala que Deus Pai criou “o céu”. Todavia, considerando ter sido Barth um dos poucos teólogos de destaque do século passado que deu atenção a este tema em sua construção teológica, é razoável admitir que, mesmo não os tendo citado explicitamente neste trecho, ele os tinha em mente ao comentar o mencionado artigo do Credo2.
A palavra anjo, cuja forma latina é angelus3 , tem origem grega: ἄγγελος (“ángelos”), e significa “mensageiro”4 . Ángelos é a palavra usada pela LXX para traduzir o hebraico מלאך – malach, “mensageiro”5 , no sentido de “emissário” ou “correio”, ou seja, aquele que entrega uma mensagem (SCHÖKEL, 1997, p. 376-377). Anjos são citados muitas vezes na Bíblia, e ocupam considerável espaço não apenas na tradição judaico-cristã, mas também no islamismo6 . De fato, tal como lembrado pelo teólogo queniano James Nkansah-Obrempong, “a crença em seres ou forças espirituais é uma ideia que prevalece em muitas culturas de todo o mundo” (NKANSAH-OBREMPONG, 2018, p. 19).
É conhecida por demais a representação ocidental do anjo como um homem com asas nas costas, vestido de uma longa túnica branca e de traços físicos acentuadamente caucasianos. De igual maneira, a arte e a iconografia cristãs desde sempre dedicam a estes seres muita atenção. Todavia, nem sempre (ou nunca) as representações populares de anjos são consoantes com o que se pode concluir a partir da leitura dos textos bíblicos. Conforme o biblista estadunidense Steven Cox, “a Bíblia oferece descrições escassas de mensageiros angelicais porque o foco está na mensagem, não no mensageiro” (COX, 2018, p. 83). Lewis, algumas décadas antes de Cox, fez uma observação curiosa e judiciosa a respeito, que, conquanto um tanto longa, merece ser reproduzida:
Devia ser (mas não é) desnecessário acrescentar que a crenças nos anjos, bons ou maus, não significa que se acredite neles tais como são representados na arte e na literatura. Pintam-se diabos com asas de morcego e anjos com asas de pássaro, não porque alguém pense que a deterioração moral pode transformar penas em membranas, mas porque a maioria das pessoas prefere pássaros a morcegos. Dão-lhes asas para sugerir a rapidez da energia intelectual desimpedida. Dão-lhes forma humana por ser o homem a única criatura racional que conhecemos. As criaturas de uma ordem natural mais alta que a nossa, que ou é incorpórea ou animada por uma espécie de corpo que não podemos experimentar, devem ser representadas simbolicamente ou não poderiam ser representadas de modo nenhum. Não só essas formas são simbólicas mas sempre foram reconhecidas como tais por pessoas refletidas. Os gregos não acreditavam que seus deuses se assemelhassem às belas formas que lhes davam os escultores. Na sua poesia, um deus que quisesse “aparecer” temporariamente a um mortal assumia a semelhança do homem. A teologia cristã quase sempre explica a aparência do anjo do mesmo modo. Só os ignorantes, como disse Dionísio no quarto século, sonham que os espíritos são realmente homens com asas. Nas artes plásticas, esses símbolos foram degenerando. Os anjos de Fra Angélico trazem no gesto e no rosto uma paz e autoridade celestes. Vieram mais tarde os bochechudos nus infantis de Rafael; finalmente apareceram os suaves, esbeltos, afeminados e consoladores anjos do século dezenove, figuras tão femininas que só pela total insipidez escapam de ser voluptuosas – são as frígidas huris do paraíso das mesinhas de chá. Tal símbolo é pernicioso. Segundas as Escrituras, a visitação de um anjo costuma ser alarmante; ele sempre começa por dizer “Não temas”. O anjo vitoriano parece que vai dizer “Ora, ora” (LEWIS, 1982, p. 7).
A exposição de Lewis, que aparece como introdução ao seu As cartas do Coisa-Ruim, revela observação perspicaz. A linguagem humana tem limites óbvios para falar a respeito de realidades que pertencem à outra ordem que não a física. Daí só ser possível fazer referência a situações e seres de uma dimensão metafísica por meio de comparações e sugestões extraídas do mundo material. Lewis foi de grande felicidade e precisão ao comentar sobre esta questão no trecho acima mencionado.
A Bíblia sugere a existência de classes ou categorias de seres celestiais: além do anjo, há também referência ao seraf(שרף ,(cuja forma plural é serafim7 , citado apenas em Is 6.2, 6, ao cherub (כךןב ,(cuja forma plural é querubim8 (Gn 3.24; 1 Rs 6.29, 32, 35; Ez 10, passim). Menciona-se ainda na Bíblia o sarhamalachim (שרהמלאכים ,(literalmente “príncipe (ou “chefe”) dos anjos”, traduzido nas versões em português como arcanjo (do latim archangelus). Observe-se que arcanjos só aparecem em textos tardios da Bíblia Hebraica, especificamente, na literatura apocalíptica, e são os únicos citados por nome. Destes, dois são citados nos textos canônicos, a saber, Miguel e Gabriel9 : Miguel (מיכאלna Bíblia Hebraica, e Μιχαήλ na Septuaginta e no Novo Testamento), citado em Dn 10.13, 21; 12.1; Jd9; Ap 12.7-9 (há também uma referência a “arcanjo” em 1 Ts 4.16, todavia sem menção de nome), e Gabriel (גבךיאל na Bíblia Hebraica, citado em Dn 9.21, Γαβριήλ na Septuaginta e no Novo Testamento por duas vezes, Lc 1.19, 26).
Há ainda referência ao misterioso anjo da face, מלאךהפנים ,malach hapanim, o anjo da presença, provavelmente aludido em Êx 33.14 e citado explicitamente em Is 63.9. Estas passagens são de difícil tradução. Uma rápida comparação entre traduções de versões protestantes e católicas deixa claro que os tradutores tiveram muita dificuldade para entender o fraseado destes versículos:
Observa-se que as traduções da Bíblia parecem indicar ora, um anjo que representaria a presença de Javé, ora, entendem trata-se de Javé em pessoa. A tradição judaica identifica o anjo do semblante com o nome de Metatron, sendo que não há consenso se há ou haveria uma classe de “anjos do semblante”, sendo que destes Metatron seria o principal, ou se Metatron seria o único anjo que contempla o próprio rosto do Eterno (DENNIS, 2016).
Ainda quanto a uma classificação dos anjos, o já citado NkansahObrempong acrescenta: “Paulo menciona uma hierarquia angelical que inclui tronos, domínios, poderes e principados responsáveis por certas questões relacionadas com os homens e o mundo. Ele condena a adoração de anjos e proclama que Cristo é superior aos poderes cósmicos” (NKANSAH-OBREMPONG 2018, p. 22). Raciocinando em termos semelhantes, o teólogo inglês Geoffrey Bromiley explicou:
Com base nas várias declarações a respeito da natureza dos anjos, e do uso feito por Paulo dos termos “principados”, “potestades”, “tronos”, “domínios” e “poderes”, a teologia primitiva e medieval desenvolveu uma explicação complexa e especulativa do mundo angelical. Pseudo-Dionísio via neles entidades separadas, e as agrupou com os serafins, os querubins, os arcanjos e os anjos, numa hierarquia tríplice de nove coros. Aquino, o Doutor Angelical, adotou um esquema semelhante na sua discussão plena e penetrante, mas seu interesse girava mais em torno da natureza dos anjos como entidades individuais, espaciais, espirituais, ocupadas primariamente na obra da iluminação e passiveis de demonstração racional (Summa contra Gentiles 91; Summa Theologica 50-64). Segundo Calvino, o erro em tanta angelologia era tratar do assunto dos anjos à parte do testemunho bíblico (BROMILEY, 1988, p. 74).
Tendo apresentado esta breve síntese do tratamento dado pela Bíblia aos seres angélicos, prosseguir-se-á, apresentando na sequência considerações a respeito do aspecto literário da ficção científica (doravante, fc) para em seguida apresentar o enredo da trilogia cósmica e, ato contínuo, como a angelologia é apresentada nos livros que a compõem.
Ficção científica enquanto categoria literária
A ficção científica tem seus antecedentes com Júlio Verne (1828- 1905) e H. G. Wells (1886-1946). Enquanto gênero literário a ficção científica é “aparentada”, por assim dizer, com a literatura de fantasia, ou fantasia heroica, da qual um dos principais representantes no século XX é John R. R. Tolkien e todo seu legendarium, cujas obras mais conhecidas são O Silmarillion, O Hobbit e a trilogia O Senhor dos Aneis, e ainda a narrativa do tipo Sword and sorcery (“espada e feitiçaria”), cujo maior representante é o norte-americano Robert Howard, criador de Kull, o Conquistador e do mais conhecido Conan, o Bárbaro. Poder-se-ia incluir também como gêneros aparentados a literatura gótica e a de terror. A crítica literária é unânime em apontar Frankenstein ou o Prometeu Moderno (conhecido popularmente apenas como Frankenstein), de Mary Shelley, publicado em 1818 como a primeira obra deste gênero. Drácula, do irlandês Bram Stoker, no final do século XIX, é outra obra bastante conhecida representante deste gênero12.
É consenso entre os críticos literários que Aquela fortaleza medonha (doravante, AFM) e, de resto, toda a trilogia cósmica de Lewis, é obra de fc. A partir desta constatação, a pergunta que surge é: que tipo de literatura é a ficção científica? TAVARES (1986, p. 11) informa que “Science fiction foi o nome sonoro e simpático escolhido por Hugo Gernsback, editor da revista Amazing Stories, nos anos 20, para denominar o tipo de literatura que ele tentava incentivar”.
Faz-se distinção entre a ficção científica hard da soft: a primeira é preocupada com os aspectos científicos da narrativa, pretendendo apresentá-la com verossimilhança, e a segunda não tem este tipo de preocupação. O leitor ideal da ficção científica soft não se preocupa com detalhes técnicos: para este leitor, é a narrativa em si que vale. Nas palavras de Bráulio Tavares,
A ciência parece ser uma fonte de inspiração; mas não encontraremos – a não ser numa minoria de casos – a presença de racionalizações científicas convincentes. O autor de fc sente-se à vontade para imaginar os fenômenos mais extravagantes, “teorizar” sua existência com duas ou três frases, e estamos conversados [...] aperta-se um botão e um personagem é desintegrado, ou é remetido para outra galáxia, ou vira planta. Como acontece isso? O autor não dá muitas explicações: ele diz que é o “raio X26” ou é “teleportador”, ou é um “conversor molecular” – e fim de papo (TAVARES, 1986, p. 8).
Esta caracterização é importante para os propósitos do presente trabalho, porque é igualmente consenso que a trilogia cósmica de Lewis é do tipo soft. Em outras palavras:
Temos que lembrar que a fc utiliza muita matéria-prima da ciência, mas manipula os instrumentos da ficção. O resultado disso é que seu compromisso não é com a verdade, e sim com a imaginação e a fantasia. Uma boa história de fc é a que consegue nos mostrar um universo diferente do nosso, em geral mais complexo do que o nosso, e dar-lhe uma coerência satisfatória. Isso garante as condições para se fazer boa ficção, ou seja, contar uma boa história, uma história que deixa uma impressão forte, e que faça pensar (TAVARES, 1986, p. 24).
É exatamente este o tipo de literatura encontrada em AFM, uma fc de modelo soft. Para citar mais uma vez Bráulio Tavares, pesquisador brasileiro de fc,
A fc é uma literatura transversal, um canal de comunicação que põe a cibernética em contato com o surrealismo, o humor em contato com a física nuclear, e assim por diante até o infinito [...] No campo literário essa divisão se manifesta através do uso dos termos “fc pesada” (hard sf) e “fc leve” (soft sf). A primeira utilizaria temas pertencentes ao domínio da Física, da Química, da Astronáutica, etc. A segunda estaria ligada à Psicologia, à Antropologia, às Ciências Sociais, etc (TAVARES, 1986, p. 73-74, ênfase do autor).
À exemplificação dada por Tavares da fc soft é possível acrescentar, no caso de AFM, a teologia. Lewis em absoluto não se preocupa com aspectos técnicos em sua narrativa. No capítulo 4 de Além do planeta silencioso, Lewis faz Weston descrever a nave que os conduz a Marte a um atônito Ransom. A descrição é engenhosa, mas não é técnica:
A nave é grosseiramente esférica, e agora que estamos fora do campo gravitacional da Terra ‘para baixo’ significa (e parece) em direção ao centro do nosso pequeno mundo de metal. Evidentemente isso foi previsto e nós a construímos de acordo. O núcleo da nave é um globo vazio, onde guardamos nossos suprimentos, e a superfície deste globo é o piso onde agora estamos. Os quartos de dormir estão dispostos ao redor dele, sendo que suas paredes sustentam um globo externo que, do nosso ponto de vista, é o teto. Como o centro está sempre ‘para baixo’, a parte do piso na qual você estiver sempre vai parecer achatada na horizontal, e a parede na qual você se apoiar sempre parecerá vertical. (LEWIS, 2019 a, p. 36).
Por oportuno, é imperioso destacar que Lewis era leitor – e crítico – assíduo de fc. Ele foi contemporâneo de grandes nomes desta modalidade literária, como Arthur C. Clarke, Ray Bradbury, Aldous Huxley, George Orwell, David Lindsay e H. G. Wells. Não apenas contemporâneo, mas conhecedor das obras destes autores. Em texto na primeira pessoa do singular, visto tratar-se de palestra ministrada no Clube de Inglês13 da Universidade de Cambridge em 24 de novembro de 1955 (cf. HOOPER, 2018, p. 27)14, Lewis apresentou sua perspectiva da fc, deixando claro que escreveu o que não era stricto sensu, nem hard nem soft. Nas palavras do próprio Lewis,
Nessa espécie de história, o aparato pseudocientífico deve ser tomado simplesmente como um “motor” no sentido em que essa palavra aborreceu os críticos neoclássicos. A aparência mais superficial de plausibilidade – o mais importante sopro para nosso intelecto crítico – o fará. Estou inclinado a pensar que os métodos francamente sobrenaturais são os melhores. Certa vez, levei um herói a Marte numa nave espacial, mas, quando pensei melhor, eu o transportei para Vênus por meio de anjos. Nem precisamos que os mundos estranhos, quando chegarmos lá, sejam estritamente vinculados às probabilidades científicas. É a maravilha, ou a beleza deles, ou o que sugerem que importa. Quando eu mesmo coloco canais em Marte, acredito que já sabia que os melhores telescópios já tinham dissipado esta antiga ilusão óptica. O objetivo era que faziam parte do mito marciano que já existia na mente comum. A defesa e a análise dessa espécie não são, portanto diferentes daqueles da literatura fantástica ou mitopeica em geral. Mas aqui as subespécies e as subsubespécies afloram em multidão desconcertante. O impossível – ou coisas tão imensamente improváveis que tenham, na esfera da imaginação o mesmo status que o impossível – pode ser usado na literatura para muitos propósitos diferentes. Não posso pretender mais do que sugerir alguns tipos principais: o assunto ainda aguarda seu Aristóteles (LEWIS, 2018 a, p. 119).Na verdade, Lewis era crítico tanto da hard quanto da soft, e forjou a sua própria versão deste gênero literário. Ao criticar a fc soft, Lewis afirmou:
Nessa subespécie, o autor avança para um futuro imaginado em que as viagens planetárias, siderais ou mesmo galácticas se tornaram comuns. Com esse enorme pano de fundo, ele, então, desenvolve uma história comum de amor, de espionagem, de naufrágio ou de crime. Isso me parece insípido (LEWIS, 2018 a, p. 106-107).Estas citações de Lewis revelam que ele era profundo conhecedor do tipo de fc produzido em seu tempo, e que ao mesmo tempo estava plenamente consciente da fc que ele mesmo produzia. Para Lewis, a fc não é moralmente neutra e nem é mero entretenimento. Não será exagero afirmar que o escritor norte-irlandês produziu uma fc teologicamente engajada, por assim dizer, como se verá adiante neste artigo.
A crítica literária usa a expressão space opera para denominar este tipo de fc, que tem como grandes representantes Flash Gordon e, mais recentemente, a saga Star Wars. Lewis não utiliza o termo, mas fica claro que ele deprecia este tipo de produção.
O biólogo inglês J. B. S. Haldane, que era marxista e, portanto, descrente no transcendente e de qualquer possibilidade metafísica, em 1946 criticou a trilogia cósmica de Lewis exatamente pela sua “ciência fraca”. Lewis apresentou uma resposta a Haldane. Em determinado momento de sua réplica, afirmou:
Minha trilogia cósmica “certamente é um ataque, não aos cientistas, mas algo que podemos chamar de “cientificismo” – uma certa (sic) perspectiva do mundo que está normalmente conectada com a popularização da ciência (…) Em outras palavras, a crença de que o objetivo moral final é a perpetuação das espécie, e de que ela deve ser perseguida mesmo que (…) nossa espécie tenha que ser despojada de todas as coisas que nós valorizamos – a piedade, a alegria, e a liberdade (LEWIS, 2018 b, p. 131).Lewis critica o mito do progresso, o evolucionismo puramente material, imanente, desprovido de qualquer perspectiva transcendente, a técnica e a ciência como fins em si, a ciência sem “alma”, por assim dizer, que só se preocupa com a matéria, crendo que os fins justificam os meios, dominada que está por uma perspectiva puramente desenvolvimentista e evolucionista. E apresenta suas convicções a respeito por meio da literatura de ficção – na verdade, a trilogia cósmica não é inteiramente soft, mas como que uma mescla entre fc soft e a literatura do maravilhoso, tão comum na antiguidade clássica, não apenas greco- -romana, mas também no Oriente Médio e Extremo Oriente, e em todo o medievo.
Após esta apresentação, posto que em síntese, de fc enquanto literatura, pode-se prosseguir, expondo na sequência, uma análise propriamente da angelologia presente na trilogia cósmica de Lewis, particularmente em AFM.
A trilogia cósmica de Lewis – síntese do enredo
Em 1958, no início da corrida espacial entre a então União Soviética e os Estados Unidos15, Lewis escreveu um artigo denominado Will We Lose God in Outer Space? (“Vamos perder Deus no espaço sideral?”). Neste artigo, recentemente publicado no Brasil16, Lewis apresenta suas considerações sobre a existência de vida inteligente em outros planetas, e, caso positivo, se estes espécimes inteligentes teriam ou não sido afetadas pela queda, que aconteceu na Terra. Conforme Lewis,
[...] a mera existência dessas criaturas não levantaria um problema. Além disso, ainda precisamos saber se elas são caídas; então, se não foram, ou não serão, redimidas da maneira que conhecemos; e, por fim, que nenhum outro modo é possível. Eu acho que um cristão está em uma posição muito agradável se sua fé nunca encontrar dificuldades mais formidáveis do que esses fantasmas conjecturais (LEWIS, 2018 c, p. 110).O que Lewis apresentou de forma teórica em Will We Lose God in Outer Space? será apresentado em forma de literatura de fantasia em sua trilogia cósmica que, a propósito, tem enredo relativamente simples. Como observado por David Downing, especialista em temas lewisianos,
Os livros da trilogia são enganosamente simples [...] Além do planeta silencioso como uma viagem cósmica, Perelandra como uma fantasia edênica, e Aquela fortaleza medonha como uma sátira à academia moderna (DOWNING, 1995, p. 5-6).A trama da trilogia pode ser assim resumida: conta-se sobre Elwin Ransom, filólogo da Universidade de Cambridge17, que é enganado e sequestrado pelo físico Dr. Weston e pelo Sr. Dick Devine, amigo de Weston. Quando Ransom recobra a consciência (Weston e Devine ofereceram-lhe uma bebida com um narcótico) ele se dá conta que algo impossível estava acontecendo: os três estavam a bordo de uma nave espacial, e já fora da atmosfera da Terra. Depois de uma viagem de um mês, a nave aterrissa em um planeta desconhecido. Ransom consegue fugir de seus captores, e depois de vagar sem rumo, descobrirá que há vida inteligente naquele planeta: diferentes criaturas, com as quais conseguirá se comunicar utilizando suas habilidades de filólogo. Lá Ransom descobrirá que todos os planetas do Campo de Arbol são submissos a Maleldil, o criador e sustentador de todas as coisas e de todas as realidades, visíveis e invisíveis. Para os interesses imediatos do presente artigo: há que se observar que Maleldil não governa diretamente. Ele o faz por intermediário dos Oyaresu, que por sua vez comandam os eldila, e todas as demais criaturas18. A parte mais importante do livro apresenta o diálogo entre Weston e o Oyarsa de Malacandra. Neste diálogo, Weston defende ardorosamente a ideia de uma lei do mais forte: se os telurianos(nós, os terrestre) são mais fortes que os malacandrianos, têm o direito de dominá-los e até mesmo de exterminá-los. O Oyarsa frustra os planos de conquista de Weston e Devine, e os manda de volta a Terra, juntamente com Ransom.
A narrativa de Perelandra se passa não muito tempo depois das aventuras descritas no primeiro livro. Desta feita, Ransom é levado de volta ao espaço por ordem do Oyarsa de Malacandra. Mas seu destino não é Marte, mas Vênus, chamado de Perelandra na língua do Campo de Arbol. Lá Ransom descobre um mundo que o faz imediatamente se lembrar do Jardim das Hespérides da mitologia grega. O narrador onisciente do livro apresenta as elucubrações de Ransom que as mitologias da Terra talvez sejam ecos de um passado remoto, de uma época não marcada nem manchada pela desobediência ao Criador. A mente racionalista moderna rejeita o mito, mas talvez sua linguagem seja mais apropriada para expressar algumas verdades sobre a vida que a linguagem científica. Perelandra é um mundo paradisíaco onde as terras flutuam e só há uma proibição da parte do Criador: nunca ir à única terra firme do planeta. Ransom descobre que há um casal humanoide que domina Perelandra: o rei Tor e a rainha Tinidril. Ransom descobre também que Weston também está lá, e atua como um enviado do Oyarsa corrompido da Terra. Perelandra apresenta a história dos três primeiros capítulos do Gênesis, mas com uma diferença.
Finalmente em AFM se concluirá a grande saga. Ao contrário dos outros dois, a narrativa se passa inteiramente na Terra. O último livro é bem maior e mais complexo que os outros dois. Ransom só aparecerá na segunda metade da narrativa, e o livro custa um pouco para apresentar uma ligação com os dois anteriores. O terceiro livro apresenta duas narrativas em paralelo: em uma, as histórias de Jane e Mark, um casal jovem vivenciando uma crise profunda em seu casamento, e na outra, o INEC – Instituto Nacional de Experimentos Coordenados – uma organização que se parece com um polvo, com tentáculos em praticamente todas as áreas da sociedade. O INEC tem um plano mais que ambicioso de controlar toda a sociedade inglesa e, a partir daí, o mundo todo. Descobrir-se-á que eles querem trazer de volta à vida o legendário Merlin, o mago do ciclo arturiano de lendas. Na verdade Merlin estava há mais de mil anos em estado de animação suspensa. Logo, são dois grupos em oposição: de um lado, o INEC, onde Mark está, a todo custo querendo subir em sua carreira profissional, mas ao mesmo tempo receoso das coisas que vê, e do outro, o grupo que se reúne ao redor de um professor misterioso, que não é outro a não ser o próprio Ransom. Merlin é despertado de seu sono multissecular, e para surpresa de todos, assume o lado de Ransom na peleja contra o INEC. Por fim, os seis Oyaresu descem a Terra para impedir o sucesso dos planos do INEC, pois seus líderes estavam invocando forças espirituais malignas. A trilogia se encerra com a derrota completa do INEC, a ida de Ransom outra vez para Perelandra (desta vez, definitivamente) e a restauração do casamento de Jane e Mark.
A angelologia presente na trilogia cósmica
Como o tema da angelologia é apresentado na trilogia cósmica? É o que se pretende apresentar nesta seção do presente artigo.
Em Perelandra, Lewis usa o artifício literário de se inserir na narrativa como personagem, e ouvir o relato dado pelo próprio Ransom. O próprio Lewis então aprende com Ransom que há muito mais vida no espaço que jamais havia imaginado. Curiosamente, Lewis não se refere ao espaço exterior como sky – “céu” – mas como Deep Heaven. A palavra inglesa heaven pode ser traduzida como “céu”, no sentido de “firmamento”, mas tem também o sentido teológico de “paraíso”. Parece que Lewis em sua trilogia cósmica joga com os dois sentidos da palavra ao mesmo tempo. Em Além do planeta silencioso, Lewis descreve Ransom na nave que conduzirá a ele e a seus captores a Malacandra/ Marte pensando que “céu” – heaven – é a palavra mais adequada para se referir ao espaço exterior:
Mas Ransom, à medida que o tempo passava, tornou- -se cônscio de uma explicação mais espiritual para sua progressiva iluminação e espírito exultante. Ele estava se libertando de um pesadelo há muito engendrado na mente moderna pelo vácuo da ciência. Ele havia lido a respeito do “Espaço”: na base do seu pensamento durante anos espreitava a sofisticação lúgubre do vácuo escuro e frio, a total falta de vida que separava os mundos. Até aquele momento ele não sabia quanto aquilo o afetava – agora que a própria palavra “Espaço” parecia uma divagação blasfema contra aquele oceano empíreo de esplendor no qual eles nadavam. Ele não poderia chamar aquilo de “morto”; ele sentia a vida derramando- -se daquele oceano para ele a cada momento. De fato, como poderia ser de outro jeito, uma vez que foi daquele oceano que os mundos e toda a vida que há neles surgiram? Ele pensava que o espaço era estéril, mas viu que na verdade o espaço era o útero dos mundos, cuja descendência ardente e incontável olhava para baixo, para a Terra todas as noites, com muitos olhos – e aqui, com quantos mais! Não: Espaço era a palavra errada. Pensadores antigos foram mais sábios quando o nomearam simplesmente de céus – os céus que declararam a glória19 – os: Lugares felizes que estão Onde o dia nunca fecha seus olhos Lá em cima, nos amplos campos do céu. Ele citou para sim mesmo as palavras de Milton, naquele dia, e com frequência20. (LEWIS, 2019 a, p. 42-43).A premissa básica da trilogia cósmica de Lewis é a seguinte: os planetas do nosso sistema solar, chamado de Campo de Arbol (= o sol) são povoados por seres inteligentes. Uma única língua, chamada “Solar Antigo” (Hlab-Eribol-ef-Cordi, LEWIS, 2019 b, p. 22) é falada em todo o Campo de Arbol. Na trilogia citam-seViritrilbia (Mercúrio), Perelandra (Vênus), Thulcandra (Terra), Sulva (a lua da Terra), Malacandra (Marte), Glundandra (Júpiter), Lurga (Saturno) e Neruval (Urano)21. Cada planeta é governado por um anjo tutelar, que é o representante de Maleldil, a divindade suprema. Este anjo tutelar é chamado de Oyarsa. Há então o Oyarsa de Malacandra (= Marte), o Oyarsa de Perelandra (= Vênus), e assim por diante. O nome propriamente de cada Oyarsa é o nome do planeta, e vice-versa: Malacandra é o Oyarsa de Malacandra, Perelandra é o Oyarsa de Perelandra, e assim por diante. Em Além do planeta silencioso (doravante, APS) Lewis mostra Ransom, já conseguindo entender um pouco do solar antigo, apresentando o que tinha compreendido quanto ao arconte de Malacandra:
Ransom perguntou quem era o Oyarsa. Lentamente, com muitos mal-entendidos, ele conseguiu entender que o Oyarsa (1) vivia em Meldilorn; (2) sabia e governava tudo; (3) sempre esteve ali; e (4) ele não era nem hross nem um dos séroni22(LEWIS, 2019 a, p. 93).
Usando o já mencionado artifício literário de se inserir na narrativa, Lewis apresenta ainda a fonte da qual extraiu o conceito de Oyarsa:
É ai que eu entro na história. Eu tinha um conhecimento superficial do Dr. Ransom por muitos anos e me correspondia com ele a respeito de assuntos literários e filológicos, ainda que tenhamos nos encontrado poucas vezes. Por isso, como de costume, acabei lhe escrevendo uma carta há alguns meses, da qual citarei o parágrafo mais relevante, onde se lê o seguinte: “Estou trabalhando no momento com os platônicos do século XII, e por acaso descobri que eles escrevem em um latim malditamente difícil. Em um deles, BernardusSilvestris, há uma palavra que eu particularmente gostaria de saber a sua opinião a respeito – a palavra Oyarses. Essa palavra aparece na descrição de uma viagem pelo espaço, e parece que um Oyarses é uma “inteligência” ou espírito tutelar de uma esfera celestial, isto é, em nossa língua, de um planeta. Perguntei a respeito a C. J., e ele diz que deve ser Ousiarches. Isso, claro, faz sentido, mas não estou completamente satisfeito. Por acaso você se deparou com uma palavra como Oyarses, ou poderia arriscar um palpite sobre de que língua essa palavra se origina? (LEWIS, 2019 a, p. 211, ênfases do autor).Na sequência, Lewis ainda acrescenta: “Encontramos razão para crer que os platônicos medievais viveram no mesmo ano celestial que estamos vivendo – de fato, que este ano começou no décimo segundo século da nossa era e que a ocorrência do nome Oyarsa (latinizado como Oyarses) em Bernardus Silvestris não é um acidente (LEWIS, 2019 a, p. 212, ênfases do autor).
Em cada planeta há os eldila (plural de eldil), seres invisíveis, intangíveis e inteligentes que servem ao Oyarsa. Os habitantes de cada planeta conseguem enxergar os eldila. Lewis, com a perspicácia e senso de humor fino tipicamente inglês (mesmo sendo ele norte-irlandês) que lhe eram peculiares, explica os eldila, isto é, os anjos “espaciais”:
De fato Ransom encontrou outras coisas em Marte além dos marcianos. Ele encontrou as criaturas chamadas eldila, e especialmente o grande eldil, que é o regente de Marte, ou, na língua deles, o Oyarsa de Malacandra. Os eldila são muito diferentes de qualquer criatura planetária. O organismo físico deles, se é que aquilo pode ser chamado de organismo, é totalmente diferente do organismo humano e também do marciano. Eles não se alimentam, não se reproduzem, não respiram, não sofrem morte natural, e nesse sentido, eles se parecem mais com minerais pensantes do que com qualquer outra coisa que reconheceríamos como sendo do reino animal. Ainda que eles apareçam em planetas e possam até parecer, aos nossos sentidos, como algumas vezes residindo naqueles, a localização espacial precisa de um eldil sempre apresenta grandes dificuldades. Eles mesmos consideram o espaço (ou “Céu Profundo”23) como seu verdadeiro habitat, e os planetas para eles não são mundos fechados, mas apenas pontos que se movem – talvez até mesmo interrupções – no que conhecemos como Sistema Solar, e eles, como Campo de Arbol (LEWIS, 2019 b, p. 9-10).A Terra é o único planeta que quebra este padrão, visto estar debaixo do domínio do Oyarsa conhecido como “O Corrompido” (The Bent One no original), que se rebelou contra Maleldil. Desde então não há mais nenhum contato ou intercâmbio de qualquer natureza entre Thulcandra e os demais planetas do Campo de Arbol. Thulcandra, a Terra, tornou-se o “planeta silencioso”, que dá título ao primeiro volume da trilogia. Em Malacandra (Marte) Ransom descobre três tipos de hnau, isto é, seres vivos sencientes: os hrossa, os sorns (seroni no plural) e os pfifltriggi. Weston e Devine querem explorar as riquezas minerais do planeta e dominar suas criaturas, extinguindo-as, se necessário.
Em um diálogo bastante curioso entre Ransom e Hyoi (um dos seres malacandrianos inteligentes), Lewis apresenta, pela perspectiva de Ransom, os eldila:
Hyoi, disse ele, estava pensando que da primeira vez que eu o vi, e antes que você visse, você estava falando. Foi assim que eu percebi que você é hnau24, pois, se não fosse assim, eu pensaria que você era uma fera e sairia correndo. Mas com quem você estava falando? Com um eldil. O que é isso? Eu não vi ninguém. Não existem eldila no seu mundo, Humano? Isso é muito estranho. Mas o que são eles? Eles vêm de Oyarsa. Acho que eles são uma espécie de hnau. Quando saímos hoje cedo, eu passei por uma criança que disse que estava conversando com um eldil, mas eu não vi nada. Pode-se entender Humano, olhando nos seus olhos, que os eldila do seu mundo são diferentes dos do nosso. Mas é muito difícil vê-los, pois não são como nós. A luz os atravessa. Você tem de olhar para o lugar certo na hora certa, e isso provavelmente não vai acontecer a não ser que o eldil deseje ser visto. Algumas vezes você pode confundir um eldil com um raio de luz solar ou com o movimento das folhas das árvores. Mas, se você olhar de novo, perceberá que aquilo era um eldil, mas ele já terá ido embora. Eu não sei se você conseguirá enxergá-los. Os séroni saberiam dizer (LEWIS, 2019 a, p. 105).Em outro diálogo bastante interessante, Lewis apresenta Ransom conversando com um dos seroni, tidas como as criaturas mais sábias de Malacandra. O diálogo é longo, mas é importante reproduzi-lo para que se tenha uma compreensão de como Lewis entendia os seres angelicais:
E o Oyarsa? Ele é um sorn? Não, não Pequenino. Eu já lhe disse que ele governa sobre todos os nau (era assim que ele pronunciava hnau) e sobre todas as coisas em Malacandra. Eu não entendo este Oyarsa, disse Ransom. Conte-me mais. Oyarsa não morre, disse o sorn. E ele não procria. Ele é o único de sua espécie que foi colocado para governar Malacandra quando ela foi criada. O corpo dele não é como o nosso, nem como o seu. Ele é difícil de ser visto, e a luz passa por ele. Como um eldil? Sim. Ele é o maior de todos os eldila que um dia já veio a uma handra25. O que são estes eldila? Diga-me uma coisa, Pequenino, não há eldila no seu mundo? Não que eu saiba. Mas o que são os eldila e por que eu não posso vê-los? Eles não têm corpos? Claro que eles têm corpos. Há muitos corpos que você não pode ver. Os olhos de todos os animais vêem algumas coisas, mas não outras [...]. O corpo é movimento. Se está em uma determinada velocidade, você sente o cheiro de alguma coisa; se está em outra, você ouve um som; se em outra, você vê alguma coisa, se em outra inda, você não vê, não ouve, não sente o cheiro e nem sabe qualquer coisa a respeito daquele corpo. Mas preste atenção, Pequenino, que os extremos se tocam. O que você quer dizer com isso? Se o movimento é ainda mais rápido – isso é difícil de explicar, porque você não conhece muitas palavras26 – você consegue entender que, se o fizer cada vez mais rápido, aquilo que se move estará no fim em todos os lugares ao mesmo tempo, Pequenino. Acho que estou entendendo. Bem, isso é o que está acima de todos os corpos – tão rápida que está em descanso, tão verdadeiramente corpo que deixou de ser corpo. Mas não falemos sobre isso. vamos começar de onde nós estamos, Pequenino. A coisa mais rápida que toca nossos sentidos é a luz. Na verdade, nós não vemos a luz, vemos apenas coisas mais lentas que a luz toca, de modo que para nós a luz está no limite – é a última coisa que vemos antes que as coisas fiquem rápidas demais para nós. O corpo de um eldil é um movimento tão rápido quanto a luz. Você pode dizer que o corpo dele é feito de luz, mas não daquilo que para o eldil representa a luz. A ‘luz’ do eldil é um movimento tão rápido que para nós não é perceptível, e aquilo que chamamos de luz ele é algo como água, uma coisa visível, algo que ele pode tocar e se banhar – até mesmo uma coisa escura, quando não está iluminada pela coisa mais rápida. E aquilo que chamamos de coisas firmes, como carne e terra, para oeldil parecem etéreas e são mais difíceis de ver que a nossa luz, e são mais parecidas com nuvens, são quase que nada. O eldil para nós é um corpo meio real, meio etéreo, que pode atravessar paredes e rochas. Para si mesmo ele as atravessa porque é sólido e firme, enquanto a parede e a rocha para ele são como nuvens. E o que para ele é luz de verdade e enche os céus, de maneira que ele mergulha nos raios do sol para se refrescar, para nós é o nada escuro do céu noturno. Essas coisas não são estranhas, Pequenino, ainda que estejam além dos nossos sentidos. Mas é estranho que os eldila nunca visitem Thulcandra. Não estou certo quanto a isso, disse Ransom. Ocorreulhe que aquela tradição humana tão recorrente de seres reluzentes e difíceis de entender, como albs, devas27 e coisas do gênero, talvez pudessem ter outra explicação que não aquela até o momento dada pelos antropólogos. É bem verdade que isso viraria o universo estranhamente pelo avesso, mas suas experiências na espaçonave o prepararam para tal (LEWIS, 2019 a, p. 129-131).Influências na angelologia cósmica de Lewis
Como Lewis construiu sua angelologia? Quais foram as principais influências na elaboração de seu pensamento a respeito deste tema? Estas são as questões que se pretende responder neste momento. Felizmente para o pesquisador o próprio Lewis apresentou um estudo abrangente e detalhado sobre suas principais fontes, não apenas quanto ao tema da angelologia, mas quanto à considerável parte de sua cosmovisão, a saber, a tradição greco-romana clássica e sua recepção no medievo e no período renascentista: em A imagem descartada, publicado postumamente, Lewis apresenta um estudo sobre a literatura medieval e renascentista28. Dentre tantos temas apresentados neste texto, há também a visão do cosmos como um todo, e dos seres que o habitam. Pode-se dizer que em A imagem descartada Lewis revela de onde extraiu o que utilizou de forma criativa e literária em sua trilogia cósmica. Na sequência, com fim de comprovar a afirmação feita, será apresentada uma citação de Lewis que, conquanto longa, é imprescindível para a compreensão de como ele construiu a angelologia de sua trilogia cósmica:
Na Idade Média, quatro livros (As Hierarquias Celestes, As Hierarquias Eclesiásticas, Os Nomes Divinos e Teologia Mística) foram atribuídos aquele Dionísio eu se converteu ao ouvir o discurso de São Paulo no Areópago29. Essa atribuição foi desaprovada no século XVI [...]. Seus escritos normalmente são considerados o principal canal pelo qual certo tipo de teologia entrou na tradição do Ocidente [...] Foi com sua angelologia que ele contribuiu para o Modelo30, e podemos restringir nossa atenção às suas Hierarquias Celestiais. Nosso autor difere de todas as autoridades anteriores e de algumas posteriores ao declarar que os anjos são espírito puro (mentes), desencarnados. Na arte, de fato, eles são apresentados como corpóreos pro captunostro, como concessão à nossa capacidade. E um simbolismo como esse, acrescenta ele, não é degradante, “pois mesmo a matéria, cuja existência é derivada da verdadeira Beleza, tema na forma de suas partes alguns traços de beleza e valor”. Essa declaração, num livro que veio a ser uma referência incontornável, pode ser entendida como uma prova de que as pessoas educadas da Idade Média nunca acreditaram que os homens alados, que representam anjos em pinturas e esculturas, fossem mais que símbolos. Era de PseuDioniso31 (sic) a disposição das criaturas angelicais naquilo que Spenser chama de “triplicidades tripartites”, em “hierarquias” que contêm três espécies cada, que acabou por ser aceita na Igreja. A primeira hierarquia contém as três espécies, Serafins, Querubins e Tronos. Essas são as criaturas mais próximas de Deus. Elas O encaram αμέσως, nullius intereictu, sem nada entre eles, rodeando-O com sua dança incessante32. Os nomes Serafins e Tronos são associados por esse autor às ideias de calor ou ardor; uma característica bastante conhecida dos poetas. Assim, o somnour33 de Chaucer tem “a fyr-redcherubinnes face” [uma face de querubim em chamas], e não foi apenas por causa da rima que Pope escreveu “[o Serafim extasiado que adora e arde]. A segunda hierarquia contém as κυριότητες, ou Dominações; as εξουσίαι (Potestates, Potentates, Potestades ou Poderes) e as δυνάμειςou “Virtudes”. Virtude aqui não quer dizer excelência moral, mas antes, “eficiência”, como quando falamos das “virtudes” de um anel mágico ou de uma erva medicinal. A atividade dessas duas hierarquias se volta para Deus; elas ficam, por assim dizer, com a face voltada para Ele e de costas para nós. Na terceira e mais baixa hierarquia, encontramos, por fim, criaturas que estão preocupadas com o homem. Ela contém principados, arcanjos e anjos. A palavra anjo é um nome genérico para todas as nove espécies contidas nas três hierarquias, e também um nome específico para a mais baixa – assim como sailor (navegante, em inglês34) às vezes inclui todos os passageiros da tripulação, e, noutras, limita-se à tripulação. Principados são guardiães e patronos das nações, de modo que a teologia denomina Miguel ao arconte dos judeus. A fonte bíblica para isso encontra-se em Daniel 12,1 [...] As duas espécies remanescentes, arcanjos e anjos, são os “anjos” da tradição popular, seres que “aparecem” a indivíduos humanos. Eles são, de fato, os únicos seres sobre-humanos capazes de fazer isso, pois o PseuDioniso está tão certo quanto Platão e Apuleius35 de que Deus se encontra com o homem apenas por meio de um “intermediário” [...] O Deus dele não faz nada diretamente que possa ser feito de forma mediada ou intermediada; talvez até prefira uma cadeia de intermediações o (sic) mais longa possível; o princípio universal é a transmissão ou delegação, uma descida mais delicada e gradativa de poder e bondade. O esplendor Divino (sic) (illustratio) chega até nós filtrado, por assim dizer, pelas hierarquias [... ] Toda a criação angélica é um mediador entre Deus e o homem [...]. O espírito deste esquema, ainda que não em todos os detalhes, está bem presente no Modelo Medieval [...] No pensamento moderno, isto é,no pensamento evolucionário, o homem está no topo de uma escada cuja base se perde na escuridão; nesse Modelo, ele está na base de uma escada cujo topo é invisível por causa da luz ofuscante. Também compreenderá que algo, além do gênio individual, ajudou a dar aos anjos de Dante aquela majestade inigualável. Milton, ao perseguir este objetivo, errou o alvo. O classicismo entrou no meio. Seus anjos têm anatomia demais, armaduras demais, e são por demais [...] Depois de Milton, instaurou-se a degradação completa e, por fim, chegamos aos anjos puramente consoladores – portanto, femininos e aguados – da arte do século XIX (LEWIS, 2015, p. 79-82)Resumindo: Lewis trabalha com o modelo medieval quanto às criaturas angélicas. Sua trilogia cósmica reflete este padrão: os eldila e os Oyaresu36 são seres angélicos intermediários entre as demais criaturas inteligentes, e também com os humanos que com eles entram em contato, no espaço exterior (LEWIS 2019 a; LEWIS 2019 b) ou aqui na Terra (LEWIS, 2019 c).
A raiz remota desta compreensão que Lewis extrai do PseudoDionísio, que há anjos incumbidos da tarefa de supervisionar os astros parece estar na literatura religiosa apócrifa judaica. No Livro dos Segredos de Enoque37 encontra-se a seguinte descrição desta atividade angélica supervisora dos astros:
Trouxeram até mim os anciãos e os dirigentes das ordens estelares, e mostraram-me duzentos anjos que dirigiam as estrelas e suas funções nos céus, e voaram com suas asas e apareceram todos que navegam (TRICCA, 1989, p. 25).Este modelo de “funcionamento” do cosmos como tendo os planetas e os astros governados ou supervisionados por anjos, que são intermediários entre a criação e o Criador, encontrado na literatura apocalíptica judaica e em alguns autores da patrística cristã é utilizado por Lewis em sua trilogia cósmica.
Conclusão
C. S. Lewis era um pensador profundo e paradoxal. Prova disso é que, por um lado, era extremamente racionalista. Exemplos de sua racionalidade encontram-se em alguns de seus livros, como O problema do sofrimento (LEWIS, 2006 a) e Milagres (LEWIS, 2010) abordagens a questões complexas – a possibilidade de intervenção sobrenatural no mundo natural no primeiro caso, e o problema tão antigo quanto o próprio ser humano da razão do sofrimento no mundo no segundo – em perspectiva eminentemente racionalista. Além disso, ao ler Lewis é preciso ter em mente que ele não era um pensador sistemático propriamente, o que ajuda a entender o aspecto da “paradoxalidade” presente em sua obra. Por outro lado, ao mesmo tempo, Lewis, desde sua experiência religiosa de conversão do ateísmo ao cristianismo em 192938, tornou-se apologeta da fé cristã, mas fazendo grande uso de uma linguagem da imaginação e da fantasia, por entender que o mito é capaz de veicular verdades espirituais de maneira mais precisa que uma exposição “direta”, por assim dizer. Em outras palavras: Lewis era um racionalista plenamente consciente dos limites da racionalidade humana. Por isso, utilizou à farta do recurso da literatura de fantasia e, como é o caso da trilogia cósmica, da ficção científica, mas uma ficção que não se enquadra na tipologia estabelecida pela crítica literária, por não ser nem hard nem soft. De maneira coerente com sua consciência dos limites da racionalidade humana para compreender as grandezas dos mistérios transcendentais, Lewis foi um crítico contundente da teologia do seu tempo, particularmente a assim chamada TLP, a “teologia liberal protestante”, de expressão alemã39. Esta teologia rejeita(ria) o que não pode ser demonstrado cartesianamente. Lewis não se sente nem um pouco à vontade com este modelo de elaboração teológica, e o critica pela via da literatura de fantasia.
Em sua trilogia cósmica, Lewis resgata um tema praticamente ignorado pela mencionada teologia racionalista do seu tempo: os anjos, criaturas celestiais que, em consonância com uma visão que retrocede ao tempo do judaísmo do período intertestamentário, os entende como seres que mediam as relações de Deus com o mundo.
A trilogia cósmica apresenta uma pletora de temas que se prestam para análise da perspectiva da teologia: crítica ao mito do progresso e ao racionalismo – Weston é estereótipo do cientista pragmático, que só crê no que é perceptível pela via dos sentidos físicos, completamente destituído de valores morais e de qualquer escrúpulo40. Todavia, dentre o conglomerado de temas teológicos contidos na narrativa, talvez a mais destacada seja a da angelologia. Lewis resgata um tema virtualmente ignorado pela reflexão teológica de seu tempo, e o apresenta pela via da literatura imaginativa. Sua visão de angelologia é baseada na tradição cristã medieval, mas com raiz remota na literatura apocalíptica judaica do período intertestamentário.
lançamento41 de mais uma edição da trilogia cósmica de Lewis no Brasil tem condição de possibilitar um aumento dos estudos de temas lewisianos no Brasil. de igual maneira, poderá contribuir para a interface acadêmica do diálogo entre teologia e literatura. Espera-se que o presente artigo contribua para tal.
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Referências
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Notas
[1](coisas) visíveis e invisíveis
[2]Não se entrará neste artigo na discussão quanto ao tratamento dado por Barth ao tema da angelologia. Para mais detalhes a respeito, consultar, inter alia, LINDSAY (2017, p. 1-18).
[3]A Vulgata usa angelus para se referir a mensageiros celestiais, e nuntius (de onde vem “núncio”) para se referir a mensageiros humanos (BROMILEY in ELWELL (1988, p. 72).
[4]REBLIN (2011, p. 63) apresenta uma relação abrangente de todas as referências bíblicas ao verbo “enviar” e ao substantivo “mensageiro”, humano ou celestial.
[5]De malach vem מלאכי – malachi, literalmente, “meu mensageiro”, (isto é, mensageiro de Javé) o título deMalaquias, um dos livros dos Doze Profetas da Bíblia Hebraica, conhecidos na tradição cristã como “Profetas Menores”. Não há consenso entre os biblistas se malachi é o nome próprio do profeta ou se é um título que revela a função do mensageiro, o porta-voz que anuncia o conteúdo do livro. Se esta última opção é a correta, a identidade do malach é desconhecida.
[6]Um exemplo é Azrael, o anjo da morte da tradição judaica, chamado Azra’il na tradição islâmica
[7]A palavra serafins está consagrada pelo uso em português, mas na verdade, trata-se de um erro, pois o sufixo “im” é hebraico é designativo de substantivo plural masculino.
[8]Pelo mesmo motivo exposto na nota anterior, a forma querubins, conquanto consagrada pelo uso, é equivocada.
[9]Rafael (“Deus cura”) é citado em Tobias 5.4, texto deuterocanônico.
[10]Respondeu o Senhor: Eu pessoalmente irei caminhando para levar-te ao descanso (tradução nossa).
[11]Não foi um mensageiro nem um enviado, ele em pessoa os salvou (tradução nossa).
[12]Para detalhes em perspectiva da teoria literária a respeito da literatura fantástica e suas subdivisões e variações, consultar TODOROV (2012).
[13]13 “Clube de Inglês” – English Club no original – é uma típica instituição de universidades do mundo anglo-saxão. A palavra “clube” em português tem a conotação de uma associação voltada para recreação e lazer, mas não é este o sentido desta mesma palavra no mundo universitário do Atlântico Norte. Antes, trata-se de uma entidade que recebe pessoas que querem discutir temas acadêmicos específicos. Tem-se assim Old Testament Club (“Clube de Antigo Testamento”), Philosophy Club (“Clube de Filosofia”), etc. O English Club dedica-se a discutir temas ligados à literatura(s) de língua inglesa.
[14]Walter Hooper (n. 1931) foi secretário particular de Lewis e tornou-se o assessor literário do estate (“patrimônio”) dos direitos literários do escritor.
[15]A corrida espacial tivera início no ano anterior, quando os soviéticos lançaram a famosa nave Sputnik levando a bordo a não menos famosa cadela Laika, que não suportou os rigores da viagem.
[16]LEWIS, 2018 c, p. 100-111.
[17]O fato de Ransom ser filólogo é óbvia homenagem prestada por Lewis ao seu amigo John R. R. Tolkien, que era filólogo.
[18]Esta visão de uma hierarquia angelical e de seres angelicais que atuam no cosmos como intermediários da divindade suprema é proveniente da apocalíptica judaica. Para detalhes consultar, inter alia, MELVIN (2013, p. 7, 9).
[19]Alusão ao texto do Salmo 19.1.
[20]O original do poema de John Milton citado por Lewis é: happy climes that ly, Where day never shuts his eye Up in the broad fields of the sky (LEWIS, 2005, p. 35).
[21]22 Sete planetas são citados, o que não é coincidência, visto serem estes sete os planetas conhecidos por observação a olho nu no período da história antiga e medieval. Netuno e Plutão só foram descobertos a partir da invenção do telescópio.
[22]23 Hross e séroni são duas das criaturas inteligentes de Malacandra em APS.
[23]DeepHeaven no original.
[24]25 A palavra hnau em solar antigo é usada para se referir a qualquer espécie de criatura inteligente.
[25]A palavra handra em solar antigo é usada para se referir a terra enquanto espaço habitável.
[26]Há que se lembrar que este diálogo acontece na língua solar antigo, na qual Ransom naquela altura estava razoavelmente fluente.
[27]28 É interessante que Lewis faça referência a, do segundo para o primeiro, devas e albs. Os devas são entidades da mitologia hindu. A palavra dev tem origem no sânscrito, e significa “brilhante” (KLOSTEMAIER, 2010, p. 101-102). Mas não há certeza quanto ao significado da palavra albs. Tom Shippey, erudito em temas tolkienianos, aventa a hipótese que alb seria a reconstrução hipotética da palavra proto-germânica que seria a raiz remota da palavra inglesa elf, “elfo” (SHIPPEY, 2004, p. 2).
[28]Há que se lembrar que Lewis era medievalista: toda sua carreira acadêmica, em Oxford e em Cambridge, foi como professor de literatura medieval e renascentista. Há que se lembrar também da tradição judaico-cristã propriamente, que molda seu pensamento de maneira decisiva.
[29]Referência ao episódio descrito na Bíblia em Atos 17.34.
[30]A palavra Modelo, grafada com inicial maiúscula neste texto de Lewis, refere-se à Weltanschauung, isto é, a cosmovisão do mundo medieval, que é uma recepção da tradição greco-romana em perspectiva cristã, que ele conhecia em profundidade, e apresenta em muitas de suas obras.
[31]É estranha a forma “PseuDioniso” adotada pela edição brasileira de A imagem descartada. O original em inglês traz Pseudo-Dyonisius, e a forma consagrada pelo uso no Brasil é Pseudo-Dionísio.
[32]Lewis usará a ideia do Pseudo-Dionísio de uma “dança dos deuses” no último capítulo de Perelandra, quando descreve a “grande dança” em louvor a Maleldil, o Criador, Sustentador e Redentor do cosmos (LEWIS, 2019 b, p. 302-314).
[33]A palavra somnour é do inglês médio (que vai do século XI ao XV), correspondente à palavra summoner no inglês contemporâneo. Significa literalmente “convocador”, referindo-se à função correspondente a um oficial de justiça no sistema judiciário brasileiro, isto é, a pessoa que notifica ou convoca alguém para uma audiência judicial ou coisa semelhante.
[34]É equivocada a opção da edição em português de A imagem descartada, de traduzir sailor por “navegante”. Sailor é melhor e mais acertadamente traduzido por “marinheiro” ou “marujo”. Navegante seria a palavra navigator, mas não sailor. A diferença não é pequena: navigator tem o sentido de “navegador” não no sentido de quem viaja pelos mares, mas de quem conduz a embarcação, enquanto sailor tem o sentido de quem cumpre as ordens do comandante, isto é, do navegador.
[35]É estranha a opção da edição em português de A imagem descartada de manter a forma anglicizada Apuleius, considerando que a forma consagrada pelo uso na literatura em língua portuguesa do nome deste filósofo romano que viveu no segundo século da era cristã é Apuleio
[36]Lewis em sua trilogia cósmica não inventou línguas com a sofisticação técnica e o detalhismo de seu colega J. R. R. Tolkien. Antes, limitou-se a criar algumas poucas palavras e, algumas vezes, dar-lhes a forma plural: eldila, plural de eldil, Oyaresu, plural de Oyarsa.
[37]Pouco, na verdade, quase nada, se sabe sobre a composição deste apócrifo judaico, que não deve ser confundido com o mais conhecido Livro de Enoque, ou Enoque Etíope. O Livro dos Segredos de Enoque, também conhecido como Enoque Eslavônico ou Enoque Eslavo, deve ter sido composto no primeiro século antes de Cristo em Alexandria, onde havia grande colônia judaica. Para detalhes, consultar, inter alia, ORLOV, 2007.
[38]Para uma descrição da experiência de conversão do próprio Lewis a obra definitiva segue sendo Surpreendido pela alegria, considerada sua autobiografia espiritual (LEWIS, 2014). Para uma análise desta experiência, consultar DOWNING, 2006.
[39]De maneira algo jocosa e irônica, em O grande abismo (livro nitidamente calcado na Divina Comédia, de Dante Alighieri) Lewis apresenta uma fantasia sobre uma viagem de ônibus que passa pelo inferno e pelo purgatório. Um dos passageiros do ônibus a caminho do inferno está um protestante liberal, que não acredita em nenhuma realidade espiritual sobrenatural (LEWIS, 2006 b).
[40]Em Weston Lewis apresenta pela via da imaginação literária o que apresenta de forma teórica em A abolição do homem: ciência e informações técnicas sem valores morais absolutos conduzem o ser humano inexoravelmente à destruição (LEWIS, 2017). Weston é uma versão “séria” do atrapalhado Tio André de O sobrinho do mago, a segunda das Crônicas de Nárnia (LEWIS, 2014 b).
[41]Como se vê nas Referências deste artigo, a trilogia cósmica foi lançada em nova edição no Brasil em 2019.