A MULHER COM CORPO DE RIO E NOME DE CANOA: a simbologia da água em O outro pé da sereia, de Mia Couto
THE WOMAN WITH RIVER BODY AND CANOE NAME: representations and symbolisms in Mia Couto’s O outro pé da sereia

Geovanna Dayse Bezerra Silva*
VANESSA Riambau Pinheiro**
*Mestra em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. Contato: geovanna_ dayse@hotmail.com
**Pós-doutora em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa. Professora Adjunta de Literatura da Universidade Federal da Paraíba. Contato: vanessariambau@gmail.com
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Resumo
O presente trabalho tem como objetivo analisar o romance O outro pé da sereia, de Mia Couto, a partir da personagem Mwadia Malunga, protagonista de uma das narrativas paralelas apresentadas no enredo, a do ano 2002. Tomamos como recorte desse estudo essa personagem para evidenciar as formas simbólicas associadas ao elemento água, predominante na narrativa. Utilizamos, para o embasamento teórico, os postulados de Eliade (1991, 1992, 2010, 2011), Bachelard (1994, 1997, 2009, 2019), Chevalier e Gheerbrant (2016) e Jung (2011), bem como as explanações críticas de Leite (2012) e Fonseca e Cury (2008). Verificamos, no decorrer da análise, que Mwadia Malunga apresenta, em sua trajetória, um comportamento que se assemelha a forma simbólica do rio. O desenvolvimento da protagonista se dá por meio de viagens, reais ou fictícias, utilizando como veículo uma canoa pelas correntes de água do rio que cerceia o lugar onde mora. Evidenciamos em nosso estudo essa característica inerente à história da personagem e demonstramos, por meio da rede simbólica que o elemento água forma, que Mwadia, enquanto canoa, é o veículo que transita pela via interna de sua própria história, e pela via externa da história de seu povo.

Palavras chave:literatura africana, simbologia da água, O outro pé da sereia

 

Abstract
This work’s objective is to analyze Mia Couto’s novel O outro pé da sereia, from the Mwadia Malunga character, protagonist of one of the parallel narratives present in the 2002 timeline plot. We have used this character as this study’s cutout to show the symbolic shapes associated with the water element, which is prevailing in the narrative. We have used as theoretical basis the postulates of Eliade (1991, 1992, 2010, 2011), Bachelard (1994, 1997, 2009, 2019), Chevalier and Gheerbrant (2016), and Jung (2011), as well as the critical explanations of Leite (2012), and Fonseca and Cury (2008). We have noticed, in the analysis, that Mwadia Malunga shows, in her trajectory, a behavior that resembles the symbolic shape of the river. The development of the protagonist occurs via trips, either real of fictitious, using a canoe as vehicle through the flows of the rivers that surround the place where she lives in. We have showed in our study this inherent characteristic of the character’s story, showing the symbolic net that the water element composes; Mwadia, as a canoe, is the vehicle that transits the internal route of her own story, and the external one of her people.

Keywords:African literature, water symbology; O outro pé da sereia

Antônio Emílio Leite Couto, vulgo Mia Couto, é um dos escritores africanos de maior repercussão internacional. Mia Couto nasceu em 5 de julho de 1955 na cidade de Beira, em Moçambique. Seu marco inicial na literatura ocorreu com o lançamento do livro de poesia Raiz de orvalho, em 1983, inspirado pelo ofício do pai, o já falecido poeta Fernando Leite Couto. Em 1986, estreou como prosador com a coletânea de contos Vozes anoitecidas. Lançou, ainda, em 1990 Cada homem é uma raça e, em 1991, Cronicando, obras que serviram de impulso para sua estreia como escritor de romances em 1993, com a publicação da premiada obra Terra sonâmbula. Inocência Mata, em prefácio ao livro Mia Couto: espaços ficcionais, nos diz que Mia Couto possui uma

diversificada obra em termos genológicos (poesia, estórias, contos, crónicas, novelas, romances e ensaios, indiscutivelmente um género literário) e em termos temáticos – temas que o autor actualiza através de constantes polarizações complementares (nunca excludentes): tradição/modernidade, oratura/escritura, voz/letra, velho/ novo, campo/cidade, região/país, local/global, nacional/ universal, natureza/cultura, mesmo/outro, e suas mestiças combinações a partir das quais o escritor constrói uma verdadeira sinfonia do diálogo entre diferentes. (FONSECA E CURY, 2008, p. 9)

O autor moçambicano possui, até o momento, dezessete romances lançados em Portugal, treze deles lançados no Brasil. Dotado de grande potencial de representação simbólica, o romance que será analisado, O outro pé da sereia (2006), contempla alguns aspectos e temas presentes também em outros romances do autor, como tradição/modernidade, destacado no excerto acima. Destacamos, no entanto, a simbologia das águas presente no romance, que está intrinsecamente ligada a ação das personagens analisadas. Para tanto, nos apoiaremos nos estudos acerca da simbologia.

A simbologia é uma vertente que vem sendo estudada pelos mais diversos ramos do conhecimento. Seja na Filosofia, na História, nas Ciências das Religiões, Psicologia, Antropologia, e, naturalmente, na Literatura, o estudo dos símbolos vem demonstrando a capacidade que o homem tem de criar-se e recriar-se, de cobrir-se e descobrir-se nos níveis físico, mental, psíquico e espiritual. O símbolo tem a maestria de estar inserido na própria construção do Ser e de uma sociedade, levando e elevando os indivíduos a um estado transcendental. Isso se dá porque, na formação de uma civilização, mesmo que não haja a presença da escrita, os símbolos estão presentes para representar imagens, pensamentos, fenômenos naturais.

Sobre o aspecto histórico do símbolo faz-se importante destacar que “o homem integral conhece outras situações além da sua condição histórica. [...] Quanto mais uma consciência estiver desperta, mais ela ultrapassará sua própria historicidade.” (ELIADE, 1991, p. 29). Um indivíduo que, naturalmente, está inserido numa sociedade, compartilhando dos valores e cultura desta, ao iniciar o estudo dos símbolos passa a romper com os limites de espaço-tempo. Pelos símbolos, o homem atravessa sua própria temporalidade e conhece, com uma profundidade cada vez maior, os diversos significados que determinado símbolo adquiriu em sua cultura e em outras, numa perspectiva diacrônica, como também adotando a perspectiva sincrônica. Nas palavras de Chevalier (2016, p. XXIV) “a finalidade do símbolo é uma tomada de consciência do ser (em todas as dimensões do tempo e do espaço), bem como de sua projeção no além.”

O símbolo

estende pontes, reúne elementos separados, reúne o céu e a terra, a matéria e o espírito, a natureza e a cultura, o real e o sonho, o inconsciente e a consciência. A todas as forças centrífugas de um psiquismo instintivo, levado a dispersar-se na multiplicidade das sensações e das emoções, o símbolo opõe uma força centrípeta, estabelecendo precisamente um centro de relações ao qual o múltiplo se refere e onde encontra sua unidade. [...] o símbolo é um fator de equilíbrio. Um jogo vivo de símbolos num psiquismo assegura uma atividade mental intensa, sadia e, ao mesmo tempo, liberadora. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2016, p. XXVII-XXVIII)

Neste ponto, ratificamos o caráter centrípeto do símbolo. Ele não leva para fora, mas conduz irremediavelmente para dentro. Como observamos em Durand (1993), o símbolo atua como uma espécie de espiral, conduzindo o ser ao centro de si, a mente plenamente equilibrada e sã.

O estudo da simbologia revela uma dimensão transcendente ao homem. A relação consigo mesmo, com o meio em que vive, a relação com o sagrado. Para Eliade

O símbolo não pode ser o reflexo dos ritmos cósmicos enquanto fenômenos naturais, porque um símbolosempre revela alguma coisa a mais, além do aspecto da vida cósmica que deve representar. (...) a função de um símbolo é justamente revelar uma realidade total, inacessível aos outros meios de conhecimento: a coincidência dos opostos, por exemplo, tão abundantemente e simplesmente expressada pelos símbolos, não é visível em nenhum lugar do Cosmos e não é acessível à experiência imediata do homem, nem ao pensamento discursivo. (ELIADE, 1991, p. 177)

O símbolo é insaciável e praticamente impossível de ser acessado em sua plenitude. Compreendemos que tal experiência de plenitude ou epifania do símbolo só ocorra num espaço-tempo que Eliade denomina de tempo sagrado1 . Admitindo o caráter a-histórico do símbolo, fica mais simples observar que, na medida em que o homem acessa esse tempo sagrado, mais ele penetra nas profundezas da alma de um símbolo.

A narrativa de Mia Couto, cerne de nosso estudo, encontra-se permeada de simbologias diversas. De acordo com Fonseca e Cury, temas recorrentes na literatura miacoutiana são “a viagem, a errância, o deslocamento” (2008, p. 84), sendo que essa transição espacial pode ocorrer tanto no sentindo real quanto imaginário. Muitos de seus personagens fazem viagens ao passado, revisitando as lutas de seu povo, para retornarem ao presente com um olhar mais crítico acerca de sua condição enquanto indivíduo. Ana Mafalda Leite afirma que

o tema da viagem, quando surge, é na encenação desses mares e rios, demanda de paz, de conciliação entre tradição e modernidade, entre confluência dos rios interiores com o mar litorâneo. É ainda remitologização da história, das navegações e dos signos coloniais. (LEITE, 2012, p. 75).

Essa afirmação da teórica nos remete diretamente aos protagonistas de O outro pé da sereia, uma vez que é dessa confluência das águas que toda a história se desenvolve. Antigamente é o nome dado ao local que Mwadia reside com o marido, o pastor Zero Madzero. É deste ponto que ela parte rumo ao monte em busca do curandeiro Lázaro Vivo, que lhe orienta seguir em direção às margens do rio Mussenguezi, em busca de um lugar para enterrar a ‘estrela’ caída. Essas margens do rio revelam-se ponto marcante na história da personagem que tem o nome de canoa, pois é neste local em que a mulher encontra os objetos que darão uma reviravolta em sua vida apática. É também pela travessia entre essas margens que a Mwadia chega a sua aldeia de origem, Vila Longe, lugar que é reservatório de suas lembranças há muito esquecidas. Essas fronteiras atravessadas por ela fazem parte de um dos temas recorrentes na literatura miacoutiana, como vemos em Mia Couto: espaços ficcionais:

Mia Couto é, pois, um ser de fronteira enquanto escritor que assumidamente fala a partir da margem. Ele assim o faz, literal e metaforicamente, ao trazer para seus romances os conflitos do espaço africano, criando personagens também eles “de fronteira” [...] Não é por acaso que muitos de seus personagens assumem tal condição: mulheres, loucos, feiticeiros, estrangeiros. (FONSECA e CURY, 2008, p. 106)

A personagem Mwadia insere-se nessa categoria do ‘ser de fronteira’, já que sua ação é marcada pela travessia entre os espaços físicos e temporais. A fronteira histórica é diluída quando a personagem passa a intermediar o que acontece com os viajantes da nau Nossa Senhora da Ajuda.

Mwadia Malunga revela, desde o início do enredo, sua relação com as águas. O significado de seu próprio nome revela que: “Ela sabia de suas certezas: o seu nome, Mwadia, queria dizer “canoa” em si-nhungwé. Homenagem aos barquinhos que povoam os rios e os sonhos”. (COUTO, 2006, p. 19). A canoa é uma espécie de barco que serve de veículo nos rios e mares. É um veículo que serve para fazer a travessia de um ponto a outro, de acordo com o direcionamento dado por quem está no comando, remando. A respeito da barca (veículo similar à canoa e, por isso, com mesmo significado simbólico), Chevalier e Ghreerbrant (2016) mencionam que este veículo está associado a segurança, pois “favorece a travessia da existência” (p. 122). Isto é, o simbolismo da canoa está ligado, nitidamente a vida, a existência: a canoa possibilita o trânsito entre as margens da vida, o nascer e o morrer. A canoa também se caracteriza por ser um veículo simples, de menor valor financeiro, rústico.

Além disso, o aspecto sinuoso da canoa pode assemelhar-se ao corpo feminino. Podemos inferir que Mwadia, a canoa, faz ligações não apenas entre as margens dos rios - no sentido físico e geográfico -, mas também temporal, como veremos mais adiante. A simplicidade do veículo, como observamos no romance, também está intimamente associada à simplicidade em que a protagonista vive com o companheiro Zero. A viagem por essa canoa também pode ser compreendida em um sentido de deformação psíquica, já que, no decorrer do enredo, são dadas pistas que colocam em xeque a sanidade mental da personagem. Essa viagem, como observamos no enredo, é conduzida por Mwadia. Deste modo, a protagonista é, ao mesmo tempo, canoa e canoeira (ou barca e barqueira).

Bachelard (2017, p. 80-81) diz-nos que “a função de um simples barqueiro, quando encontra seu lugar numa obra literária, é quase fatalmente tocada pelo simbolismo de Caronte. Por mais que atravesse um simples rio, ele traz o símbolo de um além. O barqueiro é guardião de um mistério (...)”. Esta função que Mwadia exerce, quando associada a Caronte, remete-nos instantaneamente à passagem da vida a morte. Caronte, o barqueiro, é o condutor das almas do mundo dos vivos para o mundo dos mortos. Bachelard (1997) salienta que, durante séculos, a imagem do barqueiro foi ilustrada na cultura e na literatura de diversos povos. Mesmo que esta imagem se revista de ‘máscaras’ diferentes, com as particularidades de cada povo, o significado resulta na fatalidade da morte, misteriosa por excelência.

Mwadia, no início do romance, vive em um lugar para além das mon-tanhas, onde não chove, com o marido Zero Madzero. Este, como o próprio nome já diz, vive em uma espécie de autoanulação, em um não existir, um vazio, uma morte: “Zero se aproximava do próprio nome: ele se anulava, em ocaso de si mesmo.” (COUTO, 2006, p. 14). Mais adiante, veremos que o nome do personagem Zero também é uma pista na qual se funda a crença de que Mwadia inventa histórias e pessoas. A reviravolta na vida até então apática do casal ocorre quando eles vão enterrar os destroços de uma estrela (ou avião de espionagem norte-americano) às margens do rio Mussenguezi e se deparam com a estátua de uma santa e outros elementos, como vemos a seguir:

Mwadia procurava as roupas que o rio arrastara quando soltou um grito. O pastor acorreu, esbaforido. Seus olhos se petrificaram. Entre os verdes sombrios, figurava a estátua de uma mulher branca. Era uma Nossa Senhora, mãos postas em centenária prece. As cores sobre a madeira tinham-se lavado, a madeira surgia, aqui e ali, espontânea e nua. O mais estranho, porém, é que a Santa tinha apenas um pé. O outro havia sido decepado. — Já viu, Mwadia? Esta é a Virgem coxa! O pastor tocou a estátua. Eram aquelas as mãos que vira em sonhos, as mãos da mulher branca que o visitara em Antigamente. A mulher não comentou. Em vez disso, ela apontou para um arbusto e um novo sobressalto sacudiu o pastor. Madzero tropeçou no passo que não deu. Pois ali se exibiam as ossadas completas de pessoa humana. O pastor recuou como se, ao ganhar distância, lhe viesse mais entendimento. Desviou o rosto: ao contemplar os ossos ele via o seu próprio esqueleto. Estava decidido a retirar-se, de imediato, daquela floresta quando o gesticular desesperado da mulher lhe revelou uma nova descoberta, brilhando entre o capim. — Veja, marido: uma caixa! Vou abrir! O pastor se apressou a impedir que Mwadia tocasse na velha caixa. Era um baú de madeira já meio apodrecido. (COUTO, 2006, p. 38)

Desse momento em diante, Mwadia, “essa que tinha corpo de rio e nome de canoa” (COUTO, 2006, p. 15-16), passa a vivenciar um intercâmbio com o outro eixo temporal (1560). Neste momento, há o encontro da canoa com o rio da vida, chamado tempo. O rio, em sua natureza simbólica, representa a própria existência. As margens da vida e da morte podem ser associadas à nascente e a foz de um rio, assim como o próprio corpo físico.

O fato de os ossos de Gonçalo da Silveira estarem enterrados na árvore às margens do rio, também nos revela o caráter feminino do cenário: “Colocando o morto no seio da árvore, confiando a árvore ao seio das águas, duplicam-se de certa forma os poderes maternais” (BACHELARD, 1997, p. 75). A maternidade (ou a ligação com o feminino) revela-se não apenas pela presença do elemento água, como também pela imagem da santa encontrada. Contudo, nos é relevante lembrar o quanto este trecho da narrativa evoca, simultaneamente, as duas margens da existência: o nascimento, proporcionado pela Mãe e a morte. É ela quem acolhe no momento de chegada e de partida: “A morte nas águas será para esse devaneio a mais maternal das mortes.” (BACHELARD, 1997, p. 75). Observamos, neste ponto, o quanto a simbologia presente nesse estudo culmina no ciclo vida-morte. Neste sentido, também consideramos a afirmação de Jung de que “a caixa ou arca é um símbolo feminino, isto é, o ventre materno, que era um conceito familiar aos mitologistas antigos. A caixa, a pipa, ou cesta com o precioso conteúdo muitas vezes é imaginada como flutuando sobre a água[...]” (JUNG, 2011, p. 249), pois é em um grande baú ou arca que todos os objetos que servirão de impulso ao deslocamento de Mwadia estão guardados.

O capítulo dois, intitulado “Pegadas no rio, sombras no tempo”, evidencia a forma simbólica que sobressai neste ponto, pois tudo gira em torno das águas do rio. O rio, neste capítulo, pode ser interpretado com o próprio tempo, já que é nele que permanecem conservados os vestígios de um momento longínquo na história do povo da aldeia. É por meio da água corrente do rio que o leitor é conduzido ao passado, à travessia feita pela Nau Nossa Senhora da Ajuda. Isso se dá pela descoberta do baú, contendo o diário de viagem contando toda a história que ocorrer na citada Nau, em 1560.

A condução ao rio Mussenguezi é realizada pelo canoeiro Zero no veículo Mwadia, como observamos a seguir:

Seguia a tradição dos Achikunda que fabricavam canoas e, com elas, superavam distâncias.
— Ser canoeiro, era esse o meu sonho.
— Você não precisa sonhar, meu marido. Você é um canoeiro, eu sou a sua canoa. Conhecer as habilidades do rio, ser visitado por espíritos que avisam sobre os ventos, remoinhos e hipopótamos, reconhecer as ilhas no meio do leito, saber onde dormir, tudo isso Madzero aprendera com seu pai, em silenciosas lições do ver fazer. Ensinamento maior, no entanto, era o seguinte: não é força que se pede a um canoeiro. O segredo está no ritmo dos remos, batendo num mesmo compasso na superfície da água. O cantar pode ser mais forte que a corrente. Os remadores, antes da viagem, estancavam junto à margem e escutavam o murmurar das águas.
— Ouçam como o rio canta hoje. Depois, já nos barcos, eles escolhiam a adequada canção e com ela marcavam o ritmo. Os cânticos tinham ainda uma outra função: cantava-se para esquecer o cansaço.
— Canções do rio? Você podia cantar uma, agora, para me fazer esquecer a fome, pediu Mwadia. (p. 37)

Aqui retoma-se o símbolo do barqueiro ou canoeiro. Desta vez, porém, a função é exercida por Zero, como constatamos na citação acima. As raízes de Zero remontam à arte de canoar2 . O personagem aprendera com o pai pela observação que o curso das águas do rio tem um ritmo próprio, e o bom canoeiro deve saber ouvir o som entoado pela corrente para poder seguir o percurso de acordo com o ritmo do dia.

De acordo com Chevalier e Gheerbrant:

O simbolismo do rio e do fluir de suas águas é, ao mesmo tempo, o da possibilidade universal e o da fluidez das formas (F. Schuon), o da fertilidade, da morte e da renovação. O curso das águas é a corrente da vida e da morte [...] ou a travessia de uma margem a outra. (2012, p. 780)

O rio da vida, observamos, é a corrente ininterrupta do tempo, em que há contínuas mortes e renascimentos. O que acontece com Mwadia no momento em que ela se depara com a estátua da santa é uma viagem às origens, tanto no sentido sócio-histórico do povo moçambicano quanto no sentido pessoal, pois as lembranças de sua adolescência são resgatadas. No sentido histórico, a estátua da santa católica e o baú com os manuscritos da viagem que levou missionários, aristocratas e escravos de Goa a Moçambique, em 1560, possibilitam o acesso às lembranças da época, ao princípio do processo de cristianização da comunidade local, não isentando, obviamente, os próprios nativos que compactuaram com os portugueses na execução do plano de colonização. Para Chevalier e Gheerbrant (2012, p. 15), “mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver totalmente, salvo por uma morte simbólica, é retornar às origens, carregar-se de novo num imenso reservatório de energia e nele beber uma força nova: fase passageira de regressão e desintegração”.

No âmbito pessoal, a viagem no tempo de Mwadia se dá quando é narrado o acesso às lembranças de quando é jovem e enviada ao Zimbábue pela Tia Luzmina, para seguir outro rumo na vida, que não seja o de curandeira e quando a protagonista retorna à casa de sua mãe, em Vila Longe, em busca de um lugar seguro e sagrado para deixar a estátua da Nossa Senhora de um pé.

No capítulo quatro, intitulado A travessia do tempo, Mwadia faz a travessia de Antigamente para Vila Longe pelo rio Mussenguezi, a bordo da canoa: “Quando chegou ao rio Mussenguezi ela procurou pelo barco. Era uma canoa feita de um tronco de mbawa e estava ocultada entre os caniços da margem.” (COUTO, 2006, p. 65). Ao chegar na casa de sua mãe, reencontra-se com o padrasto Jesustino e a mãe Constança. É o reencontro com antigas lembranças. “As lembranças atravessavam os rios, calcorreavam a savana e nela emergiam como lava incandescente. ” (COUTO, 2006, p. 68). Isto é, a partir do momento em que realiza a travessia, a personagem vê emergir em si, as memórias vivas e acesas como o fogo. E, assim, como vivo e aceso, podemos inferir que o comparativo da lembrança com o fogo pode remeter a ideia de destruição que este elemento pode provocar, pois queima, incinera. Ao mesmo tempo, também remete à transmutação, uma oportunidade que a personagem tem de ressignificar momentos dolorosos pelos quais passou.

Antes de entrar na casa da mãe, Constança, acontece o ato que vemos a seguir:

— Agora, venha, disse a mãe. Venha que eu vou lavá-la.
— Lavar-me?
— Quero que seja você, sozinha com seu corpo, a entrar nesta casa.*** As mãos da mãe fizeram escorrer a água pelo corpo nu de Mwadia. (COUTO, 2006, p. 74)

Observamos, nesse contexto, que Constança busca recuperar, por meio do banho, a filha antes de conhecer Zero. Ela quer que Mwadia entre sozinha em casa. Sabemos que as águas têm como um de seus atributos essenciais a purificação. No entanto, os rituais realizados por meio do banho são bastante recorrentes em diversas culturas. Chevalier, no verbete banho, nos traz que

A virtude purificadora e regeneradora do banho é bem conhecida e atestada, tanto no âmbito profano como no do sagrado, pelos seus evidentes usos entre todos os povos, em todos os lugares e todos os tempos. Pode-se dizer que o banho é, universalmente, o primeiro dos ritos que sancionam as grandes etapas da vida, em especial o nascimento, a puberdade e a morte. (CHEVALIER, 2016, p. 119)

Atestamos, desse modo, porque o banho é primordial para que Mwadia possa entrar na casa da sua mãe. Esse rito marca o início de uma nova fase na vida da personagem que, outrora, já vivenciara a imersão total nas águas por ocasião de seu nascimento.

O sinal indicador de que Mwadia deve ser habitante das águas profundas do rio fica evidente na seguinte passagem:

Contrariando a corrente, a mãe avançava pelos aposentos onde flutuavam imagens e os panos que cobriam o altar. Gritava por Mwadia, gritava até perder a voz. Depois, saía em prantos, na certeza de que perdera a filha. Sentava-se na margem e ali se abandonava, observando as águas serenarem. Permanecia assim dias e dias, cada dia o rio regredindo um pouco mais, como que arrependido dos recentes excessos. Edmundo, seu marido de então, em vão a tentava demover. Ela que regressasse a casa e retomasse a vida. Constança teimou: perdera o motivo para recomeçar. Semanas tinham decorrido quando ela foi surpreendida pela inesperada visão: Mwadia emergia, aflorando viva à superfície das águas. Quando a tomou nos braços, Constança não nutria dúvida: a menina tinha sido tomada por uma divindade das águas. Mwadia passara a ter duas mães, uma da terra, outra das águas. (COUTO, 2006, p. 85)

O nascimento da personagem provoca profundas alterações na aldeia em que vive sua família, pois o seu nascimento fez com que as águas do rio que atravessavam os arredores da aldeia inundassem tudo. A população vizinha viu-se obrigada a migrar para lugares mais altos. Desde o momento em que chega ao mundo, Mwadia está destinada a se tornar uma Nzuzu3 , espírito das águas do rio. O batismo de Mwadia é realizado por Lázaro Vivo, como observamos no seguinte trecho:

Era a primeira vez que o curandeiro Lázaro narrava o episódio do baptismo tradicional de Mwadia. Fora ele que a baptizara, levara-a ao rio Mussenguezi. No momento em que submergiu, a pequena Mwadia começou a entrar em delírio, possuída por um espírito todo-poderoso. De repente, sucedeu o inesperado: as ondas levantaram-se e o rio tornou-se caudaloso a ponto de ele próprio, o cerimoniante Lázaro, fugir e deixar a menina abandonada. Quando voltou, já não a encontrou. Dias depois, Mwadia foi encontrada na margem, envolta em folhagens que a corrente arrastava. (COUTO, 2006, p. 273)

O trecho revela que a personagem, desde o momento em que fora batizada, não tem outra escolha que não seja a de ser uma mediadora entre um plano e outro. No contexto da obra, a incorporação de um espírito é denominada visitação. Ou seja, Mwadia é visitada durante o próprio batismo, pois já está abrindo a porta para a ocorrência de tal fenômeno. A simbologia do batismo, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2012), traz a significação dos ritos de iniciação e de passagem, da purificação e da renovação. Daí compreendermos que o batismo dela é uma cerimônia de iniciação, sinalizando que, deste momento em diante, ela passaria a ser a medianeira entre os planos físico e espiritual, entre Moçambique no contexto contemporâneo e no contexto colonial. É também uma cerimônia de morte, pois ao submergir nas águas por dias seguidos, Mwadia estaria morta fisicamente, mas, ao contrário, emerge do reino das águas como uma filha da sereia Nzuzu

É importante ressaltar, nesse contexto, a presença do personagem Lázaro Vivo, cujo nome é bastante enigmático e faz referência ao personagem bíblico Lázaro. Em O outro pé da sereia, Lázaro está presente nos momentos mais marcantes da vida de Mwadia: em seu batismo de nascimento (que, a nível simbólico, representa sua iniciação como curandeira) e na decisão que a faz sair de Antigamente a Vila Longe para transportar a imagem da Santa. Lázaro, o personagem bíblico, é conhecido no mundo ocidental por ter sido ressuscitado por Jesus. Após quatro dias considerado morto, Lázaro retorna a vida. No romance que estamos estudando, o Lázaro é Vivo: com V maiúsculo, como que para atestar sua vitalidade. Além disso, esse personagem demonstra o contraste entre as tradições e a contemporaneidade.

Retomando o episódio do batismo de Mwadia, para melhor compreensão, vejamos algumas colocações. Segundo Frye (2014), a água:

Pertence tradicionalmente a um reino de existência abaixo da vida humana, o estado de caos ou dissolução que se segue à morte comum, ou a redução ao inorgânico. Assim, a alma frequentemente atravessa a água ou afunda nela na hora da morte. No simbolismo apocalíptico, temos a “água da vida”, o rio quadripartido do Éden que reaparece na Cidade de Deus e é representado no ritual do batismo. (FRYE, 2014, p. 276)

O teórico situa a água nas imagens apocalípticas como a fonte da vida, de onde tudo vem. Isto é, a criatura passa por um ritual em que imerge na superfície, passa por um processo de morte simbólica para, em seguida, renascer pelas águas da vida eterna. Mais adiante, quando a análise enfocar Nimi Nsundi, observaremos outros aspectos do batismo. No capítulo oito, ao narrar o mito da sereia Nzuzu, Casuarino reafirma-nos a missão de Mwadia:

De quando em vez, uma moça desaparecia nas águas. Não morria. Apenas permanecia residindo nos fundos lodosos, aprendendo a arte de ser peixe e os sortilégios da adivinhação. Ficava anos nessa submersa moradia até que, um dia, reemergia e se apresentava às famílias para exercer, então, a profissão de curandeira. (COUTO, 2006, p. 141)

No capítulo catorze, observamos uma citação que corrobora com a rede simbólica da Mulher- Lua- Águas, como mencionada no início deste capítulo:

Por mais cristãos que fossem, os de Vila Longe olhavam a estátua e viam o espírito nzuzu, a deusa que mora em águas limpas. Ela vive com a nyoka, a serpente. Quando a água fica suja, a serpente sai a espalhar maldades e feitiços. (COUTO, 2006, p. 242)

A natureza da serpente de se transformar, trocar de pele, de morrer e renascer instantaneamente, faz desse animal um símbolo lunar. De acordo com Eliade (2016, p. 128) “o mesmo simbolismo liga entre si a Lua, as águas, a chuva, a fecundidade das mulheres, a dos animais, a vegetação, o destino do homem após a morte e as cerimônias de iniciação.” Verificamos, no decorrer da análise, vários destes elementos mencionados por Eliade no contexto vivenciado por Mwadia. A contradição na personagem se dá pela sua ausência de fertilidade: Mwadia não pode ter filhos.

A trajetória de Mwadia no decorrer do enredo evidência, de maneira clara, sua relação com o elemento manifesto na forma simbólica do rio. Mwadia, enquanto canoa, realmente faz jus ao nome que recebe ao nascer e atua como veículo nas visitações, encenadas e reais, com o intuito de convencer os estrangeiros que visitam Vila Longe (no período em que ela está em busca do lugar seguro para guardar a Santa). Fonseca e Cury (2008) salientam que na tradição moçambicana, os contadores de história têm rituais para abertura e fechamento das narrativas. O contador de estórias, segundo as autoras, deve ser alguém que saiba abrir e fechar a caixa que guarda essas narrações, pois, caso contrário, os ouvintes poderão adoecer de sonhar. Podemos inferir, por outro lado, que os rios, quando assumem o significado de “agentes de fertilização” (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2012, p. 17), também podem denotar a capacidade que a personagem tem de gerar histórias em sua própria mente. Nos capítulos que dizem respeito ao eixo temporal contemporâneo, a maioria enfoca a personagem Mwadia Malunga, com apenas uma exceção. Em diálogos com alguns personagens, tais como sua mãe, Constança e o curandeiro Lázaro Vivo, ambos questionam a existência do marido dela, Zero Madzero, pois, para eles, Zero já morreu e Mwadia permaneceu em Antigamente – “lugar feito de areias, miragens e ausências (COUTO, 2006, p. 31) -, alimentando a existência do companheiro, afinal, “morrer é verdadeiramente partir, e só se parte bem, corajosamente, nitidamente, quando se segue o fluir da água, a corrente do largo rio. Todos os rios desembocam no Rio dos mortos” (BACHELARD, 1997, p. 77). Constança, em conversa com a filha, descreve uma possível versão para a morte de Zero:

—Eu sei de tudo sobre a vida de seu homem, aliás, sobre a sua morte. Constança falou vincando as vogais, sublinhando as consoantes: fazia tempo que Madzero não estava vivo. Não morrera, fora morto. Essa fantasia que Mwadia criara, inventando de Zero estar vivo, isso era, para ela,mais do que compreensível. Afinal, aquela era a sua maneira de ser amada, o seu único modo de se sentir viva. (COUTO, 2006, p. 327)

A fala da mãe revela uma relação além do paternal que o padrasto sente por Mwadia na época em que ela resolve sair de casa e ir morar com Zero. No entanto, a versão de Constança não é confiável, uma vez que, em outros momentos, ela evidencia o desejo de que a filha permaneça em Vila Longe morando com ela. Outro trecho que também menciona uma possível insanidade de Mwadia diz respeito ao curandeiro Lázaro Vivo:

O adivinho fez o que não fazia com mulher alguma: acompanhou Mwadia à porta e ficou a vê-la desaparecer por entre os atalhos de areia. Uma ruga lhe agravava o rosto: saberia a filha de Constança o que a esperava em Vila Longe? Ou recorria à mesma ilusão que produzia com os panos pendurados à porta de sua casa: inventaria vidas para preencher o vazio do seu coração? (COUTO, 2006, p. 46-47)

Nesta passagem, abre-se um outro leque de interpretação: a possibilidade de toda a história que se passa em Vila Longe ter sido inventada. Nesse viés, a viagem de Mwadia pela canoa, narrada no final do capítulo dois, pode ser a real invenção da personagem. Seu próprio nome, como é dito no início desta análise, indica que é uma homenagem aos barquinhos que povoam os sonhos. Assim, Mwadia, a canoa ou o barquinho, pode estar fazendo viagens imaginárias, sonhando ou criando história em sua casa mental.

No encerramento da obra, Mwadia retorna para casa, onde Zero a espera. Quanto ao retorno, destacamos o trecho a seguir:

A viagem termina quando encerramos as nossas fronteiras interiores. Regressamos a nós, não a um lugar. Mwadia sentia que retornava aos labirintos de sua alma enquanto a canoa a conduzia pelos meandros do Muzenguezi. Na ida, ela se preocupara em sombrear a Virgem. No regresso, ela já ganhara a certeza: ali estava a Santa mulata, dispensando o sombreiro, afeiçoada ao sol de África. Chegada a um largo embondeiro, ela dirigiu o concho para a margem e foi subindo a ravina, carregando com ela a Santa. Junto ao tronco, ela depositou a Virgem, se ajoelhou e disse: — Você já foi Santa. Agora, é sereia. Agora, é nzuzu.” (COUTO, 2006, p. 329)

O retorno, neste contexto, é a si mesma. As águas do rio possibilitaram à personagem transitar pelos caminhos interiores, pelo campo infinito das possibilidades. No encontro consigo mesma, com suas origens, Mwadia Malunga passa a reconhecer na santa a sereia Nzuzu, negra, não mais a santa católica. É um olhar que só é possível após os caminhos percorridos nas vias interna e externa, após transitar entre as duas margens da vida e da morte, do caos à regeneração em si mesma. A canoa Mwadia é o corpo que a conduziu às suas origens familiares pelo rio da temporalidade. A personagem, outrora distanciada da família e das lembranças desta, faz uma visita a esse arquivo da memória ancestral.

O rio, nesse sentido, conduz o percurso ao passado e ao futuro. É uma viagem que possibilita o resgate à ancestralidade da protagonista, presentificando-o.

A trajetória de Mwadia Malunga, desde o nascimento, está ligada ao espírito das águas doces moçambicanas, Nzuzu. Mwadia é filha da sereia das águas doces, é batizada em suas águas e esse é o destino que, inicialmente, a aguarda. Mesmo que as escolhas a conduzam para outro caminho, Mwadia está fadada a ser uma eterna canoa, responsável por transitar entre as margens do rio do tempo. É graças a sua habilidade de transportar que ela, enquanto representação das águas do rio, deságua no mar.

Mwadia, em verdade, é o verdadeiro elo que possibilita a ciência do que se passa no eixo correspondente ao período de colonização moçambicana. Quando faz a travessia no rio Mussenguezi para deixar a santa em um lugar seguro e se encontra com sua família (ou suas raízes), Mwadia está indo muito além da ancestralidade consanguínea: ela está viajando para um passado longínquo no qual se origina a história de exploração e transformação de seu povo. Não é apenas o contexto sócio-histórico atual da aldeia Vila Longe que está sendo demonstrado, mas sim a história do interesse europeu pelo Império do Ouro, ou Monomotapa, mascarado pelo processo de cristianização desse povo.

A narrativa demonstra um caráter cíclico, até mesmo quando tem em seu desfecho uma fala de Mwadia ao marido semelhante a que ele mesmo faz para ela, quando abre o romance no primeiro capítulo.

Assim, percebemos que o caráter cíclico do enredo não se apresenta apenas em seu aspecto estrutural, mas também ao próprio contexto interno dos personagens. As histórias se encontram nas águas do rio e esse rio segue seu curso para chegar ao mar. No final da obra, Mwadia, em sua função de canoeira (ou barqueira, conforme vimos nas explanações anteriores da Bachelard acerca de Caronte), faz a viagem de retorno devolvendo o mar às margens do rio, demonstrando a confluência dessas águas e dessas formas simbólicas que têm em comum este elemento e esse passado histórico presentificado pela arte de contar histórias.

Referências bibliográficas

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BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Disponível em: https://drive.google.com/ file/d/1ohu-3gLS5fk05eDap_ZbHzdpyuw7AqLo/view. Acesso em: 13/01/2019.

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.

COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993.

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2011.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008.

FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda Ferreira. Mia Couto: espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: É Realizações Editora, 2014.

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Petrópolis: Vozes, 2011.

No final de seu texto Temps et Récit1, Paul Ricoeur se defronta com a questão da identidade narrativa e sua reflexão sobre este tema vai ocupar alguns artigos que ele escreveu na sequência2. Não se trata da identidade do narrador ou do gênero literário, mas sim do tipo de “identidade à qual um ser humano acede graças à mediação da função narrativa”3.

Segundo ele, “a constituição da identidade narrativa, seja de uma pessoa individual, seja de uma comunidade histórica, era o lugar procurado desta fusão entre história e ficção”. Afinal, continua ele, “não se tornam as vidas humanas mais legíveis quando são interpretadas em função das histórias que as pessoas contam a seu respeito? E estas “histórias da vida” não se tornam elas, por sua vez, mais inteligíveis, quando lhes são aplicadas modelos narrativos?”. Assim ele se propõe a seguinte sequência de raciocínio: “o conhecimento de si próprio é uma interpretação; a interpretação de si próprio, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada; esta última serve-se tanto da história como da ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se se preferir, uma ficção histórica, comparáveis às biografias dos grandes homens em que se mistura a história e a ficção”4.

Percebe-se, então, se não de saída a elaboração dos detalhes de sua argumentação, ao menos a direção que seguirá sua reflexão e, se não o ponto de chegada, ao menos o horizonte que se descortina a partir de sua reflexão. O conceito de identidade pessoal será trabalhado, de maneira muito interessante, a partir do viés narrativo, inclusive beirando ou integrando o ficcional.

Anteriormente Ricoeur já havia apresentado um estudo sobre a identidade do texto e a afirmava dinâmica no seguinte encadeamento de raciocínio: “o tecer intriga5 é o paradigma de toda ‘síntese do heterogêneo’ no campo narrativo; a intelegibilidade narrativa possui mais afinidade com a sabedoria prática, ou com o julgamento moral, que com a teórica; o esquematismo narrativo é constituído por uma história que participa de todas as características de uma tradição”; e por fim ele arremata dizendo que “a identidade do texto narrativo não se limita ao que se chama de ‘dentro do texto’, pois como identidade dinâmica emerge para a intersecção do mundo do texto e o mundo do leitor”. Ajunta ele que “nesse ato de leitura a capacidade que tem a intriga de transfigurar a experiência é atualizada”, já que o “ato de leitura pode desempenhar esse papel porque seu dinamismo próprio enxerta-se no do ato configuracional e o conduz a seu acabamento”6. Aqui também está posta, na percepção do caminho, a direção a ser seguida pelo pensamento.

Sua reflexão vai, então, da identidade do texto à afirmação da identidade pessoal, passando pela importância que ele mesmo atribui ao encontro do mundo do texto e do mundo do leitor. De alguma maneira a obra não estará completa sem o trabalho de leitura criativa realizada pelo leitor, possibilitando a interação dos dois mundos: aquele que a obra descortina e aquele onde o leitor se refigura. Não se trata, como ele mesmo destaca, de encontrar o dentro e o fora do texto, pois se trata da interação da história ou de histórias.

Há um caráter ético nestas afirmações que não passaram desapercebidas a estudiosos do pensamento de Ricoeur7. Afinal, sabe-se que se “o símbolo faz pensar”, uma de suas frases mais conhecidas, e que também se pode passar do texto à ação8, outra de suas formulações lapidares. Refigurar-se diante do mundo não é apenas conhecer-se, enquanto consciência de si, mas também situar-se enquanto sujeito de ação que constrói sua vida, decifra comportamentos e toma decisões. A partir do texto o leitor se conhece e situa melhor sua ação no mundo em que vive, em referência àquele de quem se narram histórias. A pergunta pelo “quem?” pode ter um maior esclarecimento pelas narrativas que se fazem sobre ele e que repercutem na vida do leitor.

De alguma maneira isto também se aplica à leitura religiosa que se faz da Escritura. Desde sempre a leitura dos textos sagrados se realiza para ajudar o crente a melhor situar-se em seu mundo e a decidir comportamentos de acordo com aquilo que interpretará dos textos lidos. Foi assim com os oráculos na antiga Grécia, com a profecia em Israel, com as consultas mediúnicas de todos os tempos e com o contato direto com os textos que se referem à fé. Só aqui já teríamos uma interessante aproximação entre a hermenêutica ricoeuriana e a Bíblia.

Que Paul Ricoeur elabora sua filosofia hermenêutica em grande proximidade com textos literários, e também com categorias de análise e estudos literários, é fato sobejamente conhecido. A poesia e os textos de ficção são trabalhados por ele de maneira a poder elaborar e conferir as afirmações que realiza sobre o fato interpretativo, para além dos textos históricos. Aquilo que pode ser afirmado a partir de um texto de ficção pode ser afirmado para todos os textos, nos ensina ele. De alguma maneira talvez se possa dizer que o que pode ser verdade para um “texto falso” com mais razão poderá ser verdade para um “texto verdadeiro”. Teríamos reunido, aqui, três assuntos que, nos últimos anos, vimos considerando importantes e mais ou menos relacionados e que configuram nosso objeto de estudo: a literatura, o pensamento de Ricoeur e a Escritura, alma da teologia.

Da pregação à narração

Mas há ainda um complemento a isso que considero importante e que vem do próprio Ricoeur. Em seu texto “Da proclamação à narrativa”9, ele realiza uma interessante relação entre o anúncio evangélico e a intriga, ou mais especificamente “o tecer intriga”. Este “tecer a intriga”, como dissemos, é mais que simplesmente a intriga porque não diz apenas do argumento da história ou de seu enredo, mas sim, para além disso, dos personagens, do cenário, das situações, da temporalidade, enfim, tudo o que se relaciona com o que são os elementos que compõem o mundo do texto.

A relação que Ricoeur estabelece entre a pregação da comunidade primitiva e a elaboração do texto evangélico segue um itinerário de três passos: a proclamação do Reino de Deus por Jesus, o confronto e a história do sofrimento. O esquema teológico do anúncio parece bastante coerente, e o resultado redacional pode ser encontrado nos textos evangélicos que conhecemos ou, ao menos, estes podem ser lidos segundo essa chave. Afinal, sem querer elaborar propriamente uma teologia, Ricoeur tenta como que uma “engenharia reversa” do texto bíblico, encontrando nele ecos da pregação da Igreja que lhe é anterior, como fazem também os exegetas na aplicação de alguns de seus métodos de análise10.

Segundo sua apresentação, a pregação de Jesus sobre o Reino de Deus não apenas estrutura o texto evangélico, mas parece ser um pressuposto da confissão de fé da comunidade primitiva que atribui a Jesus o título de Messias. Só pode haver confissão messiânica se há concretamente execução da função messiânica, e isso se realiza em relação ao Reino de Deus. Messias é aquele que realiza o Reino, o anuncia e o concretiza. Fora desta situação, a titulação atribuída a Jesus poderia ser simplesmente diferente, de profeta, de rabino ou outra. Se se afirma que ele é o Messias, isto se dá em função da realização do Reino de Deus.

Este Reino, na pregação da Igreja, e talvez como eco da pregação de Jesus, não é simples grandeza apocalíptica, como textos do intertestamento poderiam nos fazer pensar. Reino de Deus não é uma grandeza cosmológica, geográfica ou temporal simplesmente, mas relacional. Não simplesmente um outro mundo em outra época, mas um outro jeito de organizar o mundo que pode ser desta época já: “hoje se cumpriu esta passagem da escritura que acabais de ouvir” (Lc 4,21). Esta nova organização do mundo, capaz de ser compreendida como “novos céus e nova terra” (Ap 21,1), gera novos comportamentos e nova estrutura, de maneira a não haver mais excluídos na sociedade nem fronteiras, religiosas ou sociais, que deixem de fora inúmeros cidadãos. Por isso “a comunidade dos que creram era um só coração e uma só alma” (At 4,32), de tal forma que entre eles não havia “judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher, pois são um em Cristo Jesus” (Gal 3,28). O Reino de Deus, portanto, é a forma de estabelecer o governo de Deus que faz iguais todos os seres humanos: “vós sois todos irmãos” (Mt 23,8). Que o privilégio dos pobres estruture esta forma de pensar é algo evidente, porque o novo mundo vem exatamente em seu benefício. São eles os excluídos do mundo atual e, por isso, são eles os primeiros beneficiados do mundo reorganizado por Deus e seu Messias.

Disso se segue, inevitavelmente, o confronto, que Ricoeur caracteriza como controvérsia. Não é simples nem é consensual a instalação da forma de organização do mundo e de sociedade proposto pelo conceito de Reino de Deus. Em primeiro lugar, claro, porque os privilegiados não vão admitir outro mundo onde eles não mantenham os mesmos privilégios. E ainda muitos dos que foram subjugados gostarão de uma revanche, fazendo com que os subjugados de hoje sejam os privilegiados de depois. O “entre vós não será assim” (Mc 10,26) encontra aqui seu eco. O anúncio do Reino conhece, então, rejeição e recusa, aliás desde o início. É esta recusa que está na base da crucificação e morte de Jesus. A recusa da mensagem vai de par com a recusa do mensageiro. Um e outro são identificados, inclusive porque há unidade entre eles, e por isso um e outro recebem negação e rejeição. O Messias não é reconhecido e seu Reino não é aceito, e isto transparece nos relatos da paixão.

Não se estranha, pois, que os evangelhos sejam estruturados como “história do sofrimento” ou da recusa. “Ele veio para os seus e os seus não o receberam” (Jo 1,11) são palavras colocadas no início do evangelho de João, assim como o “não havia lugar para eles na casa”, de Lucas (Lc 2,7). A recusa de Jesus e de sua pregação atravessa todo o texto evangélico de tal forma que as controvérsias se sucedem e as autoridades apenas procuram o melhor momento para prender e calar Jesus, decisão já tomada no início da história, como relatada em Marcos (Mc 3,6). Os textos da paixão e morte de Jesus se inserem dentro da mesma lógica, a da recusa de sua pregação e de seu reconhecimento como Messias. Segundo Ricoeur, a história não poderia ser contada de outra forma a não ser como história do sofrimento, a intriga correspondendo à identidade do personagem. A identidade narrativa de Jesus transparece no texto tal como ele é elaborado, e não poderia ser de outra forma.

Identidade narrativa entre fé e história

Adolphe Gesché, fecundo leitor de Ricoeur, publicou em 1999 um interessante estudo intitulado “Pour une identité narrative de Jésus”11. Ali o que preocupava o autor era a intermediação apontada e realizada pelo texto evangélico entre a história de Jesus e a profissão de fé da Igreja. Para Gesché, o texto evangélico revela um Jesus que não é propriamente aquele histórico que caminhou pelas estradas da Palestina no século I da era cristã, nem exatamente aquele que a teologia da Igreja apresenta na riqueza de sua doutrina. Entre a história e a doutrina, há uma passagem obrigatória pelo texto evangélico, que não é relato historiogáfico nem compêndio de doutrina teológica, mas obra elaborada realçando uma intriga, tal qual a elaboração de uma obra literária.

Ressalta Gesché12 que esta intermediação é voluntária e, ao menos em certos aspectos, definidora da identidade de Jesus. Não se trata de simples ponte que liga os dois elementos importantes, a figura histórica e a doutrinal. Há a construção, pelo texto, de uma identidade própria de Jesus que, por isso mesmo, é chamada de identidade narrativa. Ela não é oposta à identidade histórica, mas lhe seria posterior. Contam-se histórias a respeito de Jesus depois de sua existência histórica. Ela também não é simples continuação da história de Jesus, agora em forma de relatos, pois pode haver múltiplas formas de contar a história de um personagem, e temos isto, inclusive, no número plural de evangelhos que conhecemos. Ela busca, sim, responder à questão “quem”?, que, segundo a elaboração do pensamento de Ricoeur, só poderá ser respondida pela narrativa. Por outro lado, a tradição eclesial sempre compreendeu que os textos evangélicos visavam suscitar no leitor a resposta a esta pergunta. “Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,27) é a pergunta central do evangelho e, no texto de Marcos, se encontra exatamente no meio da obra.

Por outro lado, se pode ajuntar à reflexão de Gesché que, mesmo não sendo relato historiográfico sobre Jesus, o texto narrativo possui elementos de história e a ela não é impermeável, assim como não é impermeável a elementos teológicos que já estão presentes em sua elaboração. A narrativa sobre Jesus não é um texto doutrinal, em sentido estrito, é certo, mas encaminha para a construção teológica. Neste sentido, ela é ponte entre a história de Jesus e a proclamação de fé da Igreja. Mas, se ela desabrochará em reflexões teológicas e elaborações doutrinais na sequência, ela já é portadora de uma experiência de fé e, por isso, já há elementos de teologia que ajudam em sua estruturação, da mesma maneira que ela se refere a elementos de história efetivamente acontecidos. Sua elaboração não é estritamente teológica nem histórica, mas narrativa, ou seja, literária. O autor não pensa uma teologia e depois a preenche criptograficamente com narrativas sobre Jesus, nem apenas dá conta da sequência histórica de acontecimentos que compuseram sua existência. A composição narrativa segue o princípio de “contar uma história” de maneira atraente e com coerência e por isso, indiscutivelmente, visa o leitor. Não apenas o leitor imediato da comunidade que compõe o texto, mas simplesmente “o leitor”, que tomará, mais tarde, contato com o texto e procurará responder à questão da identidade do personagem da narração: “quem é ele?”.

O Jesus Histórico e o Cristo da Fé

Quando Bultmann faz sua crítica radical das pesquisas sobre a história de Jesus13 e aponta a proclamação de fé da Igreja como a única afirmação importante sobre ele, os estudos bíblicos viveram certo abalo. Como poderia ser possível referir-se aos evangelhos se não como história de Jesus? É verdade que Bultmann é prisioneiro de certo positivismo histórico14 que não lhe permite outra saída. Se, durante muito tempo, os evangelhos foram tomados como histórias “verídicas” a respeito de Jesus, a demitologização da Escritura realizada por Bultmann mostrava que tudo não era tão histórico assim na elaboração dos textos sagrados15.

O avanço das pesquisas históricas do mundo bíblico mostrava certas incongruências de dados em alguns textos e mesmo livros inteiros, como o de Jonas, careciam de comprovação histórica. Algo semelhante se passava com Jesus pois, fora os textos evangélicos, não havia documentação histórica que sequer assegurasse sua existência. Para o positivismo histórico, que exigia comprovações documentais ou arqueológicas, a existência de Jesus poderia ser uma fábula, talvez uma criação literária mítica como a de outros personagens conhecidos da antiguidade. A negativa da historicidade de Jesus parecia fazer ruir todo o edifício da proclamação da fé eclesial, e os positivistas mais ferrenhos não escondiam sua alegria por isto.

O caminho encontrado por Bultmann parece bastante interessante16. Não foi ele quem criou a distinção entre o Jesus Histórico e o Cristo da Fé, mas ele explorou esta distinção e pode realizar uma reflexão teológica que salvaguarda a fé mesmo diante da eventual impossibilidade de comprovar a existência histórica de Jesus. Segundo ele, o Jesus Histórico é aquele que caminhou pelas estradas da Palestina no Século I e a quem se referem os textos evangélicos. Este personagem não deixou nada escrito e não há registros de suas palavras, de suas ações ou mesmo de sua existência fora dos círculos cristãos. Parece ter sido um personagem sem importância de forma que não há registros sobre sua passagem na história humana. Como acontece com todo ser humano, nasceu, viveu e morreu, se é que existiu. Mas mesmo tendo existido, ele não é o objeto da afirmação da fé da Igreja. A reconstituição total dos acontecimentos de sua vida, ainda que isso fosse possível, não ajuntaria nada à fé eclesial, e mesmo se não se pode dizer nada sobre sua existência histórica, ainda assim é possível que a Igreja professe sua fé no Verbo Encarnado.

A fé da Igreja, insiste Bultmann, é a afirmação do Cristo Ressuscitado17. Ora, a Ressurreição é absolutamente incomprovável por caminhos de história e só pode ser afirmada na fé. Todo ser humano é convidado a fazer ou não sua decisão de vida diante do Cristo. Os atos da vida de Jesus podem ajudar na compreensão da fé, mas esta não carece de comprovação histórica para ter sentido e a historicidade concreta de Jesus não é decisiva para a proclamação da fé enquanto tal. Os nomes de seus apóstolos, os lugares que frequentou, as histórias que narrou, nada disso precisa ser comprovado historicamente para dar sustentação ao ato de fé. O que é necessário é, diante do Cristo, cada pessoa fazer sua opção de vida e aceita-lo ou não como Salvador. O princípio da teologia protestante ajuda muito aqui, pois afirma que o essencial é cada cristão definir-se pessoalmente diante do crucificado, confessando-o como seu Salvador: “Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo” (Rm 10,9). O essencial será, então, a proclamação da fé eclesial. Se não é possível dizer nenhuma palavra comprovada sobre a história de Jesus, ele só poderá ser conhecido pela proclamação da fé da Igreja. Cremos porque a Igreja crê em Jesus Cristo e no-lo anunciou. Cremos, então, o que a Igreja crê, em uma articulação necessária entre o “eu creio” e o “nós cremos”. A fé, neste sentido, é eclesial e sua confissão pessoal integra no ambiente de Igreja. A história de Jesus não é passível de anúncio pela Igreja, mas sim a fé em Cristo. Não é relevante a comprovação do lugar ou data de seu nascimento para que seja possível a afirmação de fé que o reconhece como Salvador. A fé é possível ainda que sem comprovação histórica dos dados que afirma.

Depois de Bultmann, porém, vários de seus alunos assumiram postura mais matizada do que a crítica radical do mestre18. Ainda que admitindo que o centro da fé eclesial seja a afirmação do Cristo da Fé, estes teólogos passaram a admitir, também com a evolução dos estudos históricos e sua libertação dos quadros positivistas, que algo a respeito da vida de Jesus poderia ser conhecido com segurança histórica. Ainda que se admita a impossibilidade de precisão sobre datas, lugares e pessoas, os acontecimentos relacionados a Jesus tiveram tal impacto na história do mundo que, ao menos indiretamente, algo de sua existência pode ser afirmada com força de “verdade histórica”. Ao menos sua existência pode sê-lo: é tal a insistência em sua morte de cruz que isso se impõe como evento real; se morreu, é porque viveu, porque nasceu. E aqui já temos a comprovação histórica de sua existência. O essencial da fé continua sendo aquilo mesmo, a proclamação que Jesus Cristo é o Salvador e a consequente adesão à sua pessoa. O fato de poder dizer de sua existência dá mais segurança à possibilidade de fé do crente, mas não muda essencialmente sua proclamação ou as exigências éticas e religiosas que dela decorrem.

Nos tempos atuais vive-se nova busca pela história de Jesus conhecida agora como “third quest”, a terceira busca do Jesus Histórico19. Corresponde ao avanço das pesquisas científicas no campo da história, auxiliada pela arqueologia mas também pela antropologia cultural, pela linguística, pelos estudos do meio social onde Jesus teria vivido e onde nasceram os evangelhos. Há toda uma gama de ciências que aportam seus conhecimentos específicos para estudar, comprovar ou ao menos verificar a possibilidade dos fatos narrados a respeito dele nos evangelhos. E muito já se chegou a admitir, como as datas referenciais de sua existência, o meio que frequentava, o tipo de movimento que suscitou, o porquê da oposição que lhe custou a vida e mais outros detalhes referentes à sua existência20.

Tais conhecimentos, que permitem sob certos aspectos uma reconstrução da vida de Jesus, não fazem apelo à fé e por isso podem ser realizados por cientistas sem envolvimento de sua confissão de fé ou sem que signifiquem exigência de estudos teológicos21. Foi exatamente isso que motivou a crítica de Bento XVI à forma de execução da pesquisa e o levou à publicação de sua obra em três volumes sobre a vida de Jesus22. O fato é que aqui, ainda uma vez, os conhecimentos históricos sobre Jesus darão maior segurança ao crente para fazer sua profissão de fé, mas não vão nem proibir nem obrigar à realização de sua confissão. As pesquisas pela história de Jesus não comprovarão sua ressurreição ou que ele é o Filho de Deus, mas também não proibirão que tais afirmações sejam feitas na fé, pois não comprovarão que Jesus não tenha ressuscitado ou não seja o Verbo Encarnado.

Isto porque fé e ciência tratam de conhecimentos distintos, ou de diferentes formas de acesso ao conhecimento da verdade. As ciências descrevem os fenômenos, e isso é de sua competência; não cabe à fé ou à teologia a descrição do fenômeno da chuva, por exemplo, porque é a ciência quem tem propriedade de falar da evaporação, da condensação, das condições de precipitação, etc. Por outro lado, o sentido dos fenômenos não será afirmado pela ciência. A ausência ou presença da chuva, por mais que se descrevam as suas condições de possibilidade, poderá ser atribuída à divindade por conta do sentido do fenômeno, e por isso visto como ação divina que permite ou impede a chuva. Ainda que falando da mesma realidade, a uma compete a descrição e à outra a atribuição de significado. Se há problemas quando a ciência se atreve a fazer o que não é de sua competência, dizendo, por exemplo, que se o universo nasceu do Big Bang não há ato criador, porque uma coisa não impede a outra já que o Big Bang diz do “como” enquanto o ato criador diz “o quê”, pois Deus pode criar através do Big Bang, por outro lado também há problemas quando a fé ou a teologia querem sair de sua competência e descrever fenômenos, como por exemplo dizendo qual o corpo celeste que é centro do universo. Se uma e outra erram ao sair de seu campo específico de atuação, por outro lado uma e outra podem colaborar no processo do conhecimento humano, cada qual segundo sua competência e maneira de ser.

O Messias do texto

Se a ciência não impede a fé e esta não atravanca a evolução do conhecimento científico, o literário não precisa ficar alheio a esta relação. A literatura não é ciência, mas pode conhecer e aludir à verdade; também não é afirmação de fé, mas pode dizer do sentido das coisas e dos acontecimentos23. Ela pode exercer como que um papel mediador entre um e outro, ao menos naquilo que nos ocupa. O Jesus Histórico não é o objeto da fé, e o Cristo da Fé não é passível de ser conhecido pelas investigações históricas. Um e outro não estão em oposição, mas se completam como uma única realidade e uma única pessoa. Entre um e outro, como ponte a ligar a história e a fé, temos então o texto literário. Como vimos, para Gesché, o texto liga a história que lhe antecede à confissão de fé que o sucede, agindo como ponte que permite a união de um e outro.

Cabe ressaltar aqui, como já lembrava Paul Ricoeur, que uma vida não pode ser contada de qualquer maneira, mas que os fatos a serem narrados, independentemente de sua veracidade histórica, encaminhame de certa forma determinam sua maneira de apresentação. Assim, fatos históricos se enquadram mais na narração, normas nos textos legislativos, e assim na sequência. A história de Jesus de Nazaré cabe bem nas narrações evangélicas, apresentadas como história de sofrimento por conta da controvérsia originada pela pregação sobre o Reino de Deus. Note-se bem aqui a ponte que une estas realidades, juntando história, texto literário e teologia, exatamente pelos elementos destacados.

As pesquisas sobre a história de Jesus afirmam que sua pregação se referia fundamentalmente ao Reino de Deus24. Sob certos aspectos se pode mesmo caracterizar seu movimento como Movimento do Reino, no sentido de que sua proposta de renovação da fé de Israel25 centra-se na categoria de Reino de Deus e é expressa por este símbolo. O Primeiro Testamento conhece a ideia de que Deus é Rei (Salmo), que Deus governa seu povo, através dos juízes, do rei ou por outros meios (1Sm 8). No entanto a expressão Reino de Deus não se encontra ali presente. A ideia de um mundo de Deus, onde ele governa, que vem para substituir o mundo presente parece datar do intertestamento ou, ao menos, da apocalíptica26. E se a pregação de Jesus tem características apocalípticas, elas não são únicas em seu ensinamento.

O anúncio da chegada do Reino de Deus não precisa ser entendido apenas como a notícia do fim do mundo físico, em um grande evento cosmológico que decreta o fim da história. A apocalíptica apresenta realidades físicas como símbolos do religioso que, por sua vez, refere-se à forma de vida das pessoas no mundo e na sociedade27. Dito de outra maneira, o anúncio do final do mundo físico refere-se ao final do mundo de pecado, dominado por Satã; o fim do reinado do pecado implica em final da opressão estabelecida sobre o povo pelos dominantes estrangeiros. Assim, o que é proposto é o final da opressão social, significando o final do domínio do pecado simbolizado pela substituição do mundo onde reina Satã pelo mundo onde Deus governa, onde não haverá opressão, pecado nem sofrimento, mas fraternidade e paz.

Na pregação de Jesus, se o Reino não apenas está se aproximando mas já chegou, então não será preciso esperar uma mudança de espaço para viver sob o governo de Deus. Pode-se viver assim desde já, mas não apenas em disposições interiores, senão em práticas que estruturem um novo modo de o mundo se organizar em justiça, paz e fraternidade: “veja como os chefes das nações as dominam e as tiranizam... entre vós não deverá ser assim” (Mt 20,25-26). Por isso sua atenção aos pobres, aos fracos e aos doentes, pois são aqueles que mais sofrem opressão por conta da organização social e religiosa. Visto desta maneira, o Reino de Deus é, em verdade, um novo mundo, pois uma nova maneira de ser, uma nova maneira de viver, onde os pobres não serão os últimos, mas os primeiros, já que destinatários da atenção e do amor especial de Deus. Este Reino será finalmente estabelecido por ação Deus, aliás, está sendo estabelecido por Deus através de seu Cristo, e aqui o papel fundamental que Jesus percebe em sua proposta de Reino, donde o título messiânico que lhe é atribuído pelos textos e pela comunidade crente.

Que Jesus seja o Messias é a clara profissão de fé do grupo apostólico, entendendo o Messias não apenas como aquele que vem de Deus, mas como aquele que tem a função de estabelecer o Reino de Deus. O Messias, assim, é lugar tenente de Deus para organizar e estabelecer o governo de Deus. Foi assim que Jesus foi entendido por seus contemporâneos, mas que talvez enxergassem o estabelecimento deste Reino não como um mundo novo, mas como um outro governo entre tantos outros, mais nacionalista mas, ainda assim, como os outros. Esta não é a proposta de Jesus, e seu grupo de seguidores parece ter tido dificuldade para compreender o alcance maior de sua proposta. Porém, parece que seus adversários não tiveram as mesmas dificuldades. Para eles, a proposta do estabelecimento de um governo diferente daquele de César, fosse ele nacionalista ou universal, deveria ser combatido. Em jogo não apenas suas convicções, mas seus privilégios. Também os chefes da religião oficial de Israel se colocavam desta maneira, pois se tinham logrado privilégios no governo de César, isto talvez não fosse garantido em um governo diferente. E seria melhor que Deus governasse através deles do que através de alguma outra pessoa.

A oposição que se desenha ao movimento de Jesus eclode rapidamente, ele é preso, executado e seus seguidores perseguidos. Havia que alijar do horizonte um movimento assim perigoso e ainda impossibilitar que ele reapareça em qualquer outra parte. Por isso a execução exemplar de Jesus, na cruz reservada àqueles que atentavam contra o império. Não contavam com a notícia da ressurreição daquele que havia sido morto e do anúncio de que ele vivia novamente. Tal anúncio significaria o início dos eventos escatológicos, pois a ressurreição dos mortos, segundo a apocalíptica, aconteceria no “último dia”. Ora, se os eventos escatológicos estavam se sucedendo, o governo de Deus estava definitivamente instalado, o Reino estava realizado e o Messias seria conhecido e aclamado por todos. Este é o anúncio apostólico que se situa na continuação do evento Jesus.

Que a vida de Jesus possa ser resumida desta forma, talvez a história já pudesse dizê-lo, excluída, claro, a questão da ressurreição. O fato é que os textos que narram Jesus apresentam este enredo fundamental e, neste sentido, encaminham sua identidade narrativa. Não é um acontecimento ou outro que caracteriza sua vida ou o próprio personagem Jesus, mas o conjunto de sua prática colocada sob a luz de sua messianidade. Profetas podem falar do desígnio ou das palavras de Deus; sacerdotes e teólogos podem falar da natureza de Deus e de seu relacionamento com os seres humanos; apenas o Messias pode instaurar o Reino de Deus. Que as narrativas sobre Jesus encaminhem nesta direção será perfeitamente compreensível, tendo sido isto ou não o que tenha marcado a existência histórica de Jesus.

Note-se, ainda, que este é o encadeamento teológico que se sucede, que se constrói a partir do texto ou que tenha influenciado sua organização. A teologia, que evolui na direção da elaboração da doutrina, parte da afirmação de fé que Jesus “foi constituído Senhor e Cristo” (At 2, 36) por ação de Deus. Significa que a confissão de fé inicial da Igreja, seu kerygma primeiro, é a proclamação da messianidade de Jesus: ele é o Cristo, ele é o Ungido, ele é o Messias28. Novamente é bom lembrar que Messias se relaciona com o Reino de Deus: sim, alguém que procede do mundo de Deus e que por ele é investido em função messiânica. A pergunta sobre a natureza do Verbo e suas relações com o Pai será colocada mais tarde na história da Igreja. Em primeiro lugar vem a proclamação de sua função messiânica.

A afirmação da identidade narrativa

“Quem dizem os homens que eu sou? (...) e vós, quem dizeis que eu sou? (...) Tu és o Cristo” (Mc 8, 27-29). O evento pode ser histórico ou não, a declaração de Pedro pode ser textual ou não. Está assim narrada, é perfeitamente verossímil e, com o que se conta a respeito do personagem, é a definição de sua identidade no texto: ele é o Messias. É o que o texto procura afirmar, se pudéssemos falar de uma intencionalidade do texto. Mais que isso, o que se diz é que a identidade messiânica de Jesus é definida pelas narrativas feitas a seu respeito. O texto como que vai estabelecendo este caminho de leitura para que os leitores não se percam na paisagem e possam, no final, compreender e afirmar que Jesus é o Cristo, e engajar sua vida e sua identidade pessoal a partir daí. Donde a teologia que reflete sobre o significado da afirmação de fé. Aquele que a afirma em liberdade, com estas ou outras palavras, como aquelas do centurião ao pé da cruz (Mc 15,39), por exemplo, ou outras que serão formuladas mais tarde na Igreja, engaja sua vida e define sua forma de viver no mundo, ao menos enquanto horizonte de possibilidades. O texto evangélico não é uma relação historiográfica de eventos da vida de Jesus. Também não é um tratado de teologia ou um compêndio de doutrina. É uma narrativa sobre Jesus, aliás uma narrativa plural, pois são textos evangélicos. A história ou histórias que se contam sobre ele, pois, apontam para a sua identidade narrativa, configuram sua identidade pela narração. Não definem para o Jesus Histórico, cuja pesquisa pertence à ciência e cuja identidade pode não ser nunca definida, na medida em que personagens do passado são inalcançáveis. Não definem o Cristo da Fé, na medida em que a proclamação da Igreja será feita, sim, a partir de tais narrativas mas se desdobrando em doutrina que se tornará vivência de quem crê. Elas apontam para o Messias do texto, edificam a identidade narrativa de Jesus a partir de sua messianidade e afirmam, assim, um espaço que une os três elementos, o Jesus, o Cristo e o Messias. Ou a história, a teologia e a literatura, três irmãs reunidas em um esforço que lhes permite aceder, por caminhos diversos ou similares, ao conhecimento da verdade do Reino edificado por Deus através de seu Ungido.

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Notas

[1]Tempo que não corresponde ao que denominamos de tempo histórico.

[2]Grifo nosso.

[3]Em O outro pé da sereia, Nzuzu é o nome dado à divindade que rege as águas do rio. Veremos, adiante, a divindade que rege as águas com o nome de Kianda, quando o eixo temporal refere-se a Nimi Nsundi.