Política, verdade, tekné
Politics, truth, tekné

Samir Haddad*
*Doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Contato: samir.haddad@unirio.br
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Resumo
A partir das dinâmicas políticas contemporâneas e do papel das mídias sociais no uso político, que deram origem a expressões como pós-verdade, falência do senso comum, desconstrução do político, discutiremos com auxílio de Hannah Arendt as relações entre política e verdade e as distinções que estabelece entre verdade factual e opinião. Temos como hipótese, que, historicamente, as íntimas relações entre política e mentira, assim como o uso de novos elementos técnicos-mediáticos no âmbito do político, não se configuram nenhuma novidade. Os meios técnicos depois de sua surpresa e sucesso inicial, tendem a se homogeneizar e perder sua significação espetacular. Esse processo se repetiu historicamente desde o advento da retórica no processo democrático na Grécia Antiga até o uso de mídias sociais como instrumento político na contemporaneidade, passando pelo uso de outros meios que em seu momento ocuparam o mesmo lugar e colocaram em questão o político e suas relações com os fatos.

Palavras chave:Arendt, opinião, política, verdade, mídia

 

Abstract
Based on contemporary political dynamics and from the role by social media in its political use, which gave rise to expressions such as post-truth, bankruptcy of common sense and deconstruction of the political, we will discuss with the help of Hanna Arendt the relations between politics and truth and the distinctions established between opinion and factual truth. Our hypothesis is that, historically, the close relations between politics and lies, as well as the use of new technical-mediatic elements in the political sphere, do not present themselves as novelty. The technical means, after their surprise and initial success, tend to homogenise themselves and lose their spectacular significance. This process has been repeated historically since the advent of rhetoric in the democratic process in Ancient Greece until the use of social media as political instrument in contemporaneity, through the use of other means that at the time occupied the same place and questioned the political and its relation to facts.

Keywords:Arendt, opinion, politics, truth, media.

Introdução

Parece que vivemos, hoje, não só no Brasil, a época do governo do Twitter, na República do Whatzapp.

Acompanhamos no Brasil um conflito político violento e o desenvolvimento nesse processo de uma nova tekné como instrumento de política.

O eixo da questão política se modifica. Nos vemos envoltos em conflitos que combinam a questão principiológica com um discurso cultural que engloba preocupações com a educação, a arte e que colocam em dúvida o princípio republicano de separação entre Estado e religião. Tais discursos se encontram, muitas vezes, embaralhados ideologicamente, constituindo identidades momentâneas ou transitórias um tanto quanto confusas, que buscam justificativas pragmáticas bem como pressupostos ideológicos, por vezes constituindo discursos híbridos.

Porém, o que parece ter chamado mais a atenção e surpreendeu nesses conflitos contemporâneos foi o papel político das mídias sociais. Esse evento deu espaço para discursos que advogam a falência do senso comum, ou a desconstrução da realidade, desconstrução do político ou algo chamado de pós-verdade.

Acredito que por uma questão de exposição devemos tratar essa questão de duas perspectivas diferentes, ainda que façam parte de um mesmo complexo. De um lado a questão da verdade, da opinião e da política, de outro a questão da técnica ou da nova tekné.

1. Opinião e política

Hobbes no capítulo XII do Leviatã nos diz que

Pois não duvido que, se acaso fosse contrária ao direito de domínio de alguém, ou aos interesses dos homens que possuem domínio, a doutrina segunda a qual os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos de um quadrado, esta doutrina teria sido, se não objeto de disputa, pelo menos suprimida, mediante a queima de todos os livros de geometria, na medida em que os interessados de tal fossem capazes.(HOBBES, 1988, p. 63)

A frase aparece no momento em que discute acerca das diferenças de costume, e de como a ignorância das causas e da constituição do direito, da equidade, da lei e da justiça predispõe os homens a tomarem os costumes como regra de suas ações quando isso lhes é conveniente e, ao contrário apelar à razão contra esses mesmos costumes quando isso convém e colocar-se contra a razão todas as vezes em que a razão é contrária a seus interesses.

Na perspectiva de Hobbes a verdade da geometria só não é suprimida porque o conhecimento das propriedades das figuras não se opõe ao domínio, ao lucro ou a cobiça de ninguém, o que no caso é circunstancial, diferente do que acontece na determinação do bem e do mal, do justo e do injusto, na qual uma permanente luta através de palavras e do uso da força está sempre em curso.

Concordando ou não com Hobbes quanto à possibilidade de uma verdade da razão ser realmente abolida pela destruição dos livros e daqueles que a professam, temos que reconhecer que o poder pode se opor à razão, à verdade ou ao costume dependendo da ocasião e do interesse. Entretanto, podemos supor, como nos diz Hannah Arendt, que o homem “será sempre capaz de reproduzir proposições axiomáticas” (ARENDT, 1992, p. 286), isto é, a destruição de todos os livros de geometria não seria eficaz para destruir os axiomas da geometria na medida em que, como construção racional, poderia sempre ser reelaborada, mesmo que não pudesse ser dita, o que efetivamente e politicamente não são a mesma coisa, a primeira é a possibilidade de pensar e chegar a verdade mesmo sobre o que o poder proíbe, enquanto a segunda é a impossibilidade de dizer porque o poder impede.

No caso das proposições científicas o risco seria maior. A ciência moderna de Galileu a Einstein poderia ter tomado outro curso, dependendo das vicissitudes históricas, e não ter acontecido. A mesma coisa podemos conceber acerca das doutrinas filosóficas, seja a teoria das ideias de Platão quanto a constituição da razão para Kant, que poderiam nunca ter sido elaboradas, se, no dizer de Hobbes fossem contra os ‘interesses dos homens de domínio’. Contudo, ainda podemos supor aqui o mesmo quanto às verdades axiomáticas, isto é, que em seu devido tempo ou em outro tempo, essas elaborações, invenções, interpretações ou descobertas poderiam vir à luz de uma forma ou de outra, ainda que as probabilidades não fossem muitas.

Porém, e aqui novamente Hannah Arendt:

as possibilidades de que a verdade fatual sobreviva ao assédio do poder são de fato por demais escassas, aquela está sempre sob o perigo de ser ardilosamente eliminada do mundo, não por um período apenas, mas potencialmente, para sempre. Fatos e eventos são entidades infinitamente mais frágeis que axiomas, descobertas e teorias... Uma vez perdidos, nenhum esforço racional os trará jamais de volta. (Grifo nosso) (ARENDT, 1992, p. 287)

Arendt faz uma distinção entre verdade racional e verdade factual. Mesmo ambas sendo opostas à opinião e possuindo a característica despótica que possui toda verdade, a verdade factual é fundamental para a atividade política, pois ela informa a opinião e o pensamento político, assim como a verdade racional é imprescindível à especulação filosófica (1992, p. 295).

Ainda que em uma perspectiva historicista possamos discutir se fatos são independentes de interpretação, Arendt está apontando para dados “brutalmente elementares e cuja indestrutibilidade tem sido admitida tacitamente até mesmo pelos seguidores mais extremados e rebuscados do historicismo” (ARENDT, 1992, p. 296).

A verdade factual daria certa estabilidade ao mundo político, pois os fatos estariam além de acordos e consensos, são a base, por assim dizer, de toda opinião. Como por exemplo, o fato do papel de Trotsky na Revolução Russa ter sido abolido dos livros de história russos, não elimina o papel de Trotsky no evento, podemos discutir e opinar que papel ele teria desempenhado, mas o fato que o coloca presente no contexto histórico não pode ser objeto de discussão e persuasão. Arendt em Verdade e Política narra o seguinte evento:

Clemenceau, pouco antes da sua morte, travava uma conversa amigável com um representante da República de Weimar sobre a questão da culpa pela eclosão da Primeira Guerra Mundial. - O que em sua opinião - perguntou este a Clemenceau - pensarão os historiadores futuros desse tema espinhoso e controverso? Ele replicou: Isso eu não sei. Mas tenho certeza de que eles não dirão que a Bélgica invadiu a Alemanha (ARENDT, 1992, p. 296).

Daqui a um tempo nem sequer disso teremos a certeza.

Estabelecemos um caminho que vai do conhecimento axiomático, passando pelo conhecimento científico e filosófico e chegando por fim aos fatos, às verdades fatuais e às tramas do político. E aqui podemos perceber o quão frágil é o mundo dos negócios humanos incluindo o espaço da ação e da política, que depois de destruídos não podem ser trazidos de volta e são esquecidos.

Entretanto, Hannah Arendt nos chama a atenção para outra distinção: poderíamos dizer que o oposto de uma proposição científica verdadeira seriam o erro e a ignorância, assim como desde Platão o que se oporia à verdade filosófica seria a opinião (doxa). Porém, o que se oporia à veracidade dos fatos, não é nem o erro, nem a ilusão, mas a falsidade deliberada. E uma das formas que a mentira pode assumir é promover o desaparecimento da distinção entre verdade factual e opinião.

Não podemos pensar em verdade fatual se já não levamos em conta a opinião, mas as duas coisas não se misturam. Fatos e opiniões, diz Hannah Arendt, não são antagônicos, pertencem ao mesmo domínio humano e público, fatos informam opiniões que podem partir de um mesmo fato e inspirar paixões distintas.

Mesmo que possamos perguntar se os fatos existem independentes de opinião e interpretação e possamos admitir que cada geração tem o direito de escrever sua própria história, isto significa rearranjar os fatos de acordo com uma nova perspectiva, mas não alterar os fatos. Porém, como já dissemos, não há nada mais frágil que os negócios humanos constituídos de fatos e eventos. Corremos risco quando a própria verdade fatual se torna apenas opinião. Afinal, os fatos são contingentes, “tudo poderia efetivamente ter acontecido de outra forma [...]” (Arendt, 1992, p. 301). Assim, ainda que não devam, os fatos se esvaem e se transformam ao sabor da opinião, do interesse e da interpretação1.

Além do que nos aponta Arendt, contemporaneamente, nosso risco com relação aos fatos não se encontra só nas mentiras deliberadamente produzidas que podem modificar os fatos segundo seus próprios interesses. Mesmo sendo a mentira deliberada o que se opõe à veracidade dos fatos, não é possível mentir para todos, durante todo o tempo. Alterar todos os documentos, fazer desaparecer todos os testemunhos etc., não seria concebível nem mesmo para sociedades totalitárias como vistas no século XX. O risco que vivemos hoje e sempre é o esquecimento. Como nos diz Maquiavel em O Príncipe: “o tempo leva por diante todas as coisas, e pode mudar o bem em mal e transformar o mal em bem” (1979, p. 13).

Se o tempo é um fator a ser levado em conta na interpretação dos fatos e das ações humanas, isto é, a esfera do político, temos ainda a mudança sutil de sentido que pode tudo transformar e que somado à ação do tempo destrói a inteligibilidade dos fatos.

Há, diversas maneiras de esquecer, uma delas é alterando o sentido das coisas.

Se o tempo modifica inevitavelmente o sentido, o sutil deslocamento do sentido é capaz de apressar as modificações do tempo e de alterar completamente fatos e eventos.

A permanência da veracidade dos fatos que ainda nos resta ou restava parece não sobreviver à sociedade de massas e à concentração e uniformidade da informação e do sistema de informação. Contemporaneamente, nosso risco com relação aos fatos se encontra na confusão e indistinção imposta entre informação e entretenimento. Em sociedades democráticas e de mercado a própria informação ou o sistema de informação tornou-se ele mesmo entretenimento. Já não é mais possível, com segurança, separar completamente a informação portadora de conteúdos empíricos e fatos do que é mera ficção.

Estejamos atentos, então, não só quanto à mentira deliberada que acaba por fim em revelar sua falsidade, quanto à sutil mudança de sentido que aos poucos vai minando a já precária e frágil textura dos negócios humanos.

A memória é resistência, mas o tempo e a sutileza são traições da memória.

No texto de Arendt que citamos, Verdade e política, percebemos a preocupação com a estabilidade dos fatos e como consequência - a manutenção da esfera pública. Gostaria de lembrar que esse texto foi publicado em 1967 e após as críticas que surgiram com a publicação de outro trabalho da autora, Eichmann em Jerusalém, e que, nas suas palavras “nasceu da espantosa quantidade de mentiras utilizadas na «polémica» - mentiras sobre aquilo que eu escrevera, por um lado, e sobre os factos que relatara, por outro” (1998, p. 282). No texto, Arendt aponta para a necessidade de preservar a verdade dos fatos, e a função política que assume a verdade e que não pode jamais ser substituída pela opinião.

Porém Arendt sabe, também, da impossibilidade de separar mentira e política. Quem fala em pós-verdade, desconstrução do político parece não lembrar que como disse a autora:

jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade. Sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista (Arendt, 1992, p. 283).

Portanto devemos lembrar que:

Uma peça fundamental na constituição do discurso racial que aconteceu no século XX e precedeu os eventos totalitários na Alemanha foi uma fake news chamado protocolos dos sábios do Sion.

Uma outra farsa, política e jurídica aconteceu na França tendo como centro Dreyfus.

O escritor cubano Leonardo Padura pouco tinha ouvido falar e desconhecia o papel de Trotsky na Revolução Russa.

E para dar um exemplo caseiro, lembremos que o golpe de Getúlio e a instauração do Estado Novo se utilizou de uma fake News, o “Plano Cohen” elaborado em 1937, pelo general Olímpio Mourão Filho, do serviço secreto do Exército, que dava conta de um plano criminoso para a tomado do poder pelos comunistas.

Há, também a “Carta Brandi”, lida na TV por Carlos Lacerda e publicada em todos os jornais no contexto das eleições de 3 de outubro de 1955, em que saiu vitorioso o presidente Juscelino. A carta de um deputado argentino informava com detalhes a existência de uma revolta para implantar a “república sindicalista do Brasil”. A carta como se soube depois era falsa.

Se não nos detivermos apenas nas palavras falsas, mas na construção de imagens, devemos lembrar de Leni Riefenstahl e seus belos filmes. Mesmo achando as imagens belíssimas e a realização primorosa consigo, aqui, entender a crítica aos poetas que faz Platão na República.

Todos esses são exemplos claros de fake news, que se espalharam com velocidade.

Admirável mundo velho.

Arendt talvez não concordasse. Ao dizer que tudo parece velho, acabamos correndo o risco de não perceber e identificar o novo. E a história é sempre nova. Natalidade e imprevisibilidade da ação humana – corremos o perigo de esquecer que “os homens normais não sabem que tudo é possível.”2 (Arendt, 1998, p. 337).

Não significa dizer que tudo se repete e que nenhuma diferença podemos apontar entre o agora e o ontem, mas apenas que há elementos em comum e permanentes. O fenômeno político sempre conviveu com a construção de mentiras conscientemente urdidas a despeito dos fatos.

A diferença ou diferenças está mais no meio do que na mensagem: a velocidade da informação e a possibilidade de qualquer um produzir conteúdo a qualquer tempo.

E agora que já temos novamente slogans como: American First, Prima gli italiani e Brasil Uber Alles, as palavras com que Arendt termina Origens do totalitarismo parecem mais uma ameaça do que uma profecia:

[...] permanece o fato de que a crise do nosso tempo e a sua principal experiência (o evento totalitário) deram origem a uma forma inteiramente nova de governo que, como potencialidade e como risco sempre presente, tende infelizmente a ficar conosco de agora em diante, como ficaram, a despeito de derrotas passageiras, outras formas de governo surgidas em diferentes momentos históricos e baseadas em experiências fundamentais - monarquias, repúblicas, tiranias, ditaduras e despotismos. (ARENDT, 1989, p. 531)

2. A nova tekné

A relação verdade, mentira, opinião e política é transpassada historicamente pelo uso sucessivo de diversas técnicas acessórias à ação política. Podemos estabelecer conexões entre dispositivos técnicos-mediáticos e seu impacto no uso político.

Temos como hipótese que o uso de novos elementos técnicos-mediáticos no âmbito do político, depois de sua surpresa, sucesso e novidade inicial, tende a se homogeneizar e perder sua significação espetacular.

O desenvolvimento da técnica como uso político se parece com o desenvolvimento da técnica nas artes militares e que foram responsáveis pelo aparecimento e desaparecimento de impérios. Seja uma nova estratégia seja um novo equipamento.

O hoplita grego (o cidadão-soldado de infantaria pesada), que reduz a importância da cavalaria aristocrática na arte da guerra; a falange macedônia e romana que permitiu a ambos os povos hegemonia militar; o estribo mongol que permitia atirar com o arco e cavalgar ao mesmo tempo; as fortalezas e uso de armas de fogo nos embates, todos são exemplos de tecnologias que alteraram o equilíbrio de forças, mas que com o tempo foram copiadas e seu uso se difundiu. É característico que os gregos se orgulhavam de que a política era uma forma de luta feita não com espadas, mas com palavras. As duas formas de disputa se mostram muito semelhantes no que diz respeito ao uso de inovações técnicas.

O argumento pode ser exemplificado com o nascimento e desenvolvimento da retórica na Grécia antiga e em Roma. Ali também se tratava de uma forma nova de dispor da linguagem. Quando os sofistas chegam à Atenas atraídos pela isonomia e pela isegoria que ali havia trazem consigo o que naquele momento é uma novidade, uma forma nova e revolucionária de dispor da linguagem, de fato é sua dessacralização. A atividade preocupou a aristocracia ateniense acostumada, mesmo no processo democrático, a manipular a linguagem tanto na assembleia quanto nos tribunais. A retórica, agora ensinada, foi fundamental para o desenvolvimento da democracia grega e abriu espaço na ágora para os não aristocratas. Nesse primeiro momento de sua chegada o sucesso da retórica foi evidente e desequilibrou a disputa de poder, mas com o tempo, o que era novidade tornou-se instrumento nas mãos de todos, e o recurso à retórica perdeu o que hoje chamaríamos, com ironia, de vantagem competitiva, tornou-se um jogo de especialistas. No mesmo momento a prática e atividade do sicofanta3 se intensifica em Atenas produzindo delações e ficções.

Em Roma o aprendizado da retórica tornou-se uma atividade infantil, as crianças mostravam aos adultos as proezas que tinham acabado de aprender. Segundo Paul Veyne “Em Roma decorava-se com retórica a alma dos meninos”, “as crianças aprendiam os planos-tipo de discursos judiciários ou políticos”, (1989, p. 36) modelos, e a retórica se transformou em uma espécie de jogo de sociedade. Por fim vamos encontrar a retórica ridicularizada servindo de introdução ao Satíricom de Petrônio (2008, p. 15).

A emergência das novas tecnologias seguirá o mesmo padrão, depois de um primeiro sucesso diferencial será imediatamente absorvida e uma certa homogeneidade se constituirá, seja por abrangência e aprendizado geral ou por limitações e estratégias de contenção. Aristóteles, por exemplo, ainda na Atenas democrática escreve os Tópicos e os Dos argumentos sofistas, procurando colocar limites no uso abusivo na nova técnica política enquanto Isócrates e Demóstenes procuram colocar a nova tekné da palavra a serviço da ética na política ateniense.

Em outras palavras, o que de início foi uma diferença importante no uso político e jurídico na Atenas democrática, se torna de uso comum e os embates se tornam cada vez mais especializados, podendo todas as partes em conflito usar as mesmas armas na assembleia e no tribunal.

Demorou para sairmos da forma da retórica oral para seu momento escrito, mas nos constituímos numa sociedade da escrita. Necessitamos primeiro de um incremento na alfabetização, processo de inclusão – acredito que Habermas em seu Mudança Estrutural da Esfera Pública já tenha dito o suficiente. Mas politicamente temos o mesmo espanto no uso do panfleto e do jornal no contexto das revoluções inglesa, francesa e americana.

Podemos citar a publicação dos artigos federalistas no Independent Journal de Nova York; a luta de propaganda entre Jaime II e Guilherme de Orange através da The London Gazette; o papel do Le Moniteur Universel na França revolucionária,

O jornal já nasce panfletário. Solidificou carreiras, destruiu outras, promoveu revoltas e revoluções

ao longo da História, jornais vieram-se impregnando de um vício de origem: relações de mal disfarçada dependência com pessoas ou instituições que detêm poder, seja este econômico, político ou sociocultural. Ou todos eles. (SANCHES, 2006)

Também não temos dúvidas de como funcionavam os jornais em fins do século XIX e início do século XX, que tipo de informação deviam circular, sejam os jornais de William Randolph Hearst nos EUA, quanto o Pravda publicado a partir de 1912 e os jornais dos Diários Associados de Assis Chateaubriand4.

Entretanto, o impacto inicial se homogeneizou. Todas as forças políticas em jogo rapidamente montaram seus próprios sistemas de produção e divulgação – ao menos quando isso era permitido, o que não aconteceu nem com o Pravda na URSS stalinista, nem com o Völkischer Beobachter na Alemanha nazista que se assenhoraram da informação, revelando que o poder de “distribuir” a informação e assim “conquistar” e “controlar” são atributos mais dos regimes totalitários do que dos meios utilizados. Aqui não se discute o fato de que os processos mediáticos possam servir de instrumento de controle aos regimes totalitários, mas se aponta que onde o controle da informação não foi absoluto, a tendência foi de homogeneização. Devemos nos preocupar mais com o fantasma dos velhos fascismos do que com a força espetacular das mídias sociais.

A história irá se repetir com o rádio.

No momento em que os limites do uso do texto escrito alcançam estabilidade e pode ser apropriado para qualquer conteúdo, seu uso indiscriminado faz desaparecer seu caráter de novidade e verdade e começa a construção de uma barreira crítica a seus enunciados. Nesse momento uma novidade surge no uso político – o rádio. Ouvindo a voz humana pronunciar as sentenças, os próprios líderes falando, como não ser verdadeiro? Lembramos que a Guerra dos mundos de Orson Welles e H. G. Wells só acontecerá em 1938 e colocou a população em pânico.

Contudo, assim como a palavra escrita teve que primeiro aumentar o número de seus leitores-seguidores através do processo de inclusão-alfabetização, o novo meio em seu uso político teve que fazer o mesmo.

Talvez fique mais clara a ideia contemporânea de inclusão digital – o mito de que minha vida é incompleta se estou fora da rede – a partir do que podemos chamar de Inclusão eletromagnética promovida na Alemanha desde 1933. E esse papel coube a Goebbels.

O VE 301 Volksempfänger (o receptor do povo), foi apresentado em agosto de 1933 na décima exposição de rádio em Berlim. O nome do aparelho se refere ao dia 30 de janeiro, dia em que Hitler se tornou chanceler. O governo nazista ‘pediu’ aos grandes fabricantes de rádio como Telefunken, Blaupunkt e Loewe que produzissem o mesmo modelo do equipamento. O Ministério de Propaganda subsidiou a metade do preço do aparelho e já na noite do primeiro dia da exposição de rádio, 100.000 pessoas haviam comprado toda a primeira produção. Em maio de 1934, eram 700.000. (BLOM, 2013)

Porém a história começa em abril de 1933, quando engenheiros do Heinrich Hertz Institute, “mapearam toda a Alemanha, analisando as intensidades de campo em cada local, chegando à conclusão que bastava um receptor muito simples para se ter a cobertura de todo o território com estações localizadas, e esses receptores teriam dificuldades em receber qualquer sinal que viesse de fora”. (BRAGA, 2005).

A construção e distribuição do rádio VE 301 feita por Goebbels na Alemanha5 – se parece com o processo de inclusão digital que vivemos e pedimos por ele. No nosso caso foi preciso trocar o suporte, só é possível WhatsApp com um suporte novo, é preciso vender smartfone6.

Nos Estado Unidos, Franklin Delano Roosevelt chega ao poder em 1933: “como primeiro Presidente na história do país a governar com a ajuda do rádio”7 . Roosevelt contou em sua eleição com menos de um terço da imprensa escrita, o rádio fez a diferença.

O processo se repete com a televisão em sua estreia como elemento suporte de ação política: o famoso primeiro debate entre Nixon e Kennedy que virou caso estudado nas escolas de comunicação e rende trabalhos até hoje (NCC, 2027).

Quem ouviu o debate pelo rádio achou que Nixon até se saiu bem, porém aqueles que acompanharam o debate pela TV, tiveram a impressão oposta e potencializada. Kennedy que estava atrás nas pesquisas ultrapassou Nixon após a realização do debate. O primeiro debate presidencial televisionado de setembro de 1960 foi assistido por mais de 70 milhões de pessoas. De um lado John F. Kennedy senador democrata de Massachusetts. Do outro, Richard Nixon, republicano, vice-presidente dos dois mandatos dos governos Dwight Eisenhower. O debate já era esperado, mas a novidade estava em que ele seria transmitido pela CBS. Kennedy brilhou, pareceu eloquente e confiante. Enquanto Nixon pareceu hesitante e irritadiço.

Despreparado para esse novo meio, Nixon não permitiu ser maquiado, o que fez com que, no meio da transmissão, sob a luz dos refletores da época parecia saído da chuva, amarrotado e com uma cor e padrão de terno que contrastava mal com as TVs em preto-e-branco da época. Nixon parecia velho e cansado, enquanto Kenedy parecia ter saído há pouco do banho. Nixon também não entendia por que Kenedy lhe virava o rosto e não respondia diretamente a ele. Kenedy olhava a câmera.

No segundo debate a diferença já não era tão grande, os assessores de Nixon compreenderam perfeitamente como aquilo deveria funcionar, e novamente o impacto se desfez diante da homogeneização da técnica8.

Conclusão

O mesmo processo vivemos hoje. O impacto das mídias sociais nas eleições brasileiras, americanas, italianas e no Brexit inglês foram evidentes. Mas se o que falamos fizer sentido, esse impacto inicial deve diminuir e novamente todas as partes, facções e grupos saberão se apropriar da técnica. Isto não quer dizer que serão menos partidários ou neutros ou verazes. Mas que apenas seu uso não será capaz de desequilibrar as disputas de poder dentro de uma moldura institucional.

Podemos contra argumentar que, por exemplo, durante as eleições de 2009 no Irã foi fundamental o papel das novas mídias (Twitter) na produção de uma verdade factual que por outro modo não teríamos acesso. Outro exemplo é o medo que o governo chinês tem da internet. Entretanto, a questão não se encontra tanto nas fontes que reportam o que podemos chamar de fatos, mas na forma como se transformam imediatamente em espetáculo e entretenimento anulando o significado dos fatos. Uma dura luta acontece entre as possibilidades que as novas tecnologias nos abrem no domínio da verdade factual e o controle a que essas mesmas tecnologias são submetidas, acabando por desconstruí- -las ou adequá-las ao padrão geral.

Como já disse, o risco que corremos hoje é cada vez mais a indistinção entre informação e entretenimento.

O WhatsApp, por exemplo, se caracteriza exatamente por isso. Não é propriamente um meio de notícias, mas entretenimento, lazer, conversa trivial. Não tem, nem terá nenhum compromisso com a verdade fatual ou a veracidade. É lugar de meme, chacota, piadas, pornografia e, eventualmente, junto com isso, pode apresentar interesse político que não se separa da farsa. Outras mídias sociais não vão além, Facebook, Instragram, ainda que haja apelo de utilidade pública, trabalho etc., são entretenimento e não lugar de notícia e fato.

Se, como diz Arendt, tudo aquilo que entro em contato me condiciona – farsa e política não se separam mais.

Entretanto temos que temperar Arendt com Marx e Marx com Arendt.

Se a diferença técnica irá diminuir e o domínio de uma determinada técnica em seu uso político vai se espalhar e desta forma se igualar há um fato que não muda. Quem detém os meios? E aí Marx nos vem em auxílio.

Se fizermos o caminho inverso por essas teknés, que citamos, usadas politicamente, perceberemos que o determinante foi quem primeiro e por maior tempo possuía os meios e conseguia assim maior eficácia. Sejam os financiadores de jornais, rádios e TVs como aqueles que tinham direito à palavra, no caso da retórica e da aristocracia ateniense que podia pagar um sofista.

Aqui podemos ver o mesmo que se esconde atrás da novidade.

A questão, então, é ainda a mesma: quem detém ou pode deter o monopólio dos meios?

Referências Bibliográficas

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BRAGA, Newton C. O rádio na Alemanha de Hitler. INCB. 2005. Disponível em: https://www.newtoncbraga.com.br/index.php/historia/7917-o-radio-na-alemanha-dehitler-art1431 . Acesso 16.11.2019.

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MAQUIAVEL Nicolau. O Príncipe. Escritos políticos. São Paulo: Abril Cultural. Os Pensadores, 1979.

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STREET, Seán. A Concise History of British Radio, 1922-2002. Devon: Kelly Publications, 2002.

Notas

[1] Na concepção da autora a moderno conflito entre verdade factual e política é análoga à questão clássica que tem origem na Antiguidade grega e que opunha verdade filosófica e opinião.

[2]Essa citação de David Rousset aparece como epígrafe da parte III de Origens do totalitarismo.

[3]Aquele que delata; aquele que presta informações falsas; caluniador, mentiroso (Dicionário Houaiss). Em Atenas era um delator que circulava pela cidade buscando informações sobre as pessoas a fim de difamá-las. Com a ajuda de testemunhas, apresentava uma denúncia perante o tribunal esperando receber algum suborno do acusado para retirar a queixa. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sicofanta - acessado em 24 de agosto de 2020)

[4]O jornalismo brasileiro sempre manteve uma relação de interdependência com o Estado, seja através de subsídios, empréstimos e financiamentos oficiais, isenções fiscais e publicidade oficial.

[5]Esse processo não acontece só na Alemanha. O Reino Unido ao final da guerra produziu o Wartime Civilian Receiver que ajudou a consolidar a posição da BBC. (STREET, 2002, p. 78).

[6]No Brasil essa história começa bem antes. Tivemos privatização do sistema de telefonia, mudança de analógico para digital e agora o implemento da rede 5G.

[7]O rádio não ganhou esse destaque por acaso. Durante a campanha presidencial de 32 e, mais tarde, na de 36 (quando foi reeleito), Roosevelt havia recebido o apoio de menos de um terço dos jornais norte-americanos. Essencialmente conservadores, os proprietários dos diários mais influentes dos Estados Unidos identificavam-se com a causa republicana. Em troca, eram chamados pelo Presidente de press lords- os “senhores da imprensa”. (MOREIRA, 1998)

[8]No Brasil vimos isso nas duas campanhas vencedoras de Lula, quando abandonando o estilo “natural” começou por usar a TV da maneira como os profissionais do meio sugeriam. Logo parou de ficar com as roupas molhadas de suor e se tornou palatável.