A construção da imagem de Jesus por meio de seus gestos no Evangelho conforme Marcos
The construction of the image of Jesus through his gestures in the Gospel according to Mark 

 

Francisco Benedito Leite* 
*Doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Contato: 
ethnosfran@hotmail.com 
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Resumo:

Neste ensaio propomos a compreensão de uma sugestão da construção da imagem de Jesus, personagem principal do Evangelho conforme Marcos, que se dá a partir das escassas narrativas de seus gestos registrados pelo evangelista, compreendido como narrador implícito. A postura de leitura da Bíblia como literatura que aqui se realiza combina a proposta hermenêutica de José Severino Croatto, estudos do discurso de Mikhail Bakhtin, a crítica estilística de Erich Auerbach, a proposta de antropologia filosófica de Christoph Wulf e os estudos de religião de Morton Smith. É conveniente dizer que o conceito de imagem aqui é tomado como uma abstração subjetiva e o conceito de gesto é tomado a partir de uma determinada reflexão antropológica. O resultado a que se chega pode ser apontado através dos complexos retratos de Jesus, como o do homem que ama os necessitados, o rabi e o mago. Essas imagens não são contraditórias, mas foram recebidas de formas diferentes pela tradição cristã. 

Palavras chave: Jesus; evangelho; gestos; narrativa; narrador.

 

Abstract
In this essay we propose to understand a suggestion of the construction of the image of Jesus, the main character of the Gospel according to Mark, which occurs from the scarce narratives of his gestures recorded by the evangelist, understood as an implicit narrator. The posture of reading the Bible as literature that takes place here combines José Severino Croatto’s hermeneutic proposal, Mikhail Bakhtin’s discourse studies, Erich Auerbach’s stylistic criticism, Christoph Wulf’s philosophical anthropology proposal and Morton’s religion studies Smith. It is convenient to say that the concept of image here is taken as a subjective abstraction and the concept of gesture is taken from a determined anthropological reflection. The result attained can be seen through the complex portraits of Jesus, such as the man who loves the needy, the rabbi and the magician. These images are not contradictory, but they have been received in different ways by the Christian tradition. 

Keywords: Jesus; Gospel; gestures; narrative; narrator 

Introdução

O Evangelho conforme Marcos é o mais curto dos sinóticos. Mesmo assim, nele se contém a descrição da intensa atividade evangelística de Jesus, que inclui ensinos e prodígios, que são sinais do reino de Deus, ambos produzidos desde a Galileia até Jerusalém, realizando-se na jornada percorrida por Jesus e seus seguidores. 

O evangelista, narrador implícito do evangelho (do livro que recebeu esse título), descreve a referida jornada, e seus interlocutores compartilham o itinerário de Jesus, praticamente como se o acompanhassem. Constrói-se uma narrativa vaga ao estilo judaico e vulgar ao estilo cristão primitivo. Ambas são características fundamentadas na teologia judaico- -cristã que proporcionam o surgimento do evangelho como gênero literário, a partir deste que foi o primeiro a ser escrito. 

Isso ocasiona muitas lacunas na construção da imagem do personagem principal. Nota-se que não há descrição física de Jesus. Não há informações sobre suas vestes, nem detalhamentos sobre seu modo de proceder etc. Ao invés disso, o evangelista coloca em evidência o discurso de Jesus, na verdade, em tal evidência, que sua audiência não consegue distinguir Jesus de seu ensino. Assim mensagem e mensageiro tornam-se a mesma coisa e quem o segue, na realidade, segue seu discurso. 

No entanto, restam escassas descrições dos gestos de Jesus. Alguns deles são inspiradores para construção de sua imagem, como podemos dizer do partir o pão, do estender a mão, do levantar alguém pela mão, do ato de fala “amém”, do olhar para o céu e suspirar. Outros gestos, porém, não foram tão bem acolhidos na história da leitura bíblica, como, por exemplo, o gesto de “cuspir” e o de “causar espanto”, que poderiam, inclusive, associá-lo aos magos. 

O presente ensaio analisa os mencionados atos performáticos de Jesus a partir da concepção que se tem de “gestos” na religião e na cultura, conforme a proposta da antropologia filosófica de Wulf (2015). A perspectiva de estudo, todavia, é narrativa, a qual está fundamentada nas perspectivas de Croatto (1986), Bakhtin (2010 a; 2010 b) e Auerbach (2011; 2007). Dada a análise sincrônica e o referencial teórico anunciados, podemos também afirmar que se trata de um trabalho de análise da Bíblia como literatura. 

1. Considerações preliminares 

Jesus de Nazaré é o personagem principal do Evangelho conforme Marcos [greg. Κατά Μαρκόν]. Podemos dizer que toda a narrativa do evangelho acompanha o itinerário realizado por Jesus em seu ministério evangelístico, que tem sua origem em Nazaré, quando recebe o batismo de João Batista no rio Jordão (1.9) e segue como uma jornada em direção a Jerusalém, onde ocorre sua prisão (14.43-50), julgamento (realizado primeiro pelos membros do Sinédrio 14.53-65; e em seguida por Pilatos 15.1-15), morte (15.37) e sepultamento (15.47). 

Jesus está em todas as narrativas do evangelho, exceto no introito que apresenta João Batista como o precursor da atividade evangelística de Jesus (1.2-8) e na narrativa em flashback de como João morreu (6.14-29); nas conspirações para matar Jesus (14.1-2,10-11); e na negação de Pedro (14.66-72), que, na narrativa, acontece simultaneamente à confissão de Jesus diante do Sinédrio de que ele mesmo é o filho do homem (14.62). Todas essas passagens servem como pano de fundo ou estão ligadas a construções maiores nas quais Jesus tem papel central. 

O evangelista, que, no caso, é a voz que nos proporciona a narração, produz um efeito de ambiguidade em seu discurso narrativo (LEITE, 2020), o qual conduz à indagação sobre o que é o evangelho: a narrativa sobre Jesus, da qual ele é a personagem principal ou a narrativa dos discursos proferidos por Jesus? A mesma pergunta pode ser formulada de outra forma: O evangelho é o discurso proferido por Jesus ou o discurso sobre Jesus? 

Bultmann explicou como esse processo se deu na comunidade primitiva, a saber, quando os primeiros cristãos começaram a pregar o que Jesus pregava e posteriormente o próprio Jesus se tornou indissoluvelmente a proclamação, como podemos verificar no excerto da Teologia do Novo Testamento do célebre exegeta alemão: 

Conforme mostra a tradição sinótica, a comunidade primitiva retomou a pregação de Jesus e continuou a anunciá-la. E na medida em que o fez, Jesus tornou-se para ela o mestre e profeta. Mas ele é mais: é, ao mesmo tempo, o Messias; e assim ela passa a anunciar – e isso é decisivo – simultaneamente a ele mesmo. Ele, antes o portador da mensagem, foi incluído na mensagem, é seu conteúdo essencial. O anunciador tornou-se o anunciado – mas em que sentido? Eis a pergunta decisiva! (2008, p. 74, itálico nosso).

Uma explicação sobre o procedimento do evangelista no que diz respeito ao modo que apresenta Jesus em sua obra é dada por Schnelle, conforme seu argumento, o conteúdo da narrativa do evangelho não é uma descrição histórica da atuação de Jesus, mas sim a combinação da descrição de atos realizados no passado combinados com a exigência de tomada de decisão que a audiência atual do evangelho precisa realizar. Assim há uma narrativa do discurso de Jesus no passado e, ao mesmo tempo, uma interpelação do mesmo Jesus realizada presente. Nas palavras de Schnelle: 

[...] o evangelista combina inseparavelmente a atuação passada e presente de Jesus Cristo com o evangelho como mensagem de proclamação e gênero literário [...]. O chamado à decisão, pronunciado por Jesus no nível interno do texto, visa, no nível externo, à Igreja de Marcos (2004, p.104).

Bultmann e Schnelle argumentam respectivamente nos textos supramencionados que Jesus é ao mesmo tempo mensagem e mensageiro, personagem que atuou no passado e que chama a audiência à tomada de decisão no presente. Isso significa que a construção discursiva realizada pelo evangelista fez de Jesus um personagem que se comunica em múltiplos níveis narrativos., Evidentemente, comunica-se no interior da narrativa, mas também com os níveis externos. Assim, dissolve-se de sua historicidade. Parece que esse efeito comunicativo em vários níveis e o desligamento (embora não total) com o ente histórico ‘Jesus’ faz parte da proposta intrínseca no gênero ‘evangelho’, pois ao mesmo tempo narra o ministério de Jesus e se propõe a persuadir seus interlocutores a mudanças de concepções éticas [greg. μετανόια]. 

Entende-se que é natural ao gênero ‘evangelho’ propor que o aprofundamento do conhecimento do personagem Jesus seja buscado na descrição realizada pelo evangelista, entendido aqui – assim como Jesus – como instância discursiva. É nesse sentido que a análise literária é preferível ao invés de qualquer busca a referências históricas, pois situar Jesus como ente histórico significaria propor a existência de outro ente que não corresponde ao personagem do evangelho, porque seria incapaz de se comunicar em múltiplos planos, tendo sua mensagem profético-apocalíptica dirigida ao povo de seu determinado contexto histórico-social. A respeito disso, Croatto afirmou o seguinte: 

Neste ponto é que a leitura “historicista” dos textos bíblicos é empobrecedora: Querer ler os fatos como se tivessem acontecido na forma em que estão contados é roubar-lhes a distância hermenêutica que novamente os fez ser significativos. A redação atual dos relatos bíblicos tem a vantagem hermenêutica de estar muito distante dos acontecimentos. Essa distância os enriqueceu e recarregou de sentido (1986, p. 37).

Isso significa que a leitura que entende o evangelho como discurso religioso mantém sua eficácia como palavra persuasiva que chama à mudança de concepções éticas as audiências renovadas que se formam ainda no mundo contemporâneo, enquanto a leitura historicista, apesar de legítima e apropriadas às suas devidas finalidades científicas, empobrece a comunicabilidade do evangelho porque esteriliza seu efeito dialógico multiplanar. 

A ideia proposta por Croatto, sobre a “distância hermenêutica”, também é compartilhada por Bakhtin, que a concebe em seus próprios termos, mas com grande proximidade de sentido: 

A vida das grandes obras nas épocas futuras e distantes, como já afirmei, parece um paradoxo. No processo de sua vida post mortem elas se enriquecem com novos significados, novos sentidos; e como se essas obras superassem o que foram na época de sua criação (BAKHTIN, 2010 b, p.363)

Nessas palavras, o estudioso explica que a sobrevivência, isto é, a pertinência de uma obra em uma época do futuro está relacionada com o descolamento de seu contexto histórico-social e cultural imediatos Bakhtin entende que futuras gerações só darão valor a um determinado texto se este comunicar-lhes algo novo, portanto, algo que não era presumido nas primeiras leituras. Esse efeito acontece no que Bakhtin chama de longo tempo (2010 b). 

Isso significa que a distância hermenêutica/longo tempo proporciona a renovação da vitalidade de um texto, para que esse discurso não se torne uma relíquia do passado, mas, ao invés disso, mantenha-se como enunciado efetivamente comunicativo, carregado de novos sentidos que foram adquiridos ao longo da história de sua interpretação. No entanto, ao não realizar procedimentos historicistas, abandona-se o compromisso de busca pela realidade concreta que supostamente pode ser acessada pela pesquisa histórica. Portanto, na proposta que apresentamos, devemos estar conscientes que a pesquisa é realizada sobre o “texto” (ou “discurso”), não sobre o evento histórico que supostamente subjaz por detrás do texto. Texto, nesse sentido, pode ser entendido pelas palavras elucidantes de Croatto: 

Entendemos esse vocábulo [refere-se ao vocábulo “texto”] no seu sentido amplo, uma vez que um texto também pode ser oral. Um mito ou uma canção, por exemplo, costumam ser transmitidos de geração em geração por via oral, antes de serem fixados por escrito. Quase todas as narrações bíblicas foram de alguma forma tradições orais. E já eram textos. Segundo a etimologia, texto e um “tecido”, uma trama em que os elementos da língua (palavras, frases, unidades literárias e outros elementos) estão organizados segundo funções estruturadas que, como tais, produzem um sentido (1986, p. 15).

Se assim fica esclarecido que Jesus – mensageiro e mensagem, personagem e discurso do evangelho – a ser abordado no presente ensaio é um elemento de uma trama textual (ou de um discurso) mais ampla – que é o livro intitulado “Evangelho conforme Marcos” [greg. Κατά Μαρκόν] –, precisamos também assinalar que o evangelista é mais um dos elementos da mesma composição, pois, como narrador do evangelho, é ele também uma instância discursiva. 

O narrador não é uma pessoa de carne e osso, mas sim, um pressuposto linguístico. Alguém narra ou escreve, porém somente no texto e possível reconhecê-lo. Essa ausência física e riqueza semântica (...) O narrador e o próprio texto, não alguém de fora a quem se pudesse pedir explicações (1986, p. 20).

Isso significa que, no evangelho, a voz do evangelista, como a de qualquer narrador, é o norteador de um índice de múltiplas outras vozes. Em termos da linguística, a voz do evangelista comporta “heterogeneidade enunciativa” (AUTHIER-REVUZ, 1990). É essa voz do evangelista que constrói Jesus, personagem e discurso. 

2. Obscuridade e vulgaridade no estilo do evangelho 

Apesar da centralidade de Jesus na narrativa do Evangelho conforme Marcos – de acordo com o que apresentamos acima –, não há descrições de suas características físicas, nem de seu traje, nem de sua postura, nem detalhamentos sobre os procedimentos que realizava no ofício de seu ministério. Por esses motivos, é difícil encontrar uma imagem de Jesus no evangelho. Entenda-se que imagem, no sentido que estamos mencionando, é uma abstração subjetiva da qual não há como se desprender no processo comunicativo: “Lembremo-nos: mesmo que não tenhamos uma imagem à nossa frente, temos muitas imagens em nossas mentes. Não existe palavra sem ícone, conceito sem imagens (...) As imagens estão acompanhadas de afeto no horizonte da fé” (MAGALHÃES, 2006, p. 17). 

No ensaio A Cicatriz de Ulisses, Auerbach (2011) já tinha afirmado que esse modo obscuro de descrever é característico do estilo narrativo judaico, enquanto no ensaio Fortunata – também contido na obra Mímesis – o estudioso trata diretamente do modo como se constrói a narrativa marcana e chama atenção para a vulgaridade de sua linguagem. 

De acordo com Auerbach, a obscuridade do estilo narrativo judaico está atrelada ao modo como o povo judeu vê e representa a realidade, o que, na verdade, está relacionado também com o próprio modo como entendem o divino: 

Já o seu primitivo Deus do deserto não contava com forma ou residência fixas, e era solitário; sua falta de formas e residência e sua solidão não só se reafirmaram, finalmente, na luta com os deuses do Oriente próximo, relativamente bem mais inteligíveis, mas também se desenvolveram de maneira mais intensa. A noção judaica de Deus não é somente causa, mas antes, sintoma do seu particular modo de ver e representar (2011, p. 6).

Quanto à vulgaridade da linguagem do Evangelho conforme Marcos, na qual se contém a mensagem da manifestação das boas notícias do Reino de Deus, Auerbach afirma que essa característica estilística, que combina o vulgar com o sublime, está relacionada com a própria concepção que se tem sobre a encarnação de Cristo em um homem humilde da Galileia. Segundo o que o filólogo afirma em Sacrae scripurae sermo humilis: “A própria vida de Cristo, do Verbo encarnado, modelo de vida e morte santa e sublime, decorrera, como uma vida comum ou como as cenas de uma comédia, entre as humiles personae que haviam sido seus primeiros discípulos” (2007, p. 22). 

Desse modo, a obscuridade nas descrições das narrativas, sobretudo nas que delineiam Jesus, e a vulgaridade de linguagem que se percebe na construção literária do evangelho são características complexas de sua proposta poética e assim cooperam para a produção do sentido pretendido pelo discurso do evangelista, o qual conta com a cooperação de seu interlocutor para a construção da imagem do personagem principal.  

3. A importância dos gestos na construção narrativa da imagem de Jesus 

Como se viu as descrições são escassas no evangelho, devido às características próprias de seu gênero. Apesar disso, os interlocutores do evangelho não ficam em total penumbra quanto a Jesus, porque restam narrativas de alguns de seus gestos que permitem a construção de sua imagem ao longo das narrativas. 

Por sinal, gestos são muito importantes para os estudos relacionados com a religião sob muitos aspectos, pois ao mesmo tempo revelam um retrato de Jesus, representam um saber simbólico coletivamente partilhado e mimetizam práticas rituais importantíssimas para a identidade da comunidade de fé. Sobre o significado dos gestos, Wulf afirma: 

Gestos podem ser compreendidos como atos, um fato que fica claro por meio de um olhar para a etimologia. O termo “gesto” deriva da palavra latina “gestus”, que designa, no sentido geral, um movimento ou uma postura do corpo, principalmente da mão. “Gestus” é o partícipio perfeito de gerrere, verbo que significa “fazer”, “comportar-se”. Os limites entre a ideia do ato, designada pela palavra “gesto”, e a atuação são fluidos. Em termos etimológicos, a palavra refere-se ao corpo movido dentro do mundo, a atividade da mão, a atos humanos, a movimentos de partes individuais do corpo que expressam e representam emoções, à performatividade do corpo e dos atos sociais em geral (2015, p. 89)

Entre os significados mencionados por Wulf, chama a atenção a referida performatividade do corpo expressa nos gestos, que, desse modo, representam uma comunicação, uma linguagem não verbal, que é compartilhada em determinadas comunidades situadas histórica e socialmente. Além disso, Wulf destaca a importância destacada dos gestos no âmbito religioso: 

Em todas as religiões, gestos fazem parte dos meios de representação e expressão nas quais se manifestam Deus, divindades, espíritos – ou seja, o sagrado que, neles, se torna sensualmente experimentável. Gestos são movimentos significantes do corpo. Como tais, dirigem-se a sentidos e conferem ao sagrado um aparecimento sensual. Gestos comunicam significado no contexto simbólico-imaginário de sistemas de religião ou fé. O significado dos mesmos condensa-se neles numa configuração encarnada e apresentada corporalmente (2015, p. 89).

Membros de comunidades religiosas podem comunicar-se por gestos incompreensíveis para outsiders ou neófitos que não se adequaram ainda à nova comunicação expressa pela linguagem gestual. Por isso, parte do processo de aceitação na comunidade é saber interpretá-los e respondê-los à medida que for necessário para celebrações, liturgias e momentos de convívio entre eclesianos. Nesse sentido, Wulf também afirma: “Comunidades religiosas destacam-se não só por um saber simbólico coletivamente partilhado, mas também por formas de interação e comunicação gestualmente produzidas e estruturadas, nos quais e com os quais encenam este saber” (2015, p. 105) 

Por todos esses motivos, a observação dos gestos de Jesus, registrados nas narrativas do evangelho, proporcionam condições de construir uma imagem discursiva que é compartilhada pelo evangelista com seus interlocutores. 

4. Os gestos de Jesus

Os gestos de Jesus são performances que sinalizam a manifestação do reino de Deus., Muitos deles são descritos objetivamente, mas, mesmo assim, percebemos que são dotados de profundo simbolismo religioso e outras vezes são convites a uma ação comunitária que está no alcance da audiência do evangelho. 

Dotados dessa última característica, podemos indicar as repetidas vezes em que Jesus “toma pelas mãos” uma pessoa enferma (1.31; 5.41, 8.23). Mais do que ritualísticos, são gestos mimetizados pela prática de quem cuida das pessoas doentes e necessitadas. O mesmo pode-se dizer do “estender a mão” (1.41) para curar ou cuidar [greg. τερααπεύω] do leproso, que pede a purificação ritual que lhe foi negada pelo sacerdote. Ambos os gestos revelam traços de um homem amoroso, que levanta os doentes e estende a mão aos excluídos. 

Coadunam-se com esses gestos as reiteradas vezes em que o evangelho narra que Jesus foi “movido de íntima compaixão” [greg. σπλαγχνίζομαι] (1.41; 9.22; 6.34; 8.2). Isso acontece quando ele está diante de pessoas famintas e enfermas e de crianças – as quais são abençoadas e colocadas como modelo para se receber o reino de Deus (9.36-37; 10.13-16. Movido por sentimento entranhado, Jesus também amou [greg. ἠγάπησεν] o homem que não conseguiu renunciar a suas riquezas para começar a segui-lo (10.21). 

O Jesus que levanta as pessoas, que estende a sua mão ao marginalizado é o mesmo que se move de íntima compaixão. Essa última descrição desperta na imaginação popular o retrato daquele que olha para os céus, como se quisesse se comunicar com o Pai, e suspira diante das pessoas sofridas, sejam enfermas, sejam famintas ou excluídas, que dependem de sua intervenção. Ao menos uma vez o evangelista narra esse gesto de Jesus: “e olhando para o céu, suspirou” (7.34).

 Além desses gestos, particularmente marcante é Mc 14.22-24: “tendo tomado um pão e abençoado, partiu; deu-lhes e disse: Tomem, esse é o meu corpo; e tendo tomado um cálice e tendo agradecido deu-lhes; e todos beberam dele. E disse-lhes: Este é o sangue da aliança que escorreu por muitos”. Notemos o gesto de “partir o pão” que, sem dúvida, tem significados diferentes expressos em múltiplos níveis. Trata-se de simbólico para a necessidade de partilha comunitária ensinada no evangelho, mas também remete à celebração da eucaristia na última ceia e que serve de mimese até hoje para a instituição do sacramento cristão. Além desses dois significados que são mais conhecidos, no que se refere a passagem em sua totalidade, a mesma narrativa também remete ao antigo folclore que podemos considerar como carnaval bakhtiniano, observado no sagrado relacionado com a comida e a bebida, a “transformação do sangue em vinho” (BAKHTIN, 2010, p. 182) e “o corpo despedaçado que se torna alimento” (BAKHTIN, 2010, p. 172). 

O que revela outro traço do mesmo personagem é a narrativa em que Jesus está rodeado de pessoas sentadas em círculo, enquanto ele as ensina. Nesse caso, trata-se de um rabi que introduz seu ensino com um litúrgico “amém” [greg. ἀμήν; hebr. ןמא ,[termo incorporado à língua portuguesa, graças ao seu uso na liturgia cristã como uma interjeição concordante, Apesar disso, no evangelho a utilização do hebraísmo amém “introduz um ensino solene” (RUSCONI, 2005, p. 37) de Jesus (Cf. 3.28; 8.12; 9.1; 9.41; 10.15; 10.29; 11.23; 12.43; 13.30; 14.9; 14.18; 14.25; 14.30). Seu significado é: “em verdade digo para vocês”. Segundo essa proposição, apesar de não ser um gesto propriamente dito, podemos destacar a performatividade do “amém”, compreendida como um ato de fala, no sentido em que, esvaziando-se de seu significado, representa uma palavra de ordem que declara que o ensino rabínico começará a seguir. 

Enquanto as referências ao Jesus que levanta os enfermos, estendem a mão ao excluído e que se move de íntima compaixão são elementos sumamente importantes para o futuro desenvolvimento do imaginário popular sobre o Jesus; pode-se dizer que há outro conjunto de gestos que não é tão caro às teologias cristãs posteriores. Refiro-me, em primeiro lugar, ao gesto de curar com cuspe. Em pelo menos dois momentos, Jesus realiza curas utilizando o procedimento de cuspir no órgão deficiente da pessoa que lhe pede a cura. Na primeira narrativa, há o caso em que Jesus cura um homem que era “surdo e balbuciante” [greg. κωφός καί μογιλάλος] e, para executar esse prodígio, o evangelista informa que Jesus “pôs os dedos dele nos ouvidos dele e tendo cuspido tocou na língua dele” (7.33).1 . Na segunda narrativa, há a descrição de que Jesus cura um cego com um procedimento semelhante: “tendo cuspido nos olhos dele e tendo imposto as mãos nele” (8.23). 

Em uma dessas curas, fica ambíguo se o pronome pessoal grego αὐτοῦ (em português: pronome possessivo “dele”) que aparece em Mc 7.33 refere-se aos dedos do próprio Jesus ou aos dedos do surdo balbuciante. Enquanto nas outras duas vezes, em que parece o mesmo pronome, a desambiguação fica possível, porque é sugestivo que se tenha tocado nos ouvidos e na língua de quem tinha deficiências nesses órgãos. De qualquer forma há a utilização repetida do mesmo procedimento, o cuspir. 

Algumas traduções para a língua portuguesa eufemizaram as narrativas que trazem esses procedimentos realizados por Jesus. A JFARA substitui o verbo grego πτύω [cuspir], ambas as vezes em que aparece, por “aplicar saliva” e a Bíblia de Jerusalém faz o mesmo tipo de substituição em um dos dois versículos (7.33). Apesar disso, o étimo que também aparece no latim spuo não admite tal possibilidade de tradução (RUSCONI, 2005, p. 403). A substituição do termo seria uma correção do comportamento de Jesus feita pelos tradutores por motivos apologéticos, para evitar que ele fosse comparado a curandeiros populares. 

Morton Smith em seu conhecido livro Jesus, the Magician [Jesus, O Mago] (1993) valoriza justamente esse procedimento que as traduções conservadoras tentam suprimir: 

Além da oração, os magos podem – e Jesus fez – recorrer a meios físicos. O mais comum foi tocar o paciente, seja a área afetada ou tomando a mão da pessoa. A mão de Jesus/do mago era seu instrumento mais potente. O fluido pode ajudar a fazer contato mais próximo. A forma mais rápida de fluido era saliva, e tanto a saliva quanto o ato de cuspir eram comumente vistos como tendo poderes mágicos. Então encontramos Jesus, como outros mágicos, espalhando saliva em seus pacientes ou usando uma pomada feita com saliva (1993, p. 138, tradução minha).

 Em seu texto, Smith mostra a relação dessa prática de Jesus com práticas realizadas por magos da Samaria e de outros lugares do mundo helenístico. De qualquer forma, independentemente da validade histórica que se dê à reconstrução da imagem de Jesus proposta pelo estudioso, vemos a construção literária da imagem de Jesus. Estabelece-se que ele era considerado – ou ao menos parecido com um – praticante de magia isso pode ser apontado a partir do próprio texto do evangelho, o que convergiria com as críticas que os escribas dirigiram a ele ao darem a entender que ele praticava exorcismo com base em um suposto pacto com Satã (3.22). 

Do ponto de vista da história do grande tempo, Bakhtin afirma que “o cuspe do Senhor” e seus outros fluidos foram incorporados ao folclore medieval como elementos mágicos, de acordo com o que aparece na Vulgata: “Lutum fecit ex sputo” [Com o cuspe fez lodo] (Jo 9.6). Na cultura medieval, os fluídos eram elementos carnavalizados que estavam indissoluvelmente ligados à fecundidade (BAKHTIN, 2010 a), mas pouco a pouco seriam cada vez mais eufemizados e substituídos por outros elementos. 

Não apenas os versículos em Mc 7.33 e 8.23 endossam a imagem de Jesus realizando prodígios por meio de gestos estranhos e condenáveis do ponto de vista dos sectários concorrentes (como é o caso dos fariseus e escribas), mas também a comparação entre a autoridade do ensino de Jesus e a do ensino dos escribas (SMITH, 1993, p. 31) convergem para esta conclusão: “e espantaram-se com o ensino dele, pois estava ensinando-os como quem tem autoridade e não como os escribas” (1.22). 

Notamos, ainda, que, também em outras narrativas, Jesus causa “espanto” aos que o contemplam (ἐκπλήσσομαι 1.22; 6.2; 7.37; 10.26). Smith entende que ter autoridade e causar espanto está relacionado com as práticas mágicas denunciadas pelas seitas judaicas conservadoras. 

A palavra da língua inglesa magician, utilizada por Smith, remete ao termo em língua hebraica “ינעדי ,“cuja tradução para a língua portuguesa é: “adivinho, mago, vate, vidente” (SCHÖKEL, 1997, p. 270), a qual, muitas vezes, forma um par com outra palavra hebraica que aparece no Antigo Testamento: “בוא “que significa: “espiritista, necromante, ocultista” (SCHÖKEL, 1997, p. 32). 

A. Y. Collins, em seu comentário bíblico (2007), apresenta duas citações da Bíblia Hebraica para indicar, em primeiro lugar, que os magos deveriam ser evitados: “Não vos voltareis para os necromantes [תבאה [ nem consultareis os adivinhos [םינעיה ,[pois eles vos contaminariam. Eu sou Iahweh vosso Deus” (Lv 19.31); e, em segundo lugar, que os magos deveriam ser punidos com a morte: “O homem ou mulher que, entre vós, forem necromantes [hebr. [בואou adivinho [hebr. ינעדי [serão mortos, serão apedrejados, e o seu sangue cairá sobre eles” (Lv 20.27). 

A teóloga também afirma que a LXX recebeu o termo hebraico בוא ,traduzindo-o por ἐγγατρίμυθος (LIDDELL; SCOTT, p. 541), palavra da qual se deriva também o termo em língua portuguesa “ventríloquo” (NASCENTES, 1955, p. 562). A utilização desta palavra sugere que a pessoa que é assim chamada possui um espírito no seu ventre que se comunica por ela, o qual também foi nomeado como “espírito familiar”. O Documento de Damasco2 recebeu a rejeição que a Bíblia Hebraica tem sobre as práticas mágicas: “Todo homem sobre o qual domina o espírito de Belial e prega apostasia será julgado segundo a lei que trata dos possuídos por fantasma ou espírito familiar” (12.2) (VERMES, 2004, p. 163). 

Isso explica claramente o motivo pelo qual os escribas zombam do ministério de Jesus e o rejeitam. Na verdade, como indicam os textos supracitados de Levítico, ser associado ao exercício de magia, por mais amplas que sejam as práticas assim nomeadas, leva uma pessoa a correr risco de morte por apedrejamento. E, como Smith aponta, as referidas práticas estão associadas ao modo como Jesus cura com cuspe e ao modo como ele causa espanto às pessoas. Todavia, pelo que Jesus deixa claro em Mc 3.20-35, ele não aceita ser associado com espíritos malignos. 

O evangelista faz questão de dissociar Jesus dos entes demoníacos com os quais os fariseus apontam recalcadamente que ele tem um pacto, mas, mesmo assim, não deixa de descrever as curas com cuspe e o espanto que Jesus frequentemente causava à multidão que estava ao seu redor contemplando seus gestos. 

Conclusão

Em nosso ensaio, indicamos que exegetas como Bultmann e Schnelle apontaram para o potencial comunicativo de Jesus nos evangelhos, um processo no qual Jesus e seu ensino se uniram indissoluvelmente e fizeram rarefeitas as referências históricas de um ser humano concretamente situável. Esses postulados já indicavam a relevância de estudos discursivos sobre o evangelho, entre os quais a perspectiva narrativa é um procedimento adequado para preservar a potência comunicativa do evangelho, de acordo com o conceito de “distância hermenêutica” de Croatto e “longo tempo” de Bakhtin. 

Quanto ao estilo narrativo do Evangelho conforme Marcos, retomamos as características elencadas por Auerbach, que menciona que a obscuridade descritiva e a vulgaridade na linguagem são características formais do evangelho que se fundamentam teologicamente no Deus sem imagem e no Cristo humilde. 

Essas características da literatura judaico-cristã justificam as tantas lacunas e a tamanha vulgaridade que se verifica no Evangelho conforme Marcos, a qual faz com que o retrato de Jesus seja totalmente vago. Apesar disso, restam os escassos gestos de Jesus como elementos úteis para a possibilidade para construir uma imagem sua. Indicamos que, na concepção de Wulf, os gestos têm grande importância comunicativa e cultural, por isso, toda vez que o evangelho os menciona, eles estão carregados de simbolismo. 

Segundo o elenco de gestos levantados por nós e de acordo com as explicações oferecidas, os gestos de Jesus permitem construir uma imagem de um homem amoroso, que se dirige aos necessitados e os ama, um mestre da religião judaica que, inclusive, usa o ato de fala característico para introduzir seus ensinos e, por fim, um mago que cura usando cuspe e causa espanto aos que contemplam suas performances. Não por acaso a tradição cristã, no longo tempo, selecionou as duas primeiras imagens e recusou a terceira. 

Referências

AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental (Coleção Estudos, 2) – 5ª edição. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2011. 

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Notas

[1]É ambíguo se o pronome pessoal grego αὐτοῦ (em português: pronome possessivo “dele”) refere-se aos dedos do próprio Jesus ou aos dedos do surdo balbuciante. Enquanto nas outras duas vezes, em que parece o mesmo pronome, a desambiguação fica possível, porque é sugestivo que se tenha tocado nos ouvidos e na língua de quem tinha deficiências nesses órgãos.