Representar o irrepresentável e formular o informulável: o mito em trânsito nos labirintos da literatura e da teologia
Represent the unrepresentable and formulate the informationable: the myth in transit in the literature and theology labyrinths

Rogério Gonçalves de Carvalho*
*Doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP, Doutor em Educação pela FEUSP, Professor da Faculdade de Teologia Metodista Livre. Contato: rogeriogcarvalho@ gmail.com
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Resumo
Ambas, teologia e literatura se prendem em um fundo existencial onde experiências e vivências comandam o discurso, mas, mesmo que não queiramos, a tendência do discurso é eufemizar as experiências e vivências. Isso significa que o indizível, uma vez dito, perde sua força. Não obstante, embora o discurso seja uma das únicas formas de representar nossas experiências e vivências, o mito parece ser o fundo ancestral que fundamenta, sustenta e posiciona o discurso no mundo, na realidade, seja para a literatura, para a teologia ou qualquer outra forma de saber.
Resumidamente, compelimos realizar uma jornada, quase um passeio, ao lugar do mito no discurso, compreendendo sua natureza fugidia e, em seguida, nos meandros dos labirintos da teologia e da literatura. Jornada que fará com que esbarremos em algumas placas que parecem nos indicar que o mito é uma boa estratégia do discurso para representar o irrepresentável e formular o informulável.

Palavras chave: Jesus de Nazaré; Messias; identidade narrativa; Paul Ricoeur; Adolphe Gesché.

 

Abstract
Both, theology and literature are linked in an existential background where experiences and liveliness command the discourse, but, even if we do not want to, the tendency of the discourse is to euphemize the liveliness and experiences. This means that the unspeakable, once said, loses its strength. Nevertheless, although discourse is one of the only ways to represent our experiences and liveliness, the myth seems to be the ancestral background that underlies, sustains and positions discourse in the world, in reality, whether for literature, for theology or any other way of knowing.
In short, we compelled to take a journey, almost a walk, to the place of myth in the discourse, understanding its elusive nature and, then, in the intricacies of the labyrinths of theology and literature. Journey that will cause us to bump into some signs that seem to indicate that myth is a good discourse strategy to represent the unrepresentable and formulate the informationable.

Keywords:Myth; theology and literature; mith-hermeneutic

Introdução

O labirinto é com certeza um dos temas profícuos de Jorge Luis Borges em sua literatura. Tanto que em um de seus contos mais conhecidos, “O jardim das veredas que se bifurcam”, Borges escreve (BORGES, 2001, p. 109):

Um labirinto de símbolos – corrigiu. – Um invisível labirinto de tempo. A mim, bárbaro inglês, foi-me oferecido revelar esse mistério diáfano. Ao fim de mais de cem anos, os pormenores são irrecuperáveis, mas não é difícil conjeturar o que sucedeu. Ts’ui Pen teria dito uma vez: Retiro-me para escrever um livro. E outra: Retirome para construir um labirinto. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um único objeto.

Ler os contos de Borges nos faz perceber o quanto a experiência muitas vezes é indizível, pois, dizer, seria o mesmo que esconder. O paradoxo se explica porque tentar dizer e explicar tudo de nossas vivências acaba por silenciar as próprias vivências. Mas, então como dizer não dizendo tudo ou dizendo de outro modo, de um jeito que a fascinação da experiência e da vivência mantenha algo de sua fagulha?

Não foi sem fundamento que Borges preferiu as metáforas em um tipo de literatura que deve muito às experiências das narrativas orais: o conto. Munido de metáforas que pudessem codificar a complexidade das experiências no tempo, Borges tornou-se um “fazedor de mitos”. Aliás, não sem razão Gilbert Durand, antropólogo que dedicou sua vida nas pesquisas sobre a relação do mito com o imaginário humano, afirmou que a metáfora é “um pequeno mito”.

Ou seja, o mito, como forma narrativa que eufemiza as experiências e vivências, possivelmente é uma das melhores estratégias que a linguagem criou para tentar dizer o indizível sem dizer tudo. Razão pela qual entendemos que o mito tem função preponderante nos discursos da literatura ou da teologia, uma vez que, tanto uma quanto outra, dependem justamente de suas experiências e vivências. Inevitável, portanto, ao transitar pelos corredores labirínticos da literatura ou da teologia, não encontrar o mito desafiando a fazer passeios por veredas dantes não visitadas. Talvez até porque o próprio mito escape ao dizível é que tenha a vocação de representar o irrepresentável e formular o informulável.

A natureza fugidia do mito

No mito do Popol Vuh, obra maia-quiché do século XVI, na narração da quarta criação do homem, conta o fatídico momento em que os gêmeos protagonistas são desafiados pelos seres submundanos, os senhores de Xibalba.

Assim então eles se alegraram
E foram jogar no campo de jogo de bola.
E durante muito tempo jogaram sozinhos.
Eles limparam o campo de jogo de bola de seus pais.
E quando os senhores de Xibalba ouviram isso:
“Alguém lá em cima começou de novo um jogo sobre nossas cabeças.
Eles não se envergonham
De ficar batendo o pé por toda parte lá em cima?
Não está Hun Hun Ah Pu morto,
E Vuqub Hun Ah Pu,
Por tentarem se vangloriar diante de nós?
(BROTHERSTON; MEDEIROS, 2011, p. 191-192).

Os gêmeos querem a vingança pela morte de seus pais e seguem o mesmo roteiro de escolhas difíceis para resolver os jogos e “quebra- -cabeças” propostos pelos senhores de Xibalba. Desde a decisão sobre qual estrada tomar, a vermelha, a preta, a branca ou a amarela, até resolver como passar a noite nos quartos que lhe foram preparados – “Casa do Calafrio”; “Casa do Jaguar”; “Casa do Morcego”; “Casa da Faca” – os gêmeos caminham em uma rota cheia de armadilhas.

Chicó, personagem da obra Alto da Compadecida, de Ariano Suassuna, cada vez que contava alguma história extraordinária, quando perguntado como aquilo seria possível, respondia: “– Não sei, só sei que foi assim”.

Santo Agostinho (Livro 11, cap. XIV) ao tentar dar uma noção sobre o tempo, afirmou: “Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei”. E completa: “Por isso, o que nos permite afirmar que o tempo existe é a sua tendência para não existir”.

Tentar definir o que o mito é, de alguma forma é esbarrar em seu poder fugidio, em sua imunidade a explicações racionais. Tanto as histórias extraordinárias dos gêmeos do Popol Vuh, como as de Chicó, quanto a noção de tempo de Agostinho, estão no mesmo patamar, na mesma dimensão do mito, ou seja, da experiência, da vivência com algo que não pode ser explicado de forma cabal. Assim, o mito se dá na “não explicação”, na tendência em “não existir”, justamente porque existe de acordo com o que se conta, com o que se narra. Narração geralmente cheia de armadilhas e rotas imponderáveis, de estradas a tomar e quartos mortais que desafiam as soluções fáceis.

Aliás, narrar é o núcleo de sentido do mito, mas também da religião e da literatura. Estes, mito, religião e literatura, estão no campo da experiência, do imediato, para, só em um segundo momento, serem mediados. São estratégias da linguagem humana que se encontram na categoria da primeiridade, conforme a Semiótica de C. S. Peirce (SANTAELLA, 1984), de onde surgem experiências monádicas, de um estado de consciência sobre o qual pouco pode ser afirmado e se traduz em um simples sentimento de “qualidade”.

O parentesco do mito com a arte, e do mito e a arte com a religião, fez com que Benedetto Croce (1997), afirmasse que a arte é uma linguagem que se esconde sob um sentimento único, que ele chamou de “inefável”, isto é, que em seu poder inebriante, é indizível, que não pode ser explicado. Por isso, o mito segue em uma trajetória, uma vereda de negação ao patrulhamento inflexível do determinismo causal, dos modelos científicos de simplificação, disjunção, exclusão e redução; a ciência não dá conta de uma simplicidade tão complexa1 quanto “eu só sei que foi assim”.

Outrossim, na astúcia de fugir da armadilha historicista e reciclar a função do mito, Lezama Lima (1988, p. 47), poeta e ensaísta cubano, almejou tecer a história da América Latina pelos contrapontos de “eras imaginárias”, pois são dimensões onde reinam as fábulas e os mitos.

Somente o difícil é estimulante; somente a resistência que nos desafia é capaz de assestar, suscitar e manter nossa potência de conhecimento, mas, na realidade, o que é o difícil? o que está submerso, tão somente, nas águas maternais do obscuro? o originário sem causalidade, antítese ou logos? É a forma em devir em que uma paisagem vai em direção a um sentido, uma interpretação ou uma simples hermenêutica, para ir depois em busca de sua reconstrução, que é o que marca definitivamente sua eficácia ou desuso, sua força ordenadora ou seu apagado eco, que é sua visão histórica.

Para o autor cubano, o comando da história não se daria pela sincronia dos fatos, que encontra grande dificuldade para entender e fixar a identidade cultural latino-americana, e sim, pela diacronia das imagens e das narrativas expressas na arte e na literatura. Da mesma forma, o mito é estimulante justamente porque é difícil, porque apresenta uma resistência à compreensão, mas, ao mesmo tempo, incita e seduz na busca de conhecimento e teorização. Na medida em que cresce a dificuldade de entender o mito, cresce também a curiosidade e as fórmulas para tentar defini-lo.

O mito ainda pode ser comparado com um jogo dentre tantos jogos, feito de regras como de uma infinidade de possibilidades e versões. Dentre esses tantos jogos, talvez aquele que melhor se compare com os jogos de linguagem do mito é um jogo chamado apenas de “o jogo”2 . A regra do jogo é extremamente simples: não se deve em hipótese nenhuma pensar no jogo, pois, a partir do momento que você pensa nele, imediatamente você perde. Logo, o objetivo do jogo, diferente da maioria dos outros jogos, não é ganhar, dado que você sempre perde. Quanto mais tempo não pensar no jogo, melhor. Entretanto, ao pensar no jogo, você deve anunciar que perdeu. Isso pode ser feito aos participantes ou mesmo para todos que conhecem o jogo. A comunicação pode então ser feita por qualquer mídia disponível, de jornais até redes sociais, ou apenas falando em voz alta “perdi”.

No que pese a forma bizarra e aparente nonsense do jogo3 , o mito tem boa semelhança. O mito é o que é, e, se analisado ou pensado, logo o perdemos. A melhor forma de se aproximar do mito é não pensar nele. Mas, como isso para nós é praticamente impossível, devemos anunciar que perdemos. Anunciar nada mais é do que discursar sobre o mito, tangenciar sem nunca entrar, ou, uma vez dentro, nunca sair. O mito igualmente é um jogo de premeditada derrota. Mas, a derrota é exatamente o que faz do mito um jogo a ser jogado permanentemente. Uma vez que o conceito escapa, um novo ciclo de narração surge, de tal forma que o mito repousa no berço do princípio do eterno retorno.

Mas, como somos eminentemente metafísicos, aprendemos a pôr a experiência separada da razão e, ainda que “entre quem pensa e o que é pensado passa o mistério, o pensamento filosófico procurou sempre ultrapassar o mistério [...]. E, procurando superar o mistério, pendeu mais para as matemáticas e para as ciências do que para a arte e a religião” (MARASCHIN, 2004, p. 1). Ou seja, porque somos obsessivamente explicativos e retóricos, criando uma tendência e uma ânsia que dominou também os estudos e pesquisas sobre o mito, não por acaso a história das religiões, as teorias literárias, a antropologia, a linguística e outras ciências criaram as suas próprias mitogonias.

Na busca por alguma sistematização dos mitos, os berços de mitogonias nos deram uma ilusão “afirmando que o imenso labirinto não deixa de ter a sua planta, porque o mito nada mais é que ciência primitiva, ou história, ou personificação de fantasias do inconsciente, ou ainda algum outro ‘solvente’ atualmente na graça dos sistematizadores” (RUTHVEN, 2010, p. 14). Palavras confirmadas por Bachelard (1988, p. 15) ao apontar que “ao espírito resta a tarefa de fazer sistemas, de agenciar experiências diversas, para tentar compreender o universo. Ao espírito convém a paciência de instruir-se ao longo do passado do saber”.

Se por um lado o mito exerce poder de sedução pela sua constante atualização e vivacidade na experiência, por outro lado, igualmente exerce poder de sedução pela possibilidade de ser pesquisado, analisado, comparado ou sistematizado. De qualquer modo, a “armadilha mítica” foi montada e, tendo sido disparada, seja no âmbito da religião ou da literatura, estamos presos.

O mito em seus corredores labirínticos

Devemos começar por aquela que talvez seja uma das vielas mais antigas percorrida pelo mito: a mitogonia criada pelo evemerismo. Diz-se que Evêmero, siciliano do século IV a.C., teria escrito um romance em que descreve uma viagem a uma ilha imaginária e, ali, soube que existia uma inscrição na parte interna do templo de Zeus que indicava que Zeus nasceu em Creta, viajou pelo Oriente e foi proclamado deus, antes de retornar para a sua terra, onde morreu.

O que se sabe sobre o romance de Evêmero não é original, senão aquilo que foi preservado na História Eclesiástica de Eusébio. Também não se sabe se Evêmero não estaria fazendo uma menção a Alexandre Magno na Índia. Mas, uma coisa é certa, contrariando o conselho de Malinowski, para quem os mitos significam apenas aquilo que dizem, Evêmero procurou dar uma explicação “natural” para o surgimento de Zeus, uma divindade (RUTHVEN, 2010, p. 17-18).

Evêmero não estava sozinho na busca por explicações “naturalistas” para fenômenos e eventos que, desde muito tempo, se mantinham preservados em narrativas lendárias, extraordinárias ou etiológicas. Seus “colegas” gregos, caminhantes da mesma estrada, chamados convenientemente de filósofos Pré-socráticos, também apelidados de “naturalistas”, estavam interessados na natureza (physis) e na origem de todas as coisas. Embora tenham se inspirado em ideias antigas e míticas como a dos quatro elementos (fogo, terra, água, ar)4 , de modo pioneiro procuraram explicações para a origem da natureza na própria natureza e não mais apenas nos poderes ou qualidades das divindades5.

Para o cristianismo emergente dos séculos I e II d.C., o evemerismo caiu como uma luva para atacar o paganismo e afirmar que seus deuses tinham origens naturais e não sobrenaturais6 . Deuses, portanto, que não passavam de reflexos de qualidades ou poderes da natureza7 , ou comoafirmava Frazer (1921, p. xxvii): “são explicações erradas de fenômenos, quer da vida humana, ou da natureza externa”.

Palaifatus, seguindo a trilha do siciliano e dos gregos, no século IV a.C., transformou eventos míticos em acontecimentos possíveis, isto é, história e não mito. Muitas vezes se faziam esforços no sentido de vincular um evento astronômico a episódios míticos. Em teorias mais modernas, vários personagens míticos teriam existido historicamente e, depois, teriam se tornado em ciclos lendários preservados primeiro em forma oral.8

Todas essas investidas sobre as noções míticas, sejam evemeristas, palaifatistas9 , ou naturalistas, tiveram uma finalidade declarada: a demitologização, e um efeito colateral: a “para história”, ou “aquela que registra não o que aconteceu, mas o que as pessoas, em diferentes épocas, diziam ou acreditavam ter acontecido10” (GRANT, 1971, p. xviii). Ou, como afirma Ruthven (2010, p. 22): “assim como um mito pode ser tornado histórico, a história também é passível de mitificação”.11

A avenida paralela à demitologização, ou para histórica, teve ampla representação, mesmo por aqueles que não estavam intencionalmente tentando dar contornos míticos para o que acreditavam ser puramente histórico12. Afinal, “os historiadores sempre contaram estórias. De Tucídides a Gibbon e a Macaulay, a composição da narrativa em prosa vívida e elegante sempre foi tida como sua maior ambição. Consideravase a história um ramo da retórica” (LACERDA, 1994, p. 9)

Desde o século XVIII a Scienza nuova, de Giambattista Vico, já havia relacionado a história com a ficção. O próprio Hayden White, inspirado pela concepção viqueana, levantou a hipótese de que a consciência humana teria passado historicamente por modos de operação correspondentes a quatro tropos poético-retóricos fundamentais.

Curiosa é a compreensão histórica cunhada por Arnold Toynbee, para quem certas civilizações dominantes na história, mesmo após o seu desaparecimento, são refletidas em civilizações posteriores. Toynbee pretendeu descobrir vinte e uma dessas civilizações que teriam existido em várias épocas e, quando estudadas comparativamente, elas revelariam ter passado por etapas semelhantes de desenvolvimento, auge e decadência, sendo a fase final marcada por um estágio universal. Desse modo, uma civilização inauguraria uma era imaginária que, posteriormente, daria lugar a outra era de outra civilização. As eras seriam semelhantes em todas as civilizações não tendo nenhuma delas primazia sobre a outra. Ora, essa “era imaginária”, que se repete em outra civilização, não é justamente uma compreensão para histórica, quase de cunho mítico, feitas de imagens arquetípicas?

Mas, não foi apenas a mitologia greco-romana ou a “historiografia” que se tornaram alvos das explorações demitologizantes. No cristianismo, mais especificamente na figura de Cristo, observamos as tentativas de separar o Cristo “real” do Cristo “mítico”, como no caso das longas pesquisas sobre o “Jesus histórico”, ou, numa tentativa mais amena, como a de Rudolf Bultmann, que demitologizou o Novo Testamento, mas devolveu, no lugar dos mitos, suas dimensões existencialistas.

Se o existencialismo teológico tentou ler nas entrelinhas do Cristo mítico, não é de se surpreender que as interpretações psicológicas entrem na topografia que procurou tirar o poder do mito de seu ambiente original. Freud, por exemplo, estabeleceu uma “psicomitologia” para explicar porque algumas percepções que temos no mundo são baseadas em ilusões. Imortalidade, recompensa futura, mundo após a morte, seriam apenas ilusões, projeções de nossa vida psíquica. Logo, os mitos poderiam ser compreendidos como representações dessas ilusões projetadas e, mais, serviriam como vestígios de nossas próprias inquietações psíquicas13.

Apesar da mente “cientificista” de Freud, que achou o mito no interior da psique humana, Carl Gustav Jung fez justamente o trajeto oposto: os mitos não estão de dentro para fora, como projeções, e sim de fora para dentro, como introjeções. Os mitos, então, são representações ou imagens arquetípicas que “pescamos” da história humana, como se a psique fosse um imã que atraísse essas imagens. De qualquer modo, embora Jung fosse um insaciável “caçador” de mitos, acabou dando sua parcela de contribuição para que o mito saísse de seu berço narrativo local e ganhasse uma dimensão histórica universal e, portanto, acessível às superinterpretações14.

Na vereda transversal das interpretações psicológicas, temos a didática moral, que por um lado entendeu os mitos com finalidades éticas e, por outro lado, como potencialmente perigosos, por causa da licenciosidade dos deuses. Vereda onde Aristóteles fez escola, e para quem “os seres ficcionais não são apenas reproduções do homem como deve ser, mas também modelos a serem imitados por todos aqueles em atingir sua excelência moral” (SEGOLIN, 1999, p. 19). Na mímesis aristotélica, por exemplo, a literatura e seus aparatos míticos já eram vetores de moralismo.

Se antes os deuses tinham se tornado representações de potências da natureza, agora a finalidade moral os transformou em personificações de paixões e virtudes. Ora a educação não podia ignorar a mitologia clássica, ora deveria manter distância com o risco de corromper. Para evitar a depravação dos deuses e ressaltar suas virtudes, o embelezamento da vereda moral foi inevitável, criando assim a abertura para o surgimento da alegoria aplicada à vida dos deuses. Fílon, Agostinho, Lutero e um sem número de intérpretes de Homero, deixaram uma tradição que impôs ao mito uma metalinguagem15.

Em outra paragem distante da didática moral, em uma avenida antropológica bem ampla, parecia óbvia a relação do mito com o rito. As placas todas pareciam indicar: se o mito canta, o rito dança. Se o mito é a narração dos atos divinos, seria lógico concluir que tais atos poderiam ser repetidos. Em uma recursividade sem fim, o mito vira rito e o rito vira mito, ou conforme aponta Eliade, seja o tempo ou o ritual, prevalece o princípio do eterno retorno.

Muito da suspeita de que o mito poderia ter surgido do rito veio das inquietações de E. B. Tylor. Em sua obra Cultura primitiva, insistia que os mitos surgiram de uma dimensão ilógica e primitiva e que, portanto, o pensamento analógico antecedeu a lógica verbal, que é secundária16. Lógica verbal que Tylor, assim como outros antropólogos, confundiram com sua própria lógica eurocêntrica sistematizante, isto é, como se o pensamento “primitivo” tivesse uma concepção não organizada e lógica da vida, ou que existisse algo que fosse anterior à uma determinada “mitologia”17.

Tylor, sem saber, caminhou por uma ponte em direção ao mito como “doença da linguagem”, como um “enfeitiçamento voluntário”. Só os homens “escolhidos” pelos deuses cabia a tarefa de nomear as coisas pela primeira vez. Sacerdotes, xamãs, feiticeiros, videntes, reis-sacerdotes ou heróis civilizadores, em contato com a divindade, tinham um conhecimento que extrapolava o conhecimento dos demais mortais. Por isso, além de dar nomes às coisas, animais e seres, também dominavam a arte das palavras mágicas, encantadas. Logo, a coisa é o nome e o nome é a coisa.

Mas, se a linguagem é uma estratégia sedutora para dizer o mundo, ela o faz de modo ambíguo. Esse é o caminho percorrido por Crátilo, de Platão, que por um lado punha as palavras como exatas às coisas e, por outro lado, apenas representantes das coisas por convenção. O problema continua e reaparece com intensidade na Idade Média com a picuinha chamada de “o nome da rosa”. Umberto Eco deu vida a essa querela ao romancear uma das grandes questões da filosofia: a rosa tem o seu nome porque nós é que damos isso a ela ou ela é que nos transmite o que ela é? Se vivêssemos naquela época, dependendo da resposta, seríamos chamados de nominalistas, no primeiro caso, ou realistas, no segundo caso.

Wittgenstein, ao passar por essa ponte da linguagem, diria que o mito é um “jogo de linguagem”. Cassirer diria que o mito é tanto uma elaboração do espírito humano quanto uma constante formal da linguagem. Outros, como Schlegel, procuraram a origem de certas palavras em mitos antigos, numa regressão ad infinitum, ora instrumentalizado pela filologia e pelas etimologias, ora criando uma mitologia comparada, como fez Max Müller.

Olhando melhor para a ponte da linguagem, se de um lado dela a interpretação das culturas tem a sua lógica própria, conforme Geertz, parece óbvio imaginar que do outro lado da ponte exista uma constante estrutural, conforme Lévi-Strauss. Se em uma ponta comanda elementos isolados e históricos, na outra ponta comanda uma configuração praticamente imutável; diacronia e sincronia se alternam. Por isso, é plausível afirmarmos que o estruturalismo foi um dos caminhos mais profícuos nas pesquisas sobre o mito. Desde as intuições de Piaget sobre as constantes psicogenéticas no desenvolvimento da cognição, passando pelos estudos da linguagem como “jogo de xadrez” de Saussure, o estruturalismo se tornou a ferramenta de análise por excelência para encontrar as constantes formais presentes em toda narrativa mítica. Assim, “Alan Dundes aconselha aos folcloristas a procurarem, para além dos motivos diacrônicos, os “narremas” na Chanson de Roland e no Poema del Cid, enquanto Claude Lévi-Strauss, procurou “mitemas” nas mitologias dos índios sul-americanos” (RUTHVEN, 2010, p. 54).

Nessa constante estruturalista, não podemos deixar de citar Gilbert Durand que, sendo um neokantiano e seguindo as pistas deixadas por Carl Jung, se inspirou nas noções de mito de Cassirer, para quem a lógica do discurso tem um parentesco muito íntimo com a lógica mítica, e Bachelard, que entendeu que o mito já é uma eufemização da realidade, do fato em discurso, mas nunca se trai ao traduzir-se, pois minimiza o seu suporte linguístico: a palavra está na raiz da imaginação. Por isso, para Durand os esquemas, arquétipos e símbolos definem o sentido da palavra mito: “sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor- -se em narrativa” (DURAND, 2002, p. 62-63). Se o arquétipo ressaltava a ideia e o símbolo promovia o nome, o mito ressalta os dogmas religiosos, o sistema filosófico ou a narrativa histórica e lendária. O mito faz isso submetendo os símbolos (palavras) e os arquétipos (ideias) a um efeito de racionalização pelo fio do discurso.

A saga pelos meandros do labirinto do mito ainda pôde contar com as andanças de críticos, comparatistas e “mitólogos” da envergadura de Joseph Campbell que, instigado pelo Finnegans Wake de James Joyce, imaginou um “monomito” baseado na jornada do herói em sua obra O herói de mil faces.

Por fim, o mito fez muitas outras incursões nesse labirinto de veredas que se bifurcam, além das expostas até aqui. Mas, uma vez no labirinto, não carece, pelo menos por enquanto, procurar uma saída. Na verdade, a beleza do mito está justamente em ser um espelho do próprio labirinto: ambíguo, cheio de falsas entradas e falsas saídas, dado ao trajeto do que à chegada.

O mito no labirinto da literatura

Tanto quanto no labirinto da linguagem, o mito percorreu caminhos equívocos no labirinto literário; a univocidade jamais foi vocação do mito nas obras literárias. Mas, embora a literatura tenha se formado ao largo das investidas analíticas e jamais se deixou domesticar pelas teorias, no ocidente ela padeceu de uma obsessão típica dos literatos: a mitologia greco-romana, sendo esta a mais porosa das mitologias para os ataques desenfreados dos racionalismos pós-iluministas.

A ladainha que repete que a literatura é devedora da mitologia greco- -romana não tem fim. O mantra é o mesmo: tendo os deuses sido esquecidos no passado mítico, onde reinavam soberanos, hoje se escondem no labirinto literário. Como bem observou Calasso (2004, p. 9), “os deuses são hóspedes fugidios da literatura. Deixam nela o rastro dos seus nomes”.

No Renascimento, a mitologia contribuiu para a fraseologia dos poetas e dos dramaturgos. Quase todos os poetas do século XIX são devedores do panteão divino, visto que “não havia necessidade de supor que os velhos deuses não tinham sido vistos desde a Idade Média. Era simplesmente questão de saber como e onde procura-los” (RUTHVEN, 2010, p. 82).

Os deuses se manifestam intermitentemente, de acordo com a expansão e o refluxo daquela que Aby Warburg chamou de “onda mnêmica”. A expressão, que se encontra no início de um ensaio póstumo sobre Burckhardt e Nietzsche, alude àqueles sucessivos choques de memória que atingem uma civilização em relação ao seu passado, neste caso àquela parte do passado ocidental que é habitada pelos deuses gregos. Toda a história europeia é acompanhada por essa onda [...]. (CALASSO, 2004, p. 25).

Se o labirinto da literatura tivesse uma praia, seria possível reparar o “sumiço” da mitologia clássica na maré baixa do oceano mnêmico europeu. Engolida pelas “águas do cansaço”, levada sob a luz da manhã iluminista, a mitologia passou por esquecimentos, seja pela via da crítica racionalista, seja pelo esgotamento dos escritores que não viam mais nos deuses ou nas ninfas sua inspiração máxima.

José Lezama Lima, em A expressão americana, um ensaio provocador, denunciou o cansaço clássico na Europa e, por esse motivo, revelou como um sem número de literatos aproveitaram a lacuna deixada pela mitologia clássica. No lugar dos velhos mitos gregos, que durante tanto tempo colonizaram a Europa, tomava assento a mestiçagem, a mistura dos elementos outrora sagrados da religião branca e católica com os elementos das tradições sagradas indígenas e negras. Em uma mesa barroca, em um jantar mestiço, de antropofagia eucarística, os mitos dos dois lados do oceano, Europa e América, agora misturados, deveriam substituir o esgotamento da mitologia ocidental.

O homem para Deus “e as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem”. O homem para Deus, se o homem desfruta de todas as coisas como num banquete cuja finalidade é Deus. O banquete literário, a prolífica descrição de frutas e mariscos, é de jubilosa raiz barroca. Tentemos reconstruir, com platerescos assistentes de um outro mundo, uma dessas festas regidas pelo afã, tão dionisíaco quanto dialético, de incorporar o mundo, de fazer o seu mundo exterior, através do forno transmutativo da assimilação. (LEZAMA LIMA, 1988, p. 90).

O sagrado está no homem e em suas finalidades, por isso, Deus é antropológico e, no banquete literário, na eucaristia das letras, as mitologias devem ser misturadas no forno transmutativo, que assimila todas as tradições e prepara a ceia que agora nos serve. A literatura, assim como a poesia, para Lezama Lima, é a vocação do homem latino-americano na substituição do cansaço clássico dos mitos já esquecidos da Europa.

A despeito de Lezama Lima ter denunciado a fadiga da mitologia clássica, a solução não poderia ser achada em outros mitos e outras mitologias como a maia, inca ou asteca, ou mesmo nas curiosidades e imagens arquetípicas extraídas de culturas “primitivas e perdidas”. A solução mais radical trouxe para a praça do labirinto literário a ideia da literatura como “substituta” da mitologia, posto que literatura e mito tem um parentesco antigo.

Neste labirinto literário, sejam nos becos dos escritores e teóricos da literatura ou nas travessas dos antropólogos e folcloristas, ora se defendeu que a literatura nasceu junto com o mito, ora que a literatura nasceu do mito. Mito e literatura podem ter dividido o mesmo berço, tendo a poesia e o rito como seus nutrientes, ou, também, a literatura nasceu do mito, tendo a metáfora como sua transição natural. Independente das posições, o passado e o destino entrelaçados de mito e literatura fez com que um poeta da envergadura de Yeats chegasse a concluir que a literatura poderia desempenhar o mesmo papel do mito em uma espécie de “Grande Memória”, com clara semelhança ao inconsciente coletivo de Jung.

Northrop Frye, por exemplo, sem nenhum peso de culpa, acredita piamente que o mito é um elemento natural da estrutura da literatura. O mito seria o “pai” de todos os gêneros literários e a literatura uma mitologia “deslocada”. Para Malinowski o mito tem sementes na epopeia e no romance. Para Vickery (1966), o mito é matriz da literatura e pode ser procurado na história dos passos literários. Mas, não precisamos ir tão longe, o romantismo alemão de Schiller já venerava a beleza dos mitos pagãos e Schlegel estava desejoso em criar uma nova mitologia, talvez uma mitologia feita de literatura.

Palavras que ressoaram na mente de Yeats quando intitulou “tremor do véu” a primeira parte de Autobiographies. E, sobretudo, quando, na noite de estreia de Ubu Roi, disse a alguns amigos: “Depois de Stéphane Mallarmé, depois de Paul Verlaine, depois de Gustave Moreau, depois de Puvis de Chavannes, depois dos próprios versos, depois de toda essa cor sutil e desse ritmo nervoso, depois dos pálidos tons mesclados de Charles Conder, o que mais é possível? Depois de nós, só o Deus Selvagem!” (CALASSO, 2004, p. 99).

Solto dentro do labirinto literário, o “Deus Selvagem” andou à espreita dominando a mente e o coração dos escritores, novos sacerdotes de um templo e de uma religião feita de letras e fiéis leitores. Se a mitologia se foi com as águas obscuras do passado, para muitos a literatura deveria assumir o seu lugar de direito como irmã natural do mito e, se possível, manter o mito no calabouço das obras literárias e jamais retornar às expressões da religião.

T. S. Eliot, confirmado por E. R. Curtius, antecipava que, com o tempo, em lugar do método narrativo, deveríamos usar o método mítico. O próprio Curtius, em suas intuições sobre como a história grega a latina permaneceu sem interrupções até a Idade Média, vaticinou que seria impossível empregar qualquer outro método para escrever a história que não fosse a da ficção. Em outras palavras, a literatura seria agora o ambiente natural do mito e da história. Algo que Kermode (1962, p. 37) diagnosticou ao dizer: “no território do mito, podemos curto-circuitar o intelecto e liberar a imaginação que o cientismo do mundo moderno suprime; e esta é a posição central moderna”.

Não por acaso a crítica da literatura à religião tantas vezes afirmou que a literatura deve superar a religião, e tem ela que ser a expressão mais profunda da transcendência. Posição defendida pelo escritor Gottfried Benn (1968), que declarou: “os deuses mortos, os deuses da cruz e do vinho, ainda mais que mortos: mau princípio estilístico, quando a gente se torna religioso, abranda a expressão”.

Benn, assim como outros ensaístas e escritores, confiam absolutamente na literatura como o novo mito, a aventura espiritual mais alta que o ser humano possa provar. Mas, que literatura é essa que se permite preterir dos mitos clássicos ou da religião? Que literatura basta a si mesma que se torne o único espaço de expressão dos deuses, da religião ou do mito? Calasso (2004) chama tal literatura de “literatura absoluta”. Tendo começado com os romantistas alemães e seguido até a morte de Mallarmé, é reatualizada na pena dos escritores.

Só os escritores estão em condições de abrir-nos os seus laboratórios secretos. Guias caprichosos e evasivos, são, no entanto, os únicos a conhecer passo a passo o terreno: quando lemos os ensaios de Baudelaire ou de Proust, de Hofmannsthal ou de Benn, de Valéry ou de Auden, de Brodski ou de Mandel’stam, de Marina Cvetaeva ou de Karl Kraus, de Yeats ou de Montale, de Borges ou de Nabokov, de Manganelli ou de Calvino, de Canetti ou de Kundera, percebemos logo – ainda que um possa detestar o outro, ou ignorá-lo ou opor-se a ele – que todos falam do mesmo objeto (CALASSO, 2004, p. 101).

Evidente que o “mesmo objeto” é a literatura como coisa absoluta, a ficção como ser onívoro que, ao procurar tantas vezes devorar a história e a religião, dança no salão principal da linguagem como um novo mito. Aspiração que chega ao ponto de, na atual filosofia da linguagem, implicar questões sobre o que é o real.

A ficção oferece menos dúvidas e mais certezas, ao passo que o real empresta menos certezas e, portanto, mais dúvidas. Com o sinal trocado, o mundo voltaria a ser perfeito se a ficção não fosse, ela mesma a grande dúvida. Dito de outra maneira: se a realidade fosse transparente à linguagem, a ficção não seria necessária. A existência do discurso ficcional explicita a dúvida crucial que sentimos quanto à “realidade da realidade”. (BERNARDO, 2004, p. 23).

Borges (2008, p. 73), também desnuda a estratégia da linguagem literária utilizada para simular a realidade: “Eu aconselharia esta hipótese: a imprecisão é tolerável ou verossímil na literatura porque sempre tendemos a ela na realidade. A simplificação conceitual de estados complexos é muitas vezes uma operação instantânea”. Ou seja, na mesma medida que a nossa consciência apreende a realidade de modo intencional e seletivo18, a literatura expressa a realidade ou a imita igualmente de forma intencional e seletiva, de um jeito que “[...] toda atenção, toda fixação de nossa consciência comporta uma omissão deliberada do não interessante” (BORGES, 2008, p. 73).

Para “imitar” a realidade, a ficção, especialmente nos gêneros literários, faz uso de mecanismos do discurso que estão presentes na forma como pensamos a realidade. Tendo isso em mente, Borges afirma que é legítimo deduzir que o principal problema da arte romanesca é a causalidade e a “magia”. Um romance pode “copiar” as relações de causa e efeito, mas, sozinhas, não tem o mesmo efeito se não agregar o efeito da magia. Enquanto a causalidade dá conta dos processos comuns da narrativa, das coisas simples e descritivas, a magia permite as relações entre coisas, situações e personagens que não são reais, mas estão na ordem do discurso. Ora, se estão na ordem do discurso, tudo é possível.

Esse procedimento ou ambição dos antigos homens foi submetido por Frazer a uma conveniente lei geral, a da simpatia, que postula um vínculo inevitável entre coisas distantes, seja porque sua figura é igual – magia imitativa, homeopática –, seja pela existência de uma proximidade anterior – magia contagiosa. (BORGES, 2008, p. 90).

Nesse caso, Borges sustenta que as leis “naturais” de causa e efeito que regem a realidade, que, inclusive, permitem as relações mágicas entre objetos distantes19, igualmente regem a vocação narrativa da literatura. As regras são as mesmas, rígidas e com poucas variações. Borges, inclusive, aponta que, sejam os escritores dependentes dos clássicos (que para ele é maioria), sejam para os escritores atados às expressões romanescas modernas, a literatura exige certas operações quase imutáveis, por mais extraordinárias ou incríveis possam ser as relações de causalidade. Nas palavras de Wood (2012, p. 17):

A casa da ficção tem muitas janelas, mas só duas ou três portas. Posso contar uma história na primeira ou terceira pessoa, e talvez na segunda pessoa do singular e na primeira do plural, mesmo sendo raríssimos os exemplos de casos que deram certo. E é só.

A solução fenomenológica de Borges pode ser igualmente exemplificada pelas elucubrações de Bachelard. Para ele é a fenomenologia da alma humana que instala o primeiro compromisso com o discurso, com a possibilidade de narrar. Nesse caso, em se tratando de uma obra literária, o fenômeno que marca a alma humana com a literatura é uma fenomenologia da imaginação. “Esta seria um estudo do fenômeno da imagem poética quando a imagem emerge na consciência como um produto direto do coração da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade” (BACHELARD, 1998, p. 2).

Em termos antropológicos, o homem, sendo um ser “falante”, sempre enquadrado pela linguagem, captura experiências vividas na imagem. “Com sua atividade viva, a imaginação desprende-nos ao mesmo tempo do passado e da realidade. Abre-se para o futuro. À função do real, [...] é preciso acrescentar uma função do irreal [...]” (BACHELARD, 1998, p. 18). Dizendo de outro modo, Bachelard visualiza a literatura como uma antropologia transcendental, do homem que se abre para a experiência com a obra literária e eufemiza a realidade.

Desse modo, a eufemização pelo discurso, pela narração, é uma ladainha sem fim sobre o que é a realidade, coisa que o mito e a literatura têm de sobra. É por isso que a consciência na literatura talvez tenha nascido do solilóquio das orações, das confissões e dos exercícios espirituais. “O solilóquio interior permite a repetição, a elipse, a histeria, a vagueza – a gagueira mental” (WOOD, 2012, p. 124).

O mito no labirinto da teologia

Abordar a relação entre mito e teologia é, no mínimo, uma empreitada temerária. Se por um lado mito e mitologia aparecem e desaparecem nas intermitências do labirinto literário, por outro lado, o mito no labirinto teológico parece estar escondido em algum jardim secreto. O que nos lembra o conto O jardim de veredas que se bifurcam que citamos antes. Secreto, mas não perdido. Ao acharmos suas veredas, logo em sua entrada, podemos observar como a teologia nasceu do mito, mas, ao isolá-lo em algum canto, construiu em volta de si um muro metafísico, de catafática jardinagem, ou dizendo aos modos de Bachelard, tentando o tempo todo nesse jardim da teologia, “explicar a flor pelo adubo”.

Em termos metodológicos, o mito, por ter uma característica narrativa e poética, invariavelmente foi destacado como linguagem muito bem assentada na literatura e pouco na teologia moderna. Quando a teologia tentou se aproximar do mito, pegou emprestado epistemologias diversas, especialmente aquelas que fizessem uma ligação do mito com o fundamento simbólico de toda religião, mas evitou procurar o mito nela própria e muito menos entender que se trata de um de seus fundamentos básicos.

Na relação binária teologia-literatura, o mito acabou sendo visto como um fundamento da literatura, mas pouco da teologia. Já que a literatura tem um caráter de experiência, e de forma distante um caráter de racionalidade lógica, concluiu-se que o mito só poderia ter uma ligação íntima com a literatura. Por exemplo, o mito ligado ao poema e, este, por sua vez, ligado à música e ao ritual, movimento que parece ter sido natural para a ancestralidade mítica, facilitou muito a ilação entre mito e religião, mas não entre mito e teologia. Razão pela qual a trajetória metodológica nesse campo de pesquisa está há tanto tempo fazendo da literatura o seu espaço de análise temática, seja da poesia ou de qualquer outro gênero literário, sem grandes distinções. Ora os estudos partem de temas já bem definidos pela própria teologia e pelo cristianismo (o mal, o bem, o pecado, a salvação etc.), ora partem de temas que carecem da ajuda de conhecimentos científicos que encaram o mito como curiosidade linguística, antropológica ou sociológica. Alguns temas são tão específicos (como o tema do herói, da coragem, das virtudes etc.), que só permitem uma análise simbólica do mito pelas tradicionais escolas de Religião Comparada, História das Religiões e Fenomenologia da Religião. Afinal, fica mais fácil ver o mito como coisa da literatura para que as conclusões teológicas sejam imunes aos aspectos místicos e sincréticos que inevitavelmente as obras literárias desafiariam.

A memória histórica nos leva a observar que a teologia, sob algumas perspectivas da Ciência da Religião, claramente tem seguido a tendência das ciências em geral, ou seja, privilegiar o discurso racional, fixado e sistemático na busca de um espaço cada vez mais inteligível. Muitas das incursões por caminhos que pudessem registrar de modo mais patente o discurso da experiência religiosa mística e intuitiva, típicas do discurso mítico, foram as vezes deslegitimadas.

Desse modo, a aproximação da teologia com o mito muitas vezes foi difícil e se deu de forma indireta ou transversal. Sim, elogios foram feitos ao discurso mítico e os vários estudos teológicos realizados até aqui não escondem a sua vocação para retomar o mito como um tema fascinante. Mas, tais estudos ainda se ressentem e têm certo receio de afirmar que a teologia tenha parentesco com o mito, ou que tenha do mito o seu berço, origem ou fundamento.

Até o presente, o método teológico não suportou muito bem a possibilidade de confessar que a teologia seria uma forma de linguagem mítica eufemizada, travestida de uma racionalidade lógica. É claro que a teologia não pode fugir de seu aspecto racional e negar o que encontramos em quase todos os manuais de teologia, ou seja, que a teologia é a racionalização e a sistematização lógica das experiências de fé. Porém, esse também é um jeito de dizer que a teologia estaria do lado oposto do mito e o que temos, no máximo, são exaltações da importância do mito, sem levar em conta as consequências epistemológicas que isso representaria para a própria teologia.

Nesse eixo da história da teologia, sem dúvida a teologia sistemática, por exemplo, poucas vezes deu conta da importância do mito. Seu estatuto logocêntrico e explicitamente ligado a uma atitude que se contrapõe às imagens oriundas das artes em geral, naturalmente gerou uma teologia representante do iconoclasmo ocidental. O interesse doutrinário, partidário da dogmática disseminada no seio da igreja e dos seminários, legou às imagens e às experiências a serem um subproduto cultural.

Não é acidental, portanto, que a sistematização é um dos primeiros “esconderijos” na qual a teologia se refugia para dialogar com qualquer coisa que a ameace. Serve como ponte suprema para permitir passagem a outros saberes e ciências, assim como meneios e maneirismos corteses diante de outras tradições religiosas e culturais que não sejam as suas próprias. Parece faltar uma “confissão de fé” por parte da teologia em relação ao mito, que vá para além da sua negação peremptória contra o próprio mito. Também porque a história da teologia prova que a metafísica engoliu, tal qual pantagruel, qualquer elemento mítico que levasse a teologia de ser acusada de pagã. No fim, a teologia criou o seu próprio “grande mito”, a sua independência narrativa, e reservou para si mesma a sua “ficção absoluta”, isto é, o seu secreto desejo de dominar o discurso.

Mas será que a teologia, por causa de sua vocação apologética, metafísica e sistemática não tem espaço para o discurso do mito, das artes ou da literatura?

Na verdade, no jardim secreto, onde o mito viceja, a teologia pode ser encontrada fazendo jardinagem nas veredas de sua origem. Quase sem querer, sem intenções declaradas, a teologia, cheia da libido que o mito instiga no inconsciente coletivo, contra os quais os discursos racionais acreditam que estejam vacinados, vez ou outra, deixa algumas pistas que podem nos conduzir pelas veredas bifurcadas do jardim mítico.

Desdenhando de qualquer obstáculo que uma ciência possa encontrar, será justamente a origem apologética, aquela que continua nas entranhas epistemológicas da teologia, uma das melhores pistas para a vereda mítica. Isso ocorre porque, na urgência de defender sua metafísica contra os ataques externos de outras ciências, a teologia elaborou seu escopo hermenêutico calcado nas “linguagens de empréstimo”. Ao emprestar a linguagem de uma ciência, de um saber ou “imitar” as operações de “jogos de verdade” de um conhecimento específico, a teologia inevitavelmente trabalha no campo da hermenêutica.

Para realizar a sua tarefa hermenêutica, a teologia lançou mão de diversas mediações teóricas para constituir o seu discurso sobre a fé. Sendo o discurso “o ponto de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos linguísticos” (BRANDÃO, 1996, p. 12), a realidade humana é pensada pela teologia no interior de uma linguagem.

Uma pista razoável para a teologia sair de seu claustro epistemológico e abraçar a sua origem mítica foi apontada por Eliade (2013, p. 123), na noção de transcendência.

Nos níveis arcaicos da cultura, a religião mantém a “abertura” para um Mundo sobre-humano, o mundo dos valores axiológicos. Esses valores são “transcendentes”, tendo sido revelados pelos Entes Divinos ou Ancestrais míticos. Constituem, portanto, valores absolutos, paradigmas de todas as atividades humanas. Como vimos, esses modelos são vinculados pelos mitos, aos quais compete acima de tudo despertar e manter a consciência de um outro mundo, do além, - mundo divino ou mundo dos Ancestrais. Esse “outro mundo” representa um plano sobre-humano, “transcendente”, o plano das realidades absolutas.

A teologia opera no campo hermenêutico exatamente porque está subsumido na noção de transcendência, presente tanto no mito como também na teologia.

O caminho não é novo. O teólogo Karl Rahner também percebeu que existe uma abertura transcendental do homem para o mistério absoluto. Para Rahner, a teologia está na tensão entre um a priori transcendental e um a posteriori categorial-histórico; o discurso da experiência, que é transcendental, deve inevitavelmente passar pelo discurso de uma antropologia teológica transcendental. Em face do mistério e do inefável, não há razões para um sacrificium intellectus e nem para um verbalismo incompreensível. “É essencial a todo conhecimento espiritual e, logo, também, ao conhecimento teológico, que toda questão a respeito de seu objeto seja igualmente uma questão sobre o ser do sujeito conhecedor” (RAHNER, 1969, p. 21).

Em termos ontológicos, não é só a teologia que é metafísica, senão também o espírito humano. A realidade, só passível de ser apreendida na sua dimensão fenomenológica, permite muitos espaços para o mistério e, por causa disso, para a sua inerente narratividade, para a sua verborragia explicativa sem fim.

Por conseguinte, todo e qualquer tema que interesse ao espírito humano é teologal, ou seja, pode ser enfocado a partir do postulado ou da presumida experiência de tal Realidade fundante – em si teológica. Mas sempre será prudente que o teólogo considere o que já dizia R. Alves: a Teologia não é um falar sobre o mistério, mas um falar diante dele. Ou seja, ele pronuncia-se a partir da experiência, de resto, irredutível à observação científica. (SOARES, 2013, p. 655).

Não precisamos seguir tão mais adiante para compreender que, se qualquer tema que interesse o espírito humano é teologal, justamente por seu aspecto de transcendência, fica evidente que o mito é tão teologal quanto qualquer outro tema que envolva o viés eufemizador do discurso.

Em Tillich e Pannenberg, por exemplo, a teologia é uma antropologia, seja em termos de cultura (Tillich) ou história (Pannenberg). Assim como a teologia da libertação, que seguiu o mesmo caminho de uma reviravolta antropológica, de uma teologia de baixo para cima, isto é, do terrenal ser humano para o divino céu. O efeito dessas intuições permite a entrada do mito enquanto poder narrativo da cultura e suas expressões e do poder narrativo da história e suas memórias.

Na vereda da transcendência, Romano Guardini elaborou a sua visão (Anschauurung) polar da teologia, ou seja, abandonou o simples conceito para somar a ele a intuição. Algo que o teólogo suíço Hans Urs von Balthasar, igualmente fez ao dar amplo espaço à uma estética teológica. “Diante do belo – aliás, não propriamente diante dele, mas nele – é o homem todo que vibra. Ele ‘encontra’ a beleza não só agarrando-a, mas experimenta, antes, a si mesmo como agarrado e tomado como posse por ela” (BALTHASAR, 1967 apud GIBELLINI, 1998, p. 243). Beleza ou estética que vicejam tanto na busca por transcendência, quanto nas intenções narrativas das artes20.

O teólogo católico Johann Baptist Metz criou uma teologia política baseada na memória, na narração e na solidariedade. A memória das tradições cristãs deve ser transformada em narração que, por sua vez, deve ser transformada em solidariedade. Ou seja, na mediação entre memória e práxis, está a narração, típica dos mitos e não só dos dogmas.

O que chama a nossa atenção nessas intuições de Metz é a sua perspicácia em vislumbrar na “fresta” da porta mítica a competência narrativa da teologia, entendendo aqui o mito justamente como elemento eufemizador do discurso muitas vezes sisudo da teologia. Entre a vereda da tradição e a vereda da caridade, Metz calçou uma vereda narrativa e, por isso, ponte entre uma e outra.

Retomando a vereda onde mora Paul Tillich, temos a interdependência entre religião e cultura pela noção de transcendência. Em outras palavras, a cultura é um espaço visível da religião e onde os homens determinam suas experiências e vivências.

O teólogo belga de língua flamenga, Edward Schillebeeckx, tentou demonstrar a relação entre teologia e experiência, sendo esta última emergente nas produções culturais. Para ele, toda ambição antropológica nada mais foi do que uma busca por sentido. Mas, diferente de Tillich, o teólogo belga não compreendia que a cultura ou as experiências fizessem as perguntas e à teologia coubesse as respostas. Antes, pelo contrário, a teologia deveria estar na própria experiência a partir de um significado “mundanamente inteligível”, um sentido secular que não fosse divorciado da realidade humana. Nesse caso, a experiência de fé, aquela que busca o sentido último, pode travestir-se de uma narrativa “antropológica”, como aquelas que encontramos nos mitos.

Jean-Claude Renard (1976), apontou que a teologia, ao trabalhar com a noção de transcendência, pôde criar uma ponte com outras linguagens que igualmente estão inseridas nessa abertura transcendental. A linguagem poética e ficcional, por exemplo, formadora da linguagem literária, constantemente recorre ao “mistério”, a um “absoluto irredutível”. A palavra poética teria a capacidade de representar o irrepresentável e formular o informulável e, por esse motivo, a literatura teria um parentesco com o mito e com o símbolo.

Essa concepção peculiar de Renard se deve muito à sua vivência não só como teólogo, mas também como escritor imerso nas experiências místicas da poesia.

El interés de JCR enestos diálogos, donde teología, poesía y mística se encuentran para testimoniar de la Libertad del Espíritu me parece suficientemente justificado em su trayectoria biográfica y bibliográfica; las reflexiones en prosa que Renard fue publicando e intercalando com su creación poética fueron inspiradas em buena parte por su conocimiento de grandes obras de filosofía, teología y espiritualidad com las que hubo de familiarizarse debido a su trabajo editorial, y también a los encuentros personales com algunos grandes autores, como Alain, o Bachelard em filosofía, Von Balthasar, Theilard de Chardin y Chenu, em teología; pero arraigan y se nutren de la osadía y perplejidad que la generación de su poesia iba suscitando enél, haciendo del poema una búsqueda interminable, y de sus inquietudes espirituales y filosóficas una marcha incesante y comprometida hacia la palavra esencial que considera su Destino. (ROLLÁN, 2014, p. 141).

O autor exemplificou sua tese com as literaturas da alta e baixa antiguidade21 que tinham relação com as experiências sagradas, mágicas e iniciáticas. Documentos literários dessa época teriam preenchido primeiro uma função religiosa, numa espécie de drama cujos heróis são deuses, semideuses ou homens.

Bernard Quelquejeu (1976), nas mesmas passadas de Renard, mostra que existe uma clara relação da teologia com o mito em sua antiga relação com a natureza mítico-simbólica da linguagem. Quelquejeu criticou as conclusões a respeito da poesia e da literatura resultantes das teses propostas por escritores, filósofos e poetas nos dois últimos séculos de nossa história ocidental. Conforme suas deduções, essas teses teriam afetado profundamente a linguagem literária, que antes tinha uma relação com o mito e com o símbolo, e esvaziado o conteúdo oracular e divino do escritor: “Assim nos encontramos, neste declinar do século XX, caminhando rumo à reinvenção de uma essência não ‘lógica’ da linguagem e, correlativamente, rumo à descoberta de uma escuta ‘fabulosa’, mas não fantástica, do mito” (QUELQUEJEU, 1976, p. 55).

Desse modo, ainda que o mito pareça escondido no labirinto da teologia, é ele que convida para os passeios mais belos, resgatando para o discurso teológico a sua inclinação poética, narrativa e simbólica.

Conclusão

Nesse ponto, se o mito pode ser compreendido como estratégia discursiva para tentar dizer o indizível, é plausível referendar que a retórica, o discurso e toda forma de verbalização da religião, das ciências ou da literatura, possuem um parentesco com o mito, pois o mito é a emanação narrativa de toda possibilidade antropológica de transcender e dar sentido. Portanto, aqui o mito não se confunde com as mitologias, antes, torna-se estratégia condutora do discurso. Razão pela qual leva, por exemplo, Gilbert Durand, em suas conclusões sobre uma fantástica transcendental presente na linguagem humana, a perceber que o sentido supremo, ou poder da imaginação contra o destino mortal, é o eufemismo que, por sua vez, mantém o mito como narrativa por excelência. Nesse sentido, toda forma de narração, compartilhando de uma natureza mítica e numa tentativa de eufemizar a morte, ou seja, dar uma “face” mais aceitável e domesticável para o destino mortal, cria um discurso onde o mito doméstica o tempo e marca um espaço de revalorização da esperança. O mito teria então uma função “terapêutica”.

Em uma instância mais profunda, de enraizamento dos saberes e seus discursos, o mito se privilegia de técnicas e práticas para operar o seu jogo pedagógico. O conhecimento racional não é suficiente, há necessidade de se converter, de acreditar como fundamento da vida e, na voragem das experiências ou de seus ditos e desditos, o mito permite representar o irrepresentável e formular o informulável.

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No final de seu texto Temps et Récit1, Paul Ricoeur se defronta com a questão da identidade narrativa e sua reflexão sobre este tema vai ocupar alguns artigos que ele escreveu na sequência2. Não se trata da identidade do narrador ou do gênero literário, mas sim do tipo de “identidade à qual um ser humano acede graças à mediação da função narrativa”3.

Segundo ele, “a constituição da identidade narrativa, seja de uma pessoa individual, seja de uma comunidade histórica, era o lugar procurado desta fusão entre história e ficção”. Afinal, continua ele, “não se tornam as vidas humanas mais legíveis quando são interpretadas em função das histórias que as pessoas contam a seu respeito? E estas “histórias da vida” não se tornam elas, por sua vez, mais inteligíveis, quando lhes são aplicadas modelos narrativos?”. Assim ele se propõe a seguinte sequência de raciocínio: “o conhecimento de si próprio é uma interpretação; a interpretação de si próprio, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada; esta última serve-se tanto da história como da ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se se preferir, uma ficção histórica, comparáveis às biografias dos grandes homens em que se mistura a história e a ficção”4.

Percebe-se, então, se não de saída a elaboração dos detalhes de sua argumentação, ao menos a direção que seguirá sua reflexão e, se não o ponto de chegada, ao menos o horizonte que se descortina a partir de sua reflexão. O conceito de identidade pessoal será trabalhado, de maneira muito interessante, a partir do viés narrativo, inclusive beirando ou integrando o ficcional.

Anteriormente Ricoeur já havia apresentado um estudo sobre a identidade do texto e a afirmava dinâmica no seguinte encadeamento de raciocínio: “o tecer intriga5 é o paradigma de toda ‘síntese do heterogêneo’ no campo narrativo; a intelegibilidade narrativa possui mais afinidade com a sabedoria prática, ou com o julgamento moral, que com a teórica; o esquematismo narrativo é constituído por uma história que participa de todas as características de uma tradição”; e por fim ele arremata dizendo que “a identidade do texto narrativo não se limita ao que se chama de ‘dentro do texto’, pois como identidade dinâmica emerge para a intersecção do mundo do texto e o mundo do leitor”. Ajunta ele que “nesse ato de leitura a capacidade que tem a intriga de transfigurar a experiência é atualizada”, já que o “ato de leitura pode desempenhar esse papel porque seu dinamismo próprio enxerta-se no do ato configuracional e o conduz a seu acabamento”6. Aqui também está posta, na percepção do caminho, a direção a ser seguida pelo pensamento.

Sua reflexão vai, então, da identidade do texto à afirmação da identidade pessoal, passando pela importância que ele mesmo atribui ao encontro do mundo do texto e do mundo do leitor. De alguma maneira a obra não estará completa sem o trabalho de leitura criativa realizada pelo leitor, possibilitando a interação dos dois mundos: aquele que a obra descortina e aquele onde o leitor se refigura. Não se trata, como ele mesmo destaca, de encontrar o dentro e o fora do texto, pois se trata da interação da história ou de histórias.

Há um caráter ético nestas afirmações que não passaram desapercebidas a estudiosos do pensamento de Ricoeur7. Afinal, sabe-se que se “o símbolo faz pensar”, uma de suas frases mais conhecidas, e que também se pode passar do texto à ação8, outra de suas formulações lapidares. Refigurar-se diante do mundo não é apenas conhecer-se, enquanto consciência de si, mas também situar-se enquanto sujeito de ação que constrói sua vida, decifra comportamentos e toma decisões. A partir do texto o leitor se conhece e situa melhor sua ação no mundo em que vive, em referência àquele de quem se narram histórias. A pergunta pelo “quem?” pode ter um maior esclarecimento pelas narrativas que se fazem sobre ele e que repercutem na vida do leitor.

De alguma maneira isto também se aplica à leitura religiosa que se faz da Escritura. Desde sempre a leitura dos textos sagrados se realiza para ajudar o crente a melhor situar-se em seu mundo e a decidir comportamentos de acordo com aquilo que interpretará dos textos lidos. Foi assim com os oráculos na antiga Grécia, com a profecia em Israel, com as consultas mediúnicas de todos os tempos e com o contato direto com os textos que se referem à fé. Só aqui já teríamos uma interessante aproximação entre a hermenêutica ricoeuriana e a Bíblia.

Que Paul Ricoeur elabora sua filosofia hermenêutica em grande proximidade com textos literários, e também com categorias de análise e estudos literários, é fato sobejamente conhecido. A poesia e os textos de ficção são trabalhados por ele de maneira a poder elaborar e conferir as afirmações que realiza sobre o fato interpretativo, para além dos textos históricos. Aquilo que pode ser afirmado a partir de um texto de ficção pode ser afirmado para todos os textos, nos ensina ele. De alguma maneira talvez se possa dizer que o que pode ser verdade para um “texto falso” com mais razão poderá ser verdade para um “texto verdadeiro”. Teríamos reunido, aqui, três assuntos que, nos últimos anos, vimos considerando importantes e mais ou menos relacionados e que configuram nosso objeto de estudo: a literatura, o pensamento de Ricoeur e a Escritura, alma da teologia.

Da pregação à narração

Mas há ainda um complemento a isso que considero importante e que vem do próprio Ricoeur. Em seu texto “Da proclamação à narrativa”9, ele realiza uma interessante relação entre o anúncio evangélico e a intriga, ou mais especificamente “o tecer intriga”. Este “tecer a intriga”, como dissemos, é mais que simplesmente a intriga porque não diz apenas do argumento da história ou de seu enredo, mas sim, para além disso, dos personagens, do cenário, das situações, da temporalidade, enfim, tudo o que se relaciona com o que são os elementos que compõem o mundo do texto.

A relação que Ricoeur estabelece entre a pregação da comunidade primitiva e a elaboração do texto evangélico segue um itinerário de três passos: a proclamação do Reino de Deus por Jesus, o confronto e a história do sofrimento. O esquema teológico do anúncio parece bastante coerente, e o resultado redacional pode ser encontrado nos textos evangélicos que conhecemos ou, ao menos, estes podem ser lidos segundo essa chave. Afinal, sem querer elaborar propriamente uma teologia, Ricoeur tenta como que uma “engenharia reversa” do texto bíblico, encontrando nele ecos da pregação da Igreja que lhe é anterior, como fazem também os exegetas na aplicação de alguns de seus métodos de análise10.

Segundo sua apresentação, a pregação de Jesus sobre o Reino de Deus não apenas estrutura o texto evangélico, mas parece ser um pressuposto da confissão de fé da comunidade primitiva que atribui a Jesus o título de Messias. Só pode haver confissão messiânica se há concretamente execução da função messiânica, e isso se realiza em relação ao Reino de Deus. Messias é aquele que realiza o Reino, o anuncia e o concretiza. Fora desta situação, a titulação atribuída a Jesus poderia ser simplesmente diferente, de profeta, de rabino ou outra. Se se afirma que ele é o Messias, isto se dá em função da realização do Reino de Deus.

Este Reino, na pregação da Igreja, e talvez como eco da pregação de Jesus, não é simples grandeza apocalíptica, como textos do intertestamento poderiam nos fazer pensar. Reino de Deus não é uma grandeza cosmológica, geográfica ou temporal simplesmente, mas relacional. Não simplesmente um outro mundo em outra época, mas um outro jeito de organizar o mundo que pode ser desta época já: “hoje se cumpriu esta passagem da escritura que acabais de ouvir” (Lc 4,21). Esta nova organização do mundo, capaz de ser compreendida como “novos céus e nova terra” (Ap 21,1), gera novos comportamentos e nova estrutura, de maneira a não haver mais excluídos na sociedade nem fronteiras, religiosas ou sociais, que deixem de fora inúmeros cidadãos. Por isso “a comunidade dos que creram era um só coração e uma só alma” (At 4,32), de tal forma que entre eles não havia “judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher, pois são um em Cristo Jesus” (Gal 3,28). O Reino de Deus, portanto, é a forma de estabelecer o governo de Deus que faz iguais todos os seres humanos: “vós sois todos irmãos” (Mt 23,8). Que o privilégio dos pobres estruture esta forma de pensar é algo evidente, porque o novo mundo vem exatamente em seu benefício. São eles os excluídos do mundo atual e, por isso, são eles os primeiros beneficiados do mundo reorganizado por Deus e seu Messias.

Disso se segue, inevitavelmente, o confronto, que Ricoeur caracteriza como controvérsia. Não é simples nem é consensual a instalação da forma de organização do mundo e de sociedade proposto pelo conceito de Reino de Deus. Em primeiro lugar, claro, porque os privilegiados não vão admitir outro mundo onde eles não mantenham os mesmos privilégios. E ainda muitos dos que foram subjugados gostarão de uma revanche, fazendo com que os subjugados de hoje sejam os privilegiados de depois. O “entre vós não será assim” (Mc 10,26) encontra aqui seu eco. O anúncio do Reino conhece, então, rejeição e recusa, aliás desde o início. É esta recusa que está na base da crucificação e morte de Jesus. A recusa da mensagem vai de par com a recusa do mensageiro. Um e outro são identificados, inclusive porque há unidade entre eles, e por isso um e outro recebem negação e rejeição. O Messias não é reconhecido e seu Reino não é aceito, e isto transparece nos relatos da paixão.

Não se estranha, pois, que os evangelhos sejam estruturados como “história do sofrimento” ou da recusa. “Ele veio para os seus e os seus não o receberam” (Jo 1,11) são palavras colocadas no início do evangelho de João, assim como o “não havia lugar para eles na casa”, de Lucas (Lc 2,7). A recusa de Jesus e de sua pregação atravessa todo o texto evangélico de tal forma que as controvérsias se sucedem e as autoridades apenas procuram o melhor momento para prender e calar Jesus, decisão já tomada no início da história, como relatada em Marcos (Mc 3,6). Os textos da paixão e morte de Jesus se inserem dentro da mesma lógica, a da recusa de sua pregação e de seu reconhecimento como Messias. Segundo Ricoeur, a história não poderia ser contada de outra forma a não ser como história do sofrimento, a intriga correspondendo à identidade do personagem. A identidade narrativa de Jesus transparece no texto tal como ele é elaborado, e não poderia ser de outra forma.

Identidade narrativa entre fé e história

Adolphe Gesché, fecundo leitor de Ricoeur, publicou em 1999 um interessante estudo intitulado “Pour une identité narrative de Jésus”11. Ali o que preocupava o autor era a intermediação apontada e realizada pelo texto evangélico entre a história de Jesus e a profissão de fé da Igreja. Para Gesché, o texto evangélico revela um Jesus que não é propriamente aquele histórico que caminhou pelas estradas da Palestina no século I da era cristã, nem exatamente aquele que a teologia da Igreja apresenta na riqueza de sua doutrina. Entre a história e a doutrina, há uma passagem obrigatória pelo texto evangélico, que não é relato historiogáfico nem compêndio de doutrina teológica, mas obra elaborada realçando uma intriga, tal qual a elaboração de uma obra literária.

Ressalta Gesché12 que esta intermediação é voluntária e, ao menos em certos aspectos, definidora da identidade de Jesus. Não se trata de simples ponte que liga os dois elementos importantes, a figura histórica e a doutrinal. Há a construção, pelo texto, de uma identidade própria de Jesus que, por isso mesmo, é chamada de identidade narrativa. Ela não é oposta à identidade histórica, mas lhe seria posterior. Contam-se histórias a respeito de Jesus depois de sua existência histórica. Ela também não é simples continuação da história de Jesus, agora em forma de relatos, pois pode haver múltiplas formas de contar a história de um personagem, e temos isto, inclusive, no número plural de evangelhos que conhecemos. Ela busca, sim, responder à questão “quem”?, que, segundo a elaboração do pensamento de Ricoeur, só poderá ser respondida pela narrativa. Por outro lado, a tradição eclesial sempre compreendeu que os textos evangélicos visavam suscitar no leitor a resposta a esta pergunta. “Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,27) é a pergunta central do evangelho e, no texto de Marcos, se encontra exatamente no meio da obra.

Por outro lado, se pode ajuntar à reflexão de Gesché que, mesmo não sendo relato historiográfico sobre Jesus, o texto narrativo possui elementos de história e a ela não é impermeável, assim como não é impermeável a elementos teológicos que já estão presentes em sua elaboração. A narrativa sobre Jesus não é um texto doutrinal, em sentido estrito, é certo, mas encaminha para a construção teológica. Neste sentido, ela é ponte entre a história de Jesus e a proclamação de fé da Igreja. Mas, se ela desabrochará em reflexões teológicas e elaborações doutrinais na sequência, ela já é portadora de uma experiência de fé e, por isso, já há elementos de teologia que ajudam em sua estruturação, da mesma maneira que ela se refere a elementos de história efetivamente acontecidos. Sua elaboração não é estritamente teológica nem histórica, mas narrativa, ou seja, literária. O autor não pensa uma teologia e depois a preenche criptograficamente com narrativas sobre Jesus, nem apenas dá conta da sequência histórica de acontecimentos que compuseram sua existência. A composição narrativa segue o princípio de “contar uma história” de maneira atraente e com coerência e por isso, indiscutivelmente, visa o leitor. Não apenas o leitor imediato da comunidade que compõe o texto, mas simplesmente “o leitor”, que tomará, mais tarde, contato com o texto e procurará responder à questão da identidade do personagem da narração: “quem é ele?”.

O Jesus Histórico e o Cristo da Fé

Quando Bultmann faz sua crítica radical das pesquisas sobre a história de Jesus13 e aponta a proclamação de fé da Igreja como a única afirmação importante sobre ele, os estudos bíblicos viveram certo abalo. Como poderia ser possível referir-se aos evangelhos se não como história de Jesus? É verdade que Bultmann é prisioneiro de certo positivismo histórico14 que não lhe permite outra saída. Se, durante muito tempo, os evangelhos foram tomados como histórias “verídicas” a respeito de Jesus, a demitologização da Escritura realizada por Bultmann mostrava que tudo não era tão histórico assim na elaboração dos textos sagrados15.

O avanço das pesquisas históricas do mundo bíblico mostrava certas incongruências de dados em alguns textos e mesmo livros inteiros, como o de Jonas, careciam de comprovação histórica. Algo semelhante se passava com Jesus pois, fora os textos evangélicos, não havia documentação histórica que sequer assegurasse sua existência. Para o positivismo histórico, que exigia comprovações documentais ou arqueológicas, a existência de Jesus poderia ser uma fábula, talvez uma criação literária mítica como a de outros personagens conhecidos da antiguidade. A negativa da historicidade de Jesus parecia fazer ruir todo o edifício da proclamação da fé eclesial, e os positivistas mais ferrenhos não escondiam sua alegria por isto.

O caminho encontrado por Bultmann parece bastante interessante16. Não foi ele quem criou a distinção entre o Jesus Histórico e o Cristo da Fé, mas ele explorou esta distinção e pode realizar uma reflexão teológica que salvaguarda a fé mesmo diante da eventual impossibilidade de comprovar a existência histórica de Jesus. Segundo ele, o Jesus Histórico é aquele que caminhou pelas estradas da Palestina no Século I e a quem se referem os textos evangélicos. Este personagem não deixou nada escrito e não há registros de suas palavras, de suas ações ou mesmo de sua existência fora dos círculos cristãos. Parece ter sido um personagem sem importância de forma que não há registros sobre sua passagem na história humana. Como acontece com todo ser humano, nasceu, viveu e morreu, se é que existiu. Mas mesmo tendo existido, ele não é o objeto da afirmação da fé da Igreja. A reconstituição total dos acontecimentos de sua vida, ainda que isso fosse possível, não ajuntaria nada à fé eclesial, e mesmo se não se pode dizer nada sobre sua existência histórica, ainda assim é possível que a Igreja professe sua fé no Verbo Encarnado.

A fé da Igreja, insiste Bultmann, é a afirmação do Cristo Ressuscitado17. Ora, a Ressurreição é absolutamente incomprovável por caminhos de história e só pode ser afirmada na fé. Todo ser humano é convidado a fazer ou não sua decisão de vida diante do Cristo. Os atos da vida de Jesus podem ajudar na compreensão da fé, mas esta não carece de comprovação histórica para ter sentido e a historicidade concreta de Jesus não é decisiva para a proclamação da fé enquanto tal. Os nomes de seus apóstolos, os lugares que frequentou, as histórias que narrou, nada disso precisa ser comprovado historicamente para dar sustentação ao ato de fé. O que é necessário é, diante do Cristo, cada pessoa fazer sua opção de vida e aceita-lo ou não como Salvador. O princípio da teologia protestante ajuda muito aqui, pois afirma que o essencial é cada cristão definir-se pessoalmente diante do crucificado, confessando-o como seu Salvador: “Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo” (Rm 10,9). O essencial será, então, a proclamação da fé eclesial. Se não é possível dizer nenhuma palavra comprovada sobre a história de Jesus, ele só poderá ser conhecido pela proclamação da fé da Igreja. Cremos porque a Igreja crê em Jesus Cristo e no-lo anunciou. Cremos, então, o que a Igreja crê, em uma articulação necessária entre o “eu creio” e o “nós cremos”. A fé, neste sentido, é eclesial e sua confissão pessoal integra no ambiente de Igreja. A história de Jesus não é passível de anúncio pela Igreja, mas sim a fé em Cristo. Não é relevante a comprovação do lugar ou data de seu nascimento para que seja possível a afirmação de fé que o reconhece como Salvador. A fé é possível ainda que sem comprovação histórica dos dados que afirma.

Depois de Bultmann, porém, vários de seus alunos assumiram postura mais matizada do que a crítica radical do mestre18. Ainda que admitindo que o centro da fé eclesial seja a afirmação do Cristo da Fé, estes teólogos passaram a admitir, também com a evolução dos estudos históricos e sua libertação dos quadros positivistas, que algo a respeito da vida de Jesus poderia ser conhecido com segurança histórica. Ainda que se admita a impossibilidade de precisão sobre datas, lugares e pessoas, os acontecimentos relacionados a Jesus tiveram tal impacto na história do mundo que, ao menos indiretamente, algo de sua existência pode ser afirmada com força de “verdade histórica”. Ao menos sua existência pode sê-lo: é tal a insistência em sua morte de cruz que isso se impõe como evento real; se morreu, é porque viveu, porque nasceu. E aqui já temos a comprovação histórica de sua existência. O essencial da fé continua sendo aquilo mesmo, a proclamação que Jesus Cristo é o Salvador e a consequente adesão à sua pessoa. O fato de poder dizer de sua existência dá mais segurança à possibilidade de fé do crente, mas não muda essencialmente sua proclamação ou as exigências éticas e religiosas que dela decorrem.

Nos tempos atuais vive-se nova busca pela história de Jesus conhecida agora como “third quest”, a terceira busca do Jesus Histórico19. Corresponde ao avanço das pesquisas científicas no campo da história, auxiliada pela arqueologia mas também pela antropologia cultural, pela linguística, pelos estudos do meio social onde Jesus teria vivido e onde nasceram os evangelhos. Há toda uma gama de ciências que aportam seus conhecimentos específicos para estudar, comprovar ou ao menos verificar a possibilidade dos fatos narrados a respeito dele nos evangelhos. E muito já se chegou a admitir, como as datas referenciais de sua existência, o meio que frequentava, o tipo de movimento que suscitou, o porquê da oposição que lhe custou a vida e mais outros detalhes referentes à sua existência20.

Tais conhecimentos, que permitem sob certos aspectos uma reconstrução da vida de Jesus, não fazem apelo à fé e por isso podem ser realizados por cientistas sem envolvimento de sua confissão de fé ou sem que signifiquem exigência de estudos teológicos21. Foi exatamente isso que motivou a crítica de Bento XVI à forma de execução da pesquisa e o levou à publicação de sua obra em três volumes sobre a vida de Jesus22. O fato é que aqui, ainda uma vez, os conhecimentos históricos sobre Jesus darão maior segurança ao crente para fazer sua profissão de fé, mas não vão nem proibir nem obrigar à realização de sua confissão. As pesquisas pela história de Jesus não comprovarão sua ressurreição ou que ele é o Filho de Deus, mas também não proibirão que tais afirmações sejam feitas na fé, pois não comprovarão que Jesus não tenha ressuscitado ou não seja o Verbo Encarnado.

Isto porque fé e ciência tratam de conhecimentos distintos, ou de diferentes formas de acesso ao conhecimento da verdade. As ciências descrevem os fenômenos, e isso é de sua competência; não cabe à fé ou à teologia a descrição do fenômeno da chuva, por exemplo, porque é a ciência quem tem propriedade de falar da evaporação, da condensação, das condições de precipitação, etc. Por outro lado, o sentido dos fenômenos não será afirmado pela ciência. A ausência ou presença da chuva, por mais que se descrevam as suas condições de possibilidade, poderá ser atribuída à divindade por conta do sentido do fenômeno, e por isso visto como ação divina que permite ou impede a chuva. Ainda que falando da mesma realidade, a uma compete a descrição e à outra a atribuição de significado. Se há problemas quando a ciência se atreve a fazer o que não é de sua competência, dizendo, por exemplo, que se o universo nasceu do Big Bang não há ato criador, porque uma coisa não impede a outra já que o Big Bang diz do “como” enquanto o ato criador diz “o quê”, pois Deus pode criar através do Big Bang, por outro lado também há problemas quando a fé ou a teologia querem sair de sua competência e descrever fenômenos, como por exemplo dizendo qual o corpo celeste que é centro do universo. Se uma e outra erram ao sair de seu campo específico de atuação, por outro lado uma e outra podem colaborar no processo do conhecimento humano, cada qual segundo sua competência e maneira de ser.

O Messias do texto

Se a ciência não impede a fé e esta não atravanca a evolução do conhecimento científico, o literário não precisa ficar alheio a esta relação. A literatura não é ciência, mas pode conhecer e aludir à verdade; também não é afirmação de fé, mas pode dizer do sentido das coisas e dos acontecimentos23. Ela pode exercer como que um papel mediador entre um e outro, ao menos naquilo que nos ocupa. O Jesus Histórico não é o objeto da fé, e o Cristo da Fé não é passível de ser conhecido pelas investigações históricas. Um e outro não estão em oposição, mas se completam como uma única realidade e uma única pessoa. Entre um e outro, como ponte a ligar a história e a fé, temos então o texto literário. Como vimos, para Gesché, o texto liga a história que lhe antecede à confissão de fé que o sucede, agindo como ponte que permite a união de um e outro.

Cabe ressaltar aqui, como já lembrava Paul Ricoeur, que uma vida não pode ser contada de qualquer maneira, mas que os fatos a serem narrados, independentemente de sua veracidade histórica, encaminhame de certa forma determinam sua maneira de apresentação. Assim, fatos históricos se enquadram mais na narração, normas nos textos legislativos, e assim na sequência. A história de Jesus de Nazaré cabe bem nas narrações evangélicas, apresentadas como história de sofrimento por conta da controvérsia originada pela pregação sobre o Reino de Deus. Note-se bem aqui a ponte que une estas realidades, juntando história, texto literário e teologia, exatamente pelos elementos destacados.

As pesquisas sobre a história de Jesus afirmam que sua pregação se referia fundamentalmente ao Reino de Deus24. Sob certos aspectos se pode mesmo caracterizar seu movimento como Movimento do Reino, no sentido de que sua proposta de renovação da fé de Israel25 centra-se na categoria de Reino de Deus e é expressa por este símbolo. O Primeiro Testamento conhece a ideia de que Deus é Rei (Salmo), que Deus governa seu povo, através dos juízes, do rei ou por outros meios (1Sm 8). No entanto a expressão Reino de Deus não se encontra ali presente. A ideia de um mundo de Deus, onde ele governa, que vem para substituir o mundo presente parece datar do intertestamento ou, ao menos, da apocalíptica26. E se a pregação de Jesus tem características apocalípticas, elas não são únicas em seu ensinamento.

O anúncio da chegada do Reino de Deus não precisa ser entendido apenas como a notícia do fim do mundo físico, em um grande evento cosmológico que decreta o fim da história. A apocalíptica apresenta realidades físicas como símbolos do religioso que, por sua vez, refere-se à forma de vida das pessoas no mundo e na sociedade27. Dito de outra maneira, o anúncio do final do mundo físico refere-se ao final do mundo de pecado, dominado por Satã; o fim do reinado do pecado implica em final da opressão estabelecida sobre o povo pelos dominantes estrangeiros. Assim, o que é proposto é o final da opressão social, significando o final do domínio do pecado simbolizado pela substituição do mundo onde reina Satã pelo mundo onde Deus governa, onde não haverá opressão, pecado nem sofrimento, mas fraternidade e paz.

Na pregação de Jesus, se o Reino não apenas está se aproximando mas já chegou, então não será preciso esperar uma mudança de espaço para viver sob o governo de Deus. Pode-se viver assim desde já, mas não apenas em disposições interiores, senão em práticas que estruturem um novo modo de o mundo se organizar em justiça, paz e fraternidade: “veja como os chefes das nações as dominam e as tiranizam... entre vós não deverá ser assim” (Mt 20,25-26). Por isso sua atenção aos pobres, aos fracos e aos doentes, pois são aqueles que mais sofrem opressão por conta da organização social e religiosa. Visto desta maneira, o Reino de Deus é, em verdade, um novo mundo, pois uma nova maneira de ser, uma nova maneira de viver, onde os pobres não serão os últimos, mas os primeiros, já que destinatários da atenção e do amor especial de Deus. Este Reino será finalmente estabelecido por ação Deus, aliás, está sendo estabelecido por Deus através de seu Cristo, e aqui o papel fundamental que Jesus percebe em sua proposta de Reino, donde o título messiânico que lhe é atribuído pelos textos e pela comunidade crente.

Que Jesus seja o Messias é a clara profissão de fé do grupo apostólico, entendendo o Messias não apenas como aquele que vem de Deus, mas como aquele que tem a função de estabelecer o Reino de Deus. O Messias, assim, é lugar tenente de Deus para organizar e estabelecer o governo de Deus. Foi assim que Jesus foi entendido por seus contemporâneos, mas que talvez enxergassem o estabelecimento deste Reino não como um mundo novo, mas como um outro governo entre tantos outros, mais nacionalista mas, ainda assim, como os outros. Esta não é a proposta de Jesus, e seu grupo de seguidores parece ter tido dificuldade para compreender o alcance maior de sua proposta. Porém, parece que seus adversários não tiveram as mesmas dificuldades. Para eles, a proposta do estabelecimento de um governo diferente daquele de César, fosse ele nacionalista ou universal, deveria ser combatido. Em jogo não apenas suas convicções, mas seus privilégios. Também os chefes da religião oficial de Israel se colocavam desta maneira, pois se tinham logrado privilégios no governo de César, isto talvez não fosse garantido em um governo diferente. E seria melhor que Deus governasse através deles do que através de alguma outra pessoa.

A oposição que se desenha ao movimento de Jesus eclode rapidamente, ele é preso, executado e seus seguidores perseguidos. Havia que alijar do horizonte um movimento assim perigoso e ainda impossibilitar que ele reapareça em qualquer outra parte. Por isso a execução exemplar de Jesus, na cruz reservada àqueles que atentavam contra o império. Não contavam com a notícia da ressurreição daquele que havia sido morto e do anúncio de que ele vivia novamente. Tal anúncio significaria o início dos eventos escatológicos, pois a ressurreição dos mortos, segundo a apocalíptica, aconteceria no “último dia”. Ora, se os eventos escatológicos estavam se sucedendo, o governo de Deus estava definitivamente instalado, o Reino estava realizado e o Messias seria conhecido e aclamado por todos. Este é o anúncio apostólico que se situa na continuação do evento Jesus.

Que a vida de Jesus possa ser resumida desta forma, talvez a história já pudesse dizê-lo, excluída, claro, a questão da ressurreição. O fato é que os textos que narram Jesus apresentam este enredo fundamental e, neste sentido, encaminham sua identidade narrativa. Não é um acontecimento ou outro que caracteriza sua vida ou o próprio personagem Jesus, mas o conjunto de sua prática colocada sob a luz de sua messianidade. Profetas podem falar do desígnio ou das palavras de Deus; sacerdotes e teólogos podem falar da natureza de Deus e de seu relacionamento com os seres humanos; apenas o Messias pode instaurar o Reino de Deus. Que as narrativas sobre Jesus encaminhem nesta direção será perfeitamente compreensível, tendo sido isto ou não o que tenha marcado a existência histórica de Jesus.

Note-se, ainda, que este é o encadeamento teológico que se sucede, que se constrói a partir do texto ou que tenha influenciado sua organização. A teologia, que evolui na direção da elaboração da doutrina, parte da afirmação de fé que Jesus “foi constituído Senhor e Cristo” (At 2, 36) por ação de Deus. Significa que a confissão de fé inicial da Igreja, seu kerygma primeiro, é a proclamação da messianidade de Jesus: ele é o Cristo, ele é o Ungido, ele é o Messias28. Novamente é bom lembrar que Messias se relaciona com o Reino de Deus: sim, alguém que procede do mundo de Deus e que por ele é investido em função messiânica. A pergunta sobre a natureza do Verbo e suas relações com o Pai será colocada mais tarde na história da Igreja. Em primeiro lugar vem a proclamação de sua função messiânica.

A afirmação da identidade narrativa

“Quem dizem os homens que eu sou? (...) e vós, quem dizeis que eu sou? (...) Tu és o Cristo” (Mc 8, 27-29). O evento pode ser histórico ou não, a declaração de Pedro pode ser textual ou não. Está assim narrada, é perfeitamente verossímil e, com o que se conta a respeito do personagem, é a definição de sua identidade no texto: ele é o Messias. É o que o texto procura afirmar, se pudéssemos falar de uma intencionalidade do texto. Mais que isso, o que se diz é que a identidade messiânica de Jesus é definida pelas narrativas feitas a seu respeito. O texto como que vai estabelecendo este caminho de leitura para que os leitores não se percam na paisagem e possam, no final, compreender e afirmar que Jesus é o Cristo, e engajar sua vida e sua identidade pessoal a partir daí. Donde a teologia que reflete sobre o significado da afirmação de fé. Aquele que a afirma em liberdade, com estas ou outras palavras, como aquelas do centurião ao pé da cruz (Mc 15,39), por exemplo, ou outras que serão formuladas mais tarde na Igreja, engaja sua vida e define sua forma de viver no mundo, ao menos enquanto horizonte de possibilidades. O texto evangélico não é uma relação historiográfica de eventos da vida de Jesus. Também não é um tratado de teologia ou um compêndio de doutrina. É uma narrativa sobre Jesus, aliás uma narrativa plural, pois são textos evangélicos. A história ou histórias que se contam sobre ele, pois, apontam para a sua identidade narrativa, configuram sua identidade pela narração. Não definem para o Jesus Histórico, cuja pesquisa pertence à ciência e cuja identidade pode não ser nunca definida, na medida em que personagens do passado são inalcançáveis. Não definem o Cristo da Fé, na medida em que a proclamação da Igreja será feita, sim, a partir de tais narrativas mas se desdobrando em doutrina que se tornará vivência de quem crê. Elas apontam para o Messias do texto, edificam a identidade narrativa de Jesus a partir de sua messianidade e afirmam, assim, um espaço que une os três elementos, o Jesus, o Cristo e o Messias. Ou a história, a teologia e a literatura, três irmãs reunidas em um esforço que lhes permite aceder, por caminhos diversos ou similares, ao conhecimento da verdade do Reino edificado por Deus através de seu Ungido.

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Notas

[1]Morin denomina esse campo complexo de Unitas Multiplex.

[2]Também algumas vezes chamado de “jogo mental”

[3]Mais informações obre “o jogo” podem ser obtidas em http://ilostthegame.org/, ou em https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Jogo_(jogo_mental).

[4]Dos filósofos que seguiram de forma mais conhecida os quatro elementos estão Heráclito, Xenófanes, Tales de Mileto, Anaxímenes.

[5]No século VI a.C., Teágenes de Régio achava que os mitos deveriam ser interpretados como alegorias de eventos e fenômenos naturais da Terra.

[6]Vide Walter Ralegh em sua The history of the World, de 1614; George Sandys em Ovid’s metamorphosis, de 1632; Jacob Bryant em New System... of ancient mythology, de 1774; Charles François Dupuis em Origine de tous les cultes, de 1794; Holbach em Système de la nature, de 1770; Robert Wood em Na essay on the original genius and writings of Homer, de 1775; John Ruskin em The Queen of the air, de 1869; Francis Bacon em The Wisdom of the ancients, de 1619.

[7]Para Cícero, em sua obra De Natura Deorum, os deuses pagãos pertenciam às fábulas ímpias que apresentavam teorias científicas muito imaginativas.

[8]Joseph Justice Scaligar e Isaac Newton são exemplos que procuraram relacionar eventos míticos com eventos astronômicos (cometas, eclipses etc.). Hércules, antes de se tornar o mítico filho de Zeus de força sobre-humana, teria sido apenas um homem corajoso e exemplo de esforço diante das adversidades.

[9]Palaifatos, no século IV, igualmente acreditava numa causa histórica ou real para os mitos. Se fincava na ideia de que poderia existir um texto “original”. Paul Veyne o citou quando se debruçou sobre a crença dos gregos nos mitos em sua obra Acreditavam os gregos em seus mitos?

[10] A demitologização ou demitização também influenciam a cultura popular moderna. No cinema, por exemplo, no filme Hércules, de 2014, os roteiristas Evan Spiliotopoulos e Ryan J. Condal deram uma versão curiosa sobre a origem de Hércules. Ele seria apenas um homem que ganhou fama graças a crenças do povo e ao seu “bardo”, que procurava poeticamente exagerar seus feitos. Em outro filme, Êxodo: Deuses e Reis, de Ridley Scott, também temos uma versão demitologizada de Moisés. Inclusive, com explicações naturais para as pragas do Egito

[11]Julien D’Huy, candidato ao doutorado em História Pantheon-Sorbone, escreveu um artigo para a Scientific American (dezembro de 2016 nos Estados Unidos e fevereiro de 2017 no Brasil) propondo estudar os mitos de vários povos utilizando os estudos filogenéticos a partir de ferramentas retiradas de técnicas estatísticas e modelos computacionais. Segundo D’Huy, as lendas e mitos teriam seguido o movimento migratório ao redor do globo terrestre desde o paleolítico. Vide em D’Huy J. A evolução dos mitos In: Scientific American (Brasil), São Paulo: Segmento, Ano 15, nº 172, fevereiro de 2017, p. 68-75.

[12]Edward Gibbon, historiador britânico, emprestou um estilo bem pessoal em sua interpretação da história romana em A história do declínio e queda do Império romano. Borges percebeu isso no historiador ao chamar a atenção na estratégia de redação usada para convencer narrativamente de que estava escrevendo “fatos reais” (BORGES, 2008, p. 71-72).

[13]Freud não encarava os mitos de forma negativa, antes fez uso de vários deles. Da mitologia grega, por exemplo, tomou emprestado o mito do Rei Édipo e o de Narciso para explicar certas condições psíquicas como o complexo de Édipo e o narcisismo.

[14]Em sua obra Interpretação e superinterpretação, Umberto Eco nos alerta para a possibilidade de um mesmo texto comportar diversas interpretações, em razão de sua plurivocidade, assim como também avisa como algumas dessas interpretações podem ser exageradas ou generalizantes.

[15]Ruthven (2010) indica que Erasmo, figura fundamental do humanismo cristão, chegou a ver mais religião em alguns mitos gregos do que na própria Bíblia.

[16]Ruthven (2010, p. 50-52) cita nomes como Frazer, van Gennep, Hyman e outros que teriam se embrenhado na trilha rito-mito.

[17]Lévy-Bruhl desenvolveu a teoria da mentalidade primitiva. Segundo essa teoria, as sociedades primitivas eram dominadas por um pensamento pré-lógico, expresso em representações míticas.

[18]É muito provável que Borges esteja usando um aporte teórico da fenomenologia de Husserl e de Merleau-Ponty. A definição básica da fenomenologia é que toda consciência é sempre consciência de alguma coisa. Dizendo em outras palavras, não temos consciência da totalidade, de tudo ao mesmo tempo, senão daquilo que intencionalmente o fenômeno permite. A realidade não sendo perceptível “em si”, só pode ser percebida pela redução fenomenológica, ou pelo fenômeno que se nos apresenta.

[19]Outros pensadores sobre a linguagem também se ocuparam dessa causalidade entre coisas completamente diferentes. Foucault, por exemplo, observa que era comum na antiguidade a noção de “simpatia” e “antipatia” na ordem do discurso, que, por exemplo, permitia relacionar um astro com a biografia de uma pessoa na astrologia.

[20]Balthasar via na dramaturgia a sua inspiração para compreender que o “palco da vida” podia ser encarado como uma grande narrativa teologal.

[21]Renard não detalha a que época realmente está se referindo com alta e baixa antiguidade. Porém, segundo os exemplos de documentos literários que expôs, parece indicar as literaturas clássicas do ocidente, como as de Homero, e também de outros autores greco-latinos.