A evidência do divino indizível em Vergílio Ferreira
Unspeakable divine’s evidence in Vergílio Ferreira

Ana Catarina Coimbra de Matos*
*Doutora Cum Laude em literatura comparada / literatura europeia pela Universidade Autónoma de Madrid. Professora de língua, cultura e literatura portuguesas na Universidade de Alcalá (Madrid) e, atualmente, professora de PLE no Centro de Língua Portuguesa na Universidade Autónoma de Madrid. Contato: acmatos@camoes.mne.pt
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Resumo
A presença do divino ao longo dos séculos foi-se transformando na literatura. Encontramos os deuses poderosos, pagãos e cristãos, um Deus temível que há de julgar, o Deus que dá sentido à existência e o Deus inexistente. No século XX, a literatura influenciada pela corrente filosófica do Existencialismo enfrenta-se à existência do ser, questionando a (in)existência do divino, de Deus. Vergílio Ferreira, autor português, essencialmente, da segunda metade do século XX, abre um diálogo entre o ser e o divino através da evidência do invisível e do indizível da fé numa narrativa que não diz, mas que se sente. Sem uma história com princípio, meio e fim, e uma prosa cada vez mais lírica, os seus romances apresentam o “eu” do protagonista que sofre um processo de autognose acompanhado pelo leitor, que vai ordenando o pensamento e a memória sobre a relação do “eu” com os outros. É o leitor que termina o romance, imaginando a palavra, a frase, a ideia que nunca se chega a dizer, atribuindo um dos múltiplos sentidos à narrativa que mostra o pensamento e o sentir de um “eu” crente.

Palavras chave:Romance; divino; Vergílio Ferreira; “eu”; crente.

 

Abstract
In literature the presence of the divine has changed over the centuries. We find powerful gods, pagans and Christians, a fearful God who will judge, the God who gives meaning to existence and the nonexistent God. In the 20th century, literature influenced by the philosophical current of Existentialism faces the existence of human being, questioning the (non)existence of the divine, (non) existence of God. The Portuguese author, Vergílio Ferreira, published especially in the second half of the 20th century. He sets out a dialogue between the being and the divine through the evidence of the invisible and the unspeakable of faith. This happens in a narrative that does not say, but it is felt. His novels without a complete and structured story, and an increasingly lyrical prose, present the protagonist’s “I” who undergoes a process of self-knowledge while the reader puts in order the thoughts and memories about the relationship of this “I” with others. It is the reader who ends the novel, imagining the word, the sentence, the idea that never gets to be said, giving the narrative one of the various meanings that shows the thinking and feeling of a believing “I”.

Keywords:Novel; divine; Vergílio Ferreira; “I”; faithful.

Introdução

Na primeira parte deste artigo, pretende-se contextualizar o romance de Vergílio Ferreira, oferecendo uma perspetiva geral da evolução do divino ao longo dos séculos na literatura. Para a construção deste contexto, exemplificam-se as diferentes manifestações de divino presentes não só em obras da literatura portuguesa, mas também através de obras emblemáticas no contexto da literatura europeia. Na segunda parte, debruçamo-nos no romance lírico de Vergílio Ferreira, no qual encontramos um protagonista reflexivo sobre o seu próprio “eu”, a sua condição no mundo e a (in)finitude da vida perante um sentir indizível da evidência invisível de algo transcendente, divino. Os romances vergilianos serão, portanto, o reflexo de um “eu” que, inserido na sociedade portuguesa do século XX com grande tradição cristã, sofre as influências da corrente filosófica do existencialismo. Um “eu” que se pensa, que deseja entender o sentido, afinal, de tudo isto que é a vida.

O tema da morte e da vida é intrínseco ao ser humano. Faz parte da sua condição, sendo a morte uma preocupação constante, pois, uma vez que se nasce, naturalmente, a vida está sujeita à morte. A incerteza sobre a vida e a morte levou o ser humano a interrogar-se e a procurar respostas sobre a razão da sua existência desde os seus primórdios. Os romances do escritor português, Vergílio Ferreira, inserem-se num contexto socio-cultural da segunda metade do século XX numa Europa que vive duas grandes guerras, ditaduras. Em Portugal, vive-se a ditadura mais longa da Europa, que finda em 1974, durante este regime político a Igreja Católica ocupa um papel preponderante. Por conseguinte, as referências à religião e à Igreja são frequentes na obra, manifestando uma postura que interroga todas as ações que se desenrolam nesse âmbito, que questiona a vivência externa da fé. A arquipersonagem vergiliana irá sofrendo um processo de autognose ao longo da obra, numa interrogação permanente e para sempre em busca de um sentido para a vida. Talvez um sofrer sem sentido, uma revolta e um pessimismo iniciais se vão pacificando numa personagem que vai gastando o sofrimento numa solidão e silêncio profundos vislumbrando uma fé sentida numa comunhão transcendental com o Outro, o qual já não está fisicamente.

Nesta época, a corrente filosófica do Existencialismo que se vive na Europa procura incessantemente o sentido da existência do ser humano. Existem várias doutrinas existencialistas. A análise do “eu” vergiliano segue algumas questões tratadas por Heidegger, filósofo que encara a existência através de um ser que vive no mundo e se relaciona com os outros, “el-ser-en-el-mundo es un mundo en común, (...) ser es existir en común con otros. (…) «ser-con» (JOLIVET, 1969, p.106). Assim como os protagonistas vergilianos são sempre eles e os outros que fazem parte da sua vida, em especial a família com quem vive ou viveu e passou grande parte da sua vida, os momentos mais marcantes. Estando os outros vivos ou mortos, estão sempre ausentes fisicamente, mas, psicologicamente, muito presentes. O “eu” vergiliano chegará a si próprio através da reflexão do relacionamento vivido com os outros, uma Verdade que chega no instante do presente que aglutina as memórias do passado e o desejo do futuro. Para Heidegger, a reflexão sobre a existência do ser também incide na verdade do instante onde o passado e o futuro se presentificam: “El Dasein es en el mismo tiempo futuro y pasado, y solamente así la resolución puede hacer la situación presente, tener el sentido auténtico del presente, que se define propiamente por el instante (…) el pasado y el porvenir hechos presente” (JOLIVET, 1969, p.144)1

Assim, a filosofia foi constituindo um conjunto de doutrinas sobre o ser, indagando sobre o mundo e o ser humano através da razão, problematizando a realidade sempre de um novo ângulo. Como afirma Bachiller: “Vivimos distinguiendo las cosas, buscando lo que son, cómo y para qué son. (…) el filósofo trata de saber la razón del existir, del ser. (…) intentar explicar lo que son las cosas, cómo y por qué son las cosas, es misión también del filósofo, que considera toda la realidad” (1959, p. 55). A filosofia considera o ser na sua totalidade, o indivíduo e o meio onde se insere: a sua essência, a sua existência, a sua natureza, a sua cultura e tudo o que envolve a vida. O filósofo problematiza e teoriza, cria doutrinas, mas não encontra nunca uma resposta única para a explicação do seu objeto de estudo: o ser.

No processo de busca de um sentido para a vida, o ser humano encontra-se com o sagrado como possível saída. A corrente filosófica do existencialismo, numa tentativa de explicação do Ser, depara-se também com a questão religiosa. Por exemplo, “Heidegger [...] basa la existencia en la actitud religiosa. La verdad del Ser hace pensar en la esencia de lo Sagrado y la esencia de lo Sagrado sugiere la esencia de la divinidad” (BACHILLER, 1959, p. 50). O ser humano em busca da sua verdade pode procurar, na religião, uma resposta para a razão da existência do Ser, mas encontra vários deuses? ou um Deus todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra? Para responder a múltiplas questões, o homem apoiou-se e acreditou, desde sempre, na religião. Porquê, como e para quê existimos? O que é a vida? O que há depois da morte? Cada sociedade procura respostas para estas questões. Ao longo dos tempos, o homem procura encontrar respostas para a sua inquietação sobre a (in)finitude da vida, almejando, talvez, a eternidade. No ensaio “A morte como problema”, Hans-Georg Gadamer relata, a preocupação do homem na construção de sepulturas para o culto aos mortos, a quem se rende oferendas ou oração em várias culturas e épocas. Tendo em conta que não há provas físicas de existência do homem para lá da morte, parece incompreensível esta necessidade do homem em se acreditar eterno (GADAMER, 1976, p. 13). Mesmo sem provas visíveis de uma vida eterna, há a tendência a vislumbrar essa possibilidade, a presença do divino, a crença numa religião, num deus.

O homem consciente da sua finitude procura, na relação com o divino, com um deus, sair do desespero angustiado de uma vida absurda, se não houvesse uma razão para a sua existência. Bachiller afirma que “de no encontrar fuera una tabla de salvación, abocamos en la angustia, en la desesperación, producidas por el aislamiento y la soledad de nuestro ser y de nuestro vivir” (1959, p. 72). O divino esteve sempre presente na Humanidade. O homem na sua relação com o divino procura preencher o vazio da sua interrogação da vida para além da morte. O divino refletiu-se sempre na arte, que contém as inquietações existenciais do homem e da sua cultura. No entanto, o divino vai-se representando de formas distintas, através da mitologia grega ou latina; através de forças superiores inexplicáveis; através de um Deus Supremo. A evolução da relação do homem com o divino reflete-se em diferentes representações na literatura ocidental.

A evolução do divino na literatura europeia anterior ao romance vergiliano

Tendo em conta que, no romance de Vergílio Ferreira, a propósito da reflexão sobre o ser humano se trata a presença do divino, menciona-se, neste capítulo, diferentes representações significativas no âmbito europeu. Assim, encontra-se uma relação entre o humano e o divino em variadíssimas obras de qualquer época da literatura europeia, seja na Odisseia de Homero; seja na Divina Comédia de Dante Alighieri; ou n’Os Lusíadas de Luís de Camões; ou em Emílio, ou da Educação de Jean-Jacques Rousseau; seja em Poeta en Nueva York de Federico García Lorca; ou em Manhã Submersa de Vergílio Ferreira. Estas obras oferecem um panorama geral da evolução do divino na literatura europeia. Primeiramente, a Odisseia de Homero, escrita na Antiga Grécia, o berço da Europa, refere permanentemente toda a mitologia grega de princípio a fim, sendo o héroi épico, “divino Ulisses” (HOMERO, 1994, p. 20), um homem com qualidades humanas e divinas, que é capaz de vencer os deuses. N’Os Lusíadas, epopeia cujo herói épico é o povo português, herói coletivo, encontram-se os marinheiros vencendo os deuses. Ambas as narrativas pedem inspiração à Musa para tão arrojada escrita e os deuses ouvem os homens sublimes e consentem na satisfação dos seus pedidos. Depois, os poetas procedem à narração dos acontecimentos, onde os deuses também estão presentes e intervêm nos destinos dos heróis2 . Na Odisseia, há a mistura do plano do divino com o plano mortal do herói, os deuses vivem lado a lado com o herói, “para Homero lo trascendente está indisolublemente entretejido con la existencia terrena” (LUKÁCS, 1975, p. 314).

A Divina Comédia de Dante, escrita antes d’Os Lusíadas, demonstra ser ainda produto do teocentrismo. Representa a natureza invisível do mundo após a morte, referindo espaços, assuntos e personagens desse mundo divino. A salvação e vida eterna do homem nesse mundo era a razão da existência do homem na Terra segundo a religião cristã. Assim, “la inmanencia del sentido de la vida está presente para el mundo de Dante, pero en el más allá: es la consumada inmanencia de lo trascendente” (LUKÁCS, 1975, p. 326). A influência religiosa também se reflete na estrutura da obra, através de uma conceção com base no número três, que apresenta “un alto valor simbólico en la numerología medieval, como muestra de la perfección y de la unidad en la diversidad: en definitiva, sería la interpretación numérica del misterio de la Trinidad” (DANTE, 2004, p. xxiv). No Renascimento, o teocentrismo medieval deu lugar ao antropocentrismo, o homem e as suas viagens no centro da Terra. Não obstante, Os Lusíadas apresentam uma viagem com um motivo cristão, a expansão da fé. Embora seja uma obra fruto de uma sociedade cristã, recorre ao divino através da mitologia, incluindo as vivências dos deuses pagãos, é uma obra que glorifica o Cristianismo, a divulgação da fé por povos desconhecidos. N’Os Lusíadas, os deuses e os mortais aparecem mais separados que na epopeia clássica. Os deuses e os mortais não se unem senão no último canto da epopeia no espaço divino da ilha dos amores, através de uma experiência amorosa que será o prémio dos marinheiros e a sua autoglorificação. Para Camões, os deuses unem-se aos humanos, premiando aqueles que espalham a fé cristã

O divino foi-se manifestando de diversos modos e isso refletiu-se na literatura e em qualquer género literário. O romance sofre várias alterações ao longo dos tempos. Sendo uma expressão literária complexa, torna-se muito importante por representar o mundo, real ou imaginário, terreno ou divino; por representar o Ser e o que de mais íntimo o habita; quer mesmo por representar essa procura de Transcendência. Lukács aponta Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes, escrito no início do século XVII, como o romance moderno que marca o princípio de uma época em que o Deus cristão, há tanto presente, começa a abandonar o homem, virando-se este para dentro de si em busca de um sentido:

Esta primera gran novela de la literatura universal se encuentra, pues, en el comienzo de la época en la cual el dios del cristianismo empezó a abandonar el mundo; cuando el hombre se quedó solitario y empezó a no poder hallar sentido y sustancia más que en su alma sin morada; cuando el mundo desasido de su anterior paradójico arraigo en aquel presente más-allá, quedó entregado a su inmanente sinsentido (LUKÁCS, 1975, pp. 369-370).

É o princípio de um caminho que se bifurca e separa o homem de uma entidade divina que não deixa de seguir por perto e para onde o homem pode desbravar uma senda para se voltar a unir.

No século XVIII, a obra filosófica, Emílio, ou da Educação, trata a educação que um homem deve receber, incluindo nela um âmbito religioso. Rousseau aborda um sistema educativo baseado na observação da natureza, como obra de Deus, e na experimentação, mas este sistema também se baseia na crença de um deus, pois “el olvido de toda religión lleva al olvido de los deberes del hombre” (ROUSSEAU, 2005, p. 371). Para Rousseau, é necessário acreditar em Deus para enfrentar melhor a morte, já que o homem é consciente da sua finitude. Para ele, a religião só deveria ser ensinada quando a pessoa tivesse maturidade. Por conseguinte, a religião não estaria presente na vida de alguém desde sempre. Haveria o direito de optar pela religião com a qual mais identificado se sentisse, e não, necessariamente, por aquela que fosse professada pela sociedade em que vivesse, pois o importante era acreditar numa força divina. Para a compreensão da condição humana, a fé no divino demonstra-se imprescindível durante a vida: “Vivir es el oficio que quiero enseñarle [...] Nuestro verdadero estudio es el de la condición humana” (ROUSSEAU, 2005, p. 45). Parece contraditório ter de acreditar num deus que não se experimenta através de nenhum dos cinco sentidos de um homem imerso numa educação que se baseia na experimentação e observação. Contudo, era necessário dar um sentido à vida e, para Rousseau, o único sentido possível que responde à procura do homem continua a ser Deus, a divindade, “El ser incomprensible que abarca todo, que da el movimiento al mundo y forma todo el sistema de los seres no es ni visible a nuestros ojos ni palpable a nuestras manos; escapa a todos nuestros sentidos. La obra se muestra, mas el obrero se oculta. No es pequeña tarea conocer finalmente que existe, y cuando hemos llegado a ello, cuando nos preguntamos ¿quién es?, ¿dónde está?, nuestro espíritu se confunde, sea extravía y ya no sabemos qué pensar” (ROUSSEAU, 2005, p. 379).

Chegando ao século XX, as forças divinas poderosas que definem o destino do homem são postas em causa e tomam uma forma bem diferente na literatura: “A arte servira aparentemente todos os deuses, mas agora, que eles estavam todos mortos, incluindo os do Progresso, a ela se reduziria tudo o que resta de sagrado sobre a Terra” (LOPES, 1986, p. 76). O homem procura comprovar que a força de um deus invisível existe e interroga-se sobre o poder que teria Deus, numa vida que parece ser decidida pelo indivíduo que se julga livre, e que pode considerar-se como o seu próprio deus, como que prescindindo de um amparo exterior a ele. Dá-se uma aventura que percorre a interioridade da personagem e as suas inquietações em relação ao divino, onde o homem prescinde do amparo do deus cristão, estando aparentemente só na sua relação com o transcendente: “la forma de la novela es, más que otra alguna, expresión del desamparo trascendental” (LUKÁCS, 1975, p. 308).

Consequentemente, na primeira metade do século XX, não se nota uma forte crença num deus, nem em deuses mitológicos. O homem está perdido em contradições da existência ou na inexistência da evidência do divino invisível. Na poesia de García Lorca, há uma espécie de incredulidade no fim da vida, um desejo de que a vida não acabe, colidindo com a realidade de que, após a morte, já não há nada visível que demonstre que a vida continua. No Poeta en Nueva York de García Lorca, há títulos como “Danza de la muerte” que fala do céu - “alegria eterna” - ou da morte - “definitivo silêncio”. A morte invade tudo, parecendo mais uma obsessão e, às vezes, chega a adquirir um tom mórbido3 . Existe algo mais do que uma simples vida terrena, existe um deus, deuses, forças divinas que se misturam com o humano, com a natureza, com o palpável. Junta-se tudo para dar vida ao que está morto e matar o que vive. O Poeta en Nueva York no seu irracionalismo mais livre e poético, é um expoente surrealista da lírica moderna, segundo a qual “la fértil liberación irracionalista del discurso poético es quizá la marca de renovación característica de la nueva lírica contemporánea, la manifestación renovadora más influyente y representativa en la fisonomía poética de nuestra Edad del Moderno, cultural y artístico” (GARCÍA BERRIO, 2006, p. 293). Quiçá, haja a crença na ideia de alma quando o sujeito poético tenta acordar os mortos nas campas, insistindo, através da repetição, que acordem e se levantem, numa atitude infantil, quase desesperada, e de rejeição da morte4 . Isso demonstra a dificuldade em acreditar que não há nada mais para além da morte, conferindo-lhe uma negação do fim, apesar de este ser observável.

No século XX, o existencialismo tenta resolver o sentido da vida, fugindo ao nada, a uma visão niilista da vida. Se o homem se interroga, é porque não sente profundamente que depois da morte não haja nada. Se o homem se interroga, é porque sente que para além da morte haverá algo que poderá encontrar. Para Bachiller, o existencialismo ateu era falso, porque a existência contingente reclama uma existência necessária, situando-se o ser entre o nada e Deus. A visão do nada na origem da existência, antes do nascimento, e também na pós-morte, depois da morte, conduz à amargura, à angústia, ao pessimismo, ao desespero. Portanto, pensar que é imortal, procurando a sua origem e o seu fim, inventando ou reinventando deuses, permite ao homem afastar-se do nada, sair do desespero, procurando a raiz da sua essência. Se, por um lado, o homem se sente sozinho, por outro lado, mais profundo e real, sente-se acompanhado, há uma sensação inexplicável de não estar só:

En general, no es cierta la afirmación de que el ser- -hombre está solo y aislado. Aun cuando se concentra en el fondo de su pensamiento, lo hace acompañado de un mundo exterior que antes ha aprehendido por las ventanas de su cuerpo. No está solo, está acompañado, no puede prescindir de este acompañamiento. En la búsqueda de una solución al problema de su existencia, está convencido de que, sea la que se proponga, tendrá que ser valedera y aplicable a los demás seres-hombres (BACHILLER, 1959, p. 59).

São possíveis várias soluções para esta questão que o homem põe. Haverá respostas que vão do nada mais absoluto até à fé mais profunda num deus, nenhuma se pode provar mais certa que a outra. Não obstante, uma força superior ao homem parece estar sempre ligada à questão e o homem interroga-se sobre a existência ou não de Deus: “La pregunta y la respuesta del existencialismo se centran en la existencia. No obstante, Dios será siempre la gran pregunta y la gran respuesta de la Humanidad, porque es la gran preocupación. La historia entera es testigo de ello” (BACHILLER, 1959, p. 75).

Achando inútil o esforço titânico que seria necessário para abrir um caminho que o leve ao divino, que o mais provável é que não exista, o homem procura em si próprio um eco, um outro, uma outra voz que exista no seu interior, na sua transcendência, para colmatar esse estar só no mundo. A representação do outro na transcendência do Ser, do seu invisível, da sua alma, faz-se visível através de uma multiplicidade de vozes num diálogo mental que o homem mantém consigo próprio na literatura. São vozes audíveis, mas nem sempre percetíveis, cuja mensagem tem de subentender-se. Isto sucede não só no romance como na poesia. Emmanuel Levinas explica esta voz interior do outro que dialoga com o eu a propósito de um poema de Paul Celan: “El poema va dirigido al otro. (…) El poema “se convierte en diálogo, (…) un encuentro, el camino de una voz que se dirige a un tú vigilante” (1976, p. 31). No romance, sucede o mesmo, as inquietações do homem são reveladas no diálogo íntimo narrativo, transferindo para o leitor o seu interior. Em Emílio, ou da Educação, já se menciona a existência de duas vozes, havendo uma voz da alma que é a consciência do homem, agindo como um guia, e a voz do corpo que diz respeito às paixões, ao imediato. No século XX, há a presença notória destas vozes que tentam representar a totalidade do ser humano.

O divino no romance vergiliano

Os romances de Vergílio Ferreira são uma narrativa que reflete o pensamento e caracterizam-se, precisamente, por aquilo que não se diz. Porém, o silêncio é rasgado por um diálogo inaudível. É o silêncio profundo que permite esse mesmo diálogo mental consigo próprio, com os outros e com o leitor.

No romance Manhã Submersa de Vergílio Ferreira, há um debate íntimo entre duas vozes do ser, neste caso, uma da mente e outra do corpo. Portanto, há a representação do homem que parece dividir-se numa parte terrena e noutra divina, superior. A situação interior de inconformismo, que o protagonista vive pela presença do destino, provoca- -lhe um grande sofrimento e uma enorme sensação de solidão. A voz do seu interior implora-lhe que não continue no seminário, mas a sua outra voz ignora essa vontade, vivendo uma angústia permanente entre essas vozes do seu ser5 . A narrativa representa esta realidade através do diálogo interior da personagem sobre o que não faz para ir ao encontro daquilo que deseja, sentindo-se angustiado e derrotado: “sofri em silêncio” (FERREIRA, 2004a, p. 17), “desde o fundo da minha solidão” (FERREIRA, 2004a, p. 67), “SILÊNCIO. Um dia igual aos outros, penoso e triste, como as tardes de um doente condenado” (FERREIRA, 2004a, p. 45). A voz interior, ou da alma, ou da consciência, pede-lhe que se afaste da vida religiosa que só o faz sentir-se sozinho e com “um peso na alma” (FERREIRA, 2004a, p. 30); “um asco de tudo empestava-me a alma” (FERREIRA, 2004a, p. 184); “perdera a vontade de tudo e a esperança de tudo” (FERREIRA, 2004a, p. 191).

Após a morte de um amigo do seminário, a voz da alma do protagonista acaba por vencer, pois ele decide abandonar o seminário para viver a sua vida, em vez de viver para esperar a morte no seminário:

eu tive a certeza absoluta de que havia de fugir. [...] Faltava um mês para a Páscoa, e eu acreditei como nunca que seria o último que não era meu. Não podia imaginar o que levaria para a vida¸ a não ser talvez uma vontade animal de conquistá-la e a profunda memória humana do meu pobre amigo morto (FERREIRA, 2004a, p. 207).

Em Vergílio Ferreira, a morte desata a reflexão sobre a vida e a necessidade de cumpri-la. A morte representa o despertar para a descoberta de quem sou e a aproximação do “eu” íntimo do próprio. Dispara sentimentos catárticos de dor, que provocam uma transformação interior, vislumbrando a pacificação íntima, uma serenidade de ordem reestabelecida. A arquipersonagem sofre um processo de autognose, virando-se, cada vez mais, para o milagre da vida, aprendendo a ultrapassar o sofrimento da morte pela fé e aceitando o inexplicável da vida. Gastam-se as ideias, fica o sentir.A propósito do romance já no século XX, Georg Lukács declara que: “La novela es la epopeya del mundo abandonado por los dioses” (LUKÁCS, 1975, p. 355). Existe a religião e a Igreja, já não existe a presença de deuses poderosos que salvam o homem, de um Deus que salva ou condene segundo a ação do homem, um Deus em quem acreditar para superar a existência ou para obter respostas. No século XX, o homem não interroga Deus, questiona-O; não tem fé Nele para superar os obstáculos, evidencia a Sua inexistência; a fé descobre- -se na relação íntima. O homem interroga a sua alma em busca de respostas num percurso interior lento e duvidoso, hesitante e confuso, cheio de si e vazio de Deus:

La novela es la forma de la aventura, del valor propio de la interioridad; su contenido es la historia del alma que parte para conocerse, que busca las aventuras para ser probada en ellas, para hallar, sosteniéndose en ellas, su propia esencialidad. La seguridad interna del mundo épico excluye la aventura en ese sentido propio: los héroes de la epopeya recorren toda una abigarrada serie de aventuras, pero no se pone en duda que las van a superar interna y externamente; los dioses que dominan el mundo han de triunfar siempre sobre los demonios (LUKÁCS, 1975, p. 356).

Em Manhã Submersa e em Emílio, ou da Educação, a religião cristã é retratada na rejeição ao destino de personagens atraídas pela via sacerdotal: em Manhã Submersa, deixando o seminário; em Emílio, ou da Educação, mantendo essa via, mas numa profunda tristeza. A situação narrada na Profissão de fé do Vicário Saboiano no Livro IV de Emílio, ou da Educação assemelha-se à história do protagonista de Manhã Submersa6 . Porém, na obra mais antiga, a personagem acaba por cumprir os votos e ser padre contra a sua vontade íntima: “di mi palabra como quisieron y fui hecho sacerdote. Pero no tardé en sentir que, al obligarme a no ser hombre, había prometido más de lo que pudiera cumplir” (ROUSSEAU, 2005, p. 397). Na obra do século XX, a personagem consegue libertar-se de uma religião que não lhe traz felicidade, nem conforto espiritual, optando por não ser ordenado sacerdote. A profissão religiosa não é representada como vocacional, mas como uma saída económica para quem tem dificuldades. Surgem várias linhas de debate interno também ao leitor numa obra que retrata, mais do que uma certa decadência da Igreja, a interrogação sobre quem transmite a palavra divina e que poder tem para o fazer; a relação indiferente ou quase de rejeição da palavra divina; o conflito interno entre o desejo da alma e a ação do homem; e, principalmente, a impossibilidade de impor uma religião, porque a crença é uma relação interior e individual com o divino. A fé não se impõe. A fé sente-se. E o homem do século XX move-se para reencontrar a fé, porque é difícil aceitar a morte como fim absoluto.

Em Manhã Submersa e na Divinia Comédia a religião é a mesma, a sua doutrina mantém-se inalterável, mas é representada de maneiras bem distintas, refletindo as inquietações da sociedade de cada época. Como afirma Bachiller, o divino permanece imutável, mas a maneira de o viver altera-se:

Es preciso distinguir entre Cristianismo y Cristiandad, entre lo divino en sí y sus manifestaciones históricas. La Cristiandad evoluciona con la historia y cambia según las épocas; por el contrario, el Cristianismo es inmutable y puro, intangible, espiritual y eterno (BACHILLER, 1959, p. 26).

O fim da condição humana, a morte, está presente nas duas obras. Por um lado, o mundo após a morte é o cenário da Divina Comédia, a preocupação da existência do homem detinha-se na vida eterna, vaticinada pela religião cristã que professava a sociedade da época. Por outro lado, em Manhã Submersa, a morte ensombra a vida do jovem protagonista, seja pela morte de alguém próximo ou pela sua evocação provocada por qualquer pretexto num mundo que mata todas as motivações para viver.

Em Manhã Submersa, apesar de o protagonista ser ainda muito jovem e estar num seminário, a morte atormenta-o em muitas ocasiões, por exemplo, a despedir-se de um amigo como se fosse para sempre, “para a morte” (FERREIRA, 2004a, p. 69), ou a estudar no silêncio profundo do seminário: “para lá dos vidros altos, ficava a noite e a morte” (FERREIRA, 2004a, p. 46); “A noite caíra já, uma noite fria, lúcida de estrelas, morta” (FERREIRA, 2004a, p. 69). O protagonista teme a morte: “E eu olhava o silêncio fechado de tudo isso, sentia na escuridão transversal de tudo isso, no halo vago expectante, um súbito medo da morte – e o coração parava-me de alarme” (FERREIRA, 2004a, p. 66). Este medo inerente ao ser humano de qualquer época era o que se pretendia eliminar em Emílio, ou da Educação através da crença religiosa. Parece que quanto mais próximo do ambiente religioso, mais próximo se sente da morte. Talvez, porque reflete mais sobre a sua existência na situação infeliz e solitária que vive, visto não sentir a companhia do Senhor, ou, talvez, porque a condição humana é mais mencionada na palavra de Deus, sendo referido o castigo da vida de pecado, apesar de o protagonista rejeitar as palavras do padre e se compadecer dos “desgraçados seminaristas que olhavam os prazeres do mundo com imaginação infernal!” (FERREIRA, 2004a, p. 109).

A obra é escrita numa sociedade que sofre não só a pobreza como também a repressão de uma ditadura e não consegue entender a razão de uma existência tão dura, questionando o papel da Igreja e a existência de Deus. A sociedade portuguesa vive uma rejeição progressiva de uma Igreja decadente, abandonando a rotina dos rituais religiosos, cujo vazio da palavra divina proferida não responde à interrogação existencial. Esta questionação e rejeição do religioso refletem-se ao longo dos romances de Vergílio Ferreira, escritos de 1943 a 1996. Em Manhã Submersa, no primeiro dia que veste a batina de seminarista, é olhado com um ar depreciativo, ser padre não é visto com orgulho ou respeito; pelo contrário, a criança é gozada, ridicularizada, o que provoca que se encerre no seu mundo interior: “Pela primeira vez na vida me cerrei dentro do meu ódio impotente e infeliz, e aprendi o sentido do desespero e da morte. Pela primeira vez eu medi a minha distância do mundo que me havia de ficar para sempre distante” (FERREIRA, 2004a, p. 14). Esta distância do mundo, que a personagem de Manhã Submersa vive, tornando-a uma personagem com um mundo interior intenso, porque vive em solidão num diálogo de si para si, é uma característica do protagonista vergiliano.

O invisível e o indizível no romance vergiliano

O romance é um género que conquistou grande importância nos últimos séculos. Foi-se alterando, sofrendo mudanças variadas a todos os níveis, refletindo a cultura da sociedade onde se insere e acompanhando os gostos dos leitores. O herói do romance foi-se humanizando, deixando os heróis perfeitos e quase divinos atrás, numa escrita que contava de um ponto de vista externo, mas que foi penetrando, cada vez mais, no interior até revelar o mais íntimo das personagens. O herói passa a ser visto como um homem comum com os seus defeitos e as suas virtudes, podendo o leitor sentir-se mais próximo do mesmo. No século XX, o romance apresenta uma estrutura menos definida e contaminada por outros géneros literários. As personagens também percorrem um caminho indefinido e, desorientadas, tentam entender o sentido da vida. A escrita revela esse processo no qual tentam alcançar um autoconhecimento. Há uma corrente subjetivista e surge o romance psicológico ou lírico, em que as características da lírica serão visíveis e ganham força na narrativa. A emoção prevalece sobre a ação, o espaço será, principalmente, o da consciência e o tempo é mais estático. O tema central é o ser humano, que numa aventura interior sem um desenlace necessário, procura uma resposta e reflete sobre a sua existência.

Em Portugal, o panorama literário do século XX é instável, após um consolidado e conceituado Realismo. Apesar de surgirem diferentes tipos de romance, como o psicológico, o neorrealista ou o existencialista, em todos se mantém a questão do ser. Há uma mudança marcante a meio do século, sendo a corrente filosófica existencial uma grande influência para o romance que trata a existência do homem, o qual se afasta da religião e procura uma nova fé. Nesta viragem na literatura portuguesa, será representativo o romance Mudança (1949) de Vergílio Ferreira, autor do século XX. O romance de ficção vergiliano começa por ser neorrealista, mas cedo se afasta desta corrente e submerge-se por completo na problemática existencial com Aparição (1959), tornando-se cada vez mais lírico, sendo Alegria Breve (1965) um marco deste lirismo. A narrativa lírica vergiliana incide sobre o tema da vida: nesta narrativa, um protagonista cria um diálogo na sua mente e reflete sobre quem é, em busca de uma razão para a mesma, passando por um processo de autognose, que obriga o leitor a percorrer com ele. A ficção não revela respostas, apenas abre horizontes para o leitor iniciar um processo de reflexão em conjunto, seguindo um caminho próprio. O silêncio da obra cria vazios narrativos que tornam o leitor num criador de sentido, completando-a, terminando-a numa tentativa de a interpretar.

Nesta criação de sentido, qualquer pormenor pode ser elucidativo e tornar-se numa evidência súbita, assim, o próprio título de cada romance é já uma obra de arte, cuja decifração é um apelo ao leitor. Os títulos são parte de um todo, parte da totalidade do romance, da obra, ou talvez, da vida. Num tempo da ação presente e da memória, em que passado e futuro se presentificam, existindo apenas o tempo do presente eterno, são escolhidas partes do dia, demonstrando uma passagem do tempo lenta e cíclica. Nos romances de ficção mais tardios deste conceituado autor da literatura portuguesa como Alegria Breve (1965), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987) e Cartas a Sandra (1996) surge o anoitecer, o entardecer e o amanhecer, vislumbrando sempre um recomeço. Este recomeço é inserido numa ação de presente, que é lenta, mas imparável na mente do “eu”. Assim, uma situação de morte, como um enterro, um velório, o luto ou a própria morte, desencadeiam a reflexão, a memória ou a imaginação do protagonista imbuído na terra das origens nevada e que se renova ciclicamente, numa capela, ou numa casa repleta de memórias, onde viveu a infância. O espaço espelha o estado do “eu” e será sempre de profunda solidão.

A arquipersonagem que encontramos nos romances de Vergílio Ferreira é o “eu” de um narrador-protagonista que, para sempre, se interrogará e refletirá procurando o que está para além do visível:

Que é ser homem? [...] Ser homem é ser todo. (FERREIRA, 2004c, p. 104); Havia sobretudo um sentido a dar à vida. (FERREIRA, 2005, p. 166); pensar que nunca mais estarás. É difícil. Nunca mais. É mesmo incompreensível e só ao fim de muitos anos é que se irá entendendo. (FERREIRA, 2002, p. 57); É preciso uma fé absoluta e a fé é um milagre. (FERREIRA, 2004b, p. 176); Não é esse o fim decente de um homem? A purificação. (FERREIRA, 2004d, p. 294).

O tema do “eu” em Vergílio Ferreira circunscreve-se ao fascínio pela vida que este grande autor, tão certeiramente, soube plasmar na escrita. Uma escrita de um “eu” que percorre todos os meandros da vida e que arrasta o leitor a desbravar a senda da sua própria vida. Uma vasta obra que exige a presença ativa do leitor, numa leitura de difícil diálogo, mas, uma vez que o leitor embarque, é conduzido nesse lento remar para apreciação da vida, conjuntamente com o protagonista, através do deleite ou da inquietação. A narrativa vergiliana não conta histórias, obriga o leitor a uma leitura paulatina, reflexiva e construtiva sobre a existência do homem no mundo, despoletando o interesse noutras áreas do conhecimento que se debruçam sobre a mesma questão como a filosofia ou a religião.

O centro da narrativa é sempre o “eu”, que se entrega à vida em corpo e alma, um “eu” pessoal e individual; mas um “eu” no mundo, que concebe a sua vida como um todo que engloba o seu meio, a sua relação com os outros, o mundo que o rodeia, as situações passadas. Nada lhe escapa, pois tudo deve ter uma razão, mesmo que não a saiba, uma razão indizível. O “eu” da ficção vergiliana envolve o leitor na situação presente de reflexão e contemplação, que vive intensamente, e numa viagem mental através da qual a memória e a imaginação se cruzam indistintamente. Os romances mostram o pensamento do “eu” com a mesma confusão simultânea de descrição, de narração, de diálogo ou de ausência da palavra, a qual não basta para explicar o milagre da vida.

Passado, presente e futuro unem-se na mente de um “eu” que dialoga consigo próprio num momento único, em que a totalidade da sua vida se torna presente e se reinventa ao recordá-la. A situação de isolamento do “eu” abre um espaço de silêncio e solidão, que o permite pensar, imaginando, refletindo e recordando. Também há a dificuldade posta por uma narrativa desorganizada, que baralha o tempo cronológico, o real e o imaginário, e que não termina aquilo que conta, interrompendo-se, com constantes ações, descrições, pensamentos, parágrafos, frases e palavras inacabadas. E isso reflete a rapidez do pensamento, o único fio condutor da ação. Esta estratégia do autor obriga o leitor a uma atenção extrema, a uma interpretação permanente, transpondo de um modo hábil a situação do protagonista ao leitor. O leitor une-se ao seu próprio momento de solidão numa interrogação profunda e em silêncio, esperando encontrar uma explicação para tudo, no final de cada romance.

No entanto, a narrativa de Vergílio Ferreira não dá nunca a explicação final que o leitor possa estar à espera. Prefere pedir a cada leitor que a encontre no seu interior, tal como se exige à personagem. É, pois, uma narrativa que procura sempre. O “eu” procura um diálogo com o outro que já partiu, procura um diálogo com a alma, procura um diálogo para encontrar a verdade da vida, procura no outro as respostas que não tem ou a confirmação da evidência do invisível e indizível que sente. Contudo, o sentir íntimo e profundo da aparição ou da transcendência do ser ultrapassa a razão e, se dito, catalogar-se-ia numa espécie de loucura, infantilidade ou senilidade, pela qual o protagonista não deseja nem precisa de passar, ficando com a sua verdade só para si. Assim, submerge-se numa fé disfarçada e ambígua que tenta ocultar e só a interrogação permanente a revela e delata, pois essa insistência em questionar a existência do ser significa que, no fundo, tem o desejo ardente de que a vida seja transcendente. Abre-se um universo de interpretações à obra vergiliana neste jogo confuso que, mostrando o percurso individual e íntimo de cada protagonista, guia o leitor no seu próprio caminho para a vida, dando-lhe sentido, fazendo uma possível leitura do “eu” protagonista de Vergílio Ferreira. Um “eu” que usa a palavra, mas não diz, ou diz sem se dizer: “que palavra? Queria inventar-te uma agora para estar certa lá, não a sei. Sinto-a em mim mas não a digo” (FERREIRA, 2004d, p.15). Aprendê-lo, compreendê-lo e completá-lo para o eu leitor criar um sentido com ele. Nesse caminho de construção de sentido, pode dar-se o reencontro com a fé num processo catártico que conduz à autognose.

Romances como Alegria Breve, Até ao Fim, Para Sempre, Cartas a Sandra e Em Nome da Terra são a vivência do luto, tratam a perda de entes amados, uma mulher ou um filho. Há a necessidade do “eu” se restabelecer na inquietação da perda física de um amor filial ou de um amor conjugal que prossegue, pois o amor não morre: “O que é grande acontece no eterno e o amor é assim” (FERREIRA, 2004d, p.9). O amor está na alma e “a alma não morre” como afirma Santo Agostinho em A Imortalidade da Alma (2018, cap.16). O “eu” precisa de gerir o amor que sente com a ausência física desse amor que, como num amor platónico, mais se engrandece. O sofrimento, o desespero ou a alienação fazem parte de um processo após a morte. O desejo do outro permanece. O “eu” quer recuperar esse outro que faz parte dele, como se fosse o prolongamento do seu ser, do seu corpo e da sua alma. É amputada a matéria, mas o seu espírito, a sua alma, a sua força, a sua influência ou a sua memória permanecem no “eu”, mesmo uma perna amputada continua a existir para o “eu” como sucede no romance Em Nome da Terra: “Sentia a perna inteira no meu corpo e movia os dedos do pé e depois a perna não estava lá. Era só a alma da perna que estava, a perna absoluta” (FERREIRA, 2004d, p.23).

Os romances mencionados afastam-se da angústia mais premente que caracteriza uma fase inicial do escritor, como ocorre em Manhã Submersa, na qual o “eu”, mais afastado ainda do seu sentir, perde-se na narração de histórias e de preocupações da gente banal que o rodeia, movimenta-se numa vida que o faz infeliz, mas que ele não consegue mudar. O “eu” vergiliano percorre um caminho marcado pelo sofrimento, mas vai ultrapassando a angústia através da fé na vida. Isso é mais evidente na fase final da sua ficção narrativa. Ao analisar a essência desse “eu” reflexivo na obra de Vergílio Ferreira, descobre-se um “eu” crente, a evidência do divino:

a tua divindade antes de haver deuses [...] sermos em iluminação. Uma chama pura. [...] a nossa ascensão [...] Estar contigo no absoluto de nós – onde é que poderemos ser todos no indizível e incomparável? [...] A essência de nós e uma incerta alegria de uma estrela nos reconhecer (FERREIRA, 2004d, p. 293).

O termo “divino” é usado para abranger diferentes abordagens. José Antunes de Sousa refere-se ao “divino verdadeiro” como aquele que pode surgir num instante do ser humano, tomando conta dele e tornando-o um “homem divino”7 , como o poeta possuído pela musa da inspiração divina (PLATÃO, 1988, p.49) . Um divino que se sente, mas que é independente da vontade do homem. O “divino religioso” é relativo à religião e o “divino institucionalizado” é aquele que afirma que a Igreja como instituição, de algum modo, prevalece à palavra de Deus e se impõe como forma de religião:

coexistem em Vergílio Ferreira três níveis de abordagem, sendo que um primeiro diz respeito ao conceito de «sagrado», enquanto vibração poiética, «vibração artística», em que se implica o desígnio auto-realizativo de uma divindade humana na imanência de uma estrutura da existência, um segundo, o conceito de «religião» enquanto expressão de uma fome metafísica de realização de nós no que além de nós se nos dê, já num desvio antropológico para uma Transcendência; e um terceiro, em que o conceito de «religião» (...) se confunde, em última análise, com o conceito de «igreja», no que este denuncia de sistematização e rigidez institucional e doutrinária (SOUSA, 2001, pp. 165-166).

São considerados três tipos de divino. Em primeiro lugar, temos o “divino verdadeiro” manifesto no homem, que o leva a interrogar-se sobre o seu ser, que permite uma busca constante e um contacto permanente consigo mesmo. O indivíduo evidencia uma posição de inquietação, mas que o pode conduzir até à fé. Em segundo lugar, temos o “divino religioso”, no qual o sujeito encontra explicações sobre a sua existência nos escritos sobre um deus criador de uma religião. O ser humano tem Deus como resposta à sua interrogação. Em terceiro lugar, há o “divino institucionalizado”, veiculado pela palavra que tranquiliza os homens. Se o indivíduo não sente verdadeiramente o divino, sem a fé que a evidência do divino lhe possa produzir, apenas adquire um conforto momentâneo, superficial, pois não está implicado nele. Sem uma fé verdadeiramente sentida, o homem pode instalar-se numa posição apática de conforto. Se chamado pela fé, o homem sentir-se-á seguro, ainda que num caminho incerto. Em literatura, desde sempre, se vai refletindo sobre as diferentes manifestações de divino.

Em Vergílio Ferreira, podemos encontrar estes três tipos de divino. No entanto, a reação do “eu” vergiliano é muito diferente em cada um deles. O “eu” vergiliano parece reagir contra o “divino institucionalizado”, desvalorizando-o. O “divino verdadeiro” vai ganhando espaço na obra, é sentido e interrogado. Por último, o “divino religioso” é deixado em aberto, pois é algo que não se pode provar que exista. É um caminho próprio, no qual cada indivíduo terá de descodificar a sua relação com Deus e pacificar-se. Deus:

não significa nada – e é justamente nesse nada que pela rarefacção de uma ausência ainda me perturba. [...] Deus para mim é a perturbação de uma ausência que se sabe não mais será uma presença. Que essa perturbação se extinga, admito-o (...) Como todos os grandes problemas da vida, esse mesmo se há-de resolver por si, ou seja pela força da própria vida (FERREIRA, 2003, pp. 155-156).

A obra vergiliana tenta resolver o problema de Deus com a passagem da vida. O “eu” vergiliano vive, assim, essa perturbação que parece acabar por resolver-se numa mistura de certeza incerteza, visível invisível, dizível indizível, sentindo que existe um deus, um algo divino, mas que não sabe dar-lhe um nome. Poderá ser uma força divina, uma divindade ou Deus, ou até mesmo “uma nova raça divina” que se ergue naqueles que amam (FERREIRA, 2004d, p.16).

Conclusão / Considerações finais:

Nas obras da literatura europeia que foram objeto de análise, o mundo criado pelos autores inclui sempre a referência a uma força divina, conceito que vai evoluindo. Na epopeia grega, o divino manifesta-se nas criaturas divinas e nos vários deuses que controlam os diferentes âmbitos da vida do ser humano e as forças da natureza. Nas obras posteriores, até ao século XX, a presença do divino é marcada especialmente pela ideia de um só deus, o Deus todo-poderoso da tradição judaico- -cristã. Por último, nas obras do século XX, se, por um lado, se desvela uma descrença neste Deus cristão, por outro lado, o divino revela-se na permanência da necessidade de acreditar numa força superior que justifique as ações do homem e a razão da sua existência. Vão-se refletindo as distintas representações do divino, uma força incerta e superior, os deuses da mitologia grega ou o Deus da doutrina cristã. Estas representações não desaparecem ao longo do tempo, continuam a ser referências das obras posteriores e misturam-se com as novas representações deste referente cultural.

A presença do divino, nestas obras, advém de um ser humano que não aceita a morte como fim absoluto, nem a vida sem transcendência. Esta questão torna-se evidente na obra de Vergílio Ferreira, em que o ser humano perante a sua condição, opta por recusar a finitude humana, preferindo pensar, como afirma Bachiller, que “la muerte no destruye la vida como tal, esto es, como ser en el mundo, sino la vida como ser en “este” mundo” (1959, p. 63). Assim, nestas obras, não se cai no desespero, nem no nada. Criam-se variadíssimas possibilidades de mundos possíveis e impossíveis, pois a literatura “lleva al mundo y al hombre más allá de sí mismos” (RICOUER, 2000, p. 106).

A relação que o homem tem com o divino, sempre presente, vai-se, pois, transformando. No século XX, a obra de Vergílio Ferreira emerge de uma sociedade de tradição cristã e cruza-se com a filosofia existencialista. Deste modo, a filosofia, a religião e a literatura aglutinam-se. Por via de distinção, naquilo que lhes é próprio, a filosofia problematiza o Ser no mundo, a religião revela a existência do Sagrado como resposta à existência humana e a literatura veicula a amálgama das inquietações existenciais do homem e da sua cultura. Os romances vergilianos evidenciam o divino indizível, cuja presença se vai intensificando num “eu” que evolui ao longo da obra pela insistente procura daquilo que está para além do visível, pois tudo tem uma razão que a voz interior acaba apenas por sentir.

A narrativa vergiliana é um “eu” no mundo interior, onde pensa e repensa. É um “eu” que reflete e medita, no momento presente que vive, e recorda, recria e inventa o passado, tornando a vivê-lo no palco da ação: a sua mente. A sua corrente de pensamento, único fio condutor da ação de cada romance, é plasmada numa escrita fragmentária, na qual é impossível inscrever todo o seu sentir, desordenado e confuso. A transfiguração do real recordado, a imaginação e a transcendência da vida, tornam difícil, para o leitor, a distinção entre o real e o irreal, e entre a memória e o imaginário. O “eu” pensa-se num mundo exterior em relação com os outros, filhos, pais e mulheres, que, muitas vezes, já morreram.

A relação mantida entre o “eu” do protagonista e as outras personagens é a construção de uma rosácea que torna visível uma essência invisível. Denuncia a sua tristeza e a sua solidão numa (in)comunicabilidade com os que já não estão e deseja com toda a sua fé que não tenham partido totalmente, negando a morte como fim absoluto, mas procurando razões que o consolem. Não encontra nunca uma explicação para o seu sentir, porque a fé apenas se sente. O papel do leitor será tornar o indizível em dizível ou, talvez, só sentir, também, a voz interior do seu próprio “eu”.

Referências

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Notas

[1]Heidegger ajuda a compreender a obra vergiliana que também inclui ensaios filosóficos. Em O Ser e o Tempo (HEIDEGGER, 1998, p.45), surgem várias questões a ponderar para uma análise mais completa da obra de Vergílio Ferreira. Por exemplo, a ideia de que o ser só é capaz de se compreender através da sua realização, da sua existência, do “sendo”, ou como afirma Heidegger da sua presença. “A presença é de tal modo que, sendo, realiza uma compreensão do ser”. Esta compreensão é possível à medida que passa o tempo. “O tempo é o ponto de partida do qual a presença sempre compreende e interpreta implicitamente o ser”. Isto é, no início de vida não há nada ou quase nada para se analisar de modo a chegar a qualquer tipo de conclusão sobre o que é o ser humano. Porém, quando chegamos ao fim da nossa vida, temos muito para recordar, podendo assim analisar o ser através dos vários episódios, que disconexos, vamos juntando como se fosse um puzzle na nossa cabeça. “O tempo é o horizonte de toda a compreensão e interpretação do ser”. Por esta razão, a obra de Vergílio Ferreira trata episódios e pensamentos de uma vida, porque só com o passar do tempo é que se pode compreender e interpretar o “eu”. Assim, podemos interpretar de alguma forma o que somos e tal como a palavra indica interpretar é tirar uma ideia pessoal e não conseguir uma resposta verdadeira e una para a eterna interrogação sobre “O que sou? / Quem sou?”.

[2]“Já estavam todos na pátria os que, na guerra e no mar, tinham escapado a uma cruel morte; Ulisses era o único que suspirava pelo regresso e pela esposa, detido numa côncava gruta pela veneranda ninfa Calipso, a deusa preclara, que o desejava para marido. E, quando, no curso dos tempos, chegou a época decretada pelos deuses para ele voltar a Ítaca, a sua pátria, nem sequer então, estando entre os que lhe eram caros, foi livre de trabalhos. Todos os deuses se compadeciam dele, excepto Posidão, que permaneceu encolerizado contra o deiforme Ulisses, enquanto não chegou à sua terra. [...] os outros deuses reuniam-se no palácio de Zeus Olímpo” Homero, Odisseia, cit, p.1-2; “Já no largo Oceano navegavam [...] / As marítimas águas consagradas, / Que do gado de Próteu são cortadas. // Quando os Deuses no Olimpo luminoso, / Onde o governo está da humana gente, / Se ajuntam em consílio glorioso, / Sobre as cousas futuras do Oriente.” Luís de Camões, Os Lusíadas, Braga, Editora Ulisseia, 1997, p.49.

[3]“Desfiladeros de cal aprisionaban un cielo vacío / donde sonaban las voces de los que mueren bajo el guano / un cielo mondano y puro, idéntico a sí mismo, / con el bozo y lirio agudo de sus montañas invisibles.” (F. G. Lorca, “Poeta en Neuva York” in Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1960, p.413); “Son los cementerios, lo sé, son los cementerios / y el dolor de las cocinas enterradas bajo la arena, / son los muertos, los faisanes y las manzanas de otra hora / los que nos empujan en la garganta.” (F. G. Lorca, “Poeta en Neuva York”, cit, p.416).

[4]“AMIGO / Levántate para que oigas aullar / Al perro asirio. / Las tres ninfas del cáncer han estado bailando / Hijo mío. [...] Amigo, / despierta [...] / ¡Amigo! / Levántate...” (F. G. Lorca, “Poeta en Neuva York”, cit, pp.437-438).

[5]Talvez a voz da consciência que encontramos em Heidegger: “La «voz de la conciencia» es (…) la expresión de lo que el Dasein tiene de original. […] la conciencia se presenta como una llamada (…) del Dasein a su poder-ser más personal y al mismo tiempo a su propia responsabilidad” (JOLIVET, 1969, p.136). Nos romances mais tardios, como Em Nome da Terra, talvez seja já a voz de Deus: “Voz das coisas, da terra. Suponhamos a voz de Deus que é a mais provável quando não há nenhuma, nem a dele” (FERREIRA, 2004d, p.12).

[6]“Nací pobre y campesino, destinado por mi estado a cultivar la tierra; pero creyeron que era más hermoso que aprendiera a ganar mi pan en el oficio de sacerdote, y hallaron el medio de hacerme estudiar. A buen seguro, ni mis padres ni yo pretendíamos buscar con ello lo que fuera bueno, verdadero y útil, sino lo que había que saber para poder ser ordenado. Aprendí lo que se quería que aprendiese, dije lo que se quería que dijese” J. Rousseau, Emilio o De la Educación, cit, p.397.

[7]Para este autor, o divino verdadeiro relaciona-se com o “sagrado”, pois, na sua perspetiva, “o ‘sagrado’ é uma instância do humano” e “a ‘religião’ é uma instituição dos homens” (SOUSA, 2001, p.166)

[8] Em Íon de Platão, trata-se a questão da inspiração divina. O poeta não tem arte, mas um dom divino: “o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão. (...) este é um dom divino (...) não é pela arte que dizem tantas e belas coisas (...) mas por um privilégio divino [...] por uma força divina” (PLATÃO, 1988, p. 51 e 53).